Eletrocardiograma Sobre um caso de bradicardia quase fatal Antonio Américo Friedmann1 José Grindler2 Carlos Alberto Rodrigues de Oliveira3 Alfredo José da Fonseca3 Serviço de Eletrocardiologia da Clínica Geral do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Um doente de 51 anos que fazia tratamento ambulatorial no Hospital das Clínicas foi trazido ao pronto-socorro de ambulância com quadro de síncope e coma há cerca de uma hora. Como apresentava frequência cardíaca (FC) de 18 bpm, foi realizado eletrocardiograma (ECG) (Figura 1), que revelou ritmo cardíaco sem ondas P, intercalado por longos períodos de assistolia. O QRS alargado não precedido por ondas P sugeria ritmo idioventricular e as ondas T emergiam amplas e simétricas, distanciadas do QRS por um segmento ST longo, de tal forma que, em algumas derivações, registravam-se tão somente ondas T sem os respectivos QRS. Foi um corre-corre. Enquanto um colhia amostra de sangue para análises, outro administrava atropina, sem resultado, e um terceiro providenciava marcapasso. Como este procedimento sempre demora alguns minutos, administrou-se bicarbonato de sódio. Para surpresa geral, o paciente recobrou a consciência, a FC aumentou para 68 bpm e o ritmo cardíaco se manteve regular. Foi então registrado outro ECG (Figura 2). Figura 1. Bradiarritmia com pausas de até 10 segundos, ausência de onda P, QRS alargado e onda T proeminente. 1 2 3 Livre-docente, diretor do Serviço de Eletrocardiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP). Médico supervisor do Serviço de Eletrocardiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP). Médico assistente do Serviço de Eletrocardiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) Diagn Tratamento. 2009;14(2):82-4. Antonio Américo Friedmann | José Grindler | Carlos Alberto Rodrigues de Oliveira | Alfredo José da Fonseca Figura 2. Ritmo cardíaco regular com frequência de 68 bpm, ondas P com amplitude muito reduzida (visíveis apenas de V1 a V3), QRS alargado e ondas T amplas, pontiagudas e tendendo a simétricas, com difasismo minus-plus em D2, aVF, V5 e V6. No segundo ECG, quase não se vizualizavam ondas P, o QRS permanecia alargado e as ondas T continuavam amplas, mas agora pontiagudas e com um difasismo do tipo minus-plus em algumas derivações. A implantação do marcapasso foi interrompida e os resultados dos exames de laboratório chegaram. A dosagem de potássio no sangue era 10,7 mEq/l. DISCUSSÃO O primeiro eletrocardiograma revela bradiarritmia com ausência de ondas P e a bradicardia é tão acentuada que sugere doença do nó sinusal. Analisando atentamente o ECG, observa-se uma onda T ampla, simétrica, pontiaguda e de base estreita, que não excede 200ms, cognominada de “onda T em tenda”, típica de hiperpotassemia. A associação desta onda T com QRS alargado e onda P não visível é indicativa de hipercalemia acentuada. O segmento ST prolongado sugere hipocalcemia, frequente no doente renal crônico.1 Bradicardia é comum na hiperpotassemia. Entretanto, como a onda P progressivamente diminui de amplitude e por fim desaparece, apesar da origem do estímulo continuar no nó sinusal, é impossível saber neste caso se a bradiar- Diagn Tratamento. 2009;14(2):82-4. ritmia é sinusal, ou se é devida a bloqueio atrioventricular ou bloqueio sinoatrial. É interessante observar como a frequência cardíaca normalizou após a simples administração de bicarbonato de sódio. O segundo ECG é ainda mais característico de hiperpotassemia: a onda P continua não visualizada, o QRS permanece alargado e a onda T, além da morfologia “em tenda”, apresenta difasismo incomum do tipo minus-plus que é frequente neste distúrbio eletrolítico.2 Esta alteração ocorre porque as ondas T inicialmente negativas nas derivações esquerdas em consequência de hipertrofia ventricular esquerda ou de distúrbio da condução intraventricular tendem a se tornar positivas por força da hiperpotassemia. É relevante considerar que, se a hiperpotassemia não fosse suspeitada e tratada, e se a implantação do marcapasso fosse iniciada, o paciente poderia evoluir para fibrilação ventricular e parada cardíaca, e o desfecho do caso seria diferente. CONCLUSÃO Trata-se de um caso de bradicardia acentuada com importante repercussão causada por hiperpotassemia em que a observação cuidadosa do ECG permite suspeitar do diagnóstico para o adequado tratamento de urgência. 83 84 Sobre um caso de bradicardia quase fatal INFORMAÇÕES REFERÊNCIAS Endereço para correspondência: Hospital das Clínicas da FMUSP Prédio dos Ambulatórios Serviço de Eletrocardiologia Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 155 São Paulo (SP) — CEP 054403-000 Tel. (11) 3069-7146 Fax. (11) 3069-8239 E-mail: [email protected] 1. Friedmann AA. O ECG em doenças não cardíacas. In: Pastore CA, Grupi CJ, Moffa PJ. Eletrocardiologia atual - Curso do serviço de eletrocardiologia do InCor. 2a edição. São Paulo: Atheneu; 2008. p. 79-92. 2. Friedmann AA, Grindler J, Oliveira CAR. Diagnóstico diferencial no eletrocardiograma. Barueri: Manole; 2007. Data de entrada: 10/2/2009 Data da última modficação: 10/2/2009 Data de aceitação: 16/3/2009 Fontes de fomento: nenhuma declarada Conflitos de interesse: nenhum declarado Diagn Tratamento. 2009;14(2):82-4.