1 XII CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA SOCIEDADE BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte, 31 de maio a 03 de junho de 2005. GT: Violência, Criminalidade e Segurança A COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS DA OAB-BA Núbia do Reis Ramos1 Resumo: Este trabalho analisa a contribuição da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados da Bahia no reconhecimento e implementação dos direitos fundamentais da pessoa humana em conformidade com os valores de igualdade, justiça e democracia contemporâneos. Como organização da sociedade civil, a Comissão tem se empenhado na realização dos seus objetivos denunciando as violações e atuando na divulgação e educação dos valores relacionados aos direitos humanos na comunidade regional. Assim, ao mesmo tempo em que procura afirmar o cumprimento das leis sobre os direitos, influencia os valores de cultura política, contribuindo para o fomento de um senso cívico e o desenvolvimento do capital social. No entanto, realiza mais do que a sua função original, transcendendo a questão da luta pelos direitos humanos como valores, pois atende a demandas diversas da população, orientando-a sobre o acesso à justiça e encaminhando casos para os diferentes órgãos do judiciário. Introdução Em tempos atuais, o tema dos direitos humanos tem sido alvo de constante preocupação dos estudiosos da área de Direito e das Ciências Sociais. Na perspectiva jurídica, as discussões, ainda que timidamente, têm buscado superar a circunscrição do tema de sua positivação no âmbito nacional e internacional ou nas questões de filosofia do Direito. Na perspectiva dos estudos socioculturais, as discussões, de um modo geral, se situam em torno da sistemática violação desses direitos, entendidos como direitos fundamentais, por serem ratificados nas constituições nacionais, principalmente nos países de Terceiro Mundo. Vinculam-se também a essa perspectiva as repercussões dos princípios gerais da Declaração dos Direitos Humanos – em especial, o da universalidade – sobre nações e coletividades com culturas singulares. Em verdade, poucos estudos contemplam, de forma substantiva, as potencialidades da mobilização de apoio social e da apropriação discursiva do conteúdo dos direitos humanos como mola propulsora para a emancipação do homem. É nessa última perspectiva que este estudo se situa. Busca apresentar os direitos humanos como um campo de valores democráticos de atuação, que permite a ampliação da cidadania, situando-os na interface da cultura política e do capital social como valor-fonte e padrão de referência, capazes de alavancar novos valores e fomentar novas formas de sociabilidade. No Brasil, podem-se apontar avanços na questão dos direitos do homem, principalmente a partir da Constituição de 1988, tida por muitos como fundadora de uma nova modernidade democrática que enterraria de vez os 20 anos de governo militar e os resquícios de uma cidadania restrita, tal como 1 Professora Assistente da Universidade Federal Da Bahia, Departamento de Ciência Política 2 estudado por Santos (1993) na sua caracterização da cidadania regulada. Entretanto, a realidade dos fatos indica que essas mudanças ainda não têm sido suficientes para garantir a efetivação do princípio de igualdade e justiça para todos. Na sociedade brasileira, convive-se com uma longa história de desigualdades e exclusão e uma cultura política marcada pela idéia dos direitos como privilégios dos mais ricos e como concessão do Estado. Além disso, em anos recentes, as políticas neoliberais têm causado um progressivo desmantelamento do Estado e das políticas públicas, o que agrava ainda mais as condições de vida para a maioria da população, impactando na garantia dos direitos fundamentais que hoje incorporam os próprios direitos humanos (Telles, 1998). Os direitos humanos, hoje, dizem respeito ao aspecto da justiça social que garante um mínimo de qualidade de vida (material e simbólica) aos sujeitos-cidadãos. Para isso, as oportunidades de se obter uma vida de qualidade dependem de como a igualdade de condições se desenvolve, não somente sob o aspecto distributivista dos bens produzidos, mas também sob o aspecto da vivência da justiça em si na sociedade, ou seja, a produção e reprodução contínua das condições para garantir o usufruto da cidadania, condições essas que variam conforme os padrões de cultura e o capital social de uma sociedade. Por isso, a compreensão do tema dos direitos humanos no Brasil, entendido como direitos fundamentais, é um rico filão de estudo, pois abre perspectivas diversas para compreender: (a) os modos como se entende ou se pode entender o princípio da igualdade e da justiça e sua evolução nos processos de legitimidade, em que estão envolvidas as dimensões morais, econômicas, sociais e culturais de uma sociedade; (b) as contradições entre princípios constitucionais, que garantem direitos universais, e práticas sociais excludentes; (c) o discurso da igualdade e da justiça como um campo que questiona o consenso, reconfigura o conflito de interesses e exige dos atores posicionamentos que vão além da dimensão material dos interesses particulares. Desse modo, propõe-se, neste estudo, uma reflexão sobre essas questões, a partir do resgate da influência da herança cultural na mentalidade e no padrão de ação dos indivíduos, distanciando-se do viés economicista no qual a racionalidade instrumental do mercado é vista como o único e exclusivo princípio estruturador da sociedade e da política. Este, como assinala Telles (1994: 97) faz do interesse privado a medida de todas as coisas, “(...) recusa a alteridade e obstrui, por isso mesmo, a dimensão ética da vida social por via da recusa dos fundamentos da responsabilidade pública e obrigação social.” Nesse sentido, a questão norteadora deste artigo é que, embora a herança histórico-cultural brasileira dê um caráter peculiar à questão dos direitos no Brasil – onde o espaço público é privatizado e os direitos aparecem como uma concessão do Estado – haveria uma tendência crescente da atuação de grupos sociais empenhados em reverter essa situação. A postura que se assume neste trabalho é a de que a atuação desses agentes na criação de um espaço público dinâmico, com base numa ética fundada em princípios que valorizam a vontade coletiva e que reforçam a solidariedade social, poderia promover novas formas de reciprocidade social e recriar novas regras de civilidade e de sociabilidade democrática. Isso contribuiria para a formação de uma cultura política renovada, no sentido de consolidar uma cidadania ativa, base de uma democracia real e inclusiva. Um sinalizador dessa tendência, que permitiria investigar esse pressuposto, é a crescente visibilidade que têm alcançado as ações de organizações que lidam com os direitos do homem hoje. Por isso, para o recorte empírico deste trabalho, foi escolhida a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados da Bahia, tendo em vista o seu reconhecimento social e a visibilidade de suas ações na área dos direitos humanos. O que faz a Comissão A atuação da Comissão de Direitos Humanos da OAB-BA está direcionada ao atendimento das demandas da população de Salvador. Os casos de denúncias de violação nos demais município do estado da Bahia são tratados pelas subsecções da OAB mais próximas, ou pela própria Comissão, a depender da 3 gravidade do caso. Atualmente, na prática, as atividades desenvolvidas contemplam duas estratégias de ação. A primeira é voltada para a essência de sua função – a luta pelos direitos humanos e sua implementação – e se manifesta pela ação contínua das subcomissões de Saúde e Carcerária. Atua, portanto, para apurar e denunciar casos de violação dos direitos humanos na área de saúde e no sistema penitenciário. Atende também a outros setores da sociedade. A segunda estratégia tem o caráter educacional, sendo implementada pela subcomissão de Educação e Cidadania, por meio dos projetos “Faculdades de Direito” e “OAB vai à Escola”. As atividades estão voltadas para a disseminação dos valores dos direitos humanos e de como materializá-los na sociedade. Dentre as atividades realizadas, levando-se em consideração a primeira estratégia de ação, pode-se apontar: (a) atendimento ao público que busca denunciar atos que consideram violações sofridas; (b) encaminhamentos para providências junto aos órgãos competentes para as denúncias julgadas procedentes; (c) visitação aos estabelecimentos psiquiátricos e de saúde para verificar as condições de funcionamento e, caso necessário, denunciar os problemas; (d) acompanhamento das discussões sobre a reforma psiquiátrica encabeçada pelo movimento antimanicomial; (e) visitação a presídios e delegacias para verificar as condições dos presos. Entre as atividades desenvolvidas na segunda estratégia de ação, voltada para a educação e a difusão dos valores dos direitos humanos, estão: (a) promoção de ciclos de palestras; (b) elaboração e viabilização do projeto OAB vai ás ruas, que tem como objetivo conscientizar os alunos das escolas públicas sobre os direitos; (c) elaboração do projeto Faculdades de Direito, que consiste em conscientizar os alunos dos cursos de Direito da importância da sua inserção na luta pela defesa dos direitos humanos e da consideração dos mesmos na prática profissional; (d) promoção de seminários, palestras, mesas redondas, audiências públicas com variados temas: jurídicos, políticos e sociais e (e) elaboração de um relatório bienal das atividades desenvolvidas pela Comissão. Por fim, observa-se que a Comissão tem, no trabalho voluntário de seus membros, uma fonte de participação cívica de indivíduos dispostos a melhorar as condições de efetivação dos direitos do homem na Bahia, através de uma prática profissional engajada e contínua, como foi mencionado em todos os depoimentos. No que se refere o atendimento ao público, este é realizado na sede da OAB, pelos membros da Comissão, em sistema de plantões, três vezes por semana. É também efetuado por meio de documentação protocolada na recepção da OAB. Nesse caso, a documentação é analisada e são feitos os encaminhamentos possíveis, que podem resultar em: arquivamento do caso com a devida comunicação e justificativa ao demandante; ofício solicitando a presença do demandante para maiores informações; encaminhamento do caso às autoridades competentes; acompanhamento do caso pela própria Comissão. Para tentar identificar os principais tipos de demandas encaminhadas à Comissão, foram analisados os documentos protocolados e as fichas de atendimento. Por meio deles, foi possível fazer o levantamento e a sistematização das informações, cujos resultados podem ser conferidos na Tabela 3. 4 Tabela 3 Tipos de demandadas para a Comissão dos Direitos Humanos Tipos N % Ocorrências de violência policial2 Indenização por danos físicos Direito de família Defesa de presos Ameaça/violação da integridade física Discriminação de cor/física Direito do trabalho Direito à propriedade Ação de despejo Negociação de dívida Indenização por danos materiais Homicídio (motivação política) Outros Total 23 6 6 5 5 3 3 2 2 2 1 1 7 66 34,8 9,1 9,1 7,6 7,6 4,5 4,5 3,0 3,0 3,0 1,5 1,5 10,6 100 Fonte: Pesquisa de campo, 2003. Pelos dados expostos acima, é possível observar que o maior número de demandas pelos serviços da Comissão decorre de situações de violação da integridade física: 34,8% referentes à violência policial, 7,6% referentes a casos de ameaça ou violação da integridade física cometida por terceiros e 1,5% referentes à homicídio por motivação política. Levando-se em consideração que o pedido de indenização por danos físicos resulta de uma agressão à integridade da pessoa (9,1%), pode-se contabilizar um total de 53% dos casos. Ainda que os direitos humanos sejam um grande guarda-chuva que tudo pode abrigar, na perspectiva deste trabalho e a partir da literatura sobre o tema, considera-se que os casos de ameaça e violação da pessoa humana cometidas por policiais civis e militares são os que mais se aproximam de um apelo legítimo aos princípios dos direitos humanos – um homem livre, soberano e igual. Isso porque essa violência é agravada por ser perpetrada, quase sempre, por agentes públicos, treinados e armados pelo Estado para garantir a segurança e a proteção do cidadão, conforme os estatutos das corporações e a Carta constitucional, que consagra esses mesmos direitos. Aliás, são esses casos que mais mobilizam a Comissão, como afirmam os seus membros. A respeito da questão da violência policial no Brasil, e mais especificamente na Bahia, pode-se fazer um paralelo com os estudos desenvolvidos pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP (1993), que apontam o aumento significativo do número de mortes de adolescentes e crianças por policiais civis e militares. No geral, as vítimas são jovens que se concentram na faixa etária de 14 a 17 anos, do sexo masculino, pobres, carentes ou menores abandonados. Em Salvador, esse quadro não é muito diferente. Dados recentes atestam que, no período de 1997, 5,1% das mortes violentas de adolescentes em Salvador foi causada por intervenção policial (Fórum de Combate a Violência, 1998). 2 Violência policial: agressão, tortura e suspeita de homicídio. 5 Esse quadro de permissividade e impunidade por parte do Estado brasileiro para com a violência policial mostra a falta de preparo de seus agentes e de mecanismos de controle efetivos dos órgão de segurança pública. Revela, também, a flagrante ineficiência das políticas públicas, já que as principais vítimas de violência são os jovens pobres, pouco escolarizados, desempregados e moradores das periferias das grandes cidades. Expõe a inexistência ou a pouca eficácia dos mecanismos de controle sobre o Estado por parte da sociedade civil, conquanto se possa assinalar, nos últimos anos, os esforços da ação do Ministério Público – que resultou da remodelagem jurídica da Constituição de 1988 – e de organizações civis para modificar esse quadro. Nos dados da Tabela 3, verifica-se ainda que as demais denúncias recebidas pela Comissão são aquelas mais diretamente relacionadas a problemas de natureza do direito privado civil, que regula as relações jurídicas entre os indivíduos, a saber: direito de família (9,1%); direito do trabalho (4,5%); direito à propriedade (3%); ação de despejo (3%); negociação de dívida (3%) indenização por danos materiais (1,5%), que somaram 24,1%. Há também denúncias vinculadas ao direito público penal, que regula a atividade repressiva do Estado, para preservar a sociedade do delito, a saber: defesa de presos (7,6%); discriminação de cor e física (4,5%), além dos casos de violação à integridade física mencionadas no parágrafo acima. Trazendo a questão das demandas postas à Comissão para o âmbito das quatro gerações de direitos – civis, políticos, sociais, coletivos ou difusos – observa-se que grande parte deles se reporta aos direitos civis3, com um exorbitante percentual de 94%. Um percentual menor foi registrado para casos referentes aos direitos sociais4 (4,5%) e direitos políticos (1,5%). Chama a atenção o número elevado de demandas por direitos civis, pois a população recorre à Comissão ou por falta de informação sobre seu papel específico, ou por entender que por meio dela é possível ter acesso ao sistema de justiça. As demandas por essa categoria de direitos formam quase o total dos encaminhamentos feitos à Comissão, o que mostra a dificuldade da população mais pobre de acesso à justiça. Essa situação, como menciona Carvalho (2001), tem a ver com a forma como as gerações de direitos se desenvolveram historicamente no Brasil. Diferentemente da evolução classificada por Marshall (1967), a realização das quatro gerações de direitos para os brasileiros ocorreu de forma assimétrica e desigual, sendo os direitos sociais e os direitos políticos priorizados de forma seletiva face aos direitos civis (Santos, 1987). Uma possibilidade de explicação para esse fato pode estar no conteúdo dos direitos civis, cuja pedra fundamental é a liberdade e autonomia do indivíduo, aspectos que a sociedade brasileira insiste em retardar, por meio de práticas clientelistas renovadas e da sistemática exclusão social (pobreza, trabalho, educação e saúde). Há de se considerar, ainda, que a realização plena dos direitos civis depende da garantia da existência de uma justiça eficaz e abrangente, barata e acessível a todos, o que, de fato, não ocorre no Brasil. Cavalcanti (1999) assinala que, apesar dos importantes avanços legislativos conquistados pela sociedade brasileira e da gama de direitos assegurados e reconhecidos pela Constituição de 1988, essa realidade não tem se traduzido no cotidiano concreto da população. Tendo em vista as dificuldades para a vivência em si desses direitos e as restrições de acesso às instâncias que os protegem, as denúncias feitas à Comissão, anteriormente referidas, e o direcionamento dado aos casos confirmam a assimetria do usufruto dos direitos pelas classes sociais no Brasil. A prova disso, é que quando chegam à Comissão são encaminhados a órgãos públicos que dão assistência jurídica gratuita, como pode ser visto na Tabela 4. 3 Neste trabalho, os direitos civis são considerados como: da família, de defesa de presos, discriminação (cor e por deficiência física), à propriedade, ação de despejo, negociação de dívida e indenização por danos materiais. 4 Direito social: direito do trabalho 6 Tabela 4 Encaminhamentos das demandas que chegam à CDH 2001-2003 Órgãos N Defensoria Pública Secretaria de Segurança Pública Serviço de Orientação e Assistência Jurídica -OAB CDH-OAB Ministério Público Procuradoria da República Juizados Núcleo de Práticas Jurídicas/UCSAL Outros Sem informação Total % 13 7 6 5 3 3 3 2 5 26 73 17,8 9,6 8,2 6,8 4,1 4,1 4,1 2,7 6,8 35,6 100 Fonte: Pesquisa de campo, 2003. Os dados da Tabela 4 informam que, para 73 encaminhamentos formais pela Comissão, por meio de ofícios, no período de 2001 ao primeiro semestre de 2003, grande parte foi direcionada a organizações públicas ou privadas que prestam serviços advocatícios gratuitos. Assim, como a maioria das demais organizações que lidam com a defesa dos direitos humanos, o papel da Comissão é denunciar violações, solicitar providências aos órgãos competentes e orientar as pessoas na defesa de seus direitos, não realizando nenhum tipo de ajuizamento de ação. As demandas que não são contempladas pelos aspectos acima mencionados, ou não atendem aos critérios de classificação para o acompanhamento de processo – questões de interesse coletivo, de natureza política e de violência (policial) e saúde –, são reencaminhadas. Na esfera pública, a Defensoria do Estado foi o órgão para onde foi encaminhada a maioria dos casos, com um percentual de 17,8. Os demais órgãos foram: a Secretaria de Segurança Pública, com 9,6%; o Ministério Público, com 4,1% e a Procuradoria da República e os Juizados, ambos com 4,1% cada, perfazendo um total de 35,6% de casos destinados a assistência jurídica pelo setor público. Portanto, a maioria das denúncias feitas à Comissão, embora importantes sob o ponto da viabilização da justiça, não dizem respeito diretamente a uma violação dos direitos humanos do ponto de vista adotado por esta pesquisa. Como dito, elas estão mais no âmbito das dificuldades de acesso ao sistema de justiça, o que, pelo perfil da clientela, no geral de baixa renda, demanda um serviço advocatício gratuito. Na esfera privada, os principais encaminhamentos foram para a própria OAB, seja para obter o Serviço de Orientação e Assistência Jurídica5 (SOAJ), com o percentual de 8,2, ou para a Comissão, com um percentual de 6,8, perfazendo um total de 15% dos encaminhamentos internos. Há também encaminhamentos para o Núcleo de Práticas Jurídicas da Universidade Católica de Salvador, com 2,7%. Os encaminhamentos que se enquadram no indicador “outros” foram direcionados para órgãos que prestam serviços gratuitos fora do âmbito advocatício. Vale ressaltar que não foi possível encontrar informações sobre encaminhamentos em 35,6% das fichas de atendimento e protocolos, nem contabilizar os encaminhamentos informais por falta de registros adequados e precisos pela CDH. 5 Vale ressaltar que a OAB recebe apoio financeiro do governo do Estadual para o prestação de serviço advocatícios gratuitos no SOAJ. 7 Dentro do quadro de atividades internas da Comissão estão aquelas que reforçam o seu papel e a projetam para fora dos seus limites internos. São os projetos, a promoção de cursos, palestras, seminários e audiências públicas, cuja função é a transmissão e a troca de informações entre pares, setores interessados e a comunidade em geral. No tocante à elaboração de projetos, há dois que têm merecido especial atenção da Comissão, a saber: “Projeto Faculdades de Direito” e “Projeto “OAB vai à escola”. O primeiro diz respeito ao investimento da Comissão para sensibilizar estudantes das faculdades dos cursos de Direito de Salvador para uma prática profissional vinculada à defesa dos direitos humanos. No momento, esse projeto está parado, por falta de interessados para dar continuidade aos seus objetivos, mas também porque o segundo projeto, “OAB vai á Escola”, tem envolvido mais a Comissão. O projeto “OAB vai à Escola” tem, nos últimos 18 meses, contado com a participação de todos os membros atuantes na Comissão e tem conseguido mobilizar integrantes de outras comissões da OAB como, por exemplo, a Comissão de Interesses Coletivos e Difusos. Seu objetivo principal é dotar os alunos das escolas públicas de Salvador de informações referentes aos deveres e direitos do cidadão. Para isso, está sendo viabilizado um convênio entre a OAB-CDH e a Secretaria de Educação. A primeira fornecerá os profissionais de direito que, voluntariamente, participarão do projeto e da concepção intelectual da cartilha que será usada como material didático. A segunda fornecerá as condições materiais necessárias: produção editorial da cartilha, equipamentos e instalações. O projeto é considerado pelos membros da CDH o que melhor define e reforça o papel da Comissão perante a sociedade. Porque enfatiza a educação para a cidadania e procura aproximar os agentes sociais das normas jurídicas modernas sobre os direitos do homem e do cidadão, para que elas saiam do papel (Constituição) e se efetivem na vida cotidiana e nas práticas sociais dos indivíduos. Em longo prazo, seus objetivos visam obter resultados que modifiquem práticas e mentalidades, repercutindo na transformação dos valores de cultura política e aumentado a densidade do capital social, produzindo mais coesão na dinâmica interativa entre sociedade e Estado. No que se refere à promoção de cursos, verificou-se a existência de um curso sobre direitos humanos, realizado no início do segundo semestre de 2002, na sede da OAB. Ele foi idealizado focando temáticas diferenciadas que recobrissem interesses de diferentes segmentos da sociedade. Entretanto, pelo material de divulgação do curso, notou-se que todo o seu conteúdo estava centrado numa perspectiva jurídica, notadamente importante, mas que fornece apenas uma visão parcial sobre a questão. Esse fato, ao que parece, repercutiu no perfil do público participante: uma maioria de advogados e um baixo número de representantes de outras áreas de conhecimento e profissões. Contudo isso não diminui, de forma alguma, a importância do curso, pois esse tipo de iniciativa possibilita a abertura de canais amplos ou mais setorizados de discussão, que funcionam como instrumentos de enriquecimento da cultura política e de aperfeiçoamento da democracia. Registra-se ainda que a Comissão também promove outras atividades voltadas para debates e divulgação da temática dos direitos humanos, como seminários, palestras, mesas redondas e audiências públicas, geralmente em parceria com organizações da sociedade civil e agências públicas. Uma organização é sempre singular no sentido de sua constituição e definição interna. Contudo, embora ela possa ser dona de um nicho de “mercado” – trocas econômicas, prestação de serviços etc. – ela não é uma ilha isolada no oceano. Para Enriquez (1996), a organização estabelece, necessariamente, relações com outras organizações, quer em redes de intercâmbio ou solidariedade, quer em redes de rejeição ou afastamento. Essas relações são muitas vezes complexas e evoluem com o tempo. De toda forma, um elemento central que estrutura a vida de qualquer organização é o diálogo e a negociação constantes, a fim de construir um espaço que permita afirmar seus propósitos e projetos. Enriquez pondera que estabelecer e manter parcerias constitui um dos maiores desafios para as organizações modernas, posto que elas têm de manter e consolidar o seu próprio projeto, ou pelo menos a sua essência, e têm de ser capazes, ao mesmo tempo, de estabelecer laços de cumplicidade e de vivência com outras organizações, com as quais não estão forçosamente de acordo, ou ainda com as 8 quais, em outros espaços e situações, mantêm uma relação de competitividade e concorrência. Estabelecer pontos de contato é sempre mais fácil quando se trabalha com um projeto específico, cujos objetivos gerais conseguem mobilizar um número considerável de parceiros. Nessas condições, o fato de existirem muitas organizações diferentes, inclusive concorrentes entre si, não provoca tensões maiores ou confrontos violentos, permitindo uma aliança estrategicamente forte, que faz com que os objetivos sejam alcançados. Outrossim, a prática democrática ensina que é perfeitamente saudável e preferível a existência de várias organizações sociais atuando num mesmo espaço, apontando para uma maturidade da sociedade civil, incentivando o desenvolvimento de confiança e reciprocidade no agir comum. Mas, é preciso atenção para o fato de que a diversificação pode também implicar a fragmentação das redes que conformam as organizações sociais modernas, criando dificuldades para uma vinculação de interesses particulares a um contexto mais amplo de interesse coletivo. Assim sendo, é preciso considerar que a pluralidade é uma virtude quando não impede a formação de uma ação coletiva autônoma, que vise ao bem comum; ademais, ela fomenta organizações dinâmicas, consideradas agentes de mudança da cultura política de uma comunidade. Em se tratando da CDH-OAB-Ba, a partir das informações de seus membros, da observação participante por meio de inúmeras visitas às suas reuniões e dos documentos existentes em seus arquivos, verificou-se que há uma propensão da Comissão em estabelecer parcerias. Todavia, até o presente momento, elas são episódicas, espontâneas, informais, delimitadas e circunstanciais. Não obstante as dificuldades em consolidar parcerias, buscou-se analisar não somente os aspectos que dizem respeito à natureza das parcerias estabelecidas, mas também caracterizar o tipo de relacionamento mantido entre a Comissão e os setores público e privado. Observando as parcerias, pode-se dizer que os atores não estatais são organizações relativamente consolidadas, com uma diversidade de interesses, algumas vezes convergentes (entidades de defesa dos direitos humanos), outras vezes circunstanciados (entidade ou grupos de defesa de minorias: negros, mulheres, criança etc.). A respeito dos diferentes grupos e movimentos que se abrigam à sombra dos direitos humanos, Neves (2001) assinala que a bandeira desses direitos tem sido utilizada por um grande número de movimentos sociais, pois ela garante uma eficácia simbólica e uma penetração maior de suas reivindicações na sociedade e nas agências governamentais. Para explorar a dimensão da interação entre a CDH e a sociedade organizada foi utilizado documentos dos arquivos onde se verificou que os contatos ou parcerias ocorrem em dois níveis. O primeiro é para a produção de eventos conjuntos e demonstra uma capacidade de mobilizar esforços em prol de um objetivo comum. O segundo é para a Comissão participar em eventos como convidada e consagra o seu prestígio junto às organizações e à sociedade, de modo geral. Os dados revelam uma boa dinâmica de promoção de eventos conjuntos, mas um número tímido de promoção de eventos próprios, como pode se verificado no Quadro 1. 9 Quadro 1 Eventos e Parcerias 2001-2003 Eventos 2001 Palestra: Globalização e Direitos Humanos Palestra: O papel das Ongs na evolução do direito interno e internacional 2002 Encontro Estadual de Direitos Humanos Curso de Direitos Humanos Reunião: Sistema Internacional de Direitos Humanos Seminário sobre o sistema prisional Reunião com a Pastoral Carcerária Encontro Regional do Movimento Antimanicomial Palestra sobre Direitos Humanos Palestra “Violência contra as empregadas Domésticas” 2003 Seminário “Como se constrói a cidadania” Seminário: “Políticas Públicas para Jovens” Seminário Internacional sobre Tráfico de Seres Humanos Seminário: políticas públicas e Psicologia Fonte: Pesquisa de campo, 2003. Parceiros Sem informação Sem informação Fundação Instituto de Direitos Humanos CDH-OAB Sem informação Sem informação Pastoral Carcerária Sem Informação CDH-OAB/Projeto Bagunçaço Sindicato das Empregadas Domésticas e Câmara Municipal de Salvador Colégio Batista Brasileiro Fundação Luiz Eduardo Magalhães ONU e Ministério da Justiça Faculdade Rui Barbosa Há um bom nível de entrosamento entre a Comissão e as organizações participantes, ainda que as atividades não resultem em parcerias duradouras. Eventualmente, isso pode ser creditado à burocratização dos procedimentos e à pouca liberdade na tomada de decisões 6 para o estabelecimento de parcerias. Outros dois fatores podem ser também apontados para o entendimento dessa questão. O primeiro diz respeito à pouca disponibilidade de tempo dos membros da Comissão, todos voluntários, tendo em vista que as negociações geralmente demandam muito tempo e há poucas pessoas trabalhando ou ajudando nos projetos mais ambiciosos. O segundo é concernente a uma perspectiva analítica da questão, qual seja, a baixa densidade do capital social na sociedade brasileira, no sentido atribuído por Putnam, o que dificulta a produção de elementos de cultura política que promovam a cooperação no campo da ação cívica, envolvendo uma maior solidariedade e confiança entre grupos e setores sociais. Isso faz com que a Comissão funcione menos do que deveria e conte com um número de pessoas menor do que o necessário para uma atuação mais ampla e mais reforçada. Contudo, a despeito de as parcerias da Comissão serem pouco desenvolvidas, registra-se que ela mantém uma relação de parceria mais profícua – para a realização de eventos e ações denunciativas – com a Associação Baiana de Imprensa (ABI) e com a Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado, que não aparecem no Quadro 1. A ausência desses dois parceiros no referido 6 Todas as decisões mais importantes da Comissão devem passar pelo crivo do Conselho da OAB. 10 quadro é justificada pelo fato de não haver registro formal sobre a primeira parceria, embora ela seja apontada pelos entrevistados, e porque a segunda parceria está localizada no âmbito das relações com setores públicos, que será analisada mais à frente. Na esfera privada (Quadro 1), registra-se que, embora de maneira mais fortuita, a Comissão estabelece também parcerias com importantes organizações nacionais e internacionais, tais como: o Sindicato das Empregadas Domésticas, o Colégio Batista Brasileiro, a Fundação Luiz Eduardo Magalhães, a Faculdade Rui Barbosa e a ONU. A título de registro, embora este estudo se restrinja ao período de 2001-2003, foram encontrados registro de parcerias, no período de 1999-2000, com as seguintes organizações: Projeto Axé, Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Salvador, Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA), Ministério da Justiça, Ministério Público, Secretária Estadual de Justiça e Direitos Humanos, Programa de Proteção a Testemunhas e Vítimas da Violência (Pró-vita), Anistia Internacional - Grupo Tortura Nunca Mais, Justiça Global, Comitê Estadual de Combate ao Tráfico de Seres Humanos e Comitê das Organizações de Combate à Fome. Seguindo na perspectiva de compreender a dinâmica da relação entre a Comissão e a sociedade organizada, buscou-se identificar, a partir da memória dos entrevistados e dos documentos pesquisados, os principais tipos de lutas sociais em que a Comissão se envolveu. Essas informações foram sistematizadas e podem ser conferidas no Quadro 2, a seguir. Quadro 2 Lutas sociais em que a Comissão se envolveu Lutas Ato público em repúdio à violação do painel do Senado Denúncia de violações no Hospital de Custódia e Tratamento (HCT) Pedido de providências: assassinato do presidente do Partido Verde em Ubaíra Prevenção e combate ao tráfico de seres humanos Acompanhamento de processo movido contra a Igreja Universal sob a alegação de incitar, na televisão, o preconceito contra adeptos do Candomblé Pedido de providência: assassinato da jornalista do jornal A Tarde Pedido de providências: acidente na fábrica de fogos em Santo Antônio de Jesus, com 60 vítimas. Denúncia contra a invasão de casas por policiais: subúrbio ferroviário de Salvador Denúncia contra a tentativa de desapropriação ilegal de moradores de terreno próximo ao Iate Clube da Bahia Movimento a favor do impeachment do Presidente Collor Debate sobre violência policial (M. Público e Assembléia Legislativa da Bahia) Movimento contra a venda da Vale do Rio Doce Total N º de menções 9 5 4 3 1 1 1 1 1 1 1 1 29 Fonte: Pesquisa de campo, 2003. Verifica-se, no quadro acima, que os eventos mais fortemente evocados foram, muito naturalmente, os que estão relacionados a fatos que aconteceram em períodos mais recentes, como o ato em repúdio a violação do painel no Senado, com 09 menções, as denúncias de violação de presos no Hospital de Custódia e Tratamento, com 05 menções, as providências para o caso do assassinato do presidente do Partido Verde em Ubaíra, com 04 menções. Para esse mesmo período, com um menor número de menções, aparecem o acompanhamento do processo movido contra a Igreja Universal, por essa ter incitado na televisão o preconceito contra adeptos do Candomblé e o pedido de providências no caso do assassinato da jornalista do jornal A Tarde, citados uma vez cada. 11 As demais evocações pertencem a um tempo passado e mais distante da memória dos entrevistados e dos registros dos arquivos da CDH. Foram mencionadas por membros que já estão na Comissão há mais de uma gestão ou fizeram parte da Comissão. São elas: movimento a favor do impeachment do presidente Collor, movimento contra a venda da Vale do Rio Doce, defesa contra a desapropriação ilegal de moradores de terreno do Iate Clube (localizado no bairro da Barra, de classe média alta de Salvador), defesa de moradores que tiveram suas casa invadidas por policiais no subúrbio ferroviário de Salvador – todas elas com apenas uma 01 menção cada. Foram arroladas também, como lutas sociais, questões que dizem respeito mais diretamente a políticas públicas como: o combate e a prevenção de tráfico de seres humanos (03 menções) e a discussão sobre a violência policial, realizada conjuntamente como o Ministério Público e a Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado da Bahia (01 menção). No total, foram 29 menções, distribuídas entre 12 casos que tratam de questões que apontam para um contexto de ineficiência de políticas públicas, falta de fiscalização para o cumprimento da legislação do País, além da política, o que caracteriza questões diferentes daquelas propriamente relacionadas aos direitos humanos. Isso aponta para um fato recorrente em espaços de desigualdade social e econômica, como nos países do Terceiro Mundo, em que a defesa dos direitos humanos está circunscrita a ações voltadas para as garantias de direitos fundamentais (alimentação, educação, trabalho, saúde etc.) Esse fato, de modo geral, não acontece no Primeiro Mundo, onde as lutas pelos direitos humanos estão mais vinculadas a questões humanitárias de largo escopo e dizem respeito a problemas que afetam o homem em geral, o conjunto da humanidade, como a defesa da paz, o fim do trabalho escravo, a proteção da liberdade, o movimento anti-nuclear, dentre outros. Como dito anteriormente, a Comissão lida com demandas que estão vinculadas à esfera pública. Nesse sentido, vale a pena fazer algumas considerações sobre como ocorre a relação da Comissão como o Executivo (governo) e o Legislativo (partidos e representação política). A relação com o Estado e os partidos políticos, agências e órgãos do Estado, é importante porque eles são interlocutores das ações coletivas no Brasil e exercem influência sobre a dinâmica das lutas sociais em favor da proteção dos direitos humanos. Cabe esclarecer de que maneira ocorrem as interlocuções entre a Comissão e esses agentes públicos, tendo em vista que é a partir da dinâmica de interação entre a tríade Estado, sociedade civil e partidos políticos que se pode medir o grau de desenvolvimento das instituições de uma sociedade democrática.. A relação com o Estado é percebida por membros da Comissão como marcada por um paradoxo. Isso porque, por um lado, há uma busca de aproximação para realizar convênios e projetos, como, por exemplo, o projeto OAB vai à escola. Por outro, é uma relação marcada por tensões e conflito, tendo em vista que o Estado é considerado o principal violador dos direitos humanos, alvo sistemático das denúncias e criticas da Comissão. No tocante à relação da Comissão com os partidos políticos, constata-se que, a despeito de as ações da Comissão terem um conteúdo eminentemente de valor político – a cidadania, a justiça social e a democracia – e que seus participantes tenham opções políticas pessoais definidas, não foi encontrado nenhum documento ou depoimento que conteste a sua posição apartidária. Registra-se ainda que, embora a CDH preserve seu perfil apolítico desvinculando suas ações de qualquer movimento de cunho partidário ou bandeira política, ela mantém intercâmbios e ações conjuntas com partidos, geralmente de esquerda, por eles estarem mais envolvidos com os movimentos sociais urbanos e, principalmente, por fazerem oposição à omissão do governo, pois seus agentes são responsabilizados pelas maiores violações dos direitos humanos 12 Considerações finais A proteção dos direitos humanos e os desafios que eles propõem à ordem democrática reabrem a discussão sobre os limites e as possibilidades da concretização dos princípios da igualdade e justiça para viabilizar os direitos modernos, tornando-se este um dos dilemas para o futuro da democracia no mundo contemporâneo. Em tempos atuais, a realização desses direitos se defronta com uma crise de retração do modelo de proteção social no mundo inteiro, agravando as condições de reprodução social, fragilizando os vínculos e a solidariedade coletivos, provocando o aumento, assim, das clivagens sociais, principalmente em países de reconhecida desigualdade e exclusão, como o Brasil. Essa situação compromete as condições de efetivação da justiça social para o conjunto da sociedade, em nações que não conseguiram realizar o welfare state que, no passado, diminuiu as desigualdades sociais nos países hoje altamente industrializados. Os direitos do homem na contemporaneidade não dizem respeito apenas à garantia das oportunidade de aquisição de bens materiais, mas, sim, devem proporcionar as condições e garantias da produção e reprodução contínuas do usufruto da cidadania, que posiciona os sujeitos no patamar de igualdade requerido pela ordem democrática. Isto porque, num sentido amplo, é o exercício da cidadania que possibilita a emancipação do homem bem como o situa como sujeito na história do seu tempo. É preciso ressaltar, que a efetivação das oportunidades sociais e a formação da cidadania são condicionadas pelos padrões culturais produzidos em um contexto sócio-histórico que conforma a cultura política e o capital social da sociedade onde eles estão inseridos. Em vista disso, torna-se relevante a presença de organizações sociais voltadas para a defesa e proteção dos direitos do homem, haja vista a potencialidade de sua ação para interferir no campo simbólico para transformar os valores e ampliar a cidadania. Uma ação como a da Comissão, situa-se na interface da cultura política e do capital social como valor-fonte e padrão de referência capazes de alavancar novos valores e fomentar novas formas de sociabilidade. Promove a construção de uma rede de solidariedade com laços sociais construídos a partir de um sentido moral da conduta dos indivíduos, vinculando-os à vida em comunidade, aos interesses coletivos e públicos e aos compromissos de grupo em relação aos fundamentos da vida social, inclusive para as gerações futuras. A elevação da densidade do capital social e as redes de cooperação por meio do associativismo possibilitam a construção de novos padrões de conduta política e uma cultura cívica apoiada na ação coletiva, criando elementos que melhoram a eficiência das instituições, construindo, portanto, lastros duradouros para a democracia (Baiardi & Laniado, 1998). Para uma melhor compreensão desses aspectos, buscou-se, ao longo dessa dissertação, analisar a contribuição da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados da Bahia para a consolidação de uma cultura política pautada no respeito aos direitos do homem, eixo fundamental para a efetivação da justiça e a promoção de oportunidades sociais na sociedade brasileira. Suas ações, conquanto visem resultados objetivos, estão vinculadas a uma dimensão de conteúdo moral. Dizem respeito à forma de se ver o mundo e de nele se posicionar, de agir sobre ele para poder modificá-lo. A Comissão, conquanto goze de uma autonomia relativa e de limitações infra-estruturais que impactam nas suas ações, observa-se que, ao longo dos últimos anos, tem atuado de maneira relevante para a efetivação dos direitos fundamentais. Tem no engajamento da atuação voluntária de seus membros uma fonte de participação cívica por parte de indivíduos dispostos a melhorar a democracia na Bahia, através de uma prática profissional comprometida e contínua. Na atualidade, concentra-se em duas estratégias que reforçam o seu papel: a luta pela defesa e proteção dos direitos humanos ratificados no texto constitucional e as atividades educacionais voltadas para a formação de valores de uma cidadania participativa pautada em normas jurídicas modernas e sua materialização na vida cotidiana e nas práticas sociais dos indivíduos. Isso a torna um agente social de mudança e projeta os avanços que alcançam para o conjunto da sociedade. Além disso, a longo prazo, 13 sua ação busca ocasionar mudanças de mentalidade e cultura cívica, repercutindo no adensamento do capital social, propiciando uma sociedade democrática mais justa e inclusiva. Dos dados coletados na pesquisa, observa-se que a procura pelos serviços prestados pela Comissão, em parte, se deve ao seu reconhecimento e legitimidade junto à população. Entretanto, na sua grande maioria, as demandas recebidas refletem as dificuldades das camadas populares em terem acesso ao aparelho judiciário, ainda que a CDH não ajuíze nenhum tipo de ação ou preste serviços advocatícios. Ela é também um canal para denúncias de violação dos direitos humanos. Na verdade, grande parte das demandas postas à Comissão são mais relacionadas às violações dos direitos fundamentais ratificados pela Carta constitucional de 1988, mostrando assim, o hiato existente na sociedade brasileira, mais especificamente baiana, entre a democracia formal e a substantiva. Cabe insistir, que a ação dos membros da Comissão se insere no contexto da ação cívica voluntária, tão em voga na modernidade, que exige do indivíduo um grau de engajamento e compromisso que estão para além da ação. Exige uma percepção diferenciada da coletividade e um grau de auto-responsabilidade. Hoje, o seu grande desafio é conseguir que os membros filiados se engajem de forma mais sistemática no sentido de unir forças aos que já se empenham para que a CDH se torne um espaço democrático de participação. É importante ainda frisar que, embora tenha sido criada para acolher e tomar providências sobre violações dos direitos humanos, a CDH procura criar uma outra percepção do seu papel junto à sociedade, voltando suas práticas também para a educação para a cidadania, pois entende que a lei deve ser um instrumento importante para subsidiar as práticas voltadas para mudança efetivas para o conjunto da sociedade. Lutar pelos direitos humanos exige reelaborar normas de sociabilidade no âmbito da justiça social, aproximando-se daquilo que Heller (1998) identifica como sendo a justiça dinâmica, em que as práticas sociais em busca da concretização de novos elementos de justiça são associadas ao nível de consciência moral, no sentido de exigir do aparelho estatal e da própria sociedade, de modo geral, novos padrões de vivência política e social. Isso aponta para um padrão de cultura política que vincula interesses individuais a um campo mais amplo de interesses coletivos e de bem comum, integrando o discurso sobre os direitos humanos como uma parte constitutiva da formação própria da cidadania participativa, contribuindo para a efetivação da justiça social e a consolidação de uma cultura política mais dinâmica e inclusiva. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ARZABE, P. H. M. & GRACIANO, P. G. Declaração Universal dos Direitos Humanos. – 50 anos. In: Direitos Humanos: construção da liberdade e da igualdade. 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