Uma revisão do histórico recente das políticas fiscal e monetária

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Uma revisão do histórico recente das políticas fiscal e monetária brasileiras
Everton Freire de Carvalho 1
João Augusto Pessoa Lepikson1
Introdução
Uma crença bastante atual é a de que existe apenas uma política macroeconômica
correta, tecnicamente fundamentada e neutra. Assim, não há mais espaço para políticas
de direita ou de esquerda, existindo, portanto, apenas uma política correta, sendo que
quaisquer outras são erradas, irresponsáveis, utópicas, ingênuas e populistas.
Assim, os ajustes econômicos ficam limitados à esfera microeconômica, deixando a
discussão do modelo de ajuste fiscal, da política monetária, do câmbio flutuante e da
livre
mobilidade
de
capitais
distantes
do
debate,
imunes
às
possíveis
“irresponsabilidades” governamentais.
Mantém-se, portanto, a política monetária atrelada às metas inflacionárias, a política
fiscal aos superávits primários e o câmbio é deixado sob comando do próprio mercado.
Neste contexto, ceder à tentação do crescimento alterando qualquer dos axiomas da
política econômica “cientificamente respaldada” implica em pôr em risco a
credibilidade da condução econômica.
Ambos os candidatos que chegaram ao segundo turno da eleição à presidência da
república, Lula e Alckmin, são partidários dessa crença, fazem questão de dizer que sob
nenhuma hipótese cederão às tentações da política irresponsável, que seguirão à risca os
mandos da única possibilidade de condução correta da economia. Assim, ficarão
mantidas as políticas de meta de inflação, superávit primário e câmbio com flutuação
limpa. O mercado agradece!
Reconhece-se que a estabilização monetária foi uma grande vitória, mas não é condição
suficiente para promoção do crescimento.
1
Graduandos pela Faculdade de Ciências Econômica-UFBA e bolsistas do NEC
O objetivo central desse relatório será discutir quem são os grandes beneficiários e
quem paga a conta dessa política. Defender-se-á aqui que não existe política econômica
neutra.
Em suma, o presente relatório tentará expor que essa neutralidade tão propalada é, no
mínimo, questionável; que existem alternativas ao desenvolvimento econômico para
além dos ditames liberais; e que a afirmação de que existe apenas uma única alternativa
esconde, atrás de sua aparente neutralidade, interesses muito específicos que estão
alinhados à mudança a favor da acumulação financeira observada no capitalismo
mundial, na qual o Estado cumpre um papel central.
Para tanto, serão abordados dados conjunturais da inflação, das políticas fiscal e
monetária brasileira para mostrar como o país foi seguidor fiel e competente do que
apregoa a “responsabilidade” econômica. E, em paralelo, como a cada dia que passa fica
mais evidente a incapacidade dessa política econômica promover o crescimento
sustentado.
Inflação e Política Monetária
A inflação na década de 1980 e início dos anos 90 foi a grande vilã da nossa economia e
se tornou a principal dor de cabeça para os gestores da política macroeconômica. Planos
sucessivos de estabilização fracassaram; Plano Cruzado (1986), Plano Bresser (1987),
Plano Verão (1989) e Plano Collor (1990). Nesse período, a inflação atingiu números
extraordinários. A Tabela 1 mostra a evolução das taxas de inflação no Brasil entre
1986-1994.
Tabela 1 – Taxas de inflação – Brasil – 1986-1994
ANO
1986
1987
1988
IPCA (%)
79,66
363,41
980,21
ANO
1989
1990
1991
IPCA (%)
1.972,91
1.620,97
472,70
ANO
1992
1993
1994
IPCA (%)
1.119,10
2.477,15
916,46
Fonte: IPEADATA
A partir de 1994, com a implantação do Plano Real, a inflação se arrefeceu e a
manutenção da estabilidade dos preços passou a vigorar. Essa estabilidade se deu a
partir de algumas medidas adotadas no período: taxa de câmbio quase fixa (paridade
unitária entre Real e Dólar), juros elevados, facilitação das importações (quedas das
alíquotas), além da intensificação das privatizações e do processo de abertura
econômica.
Os dois governos FHC e o primeiro governo Lula deram prioridade ao combate a
inflação em suas políticas macroeconômicas e os resultados, como podem ser visto na
Tabela 2, são bastante satisfatórios.
Tabela 2 – Taxas de Inflação – Brasil – 1995-2006*
ANO
1995
1996
1997
1998
IPCA (%)
22,41
9,56
5,22
1,66
ANO
1999
2000
2001
2002
IPCA (%)
8,94
5,97
7,67
12,53
ANO
2003
2004
2005
2006
IPCA (%)
9,3
7,6
5,69
4,2
Fonte: IPEADATA * Previsão do BACEN.
Em 2006, os principais índices de preços também vêm apresentando resultados
satisfatórios. O IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo), índice que baliza o
regime de metas de inflação, acumula alta de apenas 2% no ano, resultado bem menor
que o de igual período do ano passado (3,95%). Considerando os últimos doze meses, a
inflação situou-se em 3,70%, abaixo do resultado de 3,84% relativo aos doze meses
imediatamente anteriores, sendo o menor índice desde junho de 1999 (tabela 3).
Tabela 3 - IPCA - Mensal
2006
NO MÊS
NO ANO
12 MESES
JAN
0,59
0,59
FEV
0,41
1,00
5,51
MAR
0,43
1,44
5,32
ABR
0,21
1,65
4,63
MAI
0,10
1,75
4,23
-0,21
1,54
4,03
JUL
0,19
1,73
3,97
AGO
0,05
1,78
9,84
SET
0,21
2,00
3,70
JUN
5,70
Fonte: IBGE
As projeções dos analistas de mercado é que o IPCA feche o ano com alta de 3%. Caso
esse cenário se confirme, o índice obterá a segunda menor taxa de inflação desde que foi
criado em 1979, acima apenas da taxa verificada em 1998, de 1,7%. Segundo a
coordenadora de índices de preços do IBGE, Eulina Nunes, o câmbio apreciado foi
decisivo para o controle da inflação neste ano. O item Tv’s, som e informática que sofre
influência direta do câmbio recuou 10,01% de janeiro a setembro, sendo que os
eletrodomésticos recuaram 0,64% em igual período.
O IGP-M acumula, até setembro, alta de 2,26% (tabela 4). A expectativa é que o índice
feche o ano abaixo de 3,5%, a terceira menor taxa registrada pelo índice que começou a
ser calculado, em 1989. O índice, em 2006, passou a ter um comportamento bem volátil,
influenciado por eventos pontuais, como quebras de safra ou alterações bruscas em
cotações de insumos. Diferentemente do ano anterior, que o IGP-M registrou deflação
por cinco meses consecutivos.
Tabela 4 - Índices Gerais de Preços - IGP's
MÊS
JAN
FEV
MAR
ABR
MAI
JUN
JUL
AGO
SET
Acumulado
IGP-M
0,92
0,01
-0,23
-0,42
0,38
0,75
0,18
0,37
0,29
2,26
IGP-DI
0,72
-0,06
-0,45
0,02
0,38
0,67
0,17
0,41
0,24
2,11
Fonte: FGV
O IGP-DI dos últimos doze meses acumula alta de 3,16%. No ano, a variação é positiva
em 2,11%. As expectativas de mercado são de que este índice fique abaixo do IGP-M,
que deve fechar o ano com alta de 3,15% (tabela 5). O câmbio apreciado será o
responsável pelo bom desempenho do IGP-DI, sendo a quarta menor taxa da história do
índice, calculado desde 1945.
Tabela 5 - Resumo das Expectativas de Mercado*
Variáveis
Índice de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA
Índice Geral de Preços – IGP-M
Índice Geral de Preços – IGP-DI
Preços Administrados
SELIC (fim de período)
Câmbio (fim do período)
PIB
Fonte: BACEN. *Expectativas coletadas em 10/10/2006.
2006
3,01
3,27
3,15
4,40
13,80
2,18
3,20
2007
4,20
4,38
4,40
4,50
12,80
2,27
3,50
Estabilidade dos Preços versus Estabilidade Macroeconômica
O controle inflacionário é, sem dúvida, uma grande conquista do povo brasileiro. A
estabilidade dos preços é condição necessária para um desenvolvimento econômico
sustentável e mais equânime. Mas, não é condição única. Como vimos anteriormente, a
inflação a partir de 1994 deixou de ser a grande vilã da nossa economia, porém outros
fatores passaram a ser os responsáveis pela nossa desestabilidade macroeconômica.
O modelo de desenvolvimento econômico liberal, adotado desde os anos 90 no nosso
país, apresenta o bônus de ter controlado uma grande mazela social: a inflação. Vale
lembrar, que num ambiente inflacionário como o verificado entre 1986-1993, a camada
mais pobre da população, que não tem acesso à conta bancária, é a mais penalizada, pois
seu poder de compra é deteriorado a todo o momento.
Porém, esse modelo possui o ônus de ter intensificado tantas outras mazelas sociais, a
saber: i) crescimento pífio do PIB com altas taxas de desemprego e; ii) aumento da
concentração de renda.
i) Crescimento pífio do PIB e Altas taxas de desemprego
O país continental como o Brasil, com quase 190 milhões de pessoas, todo ano vê
ingressar em seu mercado de trabalho milhares de pessoas. Para suprir a demanda
crescente por trabalho é fundamental que o país obtenha um crescimento econômico
sustentável e duradouro. Porém, há alguns anos, como o Banco Central vem utilizando
apenas as taxas de juros como forma de combater a inflação, a prática das maiores taxas
de juros reais do mundo (gráfico 1) acaba por sabotar esse crescimento econômico
sustentável, reprimindo a demanda agregada.
Gráfico 1 - Taxa de juros reais (%) - 2006
9,3
8
6,2
2,9
2,8
2,8
2,6
2,5
2,5
Cingapura
Inglaterra
Tailândia
Austrália
4,3
4
México
4,8
6
Canadá
10
2
Fonte: UpTrend Consultoria
Israel
China
Turquia
Brasil
0
Com a miopia dos nossos gestores de políticas econômicas, que só enxergam o controle
da inflação como elemento único de estabilidade macroeconômica, o país vem
conservando um crescimento econômico pífio (gráfico 2). As taxas de juros exorbitantes
inibem o consumo e diminuem o investimento produtivo, dois itens importantes da
demanda agregada. A taxa de investimento no Brasil, por exemplo, gira em torno de
20%, nível muito aquém de um país que necessita de um crescimento sustentável e
duradouro.
Gráfico 2 - Crescimento anual do PIB (%)
5
4,94
4,36
4,22
3,27
2,66
2,28
1,93
2,5
1,31
0,13
0,79
0,54
0
1995 1996
Fonte: IBGE
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
Em 2006, esse cenário não é muito diferente. O excesso de conservadorismo do
BACEN, que vem reduzindo as taxas de juros de forma gradual e lenta fará com que o
país novamente tenha um crescimento econômico bastante pequeno (li pífio umas 4
vezes antes): as expectativas de mercado são de que o Brasil cresça em torno de 3,2%
esse ano.
Num cenário extremamente favorável, onde o preço do barril de petróleo se arrefeceu,
os juros do EUA pararam de subir e as expectativas de inflação para os próximos doze
meses estão abaixo do centro da meta de inflação (4,5%) para 2006, o BACEN vem
mantendo uma cautela excessiva nos cortes dos juros. De setembro de 2005, início do
afrouxamento monetário, a outubro de 2006 a taxa SELIC foi reduzida apenas em 5,75
pontos percentuais, saindo de 19,5% para 13,75% (gráfico 3).
Gráfico 3 - Evolução da SELIC (em %)
20
18
16
14
12
6
t-0
6
ou
se
t-0
6
-0
6
ag
o
ju
l-0
06
ju
n-
ar
-0
6
ab
r-0
6
m
ai
-0
6
06
m
fe
v-
06
ja
n-
-0
5
de
z
-0
5
no
v
t-0
5
ou
se
t-0
5
10
Fonte: BACEN
Outro problema que se agravou com o modelo de desenvolvimento econômico liberal
foi o desemprego. Apesar de haver uma tendência estrutural e mundial, nas últimas
décadas, de elevação das taxas de desemprego associada à reestruturação produtiva,
fatores conjunturais como o arrefecimento das atividades econômicas ocasionadas por
um baixo crescimento econômico fez com que o desemprego no Brasil tomasse
proporções preocupantes (gráfico 4).
Gráfico 4 - Taxa de desemprego aberto (RMSP)
13
12
11,6 11,4
11
10,8
10,2
10
9
8,7
8
7
10,7
10,1
10
9,7
7,6 7,8
6,5 6,7
19
90
19
91
19
92
19
93
19
94
19
95
19
96
19
97
19
98
19
99
20
00
20
01
20
02
20
03
20
04
20
05
20
06
*
6
8
9,2
10,5
12
Fonte: IPEADATA
Essa mazela social é uma das responsáveis pelo o aumento da violência nos grandes
centros urbanos, que se agravou consideravelmente nos anos 90 com o surgimento e o
fortalecimento de facções criminosas como Primeiro Comando da Capital (PCC) e
Comando Vermelho (CV).
ii) Aumento da concentração de renda
Ao priorizar a manutenção da estabilidade monetária como objetivo quase único de
política econômica, os partidos que estão a doze anos no poder, PT e PSDB, passam
para sociedade apenas um lado da moeda, ao citar que a estabilidade monetária favorece
a população menos abastada da sociedade, não bancarizada. Por outro lado, não
explicitam que o mecanismo utilizado para o controle inflacionário, ou seja, as maiores
taxas de juros reais do mundo favorecem apenas uma pequena parcela da população,
apenas 20 mil famílias segundo o economista Márcio Pochmann.
Os grandes bancos nacionais e internacionais vêm obtendo lucros recordes ano após
ano. Um estudo do Bear Stearns estima que, para o fim do ano que vem, às instituições
financeiras brasileiras tenham um retorno de 53,1%, o maior ganho da América Latina,
mais que o dobro do projetado para o setor bancário mexicano, que é de 24,1% (gráfico
5).
Gráfico 5 - Retorno Esperado dos Bancos ao final de 2007 (em %)
53,1
27,8
24,1
12,1
Brasil
Colômbia
México
Chile
Fonte: Bloomberg, Bears, Stearns & Co. Inc.
O setor financeiro e os grandes industriais brasileiros, que estão se financeirizando cada
vez mais, são os principais beneficiários desse modelo de desenvolvimento econômico.
Só de juros pagos sobre a dívida, o governo Lula gastou R$ 592,7 bilhões, enquanto que
o programa Bolsa-Família do atual governo, que atinge 11,7 milhões de pessoas, gastou
em torno de R$ 25 bilhões.
Portanto, esse modelo apesar de trazer estabilidade dos preços, traz consigo uma enorme
instabilidade macroeconômica e social, com altas taxas de desemprego, aumento da
violência, concentração de renda e baixo crescimento do PIB.
Política Fiscal
O modelo “cientificamente correto” de ajuste das finanças públicas
A partir da década de 1980, colocou-se a discussão acerca do ajustamento das contas
públicas como condição fundamental e necessária para o crescimento econômico.
O ajuste fiscal proposto, principalmente após a crise da dívida, constituiu um desajuste
social, com canalização do orçamento público para pagamento dos encargos dessas
dívidas públicas. Ou seja, impôs-se uma mudança do padrão de gastos: o que antes era
gasto com a promoção do crescimento e com oferta de bens e serviços fundamentais foi
convertido em pagamento dos direitos sobre a riqueza financeirizada.
Esse padrão de ajuste das finanças públicas no Brasil foi, e é, constituído por cinco
pilares básicos, a saber: i) contingenciamento dos recursos, ii) privatização e corte do
gasto público, iii) descentralização do gasto federal e reconcentração da receita na
União, iv) elevação da carga tributária e v) desvinculação de receitas públicas.
i) Contingenciamento dos recursos
Em épocas de inflação alta, bastava o governo postergar a liberação orçamentária para
que ganhasse recursos extras. O valor nominal estabelecido no orçamento, ao ser
liberado, geralmente no final do ano fiscal, representava, apenas uma parcela do valor
real. Ou seja, o governo ganhava apenas postergando a liberação. Essa diferença entre
os valores real e nominal era usada pelo governo como ferramenta para aumentar sua
disponibilidade de recursos
Com a estabilização monetária, o bloqueio de recursos passou a ser ponto importante
para o cumprimento das metas fiscais estabelecidas. Ou seja, agora, o governo bloqueia
a liberação de recursos de gastos discricionários previstos no orçamento para financiar o
superávit fiscal.
O ano de 2006 é exemplo de como a possibilidade de contingenciamento está sendo
usada para cumprimento das metas fiscais. Depois de bloquear R$ 14,2 bilhões em
dotações previstas na lei orçamentária aprovada pelo congresso, o governo liberou R$
4,8 bilhões, bloqueando posteriormente R$ 1,6 bilhão e, recentemente, liberou R$ 1,5
bilhão.
Fica evidente que os gastos públicos discricionários, que poderiam estar promovendo o
crescimento ou mesmo atuando para amenizar o abismo social brasileiro, são tratados
como resíduos do ajuste fiscal, como restos da economia que se faz para cumprir a meta
de superávit. São liberados na medida em que o superávit fiscal esteja garantido, caso
contrário, são bloqueados..
ii) Privatização e corte do gasto público
Com a redução da possibilidade de se conseguir recursos pela via das privatizações,
que, na década de 1990, geraram uma receita extra estimada em US$ 100 bilhões, houve
a necessidade de se diminuir os investimentos públicos para o cumprimento das metas
de superávit primário.
Os gastos obrigatórios, como o próprio nome sugere, não são passíveis de cortes e
representam cerca de 90% do orçamento. Assim, o peso dos cortes recai,
principalmente, sobre os investimentos.
Os investimentos públicos que em tempos não muito remotos eram a locomotiva que
puxava os demais vagões do comboio do crescimento, agora são tratados também como
resíduos do ajustamento fiscal. Em 2005, por exemplo, enquanto o superávit primário
foi de 4,58% do PIB, os investimentos públicos federais não representaram mais do que
1% do PIB – para ser mais exato, totalizou 0,88%. Há duas décadas, os investimentos
da União representavam 16% dos gastos não financeiros. Hoje, não passam de 3%.
iii) Descentralização do gasto federal e reconcentração da receita na União
A transferência de parte das despesas da União para Estados e municípios sem a
conseqüente descentralização da receita fiscal disponível é mais uma medida do padrão
de ajuste fiscal das contas públicas.
Segundo Márcio Pochmann, professor do Instituto de Economia da Universidade
Estadual de Campinas, em 2004, a União respondeu por 49,4% do gasto nacional com
saúde (24,8% pelos Estados e 25,6% pelos municípios), enquanto que em 1994 era
responsável por 60,7% do total (22,1% pelos Estados e 17,2% pelos municípios).
Porém, a transferência de 11,3 p.p. do gasto nacional com saúde da união para Estados e
municípios não foi acompanhada por uma descentralização proporcional das receitas
(gráfico 6).
Gráfico 6-
Receita x Gasto com saúde (em %)
60,7
56,2
60,1
49,4
27,2
22,1
16,6
receita
15,6
gasto com saúde
1995
24,8 25,6
24,3
17,2
receita
União
gasto com saúde
2004
Estados
municípios
Fonte: Marcio Pochman
É obvio que sem uma contrapartida da receita fiscal disponível, a descentralização dos
gastos sociais terminou, por muitas vezes, determinando uma degradação da oferta de
bens e serviços públicos. Ou seja, mais uma vez se cortou a oferta de serviços e bens da
parcela desprivilegiada da população para a composição do superávit para pagamento
dos encargos da dívida pública.
iv) Elevação da carga tributária
Eis um dos principais pilares do ajuste fiscal brasileiro. É importante ressaltar que, por
ser um sistema de tributação com base extremamente regressiva, já que se assenta em
impostos indiretos, o incremento na arrecadação recaiu principalmente sobre a parcela
mais pobre da população. Estes, porém, mesmo pagando proporcionalmente mais
impostos, não viram os serviços públicos serem universalizados. A carga tributária que,
em 1991 era de 24,4% do PIB, hoje ronda os 40%. (gráfico 7)
Gráfico 7 - Carga tributária total (em % do PIB)
40
38
36
34
32
30
28
26
24
22
1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005
Fonte: IBPT
v) Desvinculação de receitas
Hoje, 20% das receitas vinculadas ao gasto social têm sido usadas, sobretudo, para a
composição do superávit primário.
Em 2004, por exemplo, calcula-se que a carga tributária social do governo federal
(impostos e contribuições vinculados ao gasto social) tenha representado 15,9% do PIB.
Em 1995, esse número era 11,3%.
Nesse mesmo intervalo de tempo, o gasto social passou de 10,9% para cerca de 13,5%
do PIB. Ou seja, a arrecadação social aumentou 40,7% enquanto a despesa social subiu
23,8%. Isto possibilitou a elevação do superávit primário social do governo federal de
0,4% do PIB em 1995 para 2,4% do PIB em 2004, valor esse que correspondeu a 33,1%
dos R$ 128,3 comprometidos com o pagamento de juros da dívida pública naquele ano.
Enfim, é fato que todos os pilares do ajuste fiscal apresentados acima têm o mesmo
sentido: canalizam recursos que poderiam, e eram, gastos em investimentos e em oferta
de bens e serviços para pagamento dos encargos da dívida pública.
O modelo preconiza que o Estado deve limitar sua ação à busca da estabilidade de
preços e à manutenção do equilíbrio das finanças públicas e, como que por geração
espontânea, os investidores privados tomarão a iniciativa do crescimento.
Porém, a recuperação dos investimentos alicerçada em setores exportadores e em
ampliação esporádica do consumo não é suficiente para assegurar o crescimento
sustentado. A economia brasileira encontra-se deprimida por conta da sistemática
contração do consumo e do investimento, estes componentes de grande peso na
demanda efetiva.
Some-se a isso a infra-estrutura de transporte brasileira, que está saturada ou em
péssimo estado de conservação e chegar-se-á à inegável necessidade de haver um
aumento dos investimentos públicos para que se possa iniciar o “espetáculo do
crescimento”.
Dentro do quadro desenhado, aliado a uma política de altíssimas taxas de juros,
dificilmente se poderá presumir uma ampliação do gasto privado e investimento capaz
de fazer a economia voltar a crescer sem um investimento público anterior.
Conjuntura
Apesar de tudo o que foi dito no tópico anterior, o esforço para conter o endividamento
público, não obstante tenha estabilizado a relação dívida pública/PIB em torno de 50%
do PIB (50,3% em agosto), não conseguiu conter o estoque do endividamento.
O aperto fiscal concretizado no superávit primário não tem sido suficiente para arcar
com todos os encargos da dívida. No acumulado de 12 meses fechado em julho de 2006,
por exemplo, a incidência de juros foi de R$ 162,1 bilhões (8,01% do PIB), enquanto
que o superávit do setor público foi de “apenas” R$ 90,5 bilhões (4,47 % do PIB), ou
seja, foram somados ao estoque da dívida pública nos últimos 12 meses R$ 71,6 bilhões
(3,54% do PIB), eis a “mísera” necessidade de financiamento do setor público no
referido período (gráficos 8). Em agosto, a dívida líquida do setor público alcançava
nada menos de que R$ 1,034 trilhão.
Fonte: Banco Central
162,1
157,1
145,2
-90,5
71,6
63,6
47,1
73
primário
128,3
114
61,6
42,8
86,4
juros nominais
-95,5
nominal
-81,1
-150
9,59
-66,2
-100
-52,4
-50
-43,7
0
-38,2
50
39,8
78
100
-31,1
150
12
10
8,94
8,52
8,13
8,01 8
7,31
7,26
7,18
6,62
6
5,78
5,22
4,61
3,66
3,54 4
3,29
2,62
2
0
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006*
-2
-3,19
-3,51
-3,69
-3,91
-4,32
-4,47 -4
-4,59
-4,84
nominal
juros nominais
primário
-6
56,3
87,3
200
Gráfico 8 - Necessidade de Financiamento do Setor Público
(acumulado 12 meses, em R$ bi e % do PIB)
Apenas no mês de agosto, as despesas com juros somaram R$ 15,6 bilhões, quase o
dobro do valor que deve ser destinado ao Bolsa-Família, maior vitrine social do governo
Lula, durante todo o ano de 2006. Eis mais uma prova inconteste da direção do ajuste
fiscal.
Mesmo com os continuados cortes na taxa básica (SELIC), o governo ainda não
conseguiu, até agora, reduzir de maneira significativa seus gastos com juros. Isso é
decorrência da própria estratégia de gestão da dívida mobiliária já que há uma contínua
troca de papéis atrelados a SELIC por papéis prefixados ou corrigidos por índices de
preço (Gráfico 9).
Gráfico 9 -Perfil da Dívida Mobiliária do Setor Público (em %)
70,0
60,0
50,0
40,0
30,0
20,0
10,0
0,0
Dez Dez Dez Dez Jan Fev M ar Abr M ai Jun
20012002 20032004
Jul Ago Set
Out Nov Dez Jan Fev M ar Abr M ai
2005
Câmbio
Índices de preços
jun
jul
ago
2006
Over/Selic
Préfixado
Fonte: Bacen
A vantagem dessa política é que, no caso de uma subida na taxa básica de juros, o
impacto sobre a dívida pública será amenizado, o que, em certa medida, dá uma maior
margem de manobra aos gestores da política econômica. A desvantagem está no custo
mais alto dos títulos prefixados ou indexados à inflação em relação à SELIC, que
permanece em trajetória descendente.
Essa redução da participação dos títulos pós-fixados, que absorve mais rapidamente os
impactos da queda da taxa básica de juros, fez com que a sensibilidade da dívida à
variação da SELIC diminuísse. Segundo reportagem de Alex Ribeiro, em agosto de
2006, uma baixa de 1 ponto percentual naquela taxa, mantida por 12 meses, teria
impacto de 0,28 ponto na dívida líquida, um anos atrás, o impacto seria de 0,32 ponto.
O superávit fiscal de agosto (R$ 13,2 bilhões recorde para o mês na série estatística do
Banco Central), por sua vez, contribuiu com uma queda da dívida líquida de 0,6 ponto
percentual. Os juros nominais tiveram um impacto de 0,8 ponto do PIB enquanto que o
crescimento econômico contribuiu com 0,4 ponto na redução do indicador. Somando
esses valores, percebe-se a uma redução de 0,2 p.p. na relação dívida pública/PIB do
mês de julho (50,5%) para agosto (50,3%) (gráfico 10)
Gráfico 10 - Dívida Total Setor Público / PIB (em %)
65
63
61
59
57
55
53
51
49
47
45
2002
2003
2004
2005
2006
Fonte: Bacen
Esse superávit co-responsável, como dito, pela queda da relação dívida/PIB, porém, não
foi fruto de um corte de gastos nem aumento da arrecadação tributária, mas de um
enorme repasse de dividendos das estatais (R$ 9,6 bilhões no acumulado do ano até
agosto) aliado ao programa de refinanciamento de dívidas (REFIS 3). Esses repasses,
associados a uma maior economia dos Estados e municípios permitiram, inclusive, um
aumento dos gastos federais e redução da meta de superávit do governo central de 2,5%
para 2,45% do PIB (Graf T).
Os gastos federais, por sinal, pela primeira vez no governo Lula, cresceram mais do que
as receitas. Enquanto essas aumentaram 11,8% no acumulado do ano até agosto, as
despesas tiveram um incremento de 13,9%.
Um ponto alvo de severas críticas por parte dos oposicionistas do governo é justamente
que o equilíbrio fiscal do governo tem sido sustentado por arrecadações não
permanentes enquanto que os gastos têm sido cada vez mais concentrados em despesas
obrigatórias.
Conclusão
Que as metas traçadas pelo modelo de ajuste fiscal vêm sendo perseguidas com
competência, é inegável. Porém, há que se perguntar quem paga a conta desse ajuste.
Pelo que foi exposto, a direção da política é sempre a mesma, a resposta, portanto,
mostra-se de forma evidente.
Não se pretendeu aqui questionar a importância de se manter as contas públicas
controladas. Mas, pretendeu-se ao menos levantar a questão da existência de uma
política alternativa. Não cabe mais abdicar do crescimento econômico em prol da
credibilidade e do enriquecimento de uma classe rentista.
A política fiscal tem um papel importante a cumprir: deve promover o crescimento
econômico e diminuir o abismo social. E isso não se faz transferindo gastos com
investimentos para a mão dos detentores de papéis da dívida pública.
Talvez seja chegado o tempo de apostar mais no crescimento do denominador para
conter a relação dívida/PIB do que tentar frear a expansão do numerador já que isso
implica em grande sacrifício à população.
Eis os dois pilares de uma proposta de política alternativa, proposta esta que preconiza o
desenvolvimento: uma maior flexibilidade da meta de inflação (que este ano deve se
aproximar do piso da meta) permitindo uma queda gradual, porém rápida, das taxas de
juros, combinada com uma política de controle do fluxo de capitais e desvalorização
cambial. Com isso, seria possível realizar um planejamento de investimentos mais
baratos, com horizonte temporal mais largo e com previsibilidade de retorno.
É sabido, porém, que essa proposta contraria interesses da parcela mais abastada e
organizada da população. Mas, como política econômica é fruto de uma disputa de
interesses, há que se preconizar o interesse dos mais necessitados.
A política cambial de flutuação limpa (free float) inegavelmente cumpriu seu papel: no
controle da inflação, evitando choques de custo, permitiu uma redução das dívidas em
dólar das empresas privadas, maior acúmulo de divisas, além de permitir que o Brasil se
tornasse credor na moeda estadunidense.
Cumpre, agora que a dívida pública atrelada ao dólar é negativa e que a dívida privada
em dólar diminui, pensar em uma política cambial que permita, além de iniciativas
exportadoras, uma maior previsibilidade da taxa de câmbio para conseguir uma projeção
de longo prazo aos investimentos produtivos.
É preciso repensar os dogmas da política econômica “cientificamente fundamentada”. O
que é bom para os Estados Unidos nem sempre, ou quase nunca, é bom pro Brasil. Não
se pode pensar em deixar um país em construção à mercê das forças do mercado.
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