1 37º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS ST 26 – Intelectuais

Propaganda
37º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS
ST 26 – Intelectuais, Cultura e Democracia
A PRODUÇÃO AFRICANA EM CIÊNCIAS SOCIAIS:
A AGÊNCIA DO CODESRIA
Autora: Michelle Cirne Ilges
Bolsista FAPESP - Proc. N. 2013/08407-2
1
Este trabalho apresenta uma proposta de pesquisa que tem seu início em 2013 no
curso de doutorado em Antropologia Social na Universidade de São Paulo e conta com o
apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP a partir de
julho deste ano. Agradecemos a esta instituição pelo apoio e recursos que tornaram
possível a participação neste evento. A pesquisa tem como tema uma análise da produção
intelectual realizada por profissionais africanos da área de ciências sociais 1, apresentando
como universo de estudo os trabalhos realizados no âmbito ou com apoio do CODESRIA
– Council for the Development of Social Science Research in Africa – e como recorte
temporal a virada para o século XXI até os nossos dias – contando com os últimos anos
da década de 90 do século XX. Seu objetivo principal é estender um olhar antropológico
para essa produção, com o intuito de analisar temáticas, motivações, interpretações, bases
epistemológicas e condições sociais de produção desse conhecimento em países do
continente africano, incluindo possíveis relações entre a produção intelectual em ciências
sociais e as demandas de governo.
A realização deste estudo na Universidade de São Paulo também pretende
contribuir, através das teorias e metodologias antropológicas e da linha de pesquisa
Populações Afro-Brasileiras e Africanas, com o conjunto das atividades científicas
promovidas pelo Centro de Estudos Africanos – CEA/USP – da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas; centro de estudos existente desde a década de 60 do século
passado. A pesquisa também representa a inserção da doutoranda no campo dos estudos
africanos, já que esta tinha realizado seus estudos de graduação e mestrado na temática
da identidade social afro-brasileira.
Como objetivo específico desta pesquisa apresenta-se, em primeiro lugar, a
investigação dos temas mais presentes nos trabalhos referidos – livros, artigos, relatórios
de pesquisa e outros materiais relevantes. Não se pretende esgotar numericamente essa
produção e sim, em um viés antropológico, uma aproximação das temáticas que se
destacam por sua reaparição em trabalhos diversos.
Em segundo lugar, busca-se investigar as bases epistemológicas que orientam os
intelectuais africanos de ciências sociais. Quais são as disciplinas e ferramentas
1
Aqui, o uso da expressão “ciências sociais” concorda com Sautu et. al. (2005), para quem “lo que se
denomina ciencias sociales abarca muchas disciplinas, desde la economia y la sociologia hasta la
psicologia social” (p. 23), e nosso interesse nesse uso amplo da denominação deve-se à intenção de se
trabalhar com as produções em sociologia, antropologia, ciência política e também em história e filosofia.
2
metodológicas mais acessadas? Como ocorre a circulação e distribui-se o consumo da
literatura de ciências sociais produzida interna e externamente ao continente? E ainda,
no caso da literatura estrangeira (considerando o continente num todo para demarcar essa
fronteira), como o seu consumo distribui-se por sua origem geográfica? E, considerando
o papel desempenhado pela antropologia no período de dominação colonial, qual é o
estado recente desta disciplina no âmbito acadêmico africano? Qual a postura frente e a
interpretação sobre a denominação abrangente “africano” em uma revista como “O
Antropólogo Africano”, publicação do CODESRIA? Como são problematizadas as
diferenças internas ao continente e a relação com sua reunião sob um signo único, a
“África”? Onde estão, de onde provêm, e o que estão fazendo as intelectuais africanas?
São também estas questões que a pesquisa pretende responder e interpretar.
E, em terceiro lugar, tem-se como objetivo específico desta pesquisa investigar se
e como as produções realizadas com o apoio e/ou promoção do CODESRIA relacionamse com as esferas de governo dos países africanos, em suas decisões e ações na gestão
pública. Há uma demanda de pesquisas em ciências sociais pela administração pública?
Existem canais, na esfera da gestão estatal, de publicização e debate dos trabalhos
realizados pelos intelectuais de ciências sociais? Qual a influência dessa produção
intelectual nas decisões e ações de governo?
Reafirma-se a intenção de não se realizar um panorama quantitativo, portanto, a
análise diacrônica/em profundidade de casos determinados é adequada para as
interpretações pretendidas. Um estudo da trajetória de uma posição ocupada no campo
científico tem a relevância que nos mostrou Pierre Bourdieu (1983). Citamos, como
exemplo, e a priori, a produção do professor de história e política Achille Mbembe,
nascido nos Camarões. Mbembe trabalha atualmente na University of Witwatersrand, na
África do Sul, e tornou-se, no decorrer de sua carreira, um dos intelectuais africanos
contemporâneos de maior reconhecimento, no continente e fora dele. Mbembe ocupou a
função de diretor executivo do CODESRIA, de 1996 ao ano 2000. Outro intelectual que
apresenta uma relevância para esta pesquisa, pelo volume e repercussão de sua produção,
e por ter ocupado o cargo de presidente do CODESRIA de 1998 a 2002, é Mahmood
Mamdani, criado em Uganda e com ligações com a Makerere University, desse país, e a
Columbia University, dos Estados Unidos. Um terceiro exemplo que podemos citar é o
do filósofo do Benim Paulin Hountondji, que na década de 90 ocupou o posto de
3
Ministro da Educação e Cultura de seu país, sendo, portanto, um intelectual com
experiência na administração pública.
O CODESRIA é o lugar de partida para averiguar essa produção intelectual, por
sua importância como instituição “panafricana e independente” que agrega e promove,
desde sua criação em 1973, o trabalho dos pesquisadores em ciências sociais do
continente africano. Tem como seus objetivos, segundo texto de seu portal na internet, “a
proteção de sua [dos intelectuais africanos] liberdade intelectual e autonomia no
exercício de suas funções, e a eliminação das barreiras linguísticas, disciplinares,
regionais, de gênero e intergeracional”, além da “facilitação da pesquisa multidisciplinar,
de promoção das publicações resultantes de pesquisas e capacitação de pesquisadores
africanos em todos os níveis”. Como a instituição promove a “eliminação das barreiras”
citadas é algo que também será investigado pela pesquisa. O que nos interessa
especialmente são os conteúdos e as formulações produzidas por intelectuais africanos
em relação aos temas mais ressaltados em suas obras, mas como o CODESRIA é nosso
ponto de partida para a coleta e exame do material a ser investigado, entendemos, junto
com Bourdieu (1983), que a investigação da estrutura e modos de funcionamento dessa
instituição fornece chaves para a compreensão das condições sociais dessa produção
intelectual.2 A seleção das produções no âmbito do CODESRIA também é uma opção
que não nos limita, por exemplo, ao que é publicado em editoras do hemisfério norte e ao
que é traduzido no Brasil. Optamos por não escolher um país determinado, mas
logicamente não temos a pretensão de abranger o continente por inteiro. Dessa forma, ao
termos um universo de estudo a partir de uma instituição que é do e para o continente,
permitimo-nos a liberdade de não delimitarmo-nos a um ou dois países. Posto isso,
podemos afirmar que essa pesquisa tem por objetivo interpretar a interpretação,
inserindo-se no campo de uma etnografia do saber.
Se, conforme a análise de Roy Wagner, os antropólogos são também responsáveis
pela criação de suas próprias culturas (Wagner, 2010), podemos estender uma
comparação aos demais cientistas sociais e então compreender os significados de uma
pesquisa que investiga a produção intelectual: que “África” estão inventando para si e
para os seus conterrâneos os cientistas sociais africanos? E, além disso, se, como afirma
2
Reafirmando, através de Pierre Bourdieu, que “os conflitos epistemológicos são sempre,
inseparavelmente, conflitos políticos” (Bourdieu, 1983, p.124).
4
Clifford Geertz, somos todos nativos, como interpretar os conteúdos e processos de
criação dessa categoria do pensamento moderno, o pensamento acadêmico, no continente
africano (Geertz, 1997)?
Para contribuir com essas questões formuladas no interior da disciplina
antropológica, elegemos os intelectuais africanos que, em grande número, são o que
podemos chamar por “homens traduzidos” 3 – viveram e estudaram na Europa e/ou
Estados Unidos, e lecionam atualmente em algum centro universitário africano ou do
hemisfério norte. Ocupam o lugar privilegiado daqueles que experienciam dois universos
distintos: suas origens africanas e as vivências nos países que representam o centro da
cultura ocidental. Assim, sua produção intelectual torna-se um locus privilegiado para o
debate de questões prementes da contemporaneidade, na área do pensamento social – os
significados das novas configurações sociais e culturais que entende-se por “pósmodernas” (Hall, 1999). Também por essa razão justifica-se nossa escolha pelo recorte
temporal da contemporaneidade. Além disso, a investigação propõe analisar como esses
autores têm-se colocado perante as questões sociais problematizadas no continente
africano, em sua história e relações com o passado da dominação colonial, e também
perante o imaginário negativo construído sobre a África e os africanos.
Assim sendo, a pesquisa está inserida em um debate epistemológico sobre o
mundo contemporâneo (Santos e Meneses, 2009) – no campo que ficou conhecido como
estudos de crítica pós-colonial – e suas derivações em um alargamento na compreensão
do conceito de cultura, procurando responder a questões como: de que maneiras vêm se
processando as configurações da cultura e da prática política no continente africano
atualmente, nas análises destes intelectuais? Como a produção intelectual desses autores
dialoga com as discussões sobre novas concepções de sujeito e novas subjetividades que
se constituem no mundo contemporâneo (Hall, 1999)?
Temos como hipóteses que em relação aos temas mais destacados na produção
intelectual africana encontram-se as dificuldades políticas na implementação das
democracias nacionais, como também os estigmas e o imaginário negativo construído
pelo Ocidente sobre o continente africano, através dos processos históricos do comércio
de escravos e da dominação colonial. Além disso, supomos que a atividade de pensar a
3
Expressão original do escritor indo-britânico Salman Rushdie, analisada por Homi Bhabha (2001), que
refere-se a homens e mulheres caracterizados por “identidades ao mesmo tempo plurais e parciais”.
5
própria produção africana em ciências sociais, em um movimento reflexivo, é também
uma das temáticas importantes dos trabalhos a serem analisados.
Vislumbramos a hipótese da reflexão sobre sua própria produção como um dos
temas importantes de discussão dos cientistas sociais africanos através de três eventos
contemporâneos, que destacamos aqui. Em primeiro lugar, a publicação pelo
CODESRIA, em 2012, de um livro intitulado “Como fazer Ciências Sociais e Humanas
em África: questões epistemológicas, metodológicas, teóricas e políticas”, que é uma
coletânea de artigos apresentados em um colóquio realizado pelo Centro de Estudos
Africanos da Universidade Eduardo Mondlane (CEA/UEM) de Maputo, Moçambique,
em 2009. Nota-se que esta e muitas outras obras estão integralmente disponibilizadas
pelo portal do CODESRIA na internet. Em segundo lugar, citamos o evento “2a
Conferência Internacional – Os intelectuais africanos face aos desafios do século XXI”
realizado em novembro de 2012 nessa mesma Universidade e no qual estivemos
presentes e pudemos iniciar os contatos com dirigentes do CODESRIA, que mostraramse bem receptivos à pesquisa 4 . E, por fim, ressaltamos a realização do seminário
internacional “A Pesquisa na Universidade Africana no Contexto da Globalização e
Interface com o Brasil: perspectivas epistemológicas emergentes, novos horizontes
temáticos, desafios” organizado pelo Centro de Estudos Africanos da Universidade de
São Paulo (CEA/USP) nos dias 3 a 5 de setembro de 2012, que é relevante para o que se
coloca aqui por contar com a participação de vários professores de universidades
africanas. Além destes três eventos, destacamos que em 2015 a África do Sul sediará o
terceiro Fórum Mundial de Ciências Sociais, que é um evento do International Social
Science Council (ISSC) e que nesta terceira edição será promovido pelo CODESRIA e
pelo Human Science Research Council (HSRC).
Uma de nossas hipóteses sobre as questões epistemológicas de produção do
conhecimento em ciências sociais no continente africano é que, se há um discurso
destacado sobre a necessidade de adotar-se uma “perspectiva africana” na produção desse
conhecimento, este próprio discurso e análise são feitos baseados em uma linguagem e
com conceitos e métodos da produção científica ocidental/cartesiana. Nossos primeiros
levantamentos bibliográficos demonstram que os intelectuais que historicamente mais se
4
Em conversas pessoais e avaliações feitas sobre o projeto de pesquisa quando da apresentação do mesmo
em um grupo de trabalho do evento, disponibilizando-se a manter o diálogo.
6
destacam no pensamento social do continente são especialmente filósofos. Supomos que
isso se deva à necessidade da elaboração de categorias do pensamento para finalidades de
uso em um discurso político contra a dominação colonial, naquele contexto histórico.
Assim sendo, e fazendo novamente uma aproximação com a análise de Roy Wagner
(2010), nos perguntamos: qual o estado da arte da antropologia no continente atualmente?
Onde estão os(as) antropólogos(as) africanos para “inventarem” suas próprias culturas?
Nossa hipótese é que a antropologia tem-se reelaborado, através de e para os
profissionais e estudantes africanos dessa disciplina. Como indício desta hipótese,
encontramos uma revista publicada pelo CODESRIA e disponibilizada no seu sítio na
internet intitulada “O Antropólogo Africano” (The African Anthropologist). No editorial
do vol. 14, nos. 1/2, de 2007, intitulado “The resurgence of Anthropology at African
Universities”, Paul Nchoji Nkwi afirma que há duas décadas tem havido um interesse
crescente pela disciplina, com a criação de departamentos específicos nas universidades
africanas; ao contrário dos anos 60 e 70, quando até mesmo foi-se pedido o banimento da
antropologia no continente, devido a seu entendimento como uma disciplina “colonial”.
No entanto, a antropologia reviveu, e atualmente antropólogos de todo o continente
procuram responder questões como tais:
“is the postmodernist perspective of anthropology offering alternative
responses to the quest for sustainable development? Why is the
discipline attracting many students today? What are the best ways to
give anthropology a new image? How can courses be designed to avoid
problems of neo-colonial discourse and practical redundancy often
levelled against the discipline in Africa?”
Ainda sobre as questões epistemológicas, há uma característica nos textos de
Achille Mbembe que nos faz indagar: por que ele escreve “nós, os ocidentais” e “eles, os
africanos”? Como no trecho a seguir, no qual discute derivações do pensamento
iluminista na fase pós abolição da escravidão:
“Poderíamos considerar os corpos, as línguas, o trabalho e a vida
africanos como produtos de uma atividade humana, como
manifestações de uma subjetividade – ou seja, de uma consciência tal
como a nossa – de forma a permitir que os consideremos, a cada um
deles individualmente, como um alter ego (um outro eu)?” (Mbembe,
2001, p. 178).
7
Está este autor escrevendo para um público ocidental, e ainda colocando-se como
este ocidental? Nossa hipótese entende como afirmativa a resposta a essa questão;
baseados estamos também na fala de Paulin Hountodji na conferência de abertura do
Seminário do CEA/USP citado acima, em 3 de setembro de 2012, quando este filósofo
afirmou que um dos problemas principais da produção científica africana é ter sua
orientação “extrovertida”, e seus livros publicados para um público ocidental56.
Em relação à existência ou não de ligações entre as pesquisas e trabalhos feitos
pela intelectualidade africana e as esferas de governo dos países deste continente, temos
como hipótese que esse relacionamento existe, de acordo com o texto encontrado no
portal do CODESRIA, que afirma, na seção “Programas de Pesquisa”, servirem suas
pesquisas de “políticas orientadas” como “importante base para a operacionalização dos
resultados da pesquisa para o benefício dos decisores políticos e atores econômicos e da
sociedade civil”. Quais as condições de produção desse tipo de pesquisa e de
relacionamento com os atores políticos e econômicos é um dos problemas que esta
pesquisa irá analisar.
A proposta de trazer à discussão a produção intelectual destes que denominamos
de “homens traduzidos”, os pensadores do continente africano, tem como um de seus
sentidos a inserção em um debate sobre a epistemologia que orienta o mundo ocidental e
sua produção científica. De acordo com Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula
Meneses, “epistemologia é toda a noção ou ideia, refletida ou não, sobre as condições do
que conta como conhecimento válido” (Santos e Meneses, 2009, p. 9), e o colonialismo,
“para além de todas as dominações por que é conhecido, foi também uma dominação
epistemológica” (idem, p. 7). O esforço de reflexão feito por esses intelectuais, formados
em uma base de conhecimento ocidental, mas com origens, experiências e localizações
no continente africano, é por nós considerado profícuo para discussões contemporâneas
sobre cultura e conhecimento.
A
discussão
sobre
as
novas
configurações
sociais
e
culturais
da
contemporaneidade, na qual já se reconhece as diferenças em relação ao período
5
Entendemos, como Gala (2002), o uso do termo “ocidental” como referindo-se, para os pensadores
africanos, ao que não é africano.
6
As ideias sobre “cosmopolitismo” que aparecem em obras de Appiah (1997), Mbembe (2001) e Gilroy
(2007) podem ser questionadas para perceber possíveis relações, ou não, com a problemática da produção
de “orientação extrovertida”.
8
conceituado como moderno e que designa-se habitualmente como pós-modernidade, faz
parte do campo de muitos autores importantes para as ciências sociais. Dentre eles, Stuart
Hall expõe, em sua obra “A identidade cultural na pós-modernidade”, a nova concepção
de sujeito no mundo globalizado. Segundo Hall, as identidades na contemporaneidade
estão e são fragmentadas e descentradas, no sentido que não há mais apenas um único
centro pelo qual as posições de sujeito se guiam, ao contrário do sujeito unificado e
formado pela razão iluminista do século XVIII. Em um mundo onde as informações
circulam com grande intensidade e velocidade, as possibilidades de identificação se
multiplicam, e desta maneira fragmentada se posicionam os indivíduos na
contemporaneidade (Hall, 1999).
Homi Bhabha é também um autor que confirma a revisão epistemológica em
curso na contemporaneidade:
“a significação mais ampla da condição pós-moderna reside na
consciência de que os „limites‟ epistemológicos daquelas ideias
etnocêntricas são também as fronteiras enunciativas de uma gama de
outras vozes e histórias dissonantes, até dissidentes – mulheres,
colonizados, grupos minoritários, os portadores de sexualidades
policiadas.” (Bhabha, 2001, p. 24).
Ainda no interior do período “moderno”, e nas suas margens espaciais, a
transformação se engendra:
“a crítica pós-colonial dá testemunho desses países e comunidades
[colonizados] – no norte e no sul, urbanos e rurais – constituídos, se me
permitem forjar a expressão, „de outro modo que não a modernidade‟.
Tais culturas de contra-modernidade pós-colonial podem ser
contingentes à modernidade, descontínuas ou em desacordo com ela,
resistentes a suas opressivas tecnologias assimilacionistas; porém, elas
também põem em campo o hibridismo cultural de suas condições
fronteiriças para „traduzir‟, e portanto reinscrever, o imaginário social
tanto da metrópole como da modernidade.” (idem, p. 26, grifado no
original).
E como os autores africanos discutem o imaginário redutor e negativo construído
sobre o seu continente pelo mundo ocidental? Achille Mbembe, na introdução do livro
“De la postcolonie”, realiza esta reflexão, afirmando que a África aparece no discurso
ocidental como não tendo “os atributos que 'são próprios da natureza humana' possuir”;
“ou, lorsqu´elle les possède, il s´agit, en règle générale, de choses et de attributs de
moindre valeur, de niveau peu élevé et de piètre qualité” (Mbembe, 2000, p. 8).
9
Mais do que isso, Mbembe afirma como se coloca e para que serve a
inferiorização emblemática posta pelo Ocidente nesse imaginário:
“l´Áfrique em tant qu´idée et en tant que concept a historiquement servi
et continue de servir d´argument polémique à l´Occident dans sa rage à
marquer sa différence contre le rest du monde. À plusieurs égards, elle
constitue encore l´antithèse sur fond duquel l´Occident se représente
l´origine de ses propres normes, élabore une image de lui-même et
l´intègre dans un ensemble d´autres signifiants dont il se sert pour dire
ce qu´il suppose être son identité. Et parce q´elle a été et reste cette
fissure entre ce que l´Occident est, ce qu´il entend représenter et ce
qu´il entend signifier, l´Afrique ne fait pas seulement partie de ses
significations imaginaires. Elle est son inconscient, 'ce quelque chose
d´inventé' qui, paradoxalement, devient nécessaire à son ordre puisque
'ce quelque chose' tient un rôle de première importance, et dans
l´univers que l´Occident se constitue, et dans ses préoccupations
apologétiques, et dans ses pratiques d´exclusion et de brutalité à
l´encontre des autres.” (idem, pp. 9-10).
Stuart Hall também comenta o imaginário ocidental sobre a “diferença”:
“as sociedades da periferia têm estado sempre abertas às influências
culturais ocidentais e, agora, mais do que nunca. A ideia de que esses
lugares são 'fechados' – etnicamente puros, culturalmente tradicionais e
intocados até ontem pelas rupturas da modernidade – é uma fantasia
ocidental sobre a 'alteridade': uma fantasia colonial sobre a periferia,
mantida pelo Ocidente, que tende a gostar de seus nativos apenas como
'puros' e de seus lugares exóticos apenas como 'intocados'.” (Hall, 1999,
pp. 79-80).
O primeiro semestre do curso de doutorado, utilizado para o cumprimento de
créditos de realização de disciplinas, trouxe como principal contribuição para a pesquisa
o encontro com um autor cuja importância em uma determinada perspectiva das análises
sobre a produção de ideias é capital: Edward Said e seu “Orientalismo: o Oriente como
invenção do Ocidente” (2007). Logo no início da introdução, Said define o
“orientalismo” como “um modo de abordar o Oriente que tem como fundamento o lugar
especial do Oriente na experiência ocidental europeia” (idem, p. 27) e compreendemos
que esse livro discorre sobre uma perspectiva particular das relações entre posições
políticas e produções culturais. O “Ocidente” separa e classifica os seus “outros”,
marcando-os com os signos da estranheza e da inferioridade e, neste processo, podemos
reunir também análises das representações ocidentais sobre o continente africano.
A ideia de uma formação por contraste da identidade ocidental, como apontada
por Achille Mbembe no trecho acima, surge em Edward Said, quando este autor afirma
10
sobre o modo “como a cultura europeia ganhou força e identidade ao se contrastar com o
Oriente” (idem, p. 30). Said entende o “orientalismo” como um modo de discurso,
baseado na noção de discurso foucaultiana, afirmando que o seu conceito abarca “um
estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente” (idem, p. 29).
Como um discurso já formulado, o orientalismo limita o pensamento e a ação (idem, p.
30) e, em um mesmo sentido, lembramos as representações do senso comum que
aprisionam a África sob o signo da “mesmidade”, que não conseguem imaginar a
diversidade em um território continental, como se todas as configurações africanas
(sociais, geográficas, históricas) tivessem características idênticas. Paulin Hountondji, em
contraposição, chama a atenção para a “virtude do pluralismo como fator de progresso e
para o fato de não só a África moderna como também a chamada África tradicional terem
vivenciado o pluralismo ao longo dos tempos e em vários domínios” (Hountondji, 2009,
p. 125).
A disciplina a qual me filio, a Antropologia, padece até hoje dos seus preconceitos
evolucionistas de origem, mesmo tendo se desdobrado em críticas internas e perspectivas
teóricas diferenciadas. O texto do antropólogo congolês radicado no Brasil Kabengele
Munanga, “Antropologia Africana: mito ou realidade?”, discorre sobre esses aspectos e,
em 1985, afirma que “o seu vocabulário ainda conserva um certo ranço racista” e que
seus profissionais encontram-se encerrados “no mundo maravilhoso da „minha tribo‟
(tribo do antropólogo)” (p. 128). E é possível encontrarmos, passados quase trinta anos,
os mesmos vocabulários e posturas presentes em salas de aulas e congressos científicos:
as noções de “tribo” e “povos primitivos”, por exemplo, lamentavelmente apresentam um
uso que não consegue se desfazer. Said apontou, em 1978, que “o intercâmbio entre o
significado acadêmico e o sentido mais ou menos imaginativo de Orientalismo é
constante” (Said, 2007, p. 29), mas os antropólogos brasileiros ainda não tomaram para si,
de forma integral, a responsabilidade pelas conseqüências desses usos e significados que
persistem. Essa é a crítica, com a qual concordamos, que está presente no texto do
professor Kabengele Munanga, e este autor aponta que algumas das conseqüências para a
própria Antropologia é aparecer muitas vezes como “uma ciência periférica e
marginalizada em relação às outras ciências humanas que interferem na problemática
atual do desenvolvimento sócio-econômico” e que essa disciplina “a partir dos estudos
das diferenças culturais, poderia bem contribuir para o debate relativo às ideologias de
11
um desenvolvimento alternativo” (Munanga, 1985, p. 128).
Alguns autores como Mbembe, por exemplo, estão longe de pensar o passado
histórico africano (pré-colonial) de uma forma mítica ou “intemporal”, no qual não houve
conflitos ou disputas (Mbembe, 2001). Por outro lado, encontramos no trabalho de Gala
(2002), um trecho do filósofo V. Y. Mudimbe, autor de The Invention of Africa, no qual
alerta para o risco de uma repetição africana do discurso colonial:
“É preciso ser, por um lado, crítico do saber do Ocidente sobre a África,
mas também do discurso que os africanos têm sobre sua história, sua
cultura, da maneira como eles encontram suas justificativas sobre o
mesmo „dispositivo histórico‟ do Ocidente que encarcerou a África na
barbárie, na selvageria, no primitivismo, na oralidade e no paganismo
de modo a melhor compreendê-la.” (Mudimbe apud Gala, 2002, p. 24).
Em uma linha crítica semelhante, o historiador Paul Zeleza afirma que deve-se
proceder
“à desconstrução da arquitetura discursiva dos estudos sobre África em
geral, e, em particular, sobre a história da África, sobre a economia do
desenvolvimento africano e sobre a ciência política no continente. Em
segundo lugar, que se faça a reconstrução de narrativas alternativas, em
especial dos processos e crises relativas ao desenvolvimento e à
democracia. (...) após a desconstrução, deve-se necessariamente
perseguir a reconstrução, já que o discurso africanista, ao contrário, tem
se resumido a fazer da crise o seu único objeto.” (Zeleza apud Gala,
2002, p. 25).
Uma outra perspectiva teórica sobre a pós-modernidade a compreende como um
novo espaço social no qual a centralização do sujeito cedeu ao domínio onipresente do
capital, e a experiência cultural se faz através da valorização do que é imagem e
simulacro (Semeraro, 2006)
7
. Para Semeraro, as práticas dos intelectuais são
transformadas por essa nova configuração social, pois a produção do conhecimento
também está submetida “aos desígnios da produtividade e do mercado” (idem, p. 381).
Corre-se o risco de se ver cada vez mais os intelectuais encarcerados em uma lógica
“narcisista-privada”, pois, “ao capital especulativo, que quer lucrar sem se comprometer
com a produção, corresponde o „intelectual ficcional‟, que discursa sem dizer nada”, do
mesmo modo que “para a nova ordem imposta pelo capital, só serve a formação de uma
7
A concepção de pós-modernidade deste autor baseia-se na perspectiva de Fredric Jameson, na obra “Pósmodernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio”.
12
inteligência tecnológico-utilitarista, não uma formação ético-política” (idem, pp. 383-4).
Nesse sentido, perguntamos: como se posicionam os intelectuais africanos frente a estas
questões? Estarão realizando a ligação “orgânica” com as camadas populares no sentido
de, com elas, “fazer e escrever a história” (idem, p. 374) 8 ? Ou encontrar-se-ão
encastelados e presos a uma lógica de produção de conhecimento esvaziada de sentido
político e valores éticos?
Apostamos que as discussões trazidas pelos intelectuais africanos podem
contribuir com a construção de um conhecimento ampliado (Ngoenha e Castiano, 2011),
pois concordamos com Homi Bhabha e seu entendimento do “entre-lugares”, o lugar
privilegiado do que circula por diferenças, que, segundo o autor, pode criar postos
inovadores de colaboração e inovação. Segundo ele,
“o que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade
de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e
de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na
articulação de diferenças culturais.” (Bhabha, 2001, p. 20).
Anthony Appiah é um autor que também debruça-se sobre os intelectuais
africanos e, assim, encontramos em seu texto “Pendendo para o nativismo” (capítulo do
livro A casa de meu pai, de 2007) uma passagem que muito se ajusta à motivação da
pesquisa em investigar os homens e mulheres “traduzidos”. Appiah afirma que os
intelectuais do “Terceiro Mundo” (sic) são o produto histórico de um encontro com o
Ocidente e que possuem “relações ambíguas” com esses dois universos que são parte de
sua “localização/deslocamento cultural característico”9. E além, este autor cita um trecho
do nigeriano Abiola Irele no qual, em 1987, escreveu: “o processo de mudança pelo qual
estamos passando criou um dualismo de formas de vida que vivenciamos, no momento,
menos como um estilo de instigante complexidade do que como um de confusa
desigualdade”. A motivação inicial do projeto é apostar nessa “instigante complexidade”
imaginada por Irele, mas também entendemos, como apontou Edward Said, que
“ninguém jamais inventou um método para distanciar o erudito das
circunstâncias da vida, da realidade de seu envolvimento (consciente ou
inconsciente) com uma classe, um conjunto de crenças, uma posição
social, ou do mero fato de ser membro de uma sociedade” (Said, 2007,
pp. 37-38).
8
9
Presumindo que a origem social dos intelectuais enquadra-se no que se conhece como “elites africanas”.
Encontro colonial, como ele mesmo ressalta posteriormente (p. 107).
13
Dessa forma, sendo também produtos de uma conformação social racializada e
derivada do colonialismo, os intelectuais africanos também estão suscetíveis a reproduzir,
em alguns aspectos, o discurso ocidental, e é esta a crítica central presente no texto de
Appiah. Assim, os textos africanos, em seus conteúdos e modos de produção, serão
investigados pela pesquisa como também fazendo parte de uma teia formada por relações
desiguais de poder, na qual o poder intelectual é um entre outros (Said, 2007, pp. 32, 41).
Um dos meios mais evidentes pelos quais as culturas europeias influenciaram as
africanas certamente é a língua. Quando analisa as relações entre as ideias de nação e
literatura, Appiah localiza as suas origens no século XVIII, no livro On the New German
Literature, de Johann Herder, e afirma: “a noção herderiana do Sprachgeist – literalmente,
o „espírito‟ da língua – incorpora a ideia de que a língua é mais do que o meio pelo qual
os falantes se comunicam” (Appiah, 1997, p. 81). Para Herder, “cada homem só poderia
ser ele mesmo ao pensar e criar em sua própria língua” (Hans Kohn apud Appiah). Se
concordamos com esse pensamento, estabelece-se o problema dos intelectuais africanos
serem “eurófonos”, terem sido instruídos e escreverem nas línguas coloniais – e terem
um público substancial apenas no que é escrito em inglês e francês. Eu sabia de antemão
que para realizar o doutorado teria que aprender essas duas línguas, e os estudos sobre
África são prejudicados no Brasil em parte por esta razão. Para Appiah,
“o problema não está apenas, ou não tanto, nas línguas inglesa, francesa
ou portuguesa, mas na imposição cultural que cada uma delas
representa. O ensino colonial, em suma, produziu uma geração imersa
na literatura dos colonizadores, uma literatura que amiúde refletia e
transmitia a visão imperialista.” (1997, p. 87).
No mesmo sentido, este autor ressalta que “o papel da escola colonial (e,
infelizmente, da pós-colonial) na reprodução da hegemonia cultural do Ocidente é crucial
para a crítica africana” (idem).
Também tratando de absorção de linguagens, Kabengele Munanga destaca o fato
de que mesmo a crítica à antropologia, feita pelos intelectuais africanos, é realizada
“dentro da linguagem da antropologia colonial” e que “o antropólogo africano nasceu
dentro da ciência ocidental” (1985, pp. 126, 129). O texto deste autor questiona as
possibilidades da realização de uma antropologia no continente africano, e aqui trazemos
uma nova perspectiva contemporânea: relembramos que uma das hipóteses da pesquisa é
14
que a antropologia tem-se reelaborado no continente, através de e para seus estudantes e
profissionais.
O professor Kabengele Munanga, no texto de 1985, já nos deixa seguros quanto à
produtividade de um estudo sobre o CODESRIA. Afirma o professor que entende ser
“legítima e fundamentada a preocupação atual dos africanos de pensar em si mesmos”
(idem, p. 130). Lembra que V. Y. Mudimbe, em 1982, propôs a substituição das línguas
europeias pelas línguas africanas como uma real ruptura epistemológica. Ainda, concorda
com Alf Schwarz sobre o melhor caminho para as sociedades africanas: uma
“dialetização da tradição e da modernidade, (...) do conhecimento ocidental e do saber
africano” (idem), do passado pré-colonial e do futuro na “globalização”. Desse modo,
podemos afirmar que o professor Kabengele Munanga aproxima-se da perspectiva de
Appiah para os intelectuais africanos. Não há como escapar dos cruzamentos da
contemporaneidade e não há movimentos possíveis fora da esfera da complexidade.
Junto com o professor Munanga, relembrando Mudimbe, acreditamos “que o caminho
político é decisivo”.
Material, técnicas de pesquisa e métodos de análise
O CODESRIA foi por nós escolhido como lugar de partida para esta pesquisa e
análise de produção intelectual por o entendermos como instituição fundamental do
pensamento africano em ciências sociais. Em um texto que foi bastante lido no Brasil
entre os estudiosos das temáticas africanas e afrobrasileiras, “As formas africanas de
auto-inscrição”, de Achille Mbembe (2001), boa parte de sua bibliografia tem o
CODESRIA como fonte de publicação. Como já afirmado, o sítio virtual do CODESRIA
na internet é fértil em publicações disponíveis para leitura. A compra de publicações
também será procedimento para a realização da pesquisa. Dessa forma, nosso material de
pesquisa são as produções escritas (livros, artigos, relatórios de pesquisas, etc.),
disponíveis no formato eletrônico ou publicadas em papel, como também as entrevistas
que serão realizadas com dirigentes do CODESRIA e autores africanos escolhidos após a
análise de sua produção. As entrevistas têm, no caso do CODESRIA, o objetivo de
investigar seus modos de funcionamento e investimento na pesquisa e, no caso dos
autores africanos, averiguar as condições sociais de suas trajetórias e produções
15
intelectuais. Nos dois casos, as entrevistas também serão o meio de investigar as
possíveis relações entre a produção dos cientistas sociais e as esferas de governo.
No campo de uma antropologia da produção intelectual, encontramos em Clifford
Geertz uma inspiração, na sua proposta de uma etnografia do pensamento moderno
(Geertz, 1997), na qual a comunidade acadêmica é uma comunidade como tantas outras a
ser estudada. Segundo Geertz, os teóricos da ação simbólica, com os quais ele tende a
concordar, entendem o pensamento como “o resultado de uma manipulação intencional
de formas culturais” (idem, p. 225) e, trabalhando com formas culturais, o estudo do
pensamento “é (ou pelo menos deveria ser) um empreendimento histórico, sociológico,
comparativo, interpretativo, e um pouco escorregadiço. E seu objetivo é tornar assuntos
obscuros mais inteligíveis, dando-lhes um contexto informativo” (idem, p. 227). A
contribuição que a antropologia pode dar nesse estudo está em seus métodos específicos
de descrição (“do mundo específico onde este pensamento faz algum sentido”) e de
interpretação (das expressões de uma classe ou poder, “através das atividades que as
sustêm”). Antropologicamente, uma etnografia do pensamento em uma comunidade
acadêmica deve “dar atenção a assuntos tão complexos como a representação da
autoridade, a demarcação de limites, a retórica da persuasão, a expressão de
compromissos, e o registro da discordância”, e ainda ao modo “como suas normas são
mantidas, seus modelos adquiridos, seu trabalho dividido” (idem, pp. 229-231).
Geertz descreve três metodologias de que podemos nos valer para a elaboração
dessa “etnografia do pensamento”. A primeira delas é o uso de dados convergentes –
descrições, observações de “fatos fora do comum, que são coletados em momentos
oportunos e retratados de várias formas, e que, apesar disso, têm a capacidade de
elucidar-se mutuamente” (idem, p. 233), e elucidam-se porque os indivíduos em uma
comunidade acadêmica convivem de forma bastante isolada, no que Geertz denomina de
“aldeias intelectuais”, e seu relacionamento “não é puramente intelectual, mas também
político, moral, e intensamente pessoal (e hoje em dia, cada vez mais, também marital)”
(idem, pp. 234-235). Esses dados convergentes serão colhidos em eventos como, por
exemplo, os seminários citados anteriormente.
A segunda das metodologias propostas pelo autor é o uso de categorias
linguísticas que revelam-se “palavras chave” ao abrir a porta que leva à compreensão da
16
visão de mundo que contêm em si 10 . Esta metodologia está presente nas primeiras
etnografias da disciplina e continua trazendo rendimentos para uma interpretação dos
modos de organização social e, nesta pesquisa, as palavras chave serão colhidas nos
textos e entrevistas a serem analisados, ambos entendidos como discurso (Caregnato e
Mutti, 2006).
E, por último, o que Geertz denomina por “interesse no ciclo vital” ressalta-nos a
necessidade de vincular trajetórias de vida particulares a contextos maiores, nos quais as
posições ocupadas e os relacionamentos para a ascensão e no entorno revelam algo, ou
muito, de sua estrutura. Observamos que este também é um método bem característico da
antropologia, e que é nosso interesse eleger um ou mais autor determinado para pesquisar
sua trajetória de vida pessoal/profissional.
Geertz finaliza seu ensaio afirmando que uma etnografia do pensamento contribui
com questões sérias como “o papel que desempenha esta ou aquela disciplina na
sociedade contemporânea – e na educação contemporânea” (Geertz, 1997, p. 245).
Edward Said, como já referido, analisou o modo como uma autoridade intelectual
é constituída e apresentou um plano metodológico para isso, que denominou de estudo da
“formação estratégica”: o modo de “analisar a relação entre os textos e o modo como
grupos de textos, tipos de textos, até gêneros textuais, adquirem massa, densidade e poder
referencial entre si mesmos e a partir daí na cultura em geral” (Said, 2007, p. 50). Como
não deixar a pesquisa ser “engolida” pelo que é bem reputado nas ciências sociais
africanas? É preciso não esquecer de expôr, de acordo com Appiah, “as maneiras como o
caráter dos juízos de valor literários (e, em termos mais amplos, estéticos) são produtos
de certas práticas institucionais” (Appiah, 1997, p. 107). Said afirma que a finalidade das
análises deve ser “revelar a dialética entre o texto individual ou o escritor e a complexa
formação coletiva para qual a sua obra contribui” (Said, 2007, p. 54) e ao mesmo tempo
que “o imperialismo político rege todo um campo de estudo, imaginação e instituições
eruditas” (idem, p. 42). O quanto e de que maneiras os autores africanos seriam
influenciados por esse imperialismo político ressaltado por Said?
Ainda pensando em métodos, lembramos que Said chama a atenção para um
perigo de distorção “se um nível demasiado geral ou demasiado específico de descrição
10
Algo similar ao que, em teorias de análise de discurso, entende-se como “marcas lingüísticas”
(Caregnato e Mutti, 2006).
17
for mantido sistematicamente” (idem, p. 36) e que a leitura de seu texto trouxe outra boa
indicação para a pesquisa, ainda a ser estudada: a noção de problemática proposta por
Louis Althusser (A favor de Marx), que é “uma determinada unidade específica de um
texto ou grupo de textos, algo gerado pela análise” (idem, p. 45).
A proposta teórico-metodológica de uma etnografia multilocalizada, de George
Marcus (1995), também é inspiração para esta pesquisa, que terá dados colhidos
principalmente de textos e arquivos eletrônicos, mas cujos atores/autores têm
procedências territoriais diversas, ou seja, caracterizar-se-á por um contexto
transnacional. E, no contexto específico transnacional africano, a conformação do
“sistema mundo” invariavelmente estará imiscuída:
“No obstante la etnografía multilocal es un ejercicio de mapear un
terreno, su finalidad, no es la representación holística ni generar un
retrato etnográfico del sistema mundo como totalidad. Más bien,
sostiene que cualquier etnografía de una formación cultural en el
sistema mundo es también una etnografía del sistema y que, por tanto,
no puede ser entendida sólo en términos de la puesta en escena
convencional de la etnografía unilocal, suponiendo realmente que el
objeto de estudio sea la formación cultural producida en diferentes
localidades, y no necesariamente las condiciones de un grupo
particular de sujetos. Para la etnografía, entonces, no existe lo global
en el contraste local-global tan frecuentemente evocado en estos
tiempos. Lo global es una dimensión emergente en la discusión sobre la
conexión entrelugares en la etnografía multilocal.” (idem, p.113).
A proposta do autor de examinar “la circulación de significados, objetos e
identidades culturales en um tiempo-espacio difuso” vai ao encontro da proposta desta
pesquisa, que é analisar as formulações realizadas atualmente pela comunidade de
intelectuais africanos, neste “sistema mundo” de circulação cada vez mais veloz de
significados e objetos.
O par conceitual África/nacionalidades africanas será problematizado nesta
pesquisa, procurando as perspectivas nativas sobre os limites e significados desses
marcadores. Assim, a compreensão de Marcus sobre as comparações e diferenças
envolvidas em uma etnografia multilocal também colabora nesta questão:
“La comparación controlada, común en la antropología, es en realidad
multilocal, pero opera en un plano espacial lineal, independientemente
de que el contexto sea una región, una región cultural amplia o el
sistema mundo (ver, por ejemplo, Friedman, 1994, Smith, 1976).
Además, las comparaciones se generan para unidades conceptuales
concebidas como homogéneas (pueblos, comunidades, localidades) y
18
usualmente llevan a cabo con periodos temporales definidos de manera
distinta o proyectos de trabajo de campo diferentes. En proyectos de
investigación basados en la etnografía multilocal se desarrolla de facto
la dimensión comparativa como una función del plano de movimiento y
descubrimiento fracturado y discontinuo entre localidades mientras se
mapea el objeto de estudio y se requiere plantear lógicas de relaciones,
traducciones y asociación entre estos sitios. Así, en la etnografía
multilocal, la comparación se efectúa a partir de plantear preguntas a
un objeto de estudio emergente, cuyos contornos, sitios y relaciones no
son conocidos de antemano, pero que son en sí mismos una
contribución para realizar una descripción y análisis que tiene, en el
mundo real, sitios de investigación diferentes y conectados de manera
compleja. El objeto de estudio es en última instancia móvil y
múltiplemente situado.” (idem, p.115).
Ressaltamos que entre a coleta de dados e as teorias que balizam uma sociologia e
antropologia da produção intelectual deve haver uma relação de ida e volta permanente,
para a construção da sustentação teórica da tese.
Referências bibliográficas
APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de
Janeiro: Contraponto, 1997.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
BOURDIEU, P. “O campo científico”. In: Ortiz, R. (org.). Pierre Bourdieu: Sociologia.
São Paulo: Ática, 1983.
CAREGNATO, Rita e MUTTI, Regina. “Pesquisa qualitativa: análise de discurso versus
análise de conteúdo”. In: Texto Contexto Enfermagem, 15 (4), out-dez, 2006.
GALA, Irene Vida. O
pensamento africano em Relações Internacionais:
desconstruindo o afro-pessimismo. Dissertação de mestrado em Relações Internacionais.
Universidade de Brasília: 2002.
GEERTZ, Clifford. “Como pensamos hoje: a caminho de uma Etnografia do Pensamento
Moderno.” In: O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis:
Ed. Vozes, 1997.
GILROY, Paul. Entre campos: nações, culturas e o fascínio da raça. São Paulo:
Annablume, 2007.
19
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,
1999.
HOUNTONDJI, Paulin J. “Conhecimento de África, conhecimento de Africanos: duas
perspectivas sobre os Estudos Africanos”. In: SANTOS, Boaventura de Sousa;
MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina,
2009.
MAMDANI, Mahmood. Citizen and Subject: contemporary Africa and the legacy of
late colonialism. Princeton: Princeton University Press, 1996.
MARCUS, George. “Ethnography in/of the World System: The emergence of multi-sited
ethnography”. In: Annual Review of Anthropology, n. 24, 1995. Traducción de Miguel
Ángel Aguilar Díaz, Departamento de Sociología, Universidad Autónoma Metropolitana,
Unidad Iztapalapa, Mexico.
MBEMBE, Achille. De la postcolonie. Paris: Éditions Karthala, 2000.
________________. “As formas africanas de auto-inscrição”. In: Estudos AfroAsiáticos, Ano 23, n. 1, 2001.
MUNANGA, Kabengele. “Antropologia africana: mito ou realidade?” In: Estudos AfroAsiáticos, n. 11, 1985.
NGOENHA, Severino E. e CASTIANO, José P. Pensamento engajado: ensaios sobre
filosofia africana, educação e cultura política. Maputo: Ed. Educar, 2011.
SAHLINS, Marshall. “O 'pessimismo sentimental' e a experiência etnográfica: por que a
cultura não é um 'objeto' em via de extinção”. In: Revista Mana, 3(1) e 3(2), 1997.
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Cia.
das Letras, 2007.
SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do
Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009.
SAUTU, Ruth... (et al.). Manual de Metodología: construcción del marco teórico,
formulación de los objetivos y elección de la metodologia. Buenos Aires: Consejo
Latinoamericano de Ciencias Sociales – CLACSO, 2005.
SEMERARO, Giovanni. “Intelectuais „orgânicos‟ em tempos de pós-modernidade”. In:
Cadernos Cedes, Campinas, vol. 26, n. 70, 2006.
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
20
Seleção de bibliografia a ser consultada (início)
BOURDIEU, P. “Por uma ciência das obras”. In: Razões práticas: sobre a teoria da ação.
Campinas: Papirus, 2006.
______. As regras da arte. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
CASA DAS ÁFRICAS. Acervo da biblioteca. São Paulo.
CUNHA, O. M. G. Tempo imperfeito: uma etnografia do arquivo. Revista Mana, v.
10(2), 2004.
GEERTZ, C. Obras e vidas. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2002.
HOOKS, Bell. “Intelectuais negras”. In: Estudos Feministas, 3 (2), 1995.
MICELI, S. “Condicionantes do desenvolvimento das ciências sociais”. In: História das
Ciências Sociais no Brasil 1. São Paulo: Editora Sumaré, 2001.
PEIRANO, M. The anthropology of anthropology: the brazilian case. Cambridge:
Harvard University, (tese doutorado), 1981.
ROCHA, G. A etnografia como categoria do pensamento na antropologia moderna.
Revista Cadernos de Campo, v. 15, n. 14/15, 2006.
STOCKING JR, G. (org). Observers observed: essays on ethnographic fieldwork.
London: University of Wisconsin, 1983.
21
Download