02/CC/2014 - Instituto dos Registos e Notariado

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N.º 02/ CC /2014
N/Referência:
PROC. CP 39/2013 STJ-CC
Data de homologação:
13-01-2014
Consulente:
Setor Técnico-Jurídico dos Serviços de Registo (STJSR) do Departamento de Gestão e Apoio Técnico-Jurídico
aos Serviços de Registo (DGATJ) do I.R.N., I.P.
.
Assunto:
Pedido de pronúncia do Conselho Consultivo pelo Setor Técnico-Jurídico dos Serviços de Registo.
Palavras-chave:
Prédio submetido ao regime da propriedade horizontal – constituição de servidão de passagem a pé e de carro
pelo corredor de circulação da cave do prédio serviente, constituído em propriedade horizontal, em benefício do
dominante - modificação do estatuto real ou do seu conteúdo.
O problema
A instância do STJSR, e por via de informação em vista disso elaborada, foi superiormente determinado
que o Conselho Consultivo se pronunciasse acerca da questão de saber – para usar duma fórmula singela – em
que termos é possível constituir servidão cujo exercício se faça através das partes comuns de prédio submetido
ao regime da propriedade horizontal.
Na dita informação, fazendo apelo ao ensinamento do professor CARVALHO FERNANDES, que adiante se
referirá, quer quanto à natureza jurídica do instituto da propriedade horizontal, quer a respeito dos efeitos
jurídico-reais que dum tal regime promanam para o edifício que a ele se submeta, propugnou-se a posição de
princípio de que não será possível “registar uma servidão de passagem a pé e de carro, requerida sobre duas
descrições prediais sujeitas àquele regime e titulada por escritura notarial em que todos os condóminos
declaram constituir sobre o prédio serviente aquela servidão pelo respetivo corredor de circulação da cave, a
favor de prédio dominante (por forma a permitir o acesso do prédio dominante à via pública e consequentemente
a entrada e saída de veículos, uma vez que a respetiva cave não tem outra saída para a via pública), a incidir
sobre todas as frações daquele”, e que, em vez disso, a registabilidade da servidão demandará que a mesma
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seja constituída por alteração ao regime da propriedade horizontal, “visto integrar o conteúdo deste direito real”,
ou, porventura, que se celebrem tantos contratos de servidão quantas as frações de que se compõe o prédio
serviente.
À informação, e “a título meramente ilustrativo”, foi anexada cópia de escritura de constituição de servidão
contratada entre, de um lado, o proprietário único de todas as (11) frações autónomas do prédio A, e, de outro
lado, todos os proprietários das (17) frações autónomas do prédio B (6 das quais pertença daquele mesmo
proprietário, que por isso intervém em dupla veste), e na qual as partes, arrogando-se tais titularidades,
convencionaram, entre o mais, constituir sobre o prédio B uma servidão predial “consistente na passagem a pé e
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de carro pelo corredor de circulação da cave do mesmo prédio e exclusivamente a favor do prédio A”, de forma
“a permitir o acesso à via pública e consequentemente a entrada e saída de veículos.”
Anexada foi também cópia dos registos efetuados com base na mencionada escritura, e por onde se
alcança ter sido entendido caber lavrar uma só inscrição de constituição de servidão, com o assinalado
conteúdo, abrangendo todas as 17 frações autónomas do prédio B – incluindo, portanto, aquelas 6 em que se dá
coincidência de titularidade com a que incide sobre as frações do prédio A.
É pois sobre o descrito quadro problemático que passamos a emitir
Pronúncia
1. Comecemos pelo aludido ensinamento do prof. CARVALHO FERNANDES acerca do regime da
propriedade horizontal, e do direito de propriedade horizontal em particular.
Diz-nos este autor1 que “ao constituir-se um edifício em propriedade horizontal…, o primeiro efeito que se
produz, no mundo do direito, é a criação de um novo estatuto desse edifício”, o qual “consiste em o edifício em
causa deixar de ser considerado, para o Direito, como uma coisa unitária”, passando a existir, “em sua
substituição”, “uma multiplicidade de coisas, as frações autónomas, a que estão indissociavelmente afetas partes
comuns do edifício.”2 “O prédio… constituído em propriedade horizontal… deixa de ser tratado unitariamente…
enquanto objeto dos direitos que sobre ele incidam; objeto desses direitos são agora as frações e as partes
comuns, que, para o efeito, são vistas, juridicamente, como partes autónomas do edifício sobre as quais recaem
direitos reais diferentes.” Na verdade, “cada direito dos condóminos tem por objeto, a título incindível, uma coisa
autónoma – a fração e as partes comuns.” O direito de propriedade horizontal, enquanto direito cujo objeto
consiste nesta nova coisa autónoma, nascida da subordinação do edifício ao estatuto da propriedade horizontal,
consubstancia assim “um tipo autónomo de direito real de gozo”3, sendo disso expressivamente revelador, no
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regime legal instituído, o que se dispõe no art. 1420.º. Não pode com efeito “deixar de se considerar significativo
1
Cfr. Da natureza jurídica do direito de propriedade horizontal, in Cadernos de Direito Privado, n.º 15, p. 3 e ss.
2
No mesmo sentido, também HENRIQUE MESQUITA, A propriedade horizontal no Código Civil Português, in RDES, ano XXIII, n.ºs
1-2-3-4, 1974, p. 97, nos diz que a partir da elaboração do título constitutivo “o edifício fica juridicamente dividido, mesmo em relação ao
proprietário, em várias frações autónomas [Isto é – acrescenta-se em nota –, em várias coisas, sob o ponto de vista jurídico (cfr. o art.
202.º, n.º 1)…], com individualidade jurídica própria”, e que, por consequência, “O proprietário deixa de ter um direito único sobre todo o
edifício e passa a ter tantos quantas as frações autónomas.”
3
Como o próprio CARVALHO FERNANDES em nota reconhece, posição semelhante – a da qualificação do direito de propriedade
horizontal como um direito real de gozo distinto – é defendida por HENRIQUE MESQUITA (“A propriedade horizontal no Código Civil
Português, in RDES, ano XXIII, n.ºs 1-2-3-4, 1974, p. 148).
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o facto de o legislador, no mesmo preceito em que toma por modelo, na fixação do conteúdo do direito de
propriedade horizontal, a situação jurídica do proprietário [art. 1420.º/1], se apressar a dizer que o direito de
propriedade sobre a fração e o de compropriedade sobre as coisas comuns formam um conjunto incindível, não
podendo cada um deles ser alienado separadamente (art. 1420.º, n.º 2).”
1.1. Sumariemos, para o que subsequentemente releva, os dados mais salientes da construção exposta:
com a subordinação do edifício ao regime da propriedade horizontal, o prédio originário, enquanto coisa unitária
e distinto objeto de direitos, cede o lugar às novas coisas individuais que são as frações autónomas, e é destas
novas coisas que daí em diante é possível fazer objeto de distintos e autónomos direitos reais, à cabeça dos
quais, e congenitamente, figura o direito de propriedade horizontal, direito este em cujo licere, de forma
incindível, se entrecruzam a propriedade exclusiva que incide sobre a parte independente da fração e a
compropriedade que incide sobre as partes comuns do prédio.
Assentando nisto, uma ilação imediatamente se nos impõe como seu consequente corolário lógico: e
essa é a de que a servidão a constituir (como quer que o seja e possa sê-lo) sobre o edifício constituído em
regime de propriedade horizontal, e cujo exercício se localiza exclusivamente em zona incluída nas partes
comuns do estatuto do condomínio, nem por isso deixa de ter por seu necessário objeto – porque só elas
existem como unidades jurídicas, e não já o prédio de origem – as frações autónomas.
2. Digamos agora alguma coisa sobre o direito de servidão.
À noção legal dá-lhe assento o art. 1543.º CCivil, nos termos do qual “servidão predial é o encargo
imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente…”.
Da noção ressaltam os pressupostos básicos da figura: a existência de prédios distintos (um, o serviente,
que sofre a incidência do encargo, outro, o dominante, ao qual se proporcionam as utilidades em que o encargo
consiste); e a exigência de que tais prédios pertençam a donos diferentes (requisito quer da constituição, quer da
subsistência do direito – cfr. art. 1569.º/1, al. a CCivil)4 – exigência esta de que diretamente deriva o repúdio,
pelo nosso ordenamento, da chamada servidão de proprietário, ou seja, da possibilidade de constituição e
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4
Para referir o requisito da titularidade alheia dos fundos é comum fazer-se uso do brocardo nemini res sua servit. LACRUZ
BERDEJO, in Elementos de Derecho Civil, III, Derechos Reales, vol. II, 2001, p. 91, perante a definição legal de servidão do código civil
espanhol (art. 530.º: “A servidão é um encargo imposto sobre um imóvel em benefício de outro pertencente a dono distinto”),
substancialmente equiparável à que entre nós rege, nota que “o pressuposto da distinta titularidade é, em termos gerais, próprio de todos
os direitos reais limitados – que por isso também se chamam iura in re aliena –, o que justifica que a doutrina sustente que o velho
brocardo, em que esta exigência se condensa, nemini res sua servit iure servitutis não é, na sua concretização, senão uma inócua
extrapolação”, sendo no entanto certo que o caráter alheio dos fundos “adquire, neste caso, um relevo característico e particular, posto
que, ao estabelecer-se a servidão sobre um fundo em benefício de outro pertencente a dono distinto, ela apresenta uma dupla direção de
que por essência carecem os outros direitos reais limitados.”
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manutenção de servidão sobre coisa própria.5
Importa ainda chamar a atenção para as modalidades dos títulos constitutivos das servidões: de acordo
com o disposto no art. 1547.º/1 CCivil, estas podem ser constituídas por negócio jurídico (contrato ou
testamento), usucapião ou destinação do pai de família; para as servidões legais, dispõe o n.º 2 do mesmo artigo
que, não havendo constituição voluntária, haverá constituição coativa por decisão judicial ou administrativa. Com
exceção do caso especial do testamento, notar-se-á que não prevê a lei que a constituição se possa fundar em
negócio jurídico unilateral. O que de resto parece inteiramente condizente com o requisito da diferente
titularidade dos prédios envolvidos: mal se concebe, na verdade, que pudesse alguém ser admitido a constituir,
sobre prédio seu, de sua livre e espontânea vontade, servidão a favor de prédio de outrem, e que a estoutro
sujeito unilateralmente assim se impusesse uma relação intersubjetiva de natureza real em cuja conformação
pura e simplesmente não fosse chamado a tomar parte.
3. Como conciliar as notas básicas do regime da servidão predial que acabámos de referir com as
primeiramente expostas notas de regime da propriedade horizontal? É perguntar: em que termos mutuamente se
condicionam os institutos, quando se quiser que convivam lado a lado?
3.1. Já vimos que o objeto da servidão predial, neste contexto, não pode ser outro que não a fração
autónoma. E agora enfatizamos o que cumpre enfatizar pelo lado da fisionomia própria da servidão: a fração
autónoma (a coisa) que sofre o encargo tem necessariamente que pertencer a dono diferente do dono do imóvel
(que pode muito bem ser outra fração autónoma,6 do mesmo ou de edifício diverso) em cujo proveito ele se
imponha – nemini res sua servit.
Também neste contexto específico, por conseguinte, não admite a lei a existência de servidão de
proprietário. Deve por isso recusar-se in limine, à luz do direito vigente, a validade duma certa prática negocial
de que já temos visto exemplos concretos: a saber, aquela que consiste em o proprietário único de dois distintos
prédios, as mais das vezes uma empresa dedicada à atividade de construção e promoção imobiliária, antes ou
depois da submissão deles ao regime da propriedade horizontal, constituir sobre as frações autónomas (a criar
ou já existentes), tipicamente de forma recíproca, servidões com determinado conteúdo, e designadamente com
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o conteúdo que nos foi proposto como base de reflexão; ou seja, cujo feixe de utilidades se analisa em permitir
aos donos das frações autónomas dominantes a passagem a pé e de carro por espaço (uma cave, um
5
Como de resto é regra nas legislações que nos são mais próximas, com as importantes exceções dos ordenamentos alemão e
suíço. Em Espanha, a servidão de proprietário é admitida pelo Código Civil da Catalunha. Cfr. CARLOS CUADRADO PÉREZ, La Servidumbre
de Propietario, 2008, p. 96 e ss.
6
Como sublinha HENRIQUE MESQUITA, op. cit., p. 113, “Embora a nossa lei não inclua expressamente as frações autónomas na
categoria das coisas imóveis (cfr. o art. 204.º), é esta a qualificação que lhes deve ser atribuída: constituindo parte de um prédio urbano,
não se compreenderia que tivessem natureza diferente.”
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logradouro) situado nas zonas comuns do edifício em que se integram as frações autónomas servientes. Não é
só o requisito da separação de domínios que a isso se opõe; opõe-se-lhe outrossim o facto simples de não
prever a lei a constituição de servidão por negócio jurídico unilateral (com a exceção do testamento, que, sendo
um negócio mortis causa, é um “negócio fora do comércio jurídico”7).8
4. Proíbe a lei a constituição da chamada servidão de proprietário – mas importa perceber uma tal
proibição nos seus devidos termos.9
Na verdade, e como se lê no “Código Civil Anotado”,10 “nada obsta a que o proprietário de um prédio
constitua uma servidão sobre um outro, de que ele seja mero comproprietário, ou a que, inversamente, os
comproprietários de certo prédio adquiram uma servidão sobre um outro prédio, pertença exclusiva de um
deles.”, o mesmo podendo “afirmar-se, mutatis mutandis, em relação à propriedade horizontal”.11
Ou seja, o princípio mitiga-se quando a servidão que se queira constituir haja de ser exercida sobre
coisa em relação à qual o proprietário da coisa dominante, isoladamente, não goze da plena en re potestas nos
termos da qual lhe seja lícito atuar iure domini de forma irrestrita. Ao proprietário do prédio A, que se quer
dominante, não é lícito aproveitar-se do prédio B, de que é comproprietário, conforme lhe aprouver, porquanto
haverá que respeitar os limites que decorrem, nomeadamente, do disposto nos arts. 1405.º e 1406.º do CCivil. E,
porque tais limites existem, não tem sentido aplicar aqui a regra nemini res sua servit: a coisa serviente não é
exclusivamente sua.12
7
Cfr. MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., 1989, p. 392.
8
Não parece assim que seja possível defender, entre nós, uma construção que tem feito o seu curso na doutrina espanhola (com
eco, aliás, na “doutrina oficial” da Dirección General de los Registros y del Notariado, como se vê da Resolução de 21-10-1980, acessível
em http://bit.ly/RDGRN21101980): o proprietário comum dos dois prédios constituiria a servidão sobre um em proveito do outro sob
condição suspensiva, de tal maneira que os seus efeitos se produziriam se e quando a titularidade comum cessasse. A abertura para uma
tal tese (em face do princípio neminis res sua servit) é dada pelo disposto no art. 536.º do CCivil espanhol, que, quanto aos títulos
constitutivos da servidão, preceitua, “simplesmente”, que “As servidões são estabelecidas pela lei ou pela vontade dos proprietários.
Aquelas chamam-se legais e estas voluntárias.” Cfr., sobre o ponto, CARLOS CUADRADO PÉREZ, op. cit., p. 178 e ss.
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9
Convém salientar que está fora das nossas preocupações, no âmbito da reflexão que empreendemos, a matéria da constituição
coativa de servidões.
10
De PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, com a colaboração de HENRIQUE MESQUITA, Vol. III, 2.ª ed., 1987, p. 617.
11
Cfr., no mesmo sentido, LACRUZ BERDEJO, op. cit., p. 91, para quem “uma servidão predial pode intercorrer entre distintos
prédios pertencentes a um proprietário e a uma comunidade – ordinária, hereditária ou conjugal – de que aquele faça parte, ou entre uma
fração autónoma, de propriedade exclusiva, e os elementos comuns do edifício em propriedade horizontal”.
12
Para dar um outro sugestivo exemplo de atenuação do princípio nemini res sua servit (tirado de LACRUZ BERDEJO, idem,
ibidem), seria certamente possível ao usufrutuário de um prédio constituir uma servidão de passagem a favor do nu-proprietário desse
mesmo prédio e em benefício de outro prédio de que este último fosse pleno proprietário, uma vez que o nu-proprietário não tem,
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Analogamente, também no âmbito da propriedade horizontal cremos perfeitamente figuráveis situações
em que a favor das frações autónomas do edifício A se constitua servidão sobre as frações autónomas do prédio
B consistente em determinado aproveitamento que se exercerá sobre as partes comuns 13 deste último edifício
assim que relativamente a ele exista uma situação plena de propriedade horizontal, ou seja, assim que esteja
assegurada a pluralidade subjetiva, ainda que pela expressão numérica mínima, do domínio das frações
autónomas que o integram, de modo a que as partes comuns fiquem sob a correspondente regime de
compropriedade – e isso pese embora haver coincidência de titularidade, em maior ou menor medida, em
relação a frações autónomas dominantes e frações autónomas servientes. Pelo que, se assim for, como
cremos que seja, poderá o proprietário único da totalidade das frações autónomas de dois edifícios (implantados
em dois distintos prédios) – o típico promotor imobiliário –, no próprio ato em que proceda à primeira alienação
de fração autónoma do edifício “serviente”, desde logo convencionar com o adquirente a constituição de servidão
nos assinalados termos. O alienante atuará, nessa parte, em dupla qualidade, assumindo ao mesmo tempo um e
outro pólo da relação contratual: dum lado, isoladamente, como sujeito titular dos imóveis dominantes; do outro
lado, conjuntamente com o adquirente, como comproprietário das partes comuns do edifício sobre as quais se
exercerá a servidão. É claro que, quem diz no momento da primeira alienação, diz em qualquer momento
ulterior: crucial é que esteja verificado o requisito da compropriedade das “partes servientes”.
Decorre claramente do que vimos dizendo que, em nossa modesta opinião, nenhum reparo cabe
portanto fazer ao conteúdo da escritura com que se instruiu a informação com base na qual a presente consulta
foi suscitada – ao invés, julgamos mesmo modelares os termos observados em tal documento, o qual bem
poderia divulgar-se como bom exemplo a seguir no quadro das disposições legais aplicáveis.
Insistimos porém naquilo que logo no princípio começámos por pôr em evidência: a coisa objeto da
servidão, exercendo-se ela embora exclusivamente pelas partes comuns do edifício, é sempre a fração
autónoma, ou, dito de outro modo, o direito que por ela fica onerado (ius in re aliena) é sempre o direito de
propriedade horizontal incindivelmente composto de parte de propriedade exclusiva (sobre a parte independente)
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e de parte de compropriedade (sobre as partes comuns). E, portanto, como é lógico, se no edifício “serviente”
“enquanto durar o usufruto, direito a passar sobre o seu próprio prédio, sendo certo que tal servidão se extinguiria quando se
consolidasse a compropriedade.”
13
Note-se que é este o limitado âmbito temático da nossa análise (constituição de servidão “sobre” as partes comuns de edifício
em propriedade horizontal). Já se o que estiver em causa for a pretensão de constituição de servidão cujo exercício exclusivamente se
faça pela parte do objeto do direito de propriedade horizontal em que este se configura como propriedade exclusiva (isto é,
exclusivamente pela parte que consubstancia a unidade independente, a fração autónoma “propriamente dita”), parece-nos evidente que
o princípio nemini res sua servit impedirá essa constituição em proveito de fração autónoma (do mesmo ou doutro edifício) pertencente ao
mesmo dono.
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houver “x” frações autónomas, é sobre “x” frações autónomas que a servidão incidirá.14
5. Não terminamos sem fazer referência a um outro meio, não coativo, por meio do qual se nos afigura
possível constituir uma verdadeira servidão – que não uma mera serventia – entre frações autónomas integradas
em edifícios distintos (implantados em prédios distintos): falamos da constituição por destinação do pai de
família.
Com efeito, nos termos do disposto no art. 1549.º CCivil, “Se em dois prédios do mesmo dono, ou em
duas frações de um só prédio, houver sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem
serventia de um para com outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao
domínio, os dois prédios, ou as duas frações do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da
separação outra coisa se houver declarado no respetivo documento.”
Não é difícil imaginar, na verdade, uma situação em que sobre um edifício existam sinais visíveis e
permanentes que revelem serventia dele para com outro edifício, ambos submetidos ao regime da propriedade
horizontal, e ambos – rectius, as respetivas frações autónomas – pertencentes a um mesmo proprietário. Nas
modernas urbanizações, na verdade, não raro ocorre que os edifícios, situados embora em prédios distintos,
entre si se justaponham, por vezes mesmo fisicamente, e que o acesso a determinada zona de algum (por ex.,
às garagens ou lugares de estacionamento) se tenha “estruturalmente” que fazer pelo espaço do prédio
adjacente, porque assim de raiz projetados e construídos (na parede que entre si divide os imóveis, por ex.,
existe uma abertura para dar passagem aos veículos oriundos de um ou outro “lado”, numa, noutra, ou em
ambas as direções).
14
Se bem raciocinamos, porém, da multiplicidade quanto ao objeto de incidência (o facto abrangerá todas as frações
autónomas integrantes do prédio submetido ao regime da propriedade horizontal, a determinar que do extrato da correspondente
inscrição deva constar a menção dessa mesma pluralidade – cfr. CRP art. 93.º/1-f) não decorre inelutavelmente que, para efeitos
emolumentares, a situação se tenha que subsumir na hipótese da norma do art. 21.º/1.2., do RERN, nos termos da qual “O facto que
respeite a diversos prédios é cobrado por inteiro relativamente ao primeiro, acrescido de (euro) 50 porcada prédio a mais, até ao limite de
(euro) 30 000.”. Deste ponto de vista, cremos, deve antes prevalecer a ideia da indivisibilidade da servidão que apresente a configuração
descrita: pois diversamente do que ocorre, v.g., com a compra e venda que abranja todas as frações autónomas dum edifício, em relação
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à qual é perfeitamente admissível, sem traição da verdade jurídica substantiva, proceder ao desdobramento do correspondente pedido de
registo pelo respetivo número delas (“x” frações autónomas = “x” pedidos de registo = “x” atos de registo), no caso da servidão constituída
sobre as partes comuns, atenta a simultânea e indefetível transversalidade dos seus efeitos ao universo das frações autónomas (rectius,
ao universo dos direitos de propriedade horizontal), um tal desdobramento pura e simplesmente não se concebe. A servidão é
forçosamente una e global – a ponto de não ser descabido defender, sob um certo prisma, que ela incide sobre o prédio (um prédio, cada
prédio) submetido ao concreto estatuto da propriedade horizontal em que por sua vez se integra a concreta compropriedade estabelecida
sobre as partes comuns (pelas quais se faz o exercício das utilidades em que a servidão se consubstancia). Resumindo: para efeitos de
tributação, uma servidão assim vem a ser uma servidão que não abrange mais do que um prédio – aquele sobre o qual se instituiu a
propriedade horizontal.
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Porém, se não temos dúvidas de que em tais situações se dá a constituição da servidão por destinação
do pai de família assim que o dono da totalidade das frações autónomas dos dois edifícios procede à alienação
da primeira fração autónoma do “edifício serviente”, o muito básico problema que se põe, do ponto de vista do
registo, é o da comprovação dessa constituição – ou seja, o de saber em que termos se pode ela dar por
documentalmente titulada (cfr. CRP, art. 43.º).15 Por nós, temos por dificilmente aceitável (ou sequer
vislumbrável) uma qualquer forma de titulação extrajudicial, considerando nomeadamente a necessária
demonstração da existência dos “sinais visíveis e permanentes… que revelem serventia de um para com outro”
prédio. E tão-pouco parece que tenha muito interesse admitir que, v.g., no título de alienação da primeira fração
autónoma do edifício serviente, através da qual se cumprisse o requisito da cessação da titularidade do primitivo
dono, se incorporasse a declaração, subscrita por ambas as partes (o primitivo dono “comum” e o adquirente),
de que com a transmissão se operava a constituição da servidão com o indicado fundamento, de cujos
suplementares requisitos concretizariam a existência. É que, sobre não ser líquido que mesmo assim (é dizer,
com base na mera declaração dos interessados) se pudesse considerar a constituição da servidão por
destinação do pai de família como suficientemente titulada, a verdade é que, em termos práticos, estando as
partes de acordo quanto à necessidade da servidão, mal se vê por que motivo não houvessem de ser elas
próprias, pela forma contratual, ali mesmo a inequivocamente constituí-la. Dizendo de outro modo: porquê
invocar a complexa, laboriosa e insegura (em termos de comprovação para registo) modalidade da destinação
do pai de família quando se tem à mão o simples, expedito e seguro meio da forma contratual?
*****
Este é, sobre a consulta feita, o nosso parecer.
Parecer aprovado em sessão do Conselho Consultivo de 21 de novembro de 2013.
António Manuel Fernandes Lopes, relator, Luís Manuel Nunes Martins, Blandina Maria da Silva Soares,
IMP.IRN.Z00.07 • Revisão: 01 • Data: 22-01-2014
Isabel Ferreira Quelhas Geraldes, Maria Madalena Rodrigues Teixeira.
Este parecer foi homologado pelo Exmo. Senhor Presidente do Conselho Diretivo em 13.01.2014.
15
Falamos de título em sentido formal, como é evidente. O titulus adquirendi da servidão por destinação do pai de família é a
própria lei: o encargo constitui-se ipso iure pela verificação cumulativa dos requisitos indicados no art. 1549.º CCivil.
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