APRESENTAÇÃO Em busca da bolinha perdida é um conto que, inspirando-se na relação de afecto existente entre três crianças de tenra idade e uma cadela, projecta essa relação num conjunto muito mais vasto de animais, que constituem a fauna característica do nosso país, salvo raras excepções, e transporta a acção dos cenários verosímeis da paisagem nacional para a dimensão encantatória de um mundo paralelo, onde – pelo recurso sistemático à personificação – coelhos, formigas, cigarras, melros, charnecos, pardais, perdizes, mochos, burros, macacos, pombos, texugos e gaivotas se comportam como seres humanos, quando não sobre-humanos. Ao longo de seis capítulos, sucedem-se episódios e micro-episódios, que propiciam referências culturais variadas: a pintura impressionista, a fábula da cigarra e da formiga, a teoria heliocêntrica e os dissabores de Galileu, a caverna de Platão e os grandes mitos da Antiguidade Clássica. Não houve, da parte do autor, a preocupação de adequar sempre quer o vocabulário, quer os conteúdos temáticos ao nível etário do público-alvo. Com efeito, para a criança de três, quatro ou cinco anos pode o adulto que ler este conto proceder à substituição prévia ou à explicação dos vocábulos e dos passos que se revelem mais opacos, sempre que isso não é feito no corpo do conto. Esse trabalho de descodificação corresponde, para a criança, ao trabalho de tradução a que procede o leitor adulto colocado perante um texto redigido em língua estrangeira da qual tem um conhecimento muito imperfeito. Porventura, a descodificação de uma frase aqui, outra além, permitir-lhe-á captar o sentido global do texto, sendo que todas as minudências expressivas lhe passarão ao lado, nomeadamente os aspectos relacionados com a utensilagem estilística. Porém, a revisitação do texto em momentos posteriores da vida desse leitor, correspondentes a etapas sucessivas de aquisição de uma competência linguística crescente, permitir-lhe-á afinar progressivamente a sua leitura inicial, acabando, eventualmente, por aceder à fruição total da riqueza expressiva do texto. Por sua vez, retomando a criança, mais tarde, a leitura do conto, já de posse dos instrumentos da escrita e da leitura, decerto aprofundará o seu entendimento da história. E como a leitura é um processo dinâmico e motivador, é provável que as referências culturais inadequadas para as idades do público-alvo deste conto se revelem coadjuvantes de aquisições mais tardias, a saber, próprias do 3.º ciclo do ensino básico e do secundário. Era uma vez… … duas priminhas, chamadas Alice e Júlia, o Lucas, que era um amiguinho delas, e a Xita, cadelinha bóxer muito linda e meiga. Também entram nesta história um camaleão verde, às vezes amarelo, um ouriço talentoso, um coelho ladino e simpático, uma bolinha amarela que a Xita nunca largava, e ainda formigas, cigarras, melros, charnecos, pardais, perdizes, mochos, burros, macacos, pombos, texugos, gaivotas e até uma sereia. Queres ver as fantásticas aventuras que eles vivem? I A bolinha da Xita e os bichos do mato Naquele dia, como sempre, a Xita corria atrás da bolinha, mas não se limitava a correr, lambia a Júlia e a Alice com a sua língua comprida e espalmada. A Alice e a Júlia, por sua vez, corriam atrás dela, para lhe tirar a bolinha e lançá-la ao ar. A Alice também subia ao alto do escorrega, sentava-se e deixava-se deslizar, até bater com os pés na relva do jardim. Às vezes, descia como se fosse mergulhar, de cabeça para baixo e rabinho para o ar. Quanto à Júlia, baloiçava no baloiço, atirando com as perninhas para a frente e para trás. Assim, ganhava mais velocidade e parecia que ia juntar-se aos passarinhos que voavam do jacarandá para o beiral do alpendre. A Xita não largava a sua bolinha amarela de borracha. Tão depressa se espojava sobre ela como a mordia ou a atirava ao ar, correndo depois atrás dela. Até que a Júlia lha apanhou e a lançou não para muito longe, porque a Júlia ainda é pequenina e não tem muita força. Porém, nesse instante, uma forte rajada de vento soprou sobre o jardim. E a bolinha, que estava ali a dois passos das primas e da Xita, foi levada sem que fosse possível ver para onde. A Xita correu logo atrás dela, claro, mas não conseguia vislumbrá-la. Foram então os três, Júlia, Alice e Xita, ver se a encontravam no meio das ervas. Mas nada. A bolinha não aparecia e a Xita estava impaciente. Avançaram um pouco mais e… lá estava ela. O estranho era que tinha mudado de forma. Tinha mudado de forma?! Não! Aquilo não passava dum limão com uma forma irregular e pouco habitual. Andaram mais um pouco e, finalmente, “eureka!”, teria exclamado a Alice, se já tivesse ouvido falar de Arquimedes e do seu princípio. É que tinha descoberto a bolinha. Sabem como era ela agora? Era verde e mais esguia. Além disso, tinha dois olhinhos que se moviam em todas as direcções e quatro patinhas curtas que se deslocavam com todo o vagar e lentidão. Quando os três se aproximaram dela, a bolinha imobilizou-se, com uma das patinhas suspensas, como se, de repente, tivesse congelado. Parecia mesmo a estátua do discóbolo, a preparar-se para lançar o disco nos jogos olímpicos. A Xita não se atreveu a tocar-lhe. E foi a Alice quem se lembrou de que a mamã lhe mostrara já, uma vez, uma coisinha assim. Afinal, não era a bolinha da Xita – era um camaleão. Uma vez que a bolinha não aparecia, decidiram procurá-la nos ramos duma videira alcandorada numa estaca, onde foram encontrar – sabes o quê? – um ninho de melro com duas crias famintas, que deixaram em paz, porque a mãe andava por perto e com ar de estar muito zangada. Foi ao chegarem à roseira amarela, por detrás dos cedros, que encontraram outro ninho. Neste, já não havia ovos nem pintos, mas era lá que estava – imaginem! – a bolinha da Xita. Agora, sim, era mesmo a bolinha e não o camaleão de há pouco, ou a osga. A Xita dava pulos de contente. Mas durou pouco o contentamento da Xita. É que a Alice entendeu que também devia lançar a bolinha para longe. Não era a primeira vez que o fazia, mas desta vez fê-lo com tanta força que, sem precisar da ajuda da rajada de vento, a bolinha subiu alto no céu, descreveu um arco e foi cair lá longe, tão longe que desapareceu. O Sol estava a pôr-se e o vento começava a soprar, quando, levando a Júlia pela mão e com a Xita à frente, a Alice se pôs a caminho do sítio longínquo onde esperava encontrar o brinquedo. Caminharam, caminharam, até que... a noite caiu. E com o cair da noite chegaram as estrelas e a lua. Era noite de lua-cheia e o luar inundava os campos. Por isso, avançavam os três facilmente, por entre alfarrobeiras e oliveiras. Mas foi junto de uma figueira que elas encontraram um coelho recém-saído da toca, a princípio amedrontado, ao ver a Xita, mas logo amistoso, que lhes perguntou ao que vinham: ʊ$TXHVHGHYHDYRVVDYLQGDDRPHXWHUULWyULRDPLJXLQKRV" ʊ 2Oi DPLJR FRHOKR 3URFXUDPRV D EROLQKD GD ;LWD 1mR D WHUiV visto por estes lados? ʊ9LFRPFHUWH]DPDVVyYRODGRXFRPXPDFRQGLomR ʊ(TXHFRQGLomRpHVVD"ʊSHUJXQWRXD$OLFH ʊ4XHQmRIDoDPEDUXOKRGHSRLVGRS{UGRVROeTXHRVPHXVILOKLnhos já dormem e não quero que acordem sobressaltados. ʊ&RPELQDGRFRHOKRGLVVHD$OLFH'DTXLHPGLDQWHYDPRVID]HU como os teus coelhinhos. Sol posto, toda a gente na cama. ʊ6HQGRDVVLPYHQKDPFRPLJRGLVVHRFRHOKR E, dito isto, levou as duas primas e a Xita à sua toca. Tiveram alguma dificuldade, ao entrar, porque lhes faltava o hábito. Mas encolheram-se quanto puderam e, franqueada a entrada, até parecia que sempre se tinham movido em luras e covis. ʊ$TXLDWHQGHVGLVVHRFRHOKRDSRQWDQGRSDUDXPFDQWRGDJDOHULD subterrânea. Entrou aqui como um foguete e foi uma sorte não ter atingido a minha coelha. Espero que passem a ter mais cuidado com as vossas brincadeiras, ou terei de me mudar para outro campo. ʊ1mRYDLVHUSUHFLVRFRHOKRWUDQTXLOL]RXRORJRD$OLFH1yVYDmos ter cuidado. E obrigada por nos devolveres a bolinha. Neste entretanto, a Xita já tinha abocanhado a sua bolinha querida e, de tão contente, lambia o coelho todo. Feitas as despedidas, prepararam-se os três para regressar a penates, o que é uma maneira de dizer voltar para casa. Porém, este dia de surpresas não chegara ao fim. Outras aventuras os esperavam no regresso. Foi assim que a Júlia se viu, de repente, na mira de um ouriço muito especial. Como sabemos, os ouriços são uns bichinhos simpáticos e tímidos, que têm o corpo revestido de espinhos e um focinhito aguçado. Pois este ouriço, para além dos insectos de que se alimentava, e provando com isso que nem só de insectos vive o ouriço, prezava muito certo alimento espiritual e artístico, o qual era, nada mais, nada menos do que a pintura. Não uma pintura qualquer, que os seus hábitos preferentemente crepusculares lhe dificultavam um pouco a observação minuciosa das formas. O nosso ouriço era um pintor impressionista, qual Monet ou Renoir. Ora, ao ver a Júlia com a prima e a Xita, o ouriço sacou dos pincéis – maneira de dizer que pôs os seus próprios espinhos a jeito e não parou enquanto a tela branca não ficou coberta de cores e de sombras que representavam a Júlia banhada pelo luar. ʊ1mRILFDVWHPXLWRIDYRUHFLGD-~OLD7XpVPDLVERQLWDGRTXHDTXL SDUHFHVPDVQmRVRXFDSD]GHID]HUPHOKRUʊGHVFXOSRXVHRRXULoR ʊ2OiʊDJUDGHFHXOKHD-~OLDFRPDTXHODHFRQRPLDGHSDODYUDV TXHDFDUDFWHUL]DPDVTXHQRIXQGRTXHULDGL]HUʊ0XLWRREULJDGD amigo ouriço. Não fiques assim. Gosto muito do retrato. E lá seguiram novamente caminho. Só agora se apercebiam do muito que tinham andado e de quanto lhes faltava ainda para chegarem a casa do vovô e da vovó. Que lhes reservaria ainda esta caminhada de regresso? Apesar da frescura da noite, a respiração ofegante da Xita mostrava que estava cansada de tanto andar. O mesmo acontecia com a Alice e a Júlia, que ansiavam por se deitar. Chegaram então junto de um charco, onde duas ou três rãs, esquecidas das horas, coaxavam alegremente. Foi nesta altura que, sem saber como, a Alice deu um passo em falso, tropeçou e caiu à água. As rãs assustaram-se, dum salto puseram-se a salvo, mas a Alice, ai a Alice! Ficou feita num pinto. Felizmente, logo a seguir, depararam-se com um espectáculo surpreendente: a curta distância delas, muitos animais reunidos em círculo dançavam, enquanto entoavam uma curiosa canção: Olha o mosquito zonzo a zumbir, o rouxinol pronto a trinar e o cordeiro branco a balir, junto do pato feio a grasnar. Olha o leão feroz a rugir e o pombinho meigo a arrulhar junto do boi lento a mugir e do cavalo a relinchar. Vês o elefante gordo a barrir e o burrinho que está a zurrar? Vês o porquinho? Está a grunhir. E ouves as rãs a coaxar? Somos os bichos do mato em festa, mas vamos já dormir a sesta. Se a Alice e a Ju quiserem vir está na hora de ir dormir. Fazia também parte desta curiosa assembleia musical uma gaivota. A Xita, que, entretanto, tinha entregado a sua bolinha amarela à Júlia, preparava-se para a recuperar quando a dita gaivota lha surripiou num abrir e fechar de bico, voando depois para longe. Claro que a Xita ficou desesperada. Agora que o coelho lha tinha devolvido, quando já lhe parecia que nunca mais voltaria a vê-la, via-se novamente privada do seu brinquedinho de estimação. E, para cúmulo, era tão tarde que já não podia retomar as buscas. E, ainda que as retomasse, como iriam ela, a Alice e a Júlia perseguir a gaivota? É que uma perseguição aérea oferecia dificuldades muito maiores do que a terrestre. Não havia nada a fazer, por hoje, e a Xita lá se resignou. Se não tivesse a cauda amputada, de certeza que a meteria entre as pernas. Assim, limitou-se a ficar cabisbaixa, de orelhitas pendentes. E, por fim, lá chegaram a casa. Depois desta aventura emocionante, a Alice e a Júlia receavam que os avós estivessem muito inquietos e que lhes ralhassem. Mas não. Não só não estavam nada zangados como ainda lhes tinham reservado uma bela surpresa: um bolo de chocolate que o avô, aliás, tinha já encetado, para combater o nervosismo da espera. Claro que a Xita não pôde comer bolo, mas tinha um naco de carne no seu comedouro que lhe saciou a fome e quase a fez esquecer-se da bolinha. Quase. Porque as buscas vão ser retomadas em breve. Queres ver? II Passeio no firmamento Jantavam muito cedo, no Verão, e como havia claridade até perto das dez, Alice e Júlia ficavam no jardim, a brincar, enquanto os papás e as mamãs conversavam. Do baloiço para o escorrega, do escorrega para o baloiço, correr atrás da Xita, atirar-lhe um brinquedo qualquer para longe, agora que a bolinha estava em parte incerta, vendo-a depois correr desenfreadamente atrás dele, rebolar-se no chão, arrancar umas folhinhas da acácia e com elas fazer uma sopinha no caldeirão de barro onde a Xita e as aves iam beber – eram estas algumas das actividades a que se entregavam sem nunca se cansarem. Naquela noite, o Lucas, companheiro da Alice no infantário, tinha vindo com os pais. Nunca tinham brincado tanto, de tal maneira que tinham já experimentado de tudo. Acabaram por se sentar a olhar para o céu porque um mocho acabara de o cruzar num voo rápido e quase invisível, talvez no encalço de algum coelhinho ou de um rato vislumbrado do alto. E assim permaneceram alguns segundos, na expectativa de que o voltariam a ver. Mas não. O mocho não se deixou ver nem ouvir novamente, e lá ficaram os três muito atentos ao firmamento. A noite estava quente, e no céu sem Lua o negrume era total. Por isso, cada estrela lá em cima se destacava naquele negro absoluto como se fosse um pingo de prata, mas sempre muito pequenino, qual cabeça de alfinete a brilhar. — Vamos contar as estrelas, Júlia — propôs a Alice. — Uma, duas, três,… Mas, ao chegar a dez, perdeu-se e saltou para catorze, depois para doze, antes de se confessar vencida, não só pela dificuldade da aritmética como ainda pela quantidade enorme de cabeças prateadas de alfinetes no céu. Quanto a Júlia, ouvia a contagem da prima e não entendia lá muito bem para que servia. Não seria melhor a Alice cantar ou contar uma história do Zé Colmeia? — Um dinossauro! — exclamou Lucas, de repente — Alice, olha para aquelas estrelas! Não parecem um dinossauro? Ora, justamente, Alice acabava de se lembrar do que o papá e a mamã lhe tinham dito a propósito de algumas estrelas. Ali, mesmo por cima delas, havia umas quantas que se juntavam para formar a Ursa Maior. — Não é dinossauro nenhum, Lucas. É uma ursa. Mas Lucas insistia: — Não, é um dinossauro. É um Tiranossauro Rex. Nada convencida, a Alice procurou as estrelas que deveriam dar forma à Ursa, apontou com o dedo para que a Júlia e o Lucas pudessem acompanhá-la na busca, mas não conseguia separar aqueles poucos pontinhos brancos que formavam a tal Ursa dos restantes que estavam por todo o lado. Desistiu. A Júlia, porém, quis imitá-la e pôs-se a apontar as estrelas com o indicadorzinho espetado na direcção delas. Depois, levantou-se para chegar mais perto de uma estrela que tinha seleccionado de entre todas as outras, querendo tocar-lhe. Mas nem de pé lá chegava, pelo que pegou na mão da Alice e na do Lucas e puxou-os para o terraço. Ali, o céu parecia brilhar ainda mais, com aqueles pontinhos de prata por todos os lados. Eram certamente mais de dez, ou mesmo mais de catorze ou doze. Impossível contá-los. Ora a Júlia parecia dominada pela ideia fixa de tocar naquela estrela que vira do jardim. Chegada ao terraço, apontou novamente o dedinho ao céu, na direcção da mesma estrela. Da mesma? Talvez não. Ao passarem do jardim para o terraço, os três tinham dado uma volta na escada, e agora estavam voltados numa direcção diferente. Mas a Júlia continuava mesmo assim a apontar para uma estrela. Tinha de estar a apontar para uma estrela, já que eram tantas e tão próximas que, seguindo a direcção apontada pelo dedo se chegaria sempre a uma delas. E não se limitava a apontar; esticava o braço, punha-se em bicos de pés. Alice quis então ajudá-la. Arrastou um banco para junto dela e ajudou-a a subir para cima do banco. Logo que a Júlia se viu em cima do banco, ergueu novamente o braço na direcção da estrela. Mas, ainda assim, não conseguia tocar-lhe. A estrela continuava longe de mais. O Lucas teve então a ideia de pôr o banco em cima da mesa que estava ali mesmo ao lado. A seguir, ajudou a Júlia a subir para a mesa e daí para cima do banco. Estava muito contente por ver o júbilo da Júlia, que tinha ficado imensamente mais perto da estrela, e batia palmas, enquanto ela sorria para o firmamento, de olhos fitos no astro que elegera e que ia finalmente alcançar, porque se pôs em bicos de pés, esticou o braço, esticou o braço e… — Júlia, volta para cá — gritaram a Alice e o Lucas, aflitos. Tarde de mais. A Júlia tinha mesmo conseguido alcançar a estrela e lá ia ela pelo céu fora, para os lados da Cassiopeia. — Mamã, papá! — proferiu a Alice entredentes, sem saber bem se queria mesmo que a mamã, o papá, a tia, o tio e os pais do Lucas se dessem conta da súbita ascensão da Júlia. Contudo, apesar da velocidade vertiginosa a que ela se erguera na direcção das estrelas, continuava bem visível e exibia um ar de felicidade que em nada diferia do que lhe era habitual quando estava cá em baixo, com os pés assentes na Terra. E não só se mantinha visível como, para maior satisfação e tranquilidade da prima e do Lucas, falava e fazia-se ouvir com tanta fluência e clareza como se estivesse ali mesmo ao pé deles. Mas falava mesmo. Era como se aquele banho de infinito lhe tivesse ministrado toda a ciência da língua à velocidade da luz. — Espera, que eu já desço! — dizia, ou parecia dizer, com um sorriso tão grande que ofuscaria o luar, se fosse noite de lua-cheia. — Eu tenho medo que caias e te magoes — dizia-lhe Alice, que a inquiria: — Não tens frio? — Não, aqui até está muito quentinho e a paisagem é linda. Devias vir ter comigo. — Consegues ver o dinossauro? — perguntava-lhe o Lucas. — Vejo-te a ti, à Alice e à Xita. Alice estava mais calma. Afinal, o pior parecia já ter passado: a elevação na atmosfera fizera-se sem percalços e a Júlia mostrava estar a dar-se bem àquela altitude. Aliás, querem saber o que ela estava agora a fazer? Agarrara num punhado de estrelas, fizera com elas uma corda, com outras desenhara um assento e ei-la que se baloiçava de Peixes para Andrómeda, de Andrómeda para Peixes, como se nunca tivesse feito mais nada na vida. Era um baloiço de luz, que deixava um rasto a cada passagem, e a Júlia comprazia-se a dar chutos nas estrelas que se lhe colavam aos pés e às pernas. A Alice via-a voltejar e invejava-a. Quem lhe dera poder entrar também naquele jogo de luz e de estrelas! Mas, intimamente, começava a inquietar-se. Não sabia quanto tempo iria aquilo durar e, sobretudo, como acabaria. É que a subida fora tranquila, mas… e agora a descida?! Não iria a Júlia dar um trambolhão e magoar-se? E, nem de propósito, Júlia acabava de saltar do baloiço de estrelas e escorregava agora pela Via Láctea, que é, como sabemos, uma nebulosa, uma mancha leitosa feita de muitos milhões de estrelas distantes, a mais próxima das quais é o nosso Sol. — Ai que bom escorrega, Alice! — gritava ela. — Vem até aqui!