O Estado nacional oitocentista: a busca do progresso através da ciência Vanessa Cristina Melnixenco Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da UNIRIO. Linha de Pesquisa: Instituições, Poder e Ciências. [email protected] Resumo: O presente trabalho pretende elucidar a influência da instituição científica Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional sobre a construção do Estado brasileiro durante o século XIX e seu apoio à adoção de tecnologias e introdução de maquinários na agricultura, fundamentais não somente para a economia brasileira oitocentista, mas também para o fortalecimento das elites e, consequentemente, da política imperial, ao pensar uma tradição para o país e enfatizar sua “missão” de progresso. Palavras-chave: Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional; identidade nacional; tecnologia. I – Introdução No início do século XIX, o Brasil torna-se um país independente, libertado da condição de colônia a qual esteve submetido por três séculos. Com o fim do jugo português, descortinam-se novas possibilidades para que o Brasil, país emergente no cenário internacional, passe a comandar seu destino. O desejo de romper com o passado colonial, sinônimo de atraso, ganha força e passa a constituir o discurso da elite dirigente, que vislumbra um futuro glorioso para a nova nação objetivando alcançar o progresso e, dessa forma, atingir o mesmo patamar dos países europeus, símbolos da civilização. Em paralelo a construção do Estado nacional, essa mesma elite dá início a um projeto de nação, pelo qual o passado seria reformulado para a criação de uma tradição e identidade brasileiras comum a todo o país. II – A construção do Estado e a formação da identidade nacional A necessidade da criação de uma identidade nacional está ligada intimamente à árdua tarefa de garantir a integridade do recém-formado Império e à preservação da ordem escravocrata. A grande dimensão do território que compunha o país carecia, antes de mais nada, de uma integração regional para evitar a fragmentação, ameaça constante pelas inúmeras rebeliões que eclodiram no período do governo de D. Pedro I. Para isso, necessitava-se de um símbolo que pudesse representar a nação como um todo e difundir entre cada habitante uma característica comum que os aproximasse e os definisse como brasileiros. Nestas circunstâncias, a figura do monarca se apresentava como o único elo capaz de manter todas as regiões do país sob um mesmo Estado, ou seja, dever-se-ia recorrer à centralização do poder, uma “âncora de salvação e segurança” (DIAS, 2009, p. 25), através da consolidação da hegemonia do Rio de Janeiro sobre as demais províncias do Brasil. O Estado, juntamente com o apoio da elite, passa a ser representante do poder, outrora nas mãos da metrópole, dando seguimento á “construção da ordem” 1 por meio da difusão de valores próprios às nações civilizadas. Essa prática é sintetizada no conceito de Estado ampliado criado por Gramsci: “considera-se no Estado Imperial não somente seus aparelhos de coerção – que visam e possibilitam uma dominação –, mas também sua capacidade de produzir e reproduzir uma direção moral, intelectual e, portanto, cultural” (MARINHO, 2008, p. 14). Seguindo, também, o pensamento de Foucault, o poder é força positiva de coesão do corpo social, sendo fonte de verdade. Para que esse poder possa ser exercido é necessária a produção de um discurso que o legitime, ou seja, que forneça elemento que dê respaldo a esse poder (LENOIR, 2003, p. 67). Dessa forma, o Estado Imperial justifica seu poder através da difusão de normas e valores, visando a criação de uma memória coletiva e, ainda, conquistando o consentimento dos governados. Logo, a consciência nacional que era aos poucos difundida, obra de intelectuais ilustrados, possuía uma marca elitista e utilitária, na qual a população não tinha vez, sendo utilizada como um instrumento em prol dos interesses da elite e dos objetivos dos estudiosos. De acordo com Maria Odila Dias, essa minoria de letrados, inspirada nos ideais do despotismo ilustrado do século XVIII, reservava para si a missão paternalista de modernizar e reformar o arcabouço político e administrativo do país, sem comprometer a continuidade social e econômica da sociedade colonial (DIAS, 2009, p. 128). Ou seja, a elite se autodenominava protetora de um “povo bárbaro, carente de luzes, necessitado de liderança e de disciplina” (DIAS, 2009, p. 136). A própria estrutura social, constituída de uma minoria detentora de privilégios, determinava a união dos interesses das classes dominantes sobre as forças políticas. II – A invenção de um Brasil 1 Alusão ao título da obra de José Murilo de Carvalho “A Construção da Ordem. A elite política imperial”. Ao perseguir um ideal de superação do atraso, os intelectuais brasileiros espelham-se nas nações europeias, consideradas o berço da civilização, promulgadoras de invenções, representação da sofisticação e as peças mais importantes da economia mundial e da sociedade burguesa, modelos a serem alcançados a fim de o Brasil poder aparecer em mesmo plano de igualdade. O projeto da nação brasileira, ao mesmo tempo em que buscava superar as mazelas do período colonial, não se opunha a antiga metrópole portuguesa, pelo contrário, fazia uso dessa condição para se proclamar herdeira da tarefa civilizadora. Enquanto se dizia independente e descolonizada, mantinha valores europeus arraigados ao seu discurso. A principal prova disso era a figura do monarca, representante da dinastia dos Bragança. O Estado brasileiro, filho de Portugal, representado por um imperador único nas Américas, já era o bastante para destacar o Brasil em meio à “barbárie” das Repúblicas vizinhas. Construía-se uma nação dita brasileira considerada, na verdade, como um desdobramento da sociedade europeia: restritamente branca, detentora do papel civilizador. Os indígenas, a princípio, seriam excluídos do projeto de nação, no entanto, logo ganhariam certa valorização ao receberem o status de representantes das origens da nação, portadores da “brasilidade” e, diante de interesses políticos, como forma de resguardar a posse dos territórios limítrofes do Império. O negro não seria incorporado ao processo, sendo sua figura considerada como uma barreira ao progresso. A eliminação dos negros está intimamente ligada ao fenômeno denominado por Maria Odila Dias como “haitianismo”, “como se convencionou chamar o pavor de uma revolta de escravos, difundido pela ideologia contrarrevolucionária e de reação contra a Revolução de São Domingos” (DIAS, 2009, p. 134). Porém, não sendo possível aos intelectuais excluírem de fato os nativos e os negros, eles ainda assim faziam parte do povo brasileiro. José Bonifácio refletira sobre essa questão em 1813: “amalgamação muito difícil será a liga de tanto material heterogêneo. Como brancos, negros, mulatos, pretos livres e escravos, índios, etc. etc., em um corpo sólido e político” (DIAS, 2009, p. 24). Questão essa considerada uma deformação da sociedade brasileira juntamente com a miséria. Para os pensadores ilustrados, a solução seria a miscigenação das raças, com a promoção da imigração europeia em substituição do braço escravo e, assim, lançar “os alicerces para a construção do nosso mito da democracia racial” (GUIMARÃES, 1988, p. 16). III – Ciência nos Trópicos e exaltação da natureza Inspirados na ideologia do iluminismo, caracterizado pelo apresso ao conhecimento e exaltação do homem intelectual, os pensadores brasileiros dão continuidade à política já iniciada pela metrópole no século anterior com a criação de instituições científicas nas quais a identidade bem como o território seriam pensados. Tais instituições inspiravam-se nos modelos científicos europeus e buscavam se aprimorar e qualificar-se, ao ponto de poderem se igualar às do Velho Mundo. A institucionalização das ciências foi considerada pelos intelectuais uma forma de integrar o Brasil na cultura ocidental, pois seria um instrumento fundamental para fomentar o conhecimento sobre a própria terra e favorecer a aplicação dos saberes adquiridos a serviço do progresso material. Havia uma íntima relação entre ciência e interesses políticos, onde a administração pública confundia-se com os interesses privados da elite imperial, considerando-se representantes do estado civilizatório no qual se viam inseridos. Além disso, citando Bourdieu, a produção científica está envolta em disputa acirrada pela legitimação do poder e do monopólio da autoridade científica, que seria a capacidade de falar e agir legitimamente, ou seja, de maneira autorizada (BOURDIEU, 1983, p. 122-123). Os intelectuais do século XIX, denominando-se produtores do conhecimento, possuiriam legitimidade bem como autoridade para influenciar nas questões políticas e, dessa forma, conquistar posição dominante no cenário público. A ideologia científica difundida por esses intelectuais baseava-se no utilitarismo e pragmatismo do conhecimento. A ciência como algo útil de aplicação traria benefícios práticos para o progresso tão desejado. Apoiaram atividades de pesquisa e exploração do território nacional, a fim de desvendar seu interior e fazer uso dos recursos naturais em prol do desenvolvimento do país. Nas palavras de Maria Odila Dias, a natureza pragmática de seus estudos, a atividade científica sob uma política de Estado que procurava ser inovadora e fazer reformas – se não políticas e sociais, pelo menos técnicas -, trazia o selo do despotismo ilustrado, que procurava impulsionar e estimular os estudos científicos de finalidade prática, principalmente de mineralogia e história natural, em detrimento dos estudos políticos e filosóficos, sempre mais perigosos que os antigos privilégios e para a ordem constituída (DIAS, 2009, p.102-103). A exaltação da natureza brasileira, muito propagada neste período, é também representação da criação de uma identidade nacional, não somente para o próprio país, mas também para divulgação às nações europeias. “A natureza, porque exótica, tornou-se, na maioria das vezes, o sinônimo do caro legado, cumprindo entre nós o papel de tradição ausente, e simbolizando, é claro, a particularidade do lugar” (PAMPLONA, 2003, p. 16). Para exemplificar essa questão, basta citar as Exposições Universais do século XIX, consideradas locais de transferência de conhecimento onde cada país participante tinha a oportunidade de revelar ao mundo suas singularidades e avanços científicos. Na Exposição de Paris de 1889, o pavilhão brasileiro, idealizado pelo famoso paisagista Auguste François-Marie Glaziou, era uma miniatura do que se podia ser encontrado do outro lado do Atlântico: a construção branca apresentava esculturas de índios, homens, mulheres, em meio a uma vegetação exuberante representando os rios de diferentes partes do país: Amazonas; Paraná; Paraíba; São Francisco; Tietê e Tocantins. Ainda do lado de fora, uma estufa de palmeiras, orquídeas e bananeiras vitórias-régias atraía os visitantes a um cenário para muitos exótico (HEIZER, 2009, p. 55). Portanto, o pavilhão do Brasil apresentava um país provido de uma exuberante natureza e matérias-primas abundantes, indicando uma terra promissora para capitais e imigrantes estrangeiros. Esse louvor não é uma tradição inventada, na verdade, é inspirada nas viagens de naturalistas tão comuns nesta época, os quais glorificavam a riqueza de espécies e a particularidade geográfica, extremamente diversificada das paisagens homogêneas encontradas na Europa. Podemos concluir que essa imagem retrata um perfil forjado pelos estrangeiros de quando suas experiências pelo país e que, de certa forma, o Brasil ainda continuava dependente do velho continente, pois se submetia a uma idealização forânea. Essas características referentes à natureza também se davam em relação à adoção da agricultura como principal vocação às terras brasileiras. Sob influência do pensamento fisiocrático, os intelectuais brasileiros aplicaram seus conhecimentos científicos na agricultura, promovendo modernizações técnicas e diversificação agrícola. Era preciso combater o atraso industrial, transplantar e adequar os avanços europeus às questões locais, incrementar o comércio e movimentar meios de comunicação e transporte para, dessa forma, transformar o país. Essas questões eram as principais preocupações das instituições científicas, como a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. VI – A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional: apoio ao desenvolvimento do país Criada em 1827, em meio ao espírito ilustrado corrente no Brasil dos oitocentos, a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN) tinha por objetivo voltar os estudos científicos ao aprimoramento da principal atividade econômica do país, a agricultura, e colocá-la a serviço do progresso da nação. Seus idealizadores e membros, em sua maioria representantes da elite agrária, concebem esta instituição como um espaço próprio para discussões ligadas aos seus interesses, ou seja, com o objetivo de otimizar a produção agrícola, ao mesmo tempo, que acreditavam contribuir para a prosperidade do Império. Apoiavam a aquisição de maquinários, inovações técnicas e saberes científicos estrangeiros e suas aplicações na realidade brasileira, a fim de minorar os trabalhos da mão de obra, obtendo uma produção melhor, mais veloz e com menos custos. Apesar de uma entidade civil de direito privado, foi patrocinada pelo Estado, o qual financiava os propósitos inovadores da elite que ultrapassavam as fronteiras de suas propriedades, ao trazerem benefícios para o país, como a construção de estradas de ferro. Esse fato é muito bem explicado por Emília Viotti da Costa: a acumulação de capitais resultante da expansão do setor exportador permitiu aos fazendeiros (...) introduzir melhoramentos no processo de beneficiamento do produto, incrementando assim a produtividade do trabalho e reduzindo a mão de obra necessária e permitindo maior especialização do trabalhador. A máquina realizava em menos tempo e com mais eficiência o trabalho anteriormente realizado por um grande número de escravos. O sistema de transportes passou por verdadeira revolução. (...) construção de ferrovias, ampliando dessa forma a capacidade e reduzindo os custos do transporte. Essas transformações (...) não só aumentaram a capacidade produtiva como possibilitaram um uso mais eficiente da mão de obra. A partir de então puderam os fazendeiros usar um menor número de trabalhadores permanentes, recorrendo a trabalhadores extras em tempos de colheita. Dentro dessas novas condições, o trabalho livre, desde que fosse possível garantir seu suprimento a manter baixo seu custo, se revelaria tão ou mais adequado do que o escravo (COSTA, 1998, p. 34-35). A SAIN, como comunidade científica e entidade política, onde se reunia uma camada expressiva da elite brasileira em comunhão com o Estado imperial, desempenhava um espaçosíntese da dimensão social no qual se davam os mecanismos de efetivação dos interesses de seus membros. Como próprio de uma instituição, apoiava-se, dessa forma, “num conjunto articulado de valores particulares que normatiza[va]m e regula[va]m o comportamento específico de seus praticantes” (FIGUEROA, 1997, p. 24). V – Considerações finais A construção do Estado imperial e a busca por uma identidade brasileira relacionam-se intimamente à institucionalização das ciências, o meio pelo qual, acreditava-se, seria possível ao Brasil conquistar prestígio e fazer parte do grupo dos considerados países civilizados. Sem dúvida, a criação de instituições científicas não teria sido possível sem o apoio das elites e intelectuais locais, responsáveis pela importação e fomento de conhecimento, mesmo que restrito a uma minoria. A influência da instituição científica Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional sobre a construção do Estado brasileiro durante o século XIX e seu pioneirismo e apoio à adoção de tecnologias e introdução de maquinários na agricultura, foram fundamentais não somente para a economia brasileira oitocentista, mas também para o fortalecimento das elites e, consequentemente, da política estatal, ao pensar uma tradição para o país e enfatizar sua “missão” de progresso. VI –Referências Bibiográficas BARRETO, P. R. C. Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional: Oficina de Homens. XIII Encontro de História Anpuh-Rio, Seropédica, 2008. BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática, 1983. p. 122-155. COSTA, Emília Viotti. Da Senzala à Colônia. 2ª ed. São Paulo: UNESP, 1998. DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole e outros estudos. 2ª ed. São Paulo: Alameda, 2009. FIGUEIROA, Silvia. Marcos para uma história das ciências no Brasil. In: FIGUEIROA, Silvia. As ciências geológicas no Brasil: uma história social e institucional, 1875-1934. São Paulo: Hucitec, 1997. p. 15-32. GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.1, 1988, p. 5-27. HEIZER, Alda. Os Jardins de Glaziou na Exposição de Paris de 1889. Glaziou e os Jardins Sinuosos. Rio de Janeiro: Dantes, 2009. p. 55- 59. LENOIR, Timothy. A disciplina da natureza e a natureza das disciplinas. In: LENOIR, Timothy. Instituindo a ciência. A produção cultural das disciplinas científicas. Tradução de Alessandro Zir. São Leopoldo: Unisinos, 2003. p. 62-98. MARINHO, P. M. de M. De politécnicos a engenheiros: a engenharia entre a sociedade civil e a sociedade política no Brasil oitocentista. In: ALMEIDA, Marta de & VERGARA, Moema. Ciência, história e historiografia. São Paulo: Via Lettera, 2008. p. 13-24. MATTOS, Ilmar Rohloff de. Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construção da unidade política. Almanack Braziliense, São Paulo, n.1, mai. 2005, p. 08-26. Disponível em: PAMPLONA, Marco A. Ambiguidades do pensamento latino-americano: intelectuais e a ideia de nação da Argentina e no Brasil. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 32, 2003. p. 03-31.