A lavagem de dinheiro e a questão do delito antecedente Dentre os

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A lavagem de dinheiro e a questão do delito antecedente
Dentre os delitos debatidos no cerne da Ação Penal nº 470, certamente a lavagem de dinheiro
apresenta-se como um dos mais complexos. Sua formulação típica exige da doutrina jurídicopenal constantes reflexões, assumindo um papel cada vez maior de protagonismo tanto na
produção acadêmica nacional quanto estrangeira. Formulado originariamente como um
mecanismo de repressão à gestão e financiamento do tráfico de drogas, o crime de "money
laundering" foi gradativamente distanciando-se desse paradigma único, alargando sua
ocorrência e permitindo a intervenção penal quando do emprego de recursos ilícitos derivados
também de outras infrações penais.
No direito brasileiro, a lavagem de dinheiro aparece tipificada pela primeira vez pela Lei nº
9.613, de 1998, já estabelecendo um modelo de segunda geração. Quer isso dizer que nossa
legislação, ao criminalizar a ocultação ou dissimulação acerca da natureza, origem, localização,
disposição, movimentação ou propriedade de bens direitos ou valores, não se circunscreveu
apenas às infrações penais relacionadas às drogas. O legislador nacional abarcou também
outros delitos antecedentes, como, por exemplo, crimes contra a administração pública,
contra o sistema financeiro nacional, extorsão mediante sequestro e praticados por
organizações criminosas. Recentemente, entraram em vigor, não sem críticas bastante
pertinentes, novas alterações - promovidas pela Lei nº 12.683, de 2012 -, suprimindo a lista
"fechada" de crimes antecedentes e, em consequência, permitindo a atribuição de lavagem
nas hipóteses de ocultação ou dissimulação de recursos advindos de qualquer infração penal
antecedente (terceira geração da lavagem de dinheiro).
Convém frisar, entretanto, que a nova lei, por ser mais grave, não se aplica aos casos pretéritos
por força do princípio geral da irretroatividade da lei penal. Assim, o julgamento com o qual se
depara o Supremo Tribunal Federal (STF) deve pautar-se pela legislação de então, qual seja,
aquela que apenas sustenta a acusação de lavagem se existente ao menos um dos delitos
antecedentes inseridos no rol até então estabelecido. Nesse cenário, algumas linhas de defesa
mostram-se possíveis, valendo destacar aqui, dentre as já apresentadas em plenário, duas
delas.
A primeira diz respeito ao componente subjetivo da lavagem de dinheiro, isto é, a acusação
por esse delito apenas se sustenta se demonstrada a intencionalidade do agente em relação à
sua prática. Mais ainda, exige a comprovação de que os acusados deste crime possuíam o
conhecimento da origem ilícita dos recursos. Isso porque o ordenamento jurídico brasileiro
não permite a prática de lavagem culposa (sem intenção), incorrendo no delito apenas aquele
sujeito que detém o conhecimento da origem maculada dos valores e atua, em consequência,
com a intencionalidade de ocultação ou dissimulação dessa mesma procedência.
Outra linha defensiva que merece menção é a postulação acerca da inexistência, no caso
concreto, daqueles delitos antecedentes previstos na lei que vigorava à época dos fatos.
Tratando-se de um delito dependente de outro crime pretérito, não será sustentável a
acusação de lavagem se não ficarem comprovadas práticas delitivas anteriores, tais como
corrupção, peculato etc. O crime de lavagem, portanto, apenas é juridicamente possível se os
valores ocultados ou dissimulados derivarem de crimes outros, já que a intencionalidade
legislativa é exatamente perseguir os recursos ilícitos ("follow the money") e, ao mesmo
tempo, impedi-los de reingressar na economia regular.
Nesse sentido, a acessoriedade da lavagem de dinheiro em face do crime antecedente pode
ser comparada, em termos bastante genéricos, com o conhecido delito de receptação, o qual
apenas ocorre quando a coisa adquirida ou recebida é igualmente objeto de um crime, no mais
das vezes patrimonial, anterior. Os argumentos da defesa, por essa razão, tendem a enfrentar
as transações e negócios anteriores à realização dos supostos fatos específicos de lavagem,
uma vez que, demonstrada a falta de ilicitude penal daquelas, inexistente será o componente
essencial a justificar a condenação por lavagem de dinheiro. Aliás, essa é uma das
complexidades desse tipo de acusação, eis que o julgador deve se ater não apenas aos atos
rotulados como lavagem, mas também perquirir a respeito de uma origem espúria dos
recursos a justificar a ilicitude do comportamento posterior
Alamiro Velludo Salvador é professor doutor da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo (USP). Artigo publicado no jornal Valor Econômico em 08/08/2012.
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