QORPO-SANTO E GIL VICENTE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS Márcio

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QORPO-SANTO E GIL VICENTE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS
Márcio Ricardo Coelho Muniz - UEFS1
RESUMO: Este texto busca estabelecer comparações entre as obras do teatrólogo novecentista brasileiro
Qorpo-Santo e o dramaturgo quinhentista português Gil Vicente. Algumas peças de ambos autores são aqui
analisadas, abarcando os campos das estruturas, dos temas, das significações e dos estilos.
PALAVRAS-CHAVE: Teatro brasileiro; Teatro português; Gil Vicente; Qorpo-Santo; Literatura
Comparada.
1.
A compreensão da obra de Qorpo-Santo esteve, e pode-se dizer que ainda está,
nublada por dados da biografia de José Joaquim de Campos Leão – nome civil do
dramaturgo. O funcionário público, político e mestre-escola que aos 35 anos passa a
apresentar alterações em seu comportamento, o que leva a família a solicitar e a conseguir
sua interdição como enfermo mental; este homem e sua aparentemente dramática e mal
conhecida história pessoal vêm impedindo uma correta avaliação dos escritos jornalísticos,
da poesia e, principalmente, do teatro de Qorpo-Santo2.
A obra do dramaturgo permaneceu quase que desconhecida de seus contemporâneos.
Descoberta e louvada como inovadora um século depois3, os elogios ainda permaneceram
mais atrelados à vida pessoal do autor do que à cuidada interpretação de seu real valor. Ou
seja, embora distinto de tudo o que se fazia durante a segunda metade do séc. XIX, o teatro
de Qorpo-Santo foi apresentado como proveniente de uma mente perturbada que, num
período de seis meses, de particular insanidade, construiu-se como antecipação do Teatro
do Absurdo de Alfred Jarry ou de Ionnesco ou ainda da arte surrealista de Breton ou
Duchamp. Em síntese, e com poucas exceções – entre estas, deve-se ressaltar o trabalho do
professor Flávio Aguiar - , é isso que se pode ler na crítica até hoje escrita sobre a obra do
autor gaúcho.
Retomar essa perspectiva analítica seria pouco produtivo, pois pouco ou nada teria a
acrescentar ao que já foi dito. Proponho, então, outra perspectiva: olhar o teatro de QorpoSanto não para ver nele o que tem de moderno ou o que anuncia de novo em termos de
1
Este texto foi publicado em MALUF, Sheila Diab; AQUINO, Ricardo Big. (Org.). Reflexões sobre a cena.
01 ed. Maceió; Salvador: EDUFAL; EDUFBA, 2005, v. 01, p. 213-232, ISBN: 8571772118.
2
Os dados da biografia acima referidos e os que se seguirão têm como fonte básica o estudo crítico de
Guilhermino César, que introduz a edição do Teatro Completo de Qorpo-Santo; e, também, os capítulos
iniciais do livro de Flávio Aguiar sobre o dramaturgo gaúcho. Os dois trabalhos críticos estão devidamente
indicados na bibliografia final deste ensaio.
3
A obra teatral de Qorpo-Santo foi redigida, segundo indicações do próprio autor, no ano de 1866 . Todavia,
somente um século depois, no ano de 1966, suas peças “subiram o palco”. No dia 26 de agosto de 1966, as
comédias Eu sou vida; eu não sou morte, Mateus e Mateusa e As relações naturais foram representadas no
teatro do Clube de Cultura, em Porto Alegre. (AGUIAR, 1975, p. 21; CÉSAR, 1980, p. 46)
2
técnica teatral, mas sim para buscar indicativos de algumas de suas fontes, ou seja, autores
e obras que podem de modo vário tê-lo influenciado na construção de seus textos. No limite
deste trabalho, limitar-me-ei a demonstrar aproximações, que me parecem possíveis, entre
os teatros de Qorpo-Santo e do dramaturgo português Gil Vicente. Cabe dizer que esta
proposta não representa exatamente uma novidade, pois outros críticos já sugeriram
semelhanças entre as obras dos dois autores. Todavia, até onde sei, limitaram-se às
sugestões. Portanto, o que de novo, talvez, este ensaio possa trazer seja o demonstrar em
que níveis as obras dos dois teatrólogos podem ser aproximadas, arregimentando
argumentos que solidifiquem a hipótese de se considerar a obra de Gil Vicente como uma
das fontes de processo criativo de Qorpo-Santo, na esteira do que afirma Flávio Aguiar:
As raízes das aventuras de Qorpo-Santo, revirando o enredo e os estilos comuns em
seu tempo, podem muito bem estar no teatro medieval, quando não se firmara ainda,
de modo absoluto, a separação dos gêneros. (AGUIAR, 1975. p. 218)
2.
Esta hipótese de aproximação, todavia, deve passar primeiro pela averiguação de
como e se Qorpo-Santo teria conhecido a obra vicentina. Não há, no que pude levantar,
nenhuma citação direta de textos ou referência à pessoa do autor português. Mas, na
condição de professor da “gramática nacional” é pouco provável que Qorpo-Santo não
tenha tido acesso a alguns dos textos de Vicente, há muito um autor clássico da literatura
em língua portuguesa. Além disso, um dado concreto em sua obra permite-nos inferir esse
conhecimento. Na comédia Um assovio, uma das personagens chama-se Almeida Garrett
(ou Garrê, como também escreve), nome do também teatrólogo romântico português4.
Como se sabe, Almeida Garrett foi o responsável pela restauração da tradição do
teatro português. Cumprindo papel semelhante ao de Gonçalves de Magalhães no Brasil
(GOMES, 2003), o autor português estabelece uma política para a revivescência do teatro
em Portugal, constrói o até hoje importante Teatro Nacional D. Maria II e, para além dessas
atividades de teor político-burocrático, escreve uma série de peças de gêneros distintos,
passando pela tragédia clássica, pelo drama romântico e pela comédia. Uma dessas peças,
Um auto de Gil Vicente, tem como tema exatamente a encenação de uma das obras do
dramaturgo humanista. Deve-se lembrar também que o interesse por temas, autores e obras
medievais, em voga no primeiro romantismo português, se estendeu a autores do
Humanismo e do Renascimento, motivando justamente uma certa revalorização da obra
vicentina, que passou a ser mais cuidadosamente estudada, lida e representada.
Tendo em conta a qualidade do teatro de Gil Vicente, o seu ressurgimento na primeira
metade do séc. XIX, o papel que neste “ressurgir” desempenhou Almeida Garrett e o fato
deste estar personificadamente presente em uma das comédias de Qorpo-Santo; todos esses
4
Siginificativamente, encontrei somente três referências a figuras do mundo literário luso-brasileiro nas
dezessete peças de Qorpo-Santo: o poeta Gregório de Matos, o padre Antônio Vieira e Almeida Garrett. Os
dois primeiros são citados por suas características literárias: Gregório, por sua poesia satírica; Vieira, por sua
eloqüência. Somente Garrett ganha status de personagem, embora cômico.
3
dados fazem com que não seja descabido inferir o conhecimento da obra vicentina por parte
do dramaturgo gaúcho.
Essa inferência, a meu ver, ganha maior solidez com a leitura atenta das comédias de
Qorpo-Santo. Não raro, encontramos recursos de construção ou concepção cênica utilizados
pelo dramaturgo gaúcho, na criação de suas comédias, semelhantes a algumas técnicas
recorrentes nos autos vicentinos. Há também temas nos quais os dois autores se detiveram
em particular, dispensando tratamentos semelhantes e, a meu ver, atentando para objetivos
próximos, embora adequados às realidades contextuais de cada um. Como se verá, a
inferência de que parto – de que Qorpo-Santo conheceu a obra de Gil Vicente – ganha mais
concretude na medida da análise comparativa entre as duas obras.
3.
O teatro de Gil Vicente é fortemente marcado por uma estrutura que denomino
processional. Das aproximadamente cinco dezenas de peças vicentinas, quase a metade
delas é marcada pela sintaxe teatral da procissão, ou seja, a encenação organiza-se em
torno de uma ou duas personagens, num cenário de modo geral fixo, e para os quais
convergem todas as outras personagens, em procissão, criando pequenas cenas ou sketches,
independentes uma das outras5. Pense-se, por exemplo, nos autos das Barcas, nos quais as
alegorias do Anjo e do Diabo estão sempre em cena, dentro de um cenário fixo, a praia ou a
ribeira, recepcionando as almas que deverão embarcar, ou na barca do céu ou na barca do
inferno. A frouxa unidade das peças é garantida por aquelas personagens e por este cenário
fixo. Não fossem eles, a desordem instalar-se-ia. A encenação linear, respeitante das regras
das unidades de tempo, espaço e ação, é, nesses casos, desconsiderada, dando lugar a uma
encenação espetacular, que lembra os desfiles dos momos medievais.
Outro exemplo, no teatro de Gil Vicente, de estrutura não linear, em que as cenas
possuem grande independência, não convergindo para um único fim, é o Auto de Mofina
Mendes. Representação natalina, centrada na Anunciação e no Nascimento de Cristo, o auto
é cortado por um episódio farsesco que pouco tem a ver com o tema religioso que se
encena. Primeiro, em um prólogo, um frade faz um sermão jocoso, falando sobre a
impropriedade de se especular sobre o porvir. Depois, entra a Virgem, seguida por Damas:
Prudência, Fé, Humildade e Pobreza. Estabelece-se um diálogo acerca das profecias sobre o
Messias. Entra, então, o Anjo Gabriel e faz a anunciação da vinda de Cristo.
Imediatamente, inicia-se uma cena farsesca, com ausência das personagens anteriores e
com a presença de pastores: André, Payo Vaz, Persival e Mofina Mendes. Trata-se nesta
cena da revelação, por parte de Mofina Mendes, das perdas sofridas por André em relação a
seus rebanhos e a cobrança daquela do pagamento pelo trabalho de ter cuidado do rebanho
perdido. Para livrar-se de tão mofina figura, André lhe dá um pote de azeite, para que a
moça troque por dinheiro na feira. Com o pote nas mãos, Mofina Mendes sai cantando e
bailando, mas o deixa cair, revelando seu destino infeliz. Findo este episódio, entram novos
pastores: Braz Carrasco, Barba Triste e Tibaldinho. Após breve diálogo entre os quatro,
5
Em trabalho recentemente publicado, demonstrei que a estrutura processional é recurso cênico utilizado em
pelo menos duas dezenas de autos, em graus distintos e alcançando todo o longo período produtivo de Gil
Vicente (Cf. MUNIZ 2003).
4
decidem ir dormir. Perto do momento do nascimento de Cristo, busca-se lume para velas.
Conclui-se que a luz logo “nascerá” e que não há, portanto, necessidade de velas. Cristo
nasce. O Anjo vai aos pastores anunciar o nascimento. Estes, preguiçosos, recusam-se a
levantar, porém André convence-os da importância do evento. Ao final, cantando e
bailando, todos festejam. Uma frágil linha de unidade é dada pelos pastores, que são
personagens tanto da cena da Natividade quando do episódio farsesco. O sagrado e o
profano ocupam o mesmo espaço cênico, como é comum à literatura medieval, num jogo
de cenas que se justapõem, mas não dialogam.
Por sua vez, os trabalhos críticos acerca do teatro de Qorpo-Santo estão
constantemente apontando uma certa desordem na estruturação de suas peças, compostas
por cenas que não se conectam, com pouca coesão, e por enredos com mais de uma linha
narrativa, que se complementam pela justaposição ou pela alternância, o que acaba por dar
às peças uma unidade precária. Por sinal, este é o adjetivo escolhido por Flávio Aguiar, em
obra sobre o autor, para qualificar as personagens do dramaturgo gaúcho. Observando a
problemática da organização estrutural do obra de Qorpo-Santo, afirma o crítico:
Qorpo-Santo não manipulava muito bem certos conceitos técnicos da dramaturgia de
seu tempo – como o de cena, por exemplo, que identifica um número constante de
personagens sobre o palco e uma determinada situação dramática. Mudar de cena
significa alterar o número de personagens em cena. Qorpo-Santo nem sempre
trabalhou assim: personagens entram e saem sem que haja qualquer mudança de cena;
cenas mudam sem que haja alteração entre as personagens. (AGUIAR, 1975, p.45)
Exemplo desta desordem estrutural é a comédia O hóspede atrevido ou o brilhante
escondido. Fundamentalmente, dois grupos de personagens compõem a comédia: Ernesto e
Eulália, casados; Alberto e Paulo, amigos do casal, e o criado Leon. O elemento de unidade
da peça é dado exclusivamente pelo espaço onde as diversas ações transcorrem, a casa de
Ernesto e Eulália. Nada mais, além disso. A narrativa em torno do casal encena o tema da
fidelidade amorosa. Já o entrecho que envolve Alberto - o hóspede atrevido, responsável
pela casa na ausência dos esposos -, Paulo e o criado Leon diz respeito ao brilhante
escondido do título, pedra preciosa que Alberto dá a Paulo como garantia de dívidas. As
três personagens tentam enganar-se mutuamente e uma sucessão de episódios farsescos,
que resulta na prisão dos três, conclui a peça. Ao acabar a leitura, se se perguntar o que os
dois grupos de personagens têm em comum ou para que fim convergem suas ações, não se
encontra uma resposta satisfatória.
Para além da falta de uma mais justa coesão entre as cenas e entre esses dois grupos
de figuras, há outras personagens – Jorge e Romualdo – para os quais não se encontra uma
função clara na economia da peça. Jorge é apresentado, na lista de personagens que abre a
peça, como “marido de...”. O nome que lhe segue na lista é o de Eulália. De onde se pode
concluir que esta deverá ser sua esposa. No diálogo que inicia a cena segunda, do primeiro
ato – assim denominado, embora a peça não tenha outros -, Jorge e Eulália realmente
aparentam manter uma relação íntima. Alberto, quando adentra a cena, felicita-os por vêlos casados. Todavia, Jorge, depois da entrada de Alberto, não volta a aparecer em cena.
Nada se diz sobre o que lhe aconteceu. Em seguida, surge Romualdo, que troca algumas
5
palavras com Eulália e também sai de cena, sem que o leitor perceba sua função. Terá
Qorpo-Santo pretendido sugerir uma relação amorosa entre Eulália e Jorge, caracterizando
o adultério daquela? Se assim for, este não é desenvolvido o suficiente para que possamos
compreendê-lo como tal. Terá o dramaturgo simplesmente trocado o nome de Ernesto, que
inicia a peça, por Jorge, e depois voltado a Ernesto? O contexto da escrita e o pouco tempo
dedicado a esta – segundo as indicações do autor – podem ter propiciado a troca. E
Romualdo, o que faz em cena? Para essas e outras questões não se encontram respostas
objetivas. Tudo torna-se ainda mais complexo quando se lê a observação, adicionada ao
final da peça, na qual Qorpo-Santo confessa ter deixado inconcluso o texto de O hóspede
atrevido ou o brilhante escondido, embora ele próprio tenha editado suas obras:
Esta comédia é apenas um borrão que deve passar pelas correções necessárias antes
de ser impressa, tanto mais que foi escrita das 11 horas da noite de 30 [de janeiro de
1866], às 3 quando muito da madrugada de 31.(QORPO-SANTO, 1980, p. 291)
As personagens soltas, aquela junção algo aleatório dos dois grupos nucleares de
personagens e a justaposição de seus enredos e cenas desestabilizam a unidade da peça.
Como já se disse, apenas o espaço onde todas as ações transcorrem garante certa unidade.
Do mesmo modo, uma leitura condescendente com as “falhas” estruturais apontadas e
atenta ao significado pretendido da obra, que busque a moral de fundo da encenação, pode
encontrar ou sugerir um sentido, de caráter temático, para o todo da peça: tomados
independentemente, o casal, Ernesto e Eulália, personifica o bem, a honra, os bons valores;
enquanto que o trio, Alberto, Paulo e Leon, representa o mal, a malandragem, o engano, daí
suas personagens serem ridículas e suas ações se circunscreverem ao campo da caricatura e
da farsa.
Outros dados, no que diz respeito à estruturação das peças, a aproximar Qorpo-Santo
e Gil Vicente podem ser apontados. Em ambos, por exemplo, é constante a presença de
cantigas a embalar o ritmo da encenação. Vicente, como se sabe, também foi poeta e seus
versos estão registrados ao longo de sua obra e no Cancioneiro Geral de Garcia de
Resende. Dezenas de seus autos são entremeados por cantigas, muitas vezes responsáveis
pelo fechamento da encenação, acompanhadas de danças. O já referido Auto de Mofina
Mendes, por exemplo, se encerra com a reunião dos pastores, que cantam e dançam
comemorando o nascimento do menino Jesus.
Qorpo-Santo revela também certa intimidade com a poesia. As diversas cantigas que
encontramos nas comédias do autor são, em sua quase maioria, compostas por versos
redondilhos, de sete ou cinco sílabas, dispostos em quadras, que traduzem o gosto popular
que embala as peças. Das dezessete comédias que nos legou, encontramos pequenos
poemas em, pelo menos, sete6.
Como Vicente, Qorpo Santo recorre às cantigas, algumas vezes, para trazer certo
lirismo para o interior da ação. Em Mateus e Mateusa, comédia que encena os conflitos
6
Um assovio, As relações naturais, O marinheiro escritor, Um parto, Lanterna de fogo, A separação de dois
esposos, e Eu sou vida; eu não sou morte. Nas três primeiras peças citadas, as cantigas finalizam o espetáculo,
colaborando, de modo geral, para a festa que o farsesco estabelece.
6
amorosos de um casal de idosos, Silvestra, Pêdra e Catarina, as três filhas do par, cantam
para reforçar o amor que sentem pelos pais, trazendo para a cena um tom lírico que
contrasta com o farsesco que caracteriza o conflito vivido pelos anciãos:
(As filhas cantam:)
Nós somos três anjinhos;
E quatro éramos nós,
Que do céu descemos;
E o amor procuremos:
- Mataremos ao algoz
Destes dois nossos paizinhos!
Sempre fomos bem tratadas
Quer deste, quer daquela:
Não queremos que a maldade,
Para nossa felicidade,
Maltrate a ele ou a ela...
Mataremos tresloucadas!
.............................................
De principados – exércitos
Temos também de virtudes!
De tronos! Não mudes,
Papai! Vivam as ordens!
.............................................
(Terminando o canto, abraçarão todas o Pai, e este a elas, banhados todos na maior
efusão de júbilo) (QORPO-SANTO, 1980, p. 93-94)
Como se vê, inclusive pela rubrica, parece ser intenção do autor intermediar as cenas
de briga entre os dois velhos, que iniciam e finalizam a curta comédia, com um clima mais
ameno, mais pacífico, traduzido pela expressão do amor filial. Muito embora, repare-se, o
canto das meninas guarde um tom bélico e exaltador da ordem, algo estranho ao clima que
se quer instalar, mas de que se encontra eco em outras comédias do autor.
Há casos em que o recurso às cantigas deve-se ao desejo de instalar o cômico por
meio do discurso irônico. A comédia Eu sou vida; eu não sou morte se inicia com uma
cantiga em que o casal de amantes, Linda e Lindo, alternando o canto das quadras, introduz
o tema da peça: o engano, o fingimento. Linda avisa ao amante para que tome cuidado com
os bajuladores, com os que demonstram demasiado carinho, com aqueles que, em pele de
cordeiro, são, em realidade, lobos famintos. A ironia do que se diz – ela própria pode ser
um desses lobos disfarçados em pele de cordeiro - é acentuada exatamente pelo fato do
recorrer-se ao canto, marcado pela simplicidade das quadras populares e pelos diminutivos
aparentemente carinhosos:
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Linda: (cantando) –
Se não tiveres cuidado,
Algum cão danado
Te há de matar;
Te há d’estraçalhar!
Lindo: - Eu sou vida
Eu não sou morte!
É esta minha sorte;
É esta minha lida!
Linda: - Ind’assim, toma sentido!
Vê que é tudo fingido;
Não creias algum louvor:
Sabei: - Te trará dor!
Lindo: - Se desrespeitará
A vida minha?
A desse, asinha,
- Ao ar voará!
Linda: - Não te fies, meu Lindinho,
Dos que fazem carinho,
Crê que te devoram
Os lobos; e não coram!
Lindo: - Sabei, ó Lindinha:
Os que me maltratam
A si se matam:
Tu ouves, Anjinha!?
(QORPO-SANTO, 1980, p.125)
Observe-se que a partir da metade da cantiga o uso do diminutivo intensifica o tom
irônico, alcançando inclusive a forma como os amantes se tratam – Lindinho, Lindinha,
Anjinha. A alternância das rimas entre as estrofes (emparelhadas e interpoladas) colabora
para a manutenção da melodia e para que os diminutivos, a acentuar o tom irônico,
assumam papel chave nos versos, em posição de rima. Tudo isto demonstra que, embora
redigisse suas comédias prioritariamente em prosa - diferentemente de Gil Vicente, que o
fazia em versos - Qorpo-Santo manejava razoavelmente bem o verso e, tal qual o
dramaturgo quinhentista, sabia com propriedade utilizar-se das cantigas para diversos
propósitos: instalar a festa farsesca, criar o intervalo lírico no meio da comédia, estabelecer
o discurso irônico etc.
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4.
Se por via da estruturação das peças é possível identificar elementos convergentes
entre os teatros de Gil Vicente e de Qorpo-Santo, o diálogo entre os dois dramaturgos
revela-se frutífero também no campo do conteúdo ou dos temas predominantes em suas
obras. Neste sentido, vale lembrar que o contexto e a condição de produção dos dois
autores foram muito diferentes.
Gil Vicente, como se sabe, foi artista de Corte. Produziu para ela, foi por ela
financiado, defendeu sua ideologia e exercitou a ação corretiva sobre os costumes e hábitos
dessa mesma corte (KEATS, 1988). Respeitado, admirado, estimulado, Vicente, ao longo
de três décadas de intensa atividade artística, teve a oportunidade de ver quase todos os seus
autos encenados – cumprindo ele, com certeza, diversos papéis nessas encenações: diretor,
produtor, ator etc. (MACHADO, 2003) – e parte significativa do texto que se tem hoje de
suas peças passou por seu crivo de autor antes da publicação (TAVANI, 2003). Portanto,
Vicente pôde experimentar seus autos no palco, observar a reação de seu público mais
imediato, muito provavelmente corrigi-los e aperfeiçoá-los, de modo que se pode
considerar que o que se tem hoje está algo próximo daquilo que desejou expressar ao
redigir cada texto.
A trajetória de Qorpo Santo é completamente diferente. Segundo seus próprios
testemunhos, a redação das dezessetes peças aconteceu num período de seis meses, no ano
de 1866, em que já recaía sobre ele a interdição judicial de seus direitos civis. Família e
Estado o condenaram à marginalidade. Sua peças não receberam os olhares do público e, se
se der fé a seus escritos, não foram alvo de correção ou aperfeiçoamentos, embora, como já
se disse, tenham sido publicadas pelo próprio autor. Em mais de uma anotação, QorpoSanto afirma não ter tido tempo nem contexto pacífico para terminar algumas ou rever
outras, como comprovou a citação conclusiva de O hóspede atrevido ou o brilhante
escondido.
Se a condição de produção e os elementos motivadores dos dois autores parecem ter
sido distintos, não o foram os ideais defendidos por ambos. Pode-se dizer que, dentro de
contexto diferentes, Gil Vicente e Qorpo Santo foram autores conservadores, defensores do
status quo e que colocaram suas obras a serviço da ideologia da classe dominante.
Sobre Gil Vicente, já se disse que ele foi um artista da Corte, tanto no sentido de
produzir para ela e ter suas principais figuras como mecenas, como na defesa da ideologia
predominante. Qorpo Santo, muito embora fosse um marginalizado social, também assumiu
em sua peças o discurso do Estado, defendo suas instituições, como a Monarquia e, nela, os
monarcas – vide a peça Hoje sou um; e amanhã outro -, a Família – já se citou aqui o
exemplo de Ernesto e Eulália em O hóspede atrevido ou o brilhante escondido -, a Igreja e
os bons costumes. A sua farsa, assim como a de Gil Vicente, recaía sobre aqueles que
exerciam mal seus papéis sociais ou que se aproveitavam de seus privilégios em sentido
privado, corrompendo as instituições. Estas, por sua vez, jamais são condenadas, ao
contrário, há sempre a tentativa de resguardá-las daqueles que buscam corrompê-las. Já
Flávio Aguiar apontava algo semelhante em sua dissertação sobre o autor:
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Tanto em A justiça como na Ensiglopédia Qorpo-Santo, via de regra, não criticou o
regime social em que vivia. Sempre responsabilizava pelos males existentes as
autoridades momentaneamente encarregadas de dirigir as instituições (AGUIAR,
1975, p. 45).
Exemplo da semelhança entre os dois autores é a proximidade temática entre a farsa
O velho da horta, de Gil Vicente, e a pequena comédia Mateus e Mateusa, de Qorpo-Santo.
Na primeira, o entrecho trata dos amores serôdios de um velho hortelão por uma jovem
moça, que lhe vem comprar as verduras. Assediada pelo velho, a moça busca demonstrarlhe o ridículo de sua situação de homem casado e idoso. Ele não se conforma e insiste na
conquista. A moça, então, parte. Neste momento, entre em cena a mulher do velho, que
reclama de sua paixão tardia. O diálogo que se estabelece entre eles instaura o cômico:
Vem a mulher do velho, e diz:
Ui! Amara da minha fada!
Fernandeanes, que é isto?
Velho: Oh! Pesar de Anti-Cristo,
com velha destemperada!
Vistes ora!
Velha: Esta dama onde mora?
Ui! Amara dos meus dias!
Vinde jantar na má-hora.
Que vos metedes agora
em musiquias?
Velho: Pelo corpo de São Roque,
comendo ao demo a gulosa!
Velha: Quem vos pôs i essa rosa?
Má forca que vos enforque!
Velho: Não curar!
Fareis bem de vos tornar,
porque estou mui mal sentido.
Não cureis de me falar,
que não se pode escusar
ser perdido.
Velha: Agora, coas ervas novas,
vos tornastes vós granhão?
Velho: Não sei que é, nem que não,
que hei-de vir a fazer trovas.
Velha: Que peçonha!
Havei má-hora vergonha,
a cabo de sessenta anos,
que sodes já carantonha!
Velho: Amores de quem me sonha
10
tanto anos!
Velha: Já vós estais em idade
de mudardes os costumes.
Velho: Pois que me pedis ciúmes,
em vo-lo farei verdade.
Velha: Olhade a peça!
Velho: Nunca o demo e, al me impeça,
senão morrer de namorado!
Velha: Quer já cair da tripeça,
e tem rosa na cabeça
e embicado.
Velho: Deixai-me ser namorado,
porque o sou muito em extremo!
Velha: Mas que vos tome inda o demo,
se vos já não tem tomado!
Velho: Dona torta,
acertar por essa porta!
Velha mal-aventurada,
sair má-hora da horta!
Velha: Ui! Amara! Aqui sou morta
ou espancada!
Velho: Estas velhas são pesadas!
Santa Maria val com a praga!
Quanto as homens mais afaga,
tanto são mais endiabradas!
(VICENTE, 1975, p. 46-477)
O tema dos amores serôdios do velho, ou de sua “sem-vergonhice”, é , como se vê,
tratado comicamente por Gil Vicente. As expressões e ditados populares, as pragas que
ambos lançam um contra o outro, as pequenas ofensas trocadas, tudo está a serviço do
estabelecimento do cômico. Todavia, nas entrelinhas, o riso faz-se sério, conservador. O
que se quer, ao fim, é corrigir por meio do riso o comportamento reprovável do velho
amante. A esposa tenta exatamente demonstrar-lhe o quão pouco apropriado são os amores
naquela que, hoje, denominamos terceira idade: “Já vós estais em idade/ de mudardes os
costumes”. Assumir a posto de granhão torna-o ridículo frente a sociedade, lançando a
vergonha sobre a família.
O velho, como se sabe, não dará ouvidos à esposa, continuando a alimentar seu
extremado desejo pela jovem: “Deixai-me ser namorado, porque o sou muito em extremo!”.
Todavia, como a farsa está a serviço da correção dos costumes, a mão conservadora do
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Optei por citar pela edição preparada pelo Prof. Segismundo Spina por ser esta mais acessível aos leitores
brasileiros. Todavia, procedi o cotejamento com a edição fac-similar das Obras completas de Gil Vicente, de
1928, indicada na bibliografia.
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autor fará entrar em cena uma alcoviteira que, se aproveitando da cegueira amorosa do
amante, roubar-lhe-á todas as economias, em troca de falsas esperanças. Descoberta a farsa,
presa a alcoviteira e casada a jovem, ao velho, impossibilitado de realizar o desejo
amoroso, resta-lhe conter seus sentimentos, muito embora, a isso, prefira a morte.
A temática dos amores serôdios de um velho é retomada, de maneira semelhante, por
Qorpo-Santo. Mateus e Mateusa, comédia composta de apenas três cenas, das mais
representadas modernamente do autor, dialoga de modo claro com O velho da horta. Tratase também de um casal de idosos em conflito, devido às atitudes do velho em relação às
outras mulheres: Mateus insiste em expressar seus amores por moças mais jovens, amores
considerados tardios e indecentes; Mateusa, sofrendo de ciúmes e solidão, reage ao
comportamento do marido, acusando-o de uma velhice insana. O diálogo da primeira cena,
intensamente farsesco, é, pode-se dizer, muito vicentino, pela linguagem realista e irônica,
pela agilidade imposta à ação, pela constante preocupação do autor em caracterizar, por
meio das rubricas, as personagens e sua movimentação etc. Veja-se um trecho em que se
podem atestar as semelhanças:
Mateus: (caminhando em roda da casa; e Mateusa assentada em uma cadeira) —
Que estão fazendo as meninas, que ainda as não vi hoje?!
Mateusa: (balançando-se) — E o Sr. que se importa, Sr. velho Mateus, com as suas
filhas?!
Mateus: (voltando-se para esta) — Ora é boa esta! A Sra. sempre foi, é, e será uma
(atirando com a perna) não só impertinente, como atrevida!
Mateusa: — Ora, veja lá, Sr. Torto (levantando-se), se estamos no tempo em que o
Sr. a seu belo prazer me insultava! Agora eu tenho filhos que me hão de
vingar!
Mateus: (abraçado-a) — Não, não, minha querida Mateusa; tu bem sabes que isto
não passa de impertinência dos 80. Tem paciência. Vai me aturando, que te
hei de deixar minha universal herdeira (atirando uma perna) do reumatismo
que o demo do teu Avô torto meteu-me nesta perna! (atirando com um
braço) das inchações que todas as primaveras arrebentam nestes braços!
(abrindo a camisa) das chagas que tua mãe com seus lábios de Vênus
imprimiu-me neste peito! E finalmente (arrancando a cabeleira): da calvície
que tu me pregaste, arrancando-me ora os cabelos brancos, ora os pretos,
conforme as mulheres com quem eu falava! Se elas (virando-se para o
público) os tinham pretos, assim que a sujeitinha podia, arrancava-me os
brancos, sob o frívolo pretexto de que me namoravam! Se elas os tinham
brancos, fazia-me o mesmo, sob ainda o frivolíssimo pretexto de que eu as
namorava (batendo com as mãos, e caminhando). É assim é que é; e assim é,
— que calvo! calvo, calvo, calvo, calvo, calvo (algum tanto cantando)
calvô... calvô... calvô... ô... ô...ô
12
Mateusa: (pondo as mãos [na cabeça]) — Meu Deus! que homem mais mentiroso!
Céus! quem diria que ainda aos 80 este judeu-errante havia de proceder
como aos quinze, quando roubava frutas do pai!
Mateus: (com fala e voz muito rouquenha) — Ora Sra.! Ora Sra.! Quem, quem lhe
disse essa asneira?! (Profere estas palavras querendo andar e quase sem
poder. É este o todo do velho em todos os seus discursos.)
Mateusa: (empurrando-o) — Então para que fala de mim a todas as moças que aqui
vêm, Sr. chino?! Para quê, hem? Se o Sr. não fosse mais namorador que um
macaco preso a um cepo, certamente não diria — que sou velha, feia e magra!
Que sou doente de asma; que tenho uma perna mais curta que a outra; que...
que... finalmente, que já (voltando-se com expressão de terror) não lhe sirvo
para os seus fins de (pondo a mão em um olho) de... O Sr. bem sabe!
(esfregando com as costas da mão o outro [olho] com a voz de quem chora).
Sim, se eu não fosse desde a minha mais tenra idade um espelho, tipo, ou
sombra de vergonha e de acanhamento, eu diria (virando-se para o público): Já
não quer dormir comigo! Feio! (saindo da sala) mau! velho! rabugento!
Tãobem8 não te quero mais, fedorento! (QORPO-SANTO, 1980, p. 89-90)
O cômico, como se observa, se estabelece no diálogo ora por meio do recurso à
ironia; ora pelo palavreado baixo; ora pelos indicativos das rubricas. Como em Gil Vicente,
a linguagem é elemento fundamental na constituição do farsesco, assim como na
caracterização do ridículo das duas personagens. Mateus é descrito com tendo reumatismo
nas pernas, inchações no braço – muito provavelmente é por isso que Mateusa chama-o de
Sr. Torto -, é calvo, usa peruca, tem a voz rouca, desagradável, cheira mal, é feio, enfim,
uma série de características que o desqualificam para o papel de namorador. Mateusa, por
sua vez, não possui melhores qualidades. O marido acusa-a de ser velha, feia, magra, de ter
uma perna mais curta, de sofrer de asma e de ser rabugenta. O diálogo basicamente se
constitui em uma série de vitupérios lançados pelos velhos, um contra o outro, e ditos de
forma a provocar o riso. As rubricas indicam a acentuação do gestual, que serve para
corroborar o esdrúxulo da linguagem.
A questão central na comédia de Qorpo-Santo, no entanto, não parece ser o impróprio
dos amores na idade senil - como o era em Gil Vicente -, mas sim a solidão e a sensação de
abandono que cai sobre Mateusa quando seu marido demonstra que não mais a deseja. É
disso que ela reclama: “Já não quer dormir comigo!”. É, surpreendentemente, do contínuo
desejo sensual na velhice que trata Mateus e Mateusa. Embora a mulher pragueje contra o
comportamento do marido, isto se dá fundamentalmente pela má sensação de ter sido preterida.
Nisto, Qorpo-Santo avança em relação ao dramaturgo português e, também, a seu próprio
tempo, tratando de tema tão delicado.
Na terceira e última cena, após o interlúdio lírico entre pais e filhas, de que já se falou
acima, o farsesco retorna ao centro da ação. Mateus e Mateusa voltam a discutir; agora,
porque esta, afirmando ter um pretendente, resolve sair de casa. A discussão vai as vias de
8
Esta forma convive com a outra, também, no texto das comédias de Qorpo-Santo (CÉSAR, 1980, p. 102).
13
fato. O casal se agride com socos, pontapés, porretes, cadeiradas etc. O jogo farsesco se
instaura plenamente. Entram em cena, então, três objetos de extremo interesse para a
discussão dos propósitos ideológicos da peça. Mateusa, durante a briga, joga em Mateus um
exemplar do Código Criminal, um da Constituição do Império, outro da História Sagrada.
O primeiro deles é jogado em resposta à argumentação de Mateus de que a esposa lhe deve
obrigações perante as leis civis. Mateusa não só arremessa o pesado exemplar do Código
Criminal no marido, como ainda lhe diz:
E ainda me fala em leis da Igreja e civis, como se alguém fizesse caso de papéis
borrados! Quem é que se importa hoje com leis, senhor banana! Bem mostra que é
filho dum lavrador de Viana! Pegue lá o Código Criminal, traste velho em que os
doutores cospem e escarram todos os dias, como se fosse uma nojenta escarradeira!
(Id., Ibid., p. 99)
Para os outros documentos, os comentários irônicos e denunciadores do pouco que se
tem em conta no país as leis criminais, civis e canônicas são semelhantes. As filhas tudo
presenciam, mas temem intervir. Ao fim, quando ambos estão no chão, depois de muitas
cadeiradas e porretadas, o criado, que só aparece neste momento, intervém, à modo de coro,
com uma fala que revela, a meu ver, a voz autoral, tamanho o dogmatismo de que se
constitui. Diz o criado:
Eis, senhores, as conseqüências funestas que aos administrados, ou como tais
considerados, traz o desrespeito das autoridades aos direitos destes; e com tal
proceder aos seus próprios direitos: a descrença das mais sábias instituições, em vez
de só a terem nesta ou naquela autoridade que as não cumpre, nem faz cumprir! A
luta do mais forte contra o mais fraco! Finalmente, a destruição em vez da edificação!
O regresso, em vez do progresso! (Id., Ibid., p. 101)
Como se vê, o tom positivista da fala final da peça, a clara defesa das instituições do
Estado e a crua denúncia do “desrespeito das autoridades” entram, de certo modo, em
choque com o pensamento liberal, em relação aos costumes, evidenciado no tratamento dos
desejos sensuais dos velhos, retomando-se o tom conservador que primeiramente apontei.
Esta mesma aparente contradição na forma mais ou menos liberal ou conservadora de
tratar determinados temas aproximam os dois dramaturgos postos em diálogo. Se o
exemplo tomado aqui revela um Gil Vicente pouco compreensivo com os amores do velho
hortelão, buscando, através do ridículo, corrigir e punir o comportamento considerado
impróprio, em outros textos do autor, temas complexos envolvendo tradições religiosas ou
costumes populares são observados por Vicente numa ótica bastante inovadora para época.
Tome-se como exemplo o tratamento que o autor dá à questão dos judeus e dos cristãosnovos naquele Portugal às portas de instalar o tribunal inquisitorial em seu território9. O
9
Retomando os estudos de Celso Láfer, demonstrei em estudo anterior como o tratamento proposto por
Vicente, para a questão judaica, perceptível em sua obra, considerando o contexto do Portugal do século XVI,
passa pela tolerância e pela defesa da conversão dos “homens da nação” por meio da linguagem, da
argumentação retórica, repudiando por completo o uso da força. Cf. LÁFER, 1978; e MUNIZ, 2000.
14
que parece justificar tais atitudes, às vezes, algo contraditória dos escritores, é o jogo,
comum à arte, de interposição no processo criativo de valores pessoais do autor e valores da
coletividade a que pertence ou do sistema ideológico a que está ligado. Neste sentido, os
exemplos aqui dados, a meu ver, reforçam e corroboram ainda mais a aproximação
comparativa proposta entre as obras de Qorpo-Santo e Gil Vicente.
5.
Por fim, o levantamento exaustivo de todos os elementos formais ou temáticos a
aproximarem Gil Vicente e Qorpo Santo, no âmbito deste pequeno ensaio, seria impossível.
Mas, creio, que aqueles aqui apontados são suficientes para corroborar a hipótese de o
dramaturgo gaúcho poder ter tido em seu horizonte de criação a obra do teatrólogo
humanista português. Com aprofundamento da pesquisa, creio, esta hipótese será cada vez
mais defensável.
Como se disse no início, via de regra, o teatro de Qorpo-Santo foi lido como
anunciador ou antecipador de técnicas do moderno Teatro do Absurdo ou da arte
Surrealista. A despeito da correção desta leitura, poder-se-ia também apontar a filiação do
dramaturgo gaúcho a certa tradição do teatro que se desenvolve e se divulga no espaço
luso-brasileiro por meio da obra de Gil Vicente. Com esta proposta, é óbvio, não pretendo
contestar a leitura que vê as comédias de Qorpo-Santo como revolucionárias na cena teatral
brasileira do séc. XIX, mas sim creio ser possível, por meio daquela filiação, entender
melhor de que modo ou em que bases se construiu a inovação para que aponta o teatro do
escritor gaúcho.
ABSTRACT: The following article aims for establish similitude between Qorpo-Santo’s plays end Gil
Vicente, the dramatic Portuguese writer. Some plays of them are analysed, dealing with their structure,
theme, signification and styles.
KEYWORDS: Brazilian Theatre, Portuguese Theatre; Gil Vicente; Qorpo-Santo; Compared Literature.
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