Teatro e Filosofia: relações perigosas? A busca incessante desses dois segmentos pelo significado original do ser. Paulo Roberto Monteiro de Araujo* O teatro em sua origem está vinculado ao processo de criação do espírito grego. Processo esse que mostra a capacidade do grego antigo de criar formas artísticas cujas preocupações eram dar conta das contradições humanas. O homem grego teve que criar o teatro para poder enfrentar o sofrimento da existência humana, sem cair em formas maniqueístas no sentido da moral ocidental. Sem a ideia de bem ou de mal, o grego elaborou, por meio do pensamento mítico ou mágico, um universo artístico em que os instintos humanos pudessem ter a liberdade de se expressar em toda a sua diversidade. Seguindo o pensamento mítico, o teatro grego acompanhou a lógica do concreto no sentido de não haver a ideia de representação em relação à vivência humana. Desse modo, o teatro grego expressa, sob a forma da criação artística, o viver humano em todas as suas dimensões: do amor ao ódio, do perdão à vingança. É nesse aspecto da expressão da vivência em seu estado original que podemos relacionar teatro e Filosofia não somente na dimensão do belo, mas, antes, na preocupação com o Logos, isto é, com o processo significativo ou racional do Cosmos. Heráclito (500 a.C.), como um dos fundadores do pensamento filosófico, desenvolveu a ideia do homem acompanhar a racionalidade das coisas em sua totalidade. Apesar de Heráclito ter sido considerado hermético em seu tempo, o que ele propunha era que o homem seguisse a razão das coisas que aparecessem na totalidade cósmica. Heráclito Nascido em Éfeso, região da Jônia, por volta de 540 a.C., é um dos mais importantes filósofos pré-socráticos. Ele ficou conhecido como o pai da dialética, pois aborda a questão da unidade permanente do ser versus a mutabilidade das coisas transitórias. Rejeitava a vida pública, desprezava a plebe, os antigos poetas, além de ser contra os filósofos de seu tempo e a religião. Dionísio Divindade grega, era filho de Zeus e da princesa tebana Semele (filha de Cadmo e Harmonia), único deus filho de uma mortal. Também era conhecido como Baco, deus do vinho e do prazer. Os rituais religiosos dedicados a Dionísio eram conhecidos como os Mistérios Dionisíacos. Sófocles Dramaturgo da Grécia Antiga (496 a. C. 406 a. C.). Junto de Eurípedes e Ésquilo, ficou conhecido como um dos grandes Não é por acaso que Heráclito diz em um de seus fragmentos que o homem deve acompanhar aquilo que é comum. Ao expressar o ato pensante de seguir aquilo que é comum, Heráclito traz à tona a raiz da Filosofia, que é o voltar-se para o fundamento racional do real. Tal fundamento racional é comum a todos os homens, os quais devem aprender a superar as suas opiniões ou visões particulares sobre a realidade. Daí Heráclito brincar com a tolice humana que se limita à dimensão do senso-comum, cuja determinação é entender as coisas de forma superficial e unilateral. A contribuição de Heráclito para o amadurecimento da Filosofia em seus primórdios está no não medo de apreender as raízes do real em suas contradições. Como ele mesmo diz, a mais bela harmonia nasce da luta dos contrários. É justamente nessa luta dos contrários que o teatro encontra o seu pilar, o qual sustenta todos os propósitos para captar e expressar esteticamente a realidade dos instintos humanos. É esse mesmo pilar que afirma a necessidade da criação de uma cultura estética no Ocidente, em que a contradição precisa ser compreendida não como o ilógico ou o psicótico da mente humana, mas como a própria vida em seus vastos ramos de possibilidades de ser. Ganhar o estatuto de ser, como humano, é estar no universo da contradição em toda sua dimensão trágica, pois é esta que motiva o processo criador do teatro. As duas faces representantes do teatro grego antigo. Suas peças retratam personagens nobres Em Nietzsche, arte trágica apreende a vida trágica do mundo. e da realeza, entre as quais se destacam Na visão trágica do mundo encontram-se confundidas a vida e a morte, a ascensão e a decadência de tudo quanto é finito. O sentimento trágico da vida é antes a aceitação da vida, a jubilosa adesão também ao horrível e ao medonho, à morte e ao declínio. Vida e morte são irmãs gêmeas, arrastadas num ciclo misterioso de ascensão e de decadência. Ao mesmo tempo em que surge composição de formas, outras se desagregam. Quando uma coisa vem à luz, outra tem de se afundar nas trevas. Por outro lado, luz e trevas, formas e sombras, ascensão e declínio constituem apenas Filoctetes, Édipo em Colona e Édipo Rei. faces da existência em sua multiplicidade de possibilidades de ser. A vida infinita é ela própria a construtora, a organizadora que fixa formas para seguidamente as destruir. Ainda no dizer de Heráclito, o caminho ascendente e o caminho descendente são um e o mesmo. Não por acaso que Apolo e Dionísio são considerados metáforas dos instintos estéticos antagônicos dos gregos. Apolo simboliza o instinto plástico vinculado à clareza e à composição harmoniosa. Em contrapartida, Dionísio a expressa o caótico e a desmedida, principalmente no que se refere à sexualidade. Daí Nietzsche apontar que a cultura grega gozava da bênção das grandes potências da arte. O apolíneo contraria todo o dionisíaco e vice-versa; a inimizade reina entre estas duas forças opostas: repelem-se e combatem-se mutuamente. No entanto, elas não podem existir uma sem a outra. O grego conheceu e sentiu as angústias e os horrores da existência em sua raiz contraditória. Deste modo, para que fosse possível viver, o grego teve de criar uma estética teatral que pudesse dar conta da unidade da vida e da morte, ou ainda da tensão entre os instintos. Contradições da existência É com Sófocles a (500 a.C.) que podemos compreender melhor as contradições humanas em toda a sua profundidade existencial. Seja em Édipo Rei, seja em Antígona (para citar duas peças de sua trilogia), Sófocles constrói uma forma trágica que consegue captar de modo contundente as tensões instintivas humanas. Édipo, que mata seu próprio pai, casando em seguida com a mãe, expressa a impossibilidade do homem fugir de seu destino (moira). Lembremos que Édipo foge da casa de seus pais adotivos temendo matar o pai. Tal temor se devia à consulta que Édipo havia feito a um oráculo, que previra o referido assassinato. Ao fugir, Édipo não se dá conta de que estava indo em direção ao seu destino trágico. Apesar de decifrar o enigma da Esfinge que assolava Tebas com pragas, Édipo não consegue decifrar o seu próprio ato de assassinar o pai (biológico). A capacidade de decifrar enigmas por meio de uma visão clara não evita que Édipo realize o que estava previsto. O trágico em Édipo Rei não pode ser evitado. Eis o motivo de Édipo, ao final da peça, furar os olhos em um ato de demonstração de que não adianta sermos capazes de ver as coisas de forma clara ou mesmo interpretá-las com segurança, pois na vida em sua determinação contraditória desfaz qualquer ato humano. Já em Antígona, a questão do trágico se encontra na desmedida por parte dos personagens Antígona e Creonte em suas ações. Sobrinha e tio lutam por defender formas morais diferentes. Antígona luta por uma moral familiar ao decidir cumprir o dever de enterrar o irmão, morto em uma batalha, que tinha como propósito recuperar o poder do pai (Édipo). Desrespeitando a proibição do Estado de enterrar o irmão, considerado traidor, Antígona entra em um turbilhão de ações que a levam à condenação de ser enterrada viva. Creonte, por sua vez, ao decidir condenar a sobrinha à morte de um modo tão brutal, também entra em um turbilhão de ações desmedidas. As consequências das ações de Creonte, defensor da moral do Estado, é o suicídio tanto de seu filho, após este tentar, sem sucesso, interceder pela noiva (Antígona), como de sua esposa, que se mata ao ver o filho morto. Sófocles, ao tratar das ações em Antígona, reforça a estrutura finita do humano diante das contradições que regem a existência em sua multiplicidade infinita. Não é sem propósito que Sófocles salienta que agir é muito perigoso, mas que não é possível não agir. Diante da dimensão medonha da vida, o teatro grego descobre o caminho que leva não à cura de todas as feridas das contradições humanas, como gostaria Hegel, mas a uma forma de saber, cuja base está no respeito àquilo que não pode ser controlado: a vida. É nesse aspecto que a Filosofia pré-socrática, na figura de Heráclito, se coaduna com o teatro em sua origem. No entanto, apesar de passado vários séculos, Filosofia e teatro procuram em um sentido heideggeriano apreender o significado original do ser. Seja a Filosofia em sua reflexão conceitual, seja o teatro em sua dimensão artística. *Paulo Roberto Monteiro de Araujo é docente do programa de pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie