A vida no Comitê e seus paradoxos

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A experiência dos usuários
- um depoimento1
Mário César Scheffer
Jornalista
Eu sou membro do grupo Pela Vidda de São Paulo, que há nove anos atua na luta contra
AIDS. É um grupo (existe também no Rio de janeiro) que tem na defesa dos direitos
civis das pessoas com H IV / AIDS a prioridade das suas ações. Como conseqüência
dessa militância é que o Pela Vida, representando todas as organizações nãogovernamentais de luta contra a AIDS e, mais amplamente, as entidades em defesa dos
portadores de patologias, deficiências e usuários em geral, ocupa hoje uma vaga na
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).
Comitês de Ética em Pesquisa, Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 1999.
In: Carneiro, F. (Org.). A Moralidade dos Atos Cientificos – questões emergentes dos
Apresentação
A luta das pessoas com H IV / AIDS é pragmática porque luta contra o tempo e pela
vida. Por essa razão, eu quero antecipar que minha fala, muitas vezes, será corporativa,
porque a gente fica aprisionado no próprio umbigo e não conseguimos enxergar o que
acontece fora da luta contra a AIOS. E também é preciso dizer que nossa visão sobre
ética em pesquisa é mais focada nos ensaios clínicos e estudos terapêuticos, apesar de
estarmos acompanhando também pesquisas comportamentais e epidemiológicas.
A nossa agenda de lutas é muito ampla, e eu estaria mentindo se dissesse que Ética em
Pesquisa é uma prioridade do nosso movimento. Não é não. Até porque essa discussão
acontece no eixo Rio-São Paulo onde está concentrada a maior parte das pesquisas em
H IV / AIDS.
Sobre as pesquisas científicas
No Brasil, dezenas de pesquisas estão sendo realizadas nessa área. São estudos que
avaliam a eficácia de novas drogas, novas combinações, procedimentos clínicos,
comparam diferentes dosagens de um mesmo medicamento... Há também as pesquisas
na área de epimiodeologia e as pesquisas sobre comportamentos.
Para nossa luta, a pesquisa científica é imprescindível e o único meio confiável para o
avanço de novos medicamentos, para tratamentos cada vez mais potentes, para melhor
entender a evolução da epidemia e das doenças oportunistas. Além de melhorar a
qualidade e a quantidade de vida das pessoas com HIV e também embasar a adoção de
políticas de prevenção e controle da AIDS.
1
Mário Scheffer proferiu esta fala no Seminário, solidariamente, em substituição à Artur Custódio
Moreira de Souza, ausente do evento por motivos de saúde. Foi transcrita e editada, sem a revisão do
palestrante. V. Nota da Organizadora.
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O HIV acelerou tanto a produção do conhecimento como as discussões sobre ética
em pesquisa. E isso por causa da gravidade da infecção, da inexistência da cura, do
caráter epidêmico e, principalmente, por causa da mobilização das pessoas afetadas
estar sendo organizada em grupos de luta contra AIDS. Por exemplo, para uma
substância virar medicamento, fora do campo da AIDS, eram necessários de dez anos
a doze anos, divididos em várias etapas clínicas. A AIDS veio acelerar isso: em dois
ou três anos, a gente tem o começo da pesquisa In vitro e logo a droga já está no
mercado. A AIDS acelerou esse caminho, reduziu etapas e isso faz com que
tenhamos que criar mecanismos para acompanhar toda essa evolução. Hoje, os
avanços na área de drogas tem possibilitado que as pessoas vivam cada vez mais e
melhor -apesar dos problemas de adesão e de efeitos colaterais.
Pode-se até discutir se um portador de H IV / AIDS tem autonomia ou não, se é
vulnerável ou não para participar de uma pesquisa. Mas pesquisas existem, elas estão
andando e é necessário acompanhá-las, tentando garantir a autonomia do pesquisado e
fazer com que ele seja o menos vulnerável possível (e atualmente temos instrumentos
concretos para assegurar essa autonomia do indivíduo).
Sobre a relação entre grupos sociais organizados e CEPs
Tudo isso é muito recente. Há uma cultura ética nova sendo criada no país. O processo
de elaboração da Resolução do Conselho Nacional de Saúde, da qual participamos
desde o início das discussões até a implantação dos CEPs, gerou hoje mais de 200
Comitês de Ética em Pesquisa espalhados pelo país... e isso é uma cultura nova. No
momento em que se tem Comitês de Ética em Pesquisa com uma composição
multidiciplinar e com a participação da comunidade, do usuário, cria-se a possibilidade
de que um representante dos portadores de HIV/AIDS ou um grupo de luta contra a
AIDS possa participar da pesquisa desde o desenho até o acompanhamento da aplicação
e do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os grupos de luta contra AIDS e
outros movimentos organizados de entidades de portadores de patologia e deficiência
tiveram uma participação muito importante na elaboração da Resolução CNS 196/96.
Foram feitas câmaras técnicas voltadas para esse movimento e para a discussão sobre o
Consentimento Livre e Esclarecido.
É claro que ainda existe um monte de problemas: CEPs que não levam em conta o
conceito de representante da comunidade de usuário; a própria inexistência de quadros
no movimento para ocupar esses espaços; e a não priorização dessa djscussão no
movimento.
É importante que os CEPs tenham a participação de um soropositivo e/ou representante
de grupos de luta pelos direitos civis das pessoas afetadas pelo H IV, no momento da
discussão de um protocolo. Às vezes, isso é difícil porque as grandes instituições já têm
CEPs centralizados e têm departamentos que fazem pesquisa de H IV / AIDS. Mas
estamos insistindo em São Paulo para que toda pesquisa em H IV / AIDS tenha um ad
hoc que pertença a algum grupo - isso consta na Resolução CNS 196/96, e que ele possa
participar do processo de aprovação do protocolo de pesquisa.
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Isso já foi encaminhado, Nós já temos três CEP sem São Paulo, com representantes do
fórum de ONGs/ AIDS de São Paulo, Dois outros CEPs são centralizados e não têm
representantes, mas têm o compromisso de remeter todo protocolo de pesquisa em
AIDS ao fórum de ONG/ AIDS e o fórum designa uma ONG ou um representante de
ONG para analisar o projeto - o que não garante que esse projeto depois vai ser ético,
não é? A aprovação do protocolo de pesquisa é uma parte, o acompanhamento é um
outro problema difícil de ser trabalhado, Mas é um grande passo se há participação do
representante do pesquisado na análise e na deliberação ética sobre o protocolo,
Sobre o consentimento das pessoas envolvidas
Na prática, depois da existência dos CEPs, melhorou muito nossa relação com as
pesquisas principalmente a informação do indivíduo que aceita participar a pesquisa. O
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido é o objeto que a gente tenta aprimorar
mais para que as pessoas com HIV/AIDS, que participam das pesquisas tenham o
esclarecimento da forma mais objetiva e mais acessível possível.
Os pontos sobre os quais a pessoa deve saber são: a justificativa, o objetivo, se ele vai
ter desconforto, se corre risco, efeitos colaterais, qual o benefício esperado, qual o
método alternativo àquela pesquisa. O que está sendo esperado é realmente melhor do
que o que já existe disponível? A pesquisa traz algum benefício ao indivíduo ou só
beneficia o pesquisador e a empresa?
Há ainda que informar: a forma de acompanhamento, como ele vai ser assistido durante
a pesquisa, detalhes tais como o nome, o telefone do responsável pela pesquisa, onde
procurá-lo em caso de efeito colateral, se houver alguma dúvida... garantir o
esclarecimento antes e durante o curso da pesquisa, sobre toda a metodologia adotada...
Além disso, o indivíduo deve ser informado caso haja mudança nos procedimentos
clínicos.
É imprescindível também assegurar a liberdade do indivíduo de recusar a participar, de
se retirar a qualquer momento da pesquisa, sem sofrer prejuízo algum, inclusive dando
continuidade ao tratamento fora da pesquisa bancado pelo patrocinador e pela
instituição... e a garantia de sigilo e da privacidade quanto aos dados confidenciais, o
esclarecimento quando às formas de ressarcimento de despesas decorrentes de sua
participação pesquisa (condução, alimentação). E também as formas de indenização
mediante de eventuais danos. Isso tudo a gente tem tentado discutir.
Em São Paulo, o Pela Vidda e o GIV (Grupo de Incentivo à Vida) montaram juntos uma
Oficina de Ética em Pesquisa, tratando especificamente do Consentimento Livre e
Esclarecido e esse modo de trabalhar está sendo difundido nos centros que geralmente
fazem pesquisas em H IV / AIDS. Até hoje, conseguimos realizar três oficinas, e o
resultado tem sido muito interessante. Na oficina, faz-se uma reflexão sobre o que é esse
consentimento, a importância desse esclarecimento antes de entrar numa pesquisa. Por
exemplo, dizemos que não se deve assinar, sem pensar, nenhum documento antes de
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iniciar a pesquisa. Ele tem que levar para casa, ele tem que ler, procurar um grupo de
luta contra a AIDS e só depois tirar todas as dúvidas com o médico da pesquisas.
Se a opção da pessoa for entrar no estudo recomendamos que ela não abandone seu
médico de confiança. Isso tem gerado algum conflito porque os pesquisadores e o
promotor da pesquisa querem que o indivíduo pesquisado seja observado só pelo
médico da pesquisa. E isso não pode acontecer, ele deve continuar com seu médico
mesmo tendo toda a assistência garantida pela pesquisa.
Sobre as formas de “recrutamento”
Os pacientes têm de entrar na pesquisa conscientes de que não terão benefício algum e
que pode até haver algum prejuízo. Que ele pode estar apenas contribuindo para o
progresso da ciência. Isso é o mais difícil. Infelizmente os pacientes entram na pesquisa
não para contribuir, mas sim buscando tratamento que eles às vezes não têm na rede
pública... E aí eu pergunto: que autonomia é essa? Às vezes eles confundem pesquisa
com tratamento - isso é a coisa mais comum -às vezes eles estão atrás de acesso a nova
droga, a um tratamento potencialmente inovador... eles não têm consciência de que ele
pode está entrando numa grande "roubada" nessa pesquisa. Quem entra numa pesquisa
seduzido por aparentes vantagens, como a de um tratamento diferente do encontrado na
rede pública, deve pensar duas vezes.
As propagandas da pesquisa visando ao recrutamento, muitas vezes, são enganosas,
prometem benefícios que ainda são meras suposições e isso também interfere na
questão da autonomia. Ora, se algo ainda está em estudo não se pode afirmar que é tão
bom assim. Já houve cartazes com a "pomba da paz" dizendo: -'Venha! Participe do
medicamento da esperança que vai te trazer a cura' - ou chamadas pagas em grande
jornais de circulação dizendo: -'Se você é soropositivo venha participar'...
Enfim a propaganda, o marketing que se usa para arregimentar esses voluntários têm
sido motivo de desconfiança e por isso temos alertado às pessoas. O voluntário está indo
atrás de quê?
Sobre os benefícios
Outra questão diz respeito à transparência da verba utilizada na pesquisa. Desde o
salário do pesquisador até o que é gasto por cada paciente. Nem os médicos
envolvidos devem receber salários exorbitantes e nem os pacientes devem receber
privilégios, porque senão haverá uma quebra da eql1idade nos serviços de saúde, uma
fila dupla num mesmo serviço... e isso causa problemas éticos importantes nos
serviços. Infelizmente, temos visto pesquisas em HIV/AIDS promoverem a
discriminação de médicos e pacientes na rotina dos serviços de saúde.
A pesquisa deve trazer benefícios diretos para o soropositivo brasileiro. Por exemplo, no
caso de uma droga testada, se ela foi eficaz, ela tem que estar disponível imediatamente
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na nossa rede pública e não apenas no país de origem, uma vez que a maioria dessas
pesquisas são conduzidas do exterior. Temos a convicção de que o Brasil é escolhido
muito por causa da quantidade de soropositivo. Pesquisas são feitas no Brasil porque
aqui há muitos soropositivos virgens de tratamento e não apenas, "pelos belos olhos de
nossos pesquisadores" e pela excelência de nossos centros de pesquisa.
Então, existem interesses motivando a decisão do local da realização da pesquisa, e por
isso, no mínimo, devemos exigir algum benefício imediato para o pesquisado e que elas
não tragam, como a maioria das pesquisas hoje, apenas benefícios para o pesquisador
tais como matérias publicadas em revistas internacionais (normalmente revistas de
segunda linha), apresentação do trabalho em conferências... Enfim, a instituição ganha
visibilidade, ganha dinheiro, prestígio e, a indústria farmacêutica consegue a informação
que ela precisa sobre seu produto. O paciente não deve ficar apenas com a experiência
de ter sido cobaia.
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