Violência em sociedade Definir o que se entende por violência em sociedade é tanto mais difícil quanto não é claro, também, o que seja sociedade. Isto é, será preciso de cada vez que se observe e estude a violência em sociedade explicar de que sociedade, que conceito de sociedade, se está a observar. A confusão sobre o que seja a sociedade é típica das últimas décadas. A cultura pós-moderna e os ataques ao estrutural-funcionalismo de Talcott Parsons, a tentativa mais bem-sucedida de dar consistência teórica a uma definição potencialmente consensual de sociedade, vão de par às políticas neo-liberais marcadas pela frase assassina da Srª Thatcher: “There is no such thing as society”. Michel Wieviorka refere-se ao declínio do intelectual clássico, empenhado politicamente, portador de propostas revolucionárias e de ruptura, que como todos os pensadores dignos de nome pensaram a violência: “Il n´est pas de penseur importante, dans les sciences sociales comme en philosophie politique, qui n’ait, d´une façon ou d´une autre, exprimé un point de vue sur la violence (…)” (Wieviorka, 2005:143). O autor confirma que a violência se tornou tabu desde os anos oitenta (Wieviorka, 2005:68). Michael Burawoy (2004), na procura de oferecer o marxismo como uma plataforma epistémica para estabelecer uma definição explícita de sociedade, com base nas noções de Gramscy e Polanyi – dois autores neo-marxistas com perspectivas distintas mas consistentes (no seguimento de tradições abertas por Lenin e Lukàcs, respectivamente) –, e reestabelecer um referencial sociológico respeitado, adaptado às novas circunstâncias históricas, isto é, ao declínio (ou o culminar dos efeitos) das políticas neo-liberais, no fundamental uma reposição do capitalismo selvagem, isto é, de uma autonomização e hegemonia política do capitalismo implicando o sacrifício da sociedade. Burawoy (2004) dedica um esforço meritório e raro a definir o que se pode ou deve entender por sociedade, em sociologia, nas suas diversas vertentes. Citá-lo, ainda que longamente, é útil: [Parsonsian sociology] concentrated on “society” as an autonomous, all-embracing, homeostatic self-equilibrating system, whereas Soviet Marxism left no space for “society” in its theoretical scheme of base and superstructure (op.cit.:195). In Marxist hands society is not a general notion that applies transhistorically to ancient and medieval worlds, tribal and complex systems, traditional and modern orders, embracing all the separate and functionally independent institutions that together form a coherent and bounded whole. Rather, Gramsci and Polanyi endow their notions of society with historical specificity (op.cit.:198). For Gramsci, society is civil society, which is always understood in its contradictory connection to the state. Civil society refers to the growth of trade unions, political parties, mass education, and other voluntary associations and interest groups, all of which proliferated in Europe and the United States toward the end of the nineteenth century (op.cit.:198). For Polanyi society is what I call active society, which is always understood in its contradictory tension with the market (op.cit.:198). Polanyi often refers to society as having a reality of its own, acting on its own behalf, whereas Gramsci understands civil society as a terrain of struggle. For both, however, “society” occupies a specific institutional space within capitalism between economy and the state, but where “civil society” spills into the state, “active society” interpenetrates the market. For both, socialism is the subordination of market and state to the self-regulating society, what Gramsci calls the regulated society (op.cit.:198). O autor dá continuidade a uma tendência que se desenvolveu desde os anos 80 de conciliação sociológica entre duas epistemologias contraditórias, a marxista, centrada na produção material e nas lutas sociais principais (em torno da produção, da economia, da técnica), e a weberiana, centrada na distribuição simbólica, nos mercados e na harmonização possível de interesses antagónicos, sendo estes entendidos não como dados naturais ou económicos, no sentido determinístico (ou mesmo pré-determinístico, ideológico), mas como consequência da história indeterminada das subjectividades (Weber, 2005; Touraine, 1984). Esta reconciliação ocorre ao mesmo tempo que a tematização intelectual da violência se torna tabu, como notou Wiewiorka. À medida que o Estado Social – construído por debaixo dos perigos nucleares da Guerra Fria – encontra formas apaziguar politicamente, ao mesmo tempo, as superpotências e as classes sociais predominantes (as classes industriais) presentes nas sociedades europeias e a social-democracia se torna uma referência política global, a sociologia floresce profissionalmente, ao serviço desse projecto político de conciliação. Novo problema se coloca quando a social-democracia se revela impotente perante um modo unipolar. A ideia simplista de uma sociedade diferenciada em dimensões como as que Max Weber destacou e Parsons consagrou – a saber, a política, a economia, o prestígio social, a cultura – em que cada ciência social se poderia dedicar a uma destas dimensões e, replicando o mesmo processo analítico, especializar-se em sub-disciplinas adaptadas às necessidades práticas (Lahire, 2012:347-351), entra em crise com a crise histórica do retorno do capitalismo selvagem, cujo destino se imagina semelhante ao que ocorreu nos anos 30 do século passado e contra o que muitos esforços estão a ser feitos, para manter o sistema financeiro global à custa do bem-estar das populações (o que não é propriamente uma novidade) do centro do capitalismo (tão não é novidade: basta atender às taxas de risco de pobreza para se dar conta disso) que até agora têm servido a legitimação dos sistema: as classes médias (eis a novidade). Os novos movimentos sociais emergentes nos anos sessenta e setenta (movimentos não operários, sem representação institucional, portanto, a propor modos de vida alternativos, comunitários, solidários, liberais, densamente cognitivos e críticos, como o movimento operário tinha feito no século XIX) e que constituíram referências culturais radicais e intelectuais para a resistência aos e para a legitimação dos poderes de inspiração neo-liberal (Sennet, 2006, na primeira página da introdução confessa que, nos anos sessenta, a nova esquerda norte-americana imaginou que desburocratização faria emergir comunidades; o que sucedeu foi a fragmentação individualizante e menos liberdades) viram finalmente os seus fantasmas regularmente anunciados mas nunca materializados renascer no Norte de África, e depois na Europa do Sul, EUA, Irão, Turquia, Brasil, sob uma nova forma: a dos novíssimos movimentos sociais, caracterizados por utilizarem as redes informáticas e de comunicação (inexistentes nos anos setenta) e pela forma de organização anarquizante (Castels, 2012). A base social dos “estudantes” que estiveram no epicentro da revolução juvenil dos anos sessenta e setenta está agora alargada a uma “nova pequena burguesia” (Poulantazas, 1978) com duas ou três gerações de crescimento, mas actualmente sem perspectivas de continuidade, seja pela concorrência de sociedades de outros continentes não ocidentais, seja pelo esgotamento das possibilidades ecológicas da Terra para satisfazer as necessidades de consumo criadas pelo capitalismo avançado. We have to abandon the purity and innocence of Polanyi’s society, which he counterposes to the destructiveness of the market. For Polanyi the battle between society and the market is a battle of the Gods, between good and evil (Burawoy, 2004:247/8). Ao contrário do que aconteceu nos anos 30, a sociedade – como entidade auto-referenciada às populações residentes nos diferentes territórios sob administração dos estados nacionais ocidentais – é uma referência moral e de legitimação enfraquecida, tanto ao nível da soberania como a nível das expectivas democráticas (quer dizer, da organização de campos políticos alternativos suficientemente oponíveis para competirem entre si pelo progresso, dentro e fora de fronteiras). A violência, que então poderia ser associada à emancipação – e foi-o na medida em que legitimou a corrida aos armamentos, a II Grande Guerra, as lutas de libertação do colonialismo, as experiências revolucionárias em várias partes do mundo, entre as quais Cuba e a China – a violência sugere, actualmente, mais o cenário de decomposição social e até ambiental, temível e sem esperança, a que várias correntes sociais dão resposta de forma inovadora (permacultura, direitos da natureza, justiça transformativa, rendimento básico incondicional, por exemplo). De onde virá a esperança que nos falta, enquanto sociedade em devir – mais poderosa a nível local e a nível global que actualmente, se tudo correr bem? The women’s movement has pioneered these claims by making sexual harassment, rape, wife beating, and the double shift the subject of political discourse in the social sphere, compelling the state to create agencies to administer these needs. The struggle has been uphill inasmuch as conservative forces, also operating in the public sphere, seek to reprivatize these runaway needs, returning them to the domestic enclave from where they came. Reprivatization is the first line of conservative defense against runaway needs. (…)The U.S. government has created two tiers of welfare—one associated with rights of employees and the other associated with the claims of stigmatized dependents. The system discriminates against women and minorities inasmuch as they are more likely to find themselves in the lower tier where they are treated as undeserving supplicants rather than entitled members of a labor force (Burawoy, 2004:249). Excelente ponto de partida: o movimento das mulheres, mais antigo que o movimento operário, mais discriminado e combatido – também pela força bruta e directa, a começar pelos familiares e a acabar pela sujeição à pobreza das mães sós com os seus filhos – que o movimento social modelo, e tão incompreendido que Anthony Giddens quando quis – e muito bem, dessa vez – contestar a actualidade do quadro de dimensões analíticas do estrutural- funcionalismo (ainda hoje dominante, apesar da alegada repugnância teórica dos principais sociólogos – incluindo Giddens – ao estrutural-funcionalismo, Mouzelis, 1995:18) conseguiu incluir a violência no seu modelo dimensional mas não conseguiu incluir o movimento das mulheres (“Há uma ausência conspícua da Figura 4: os movimentos feministas.”, Giddens, 1991:143). The American family and the American home are perhaps as or more violent than any other single American institution or setting (with the exception of the military, and only in time of war). E acrescenta, apoiando--se em estatísticas oficiais: Americans run the greatest risk of physical injury in their own homes and by members of their own families. (M. Strauss, R. Gelles e S. Steinmetz, Behind Closed Doors — Violence in the American Family, Londres, Sage Publications, 1988, p. 4. citado por Almeida e outros, 1999). Retomar os estudos sobre a violência O que nos dizem Wieviorka (2005) e Randall Collins (2008), ao quebrarem o tabu dos estudos sociais sobre a violência? Primeiro, dedicam-se a estudar os protagonistas da acção violenta e as forças sociais que os suportam nessa acção, sem darem importância às vítimas, na verdade produzindo – do ponto de vista do interesse das vítimas – uma revitimização, isto é, uma continuidade do silenciamento sobre os actos de violência completos, nomeadamente nas suas consequências subjectivas para as vítimas, respectivas redes de relações sociais e, portanto, grupos sociais inteiros, não por coincidência os grupos sociais estigmatizados, desprovidos de recursos (nomeadamente de defesa) e de voz activa (que a sociologia poderá ajudar a activar, se estiver disponível para assumir os custos de o fazer). Segundo, não estudam a violência institucional, como se esta fosse de natureza distinta dos outros tipos de violência. “Ce livre n´a pas pour object la violence de l´État” (Wieviorka, 2005:281). Embora o livro inclua um capítulo inteiro sobre o assunto (op.cit.:47-80) e um breve excurso no final (op.cit.:280-281). Collins, por seu lado, optou por começar o estudo da violência pelo estudo das interacções sociais que poderão ser causa eficiente imediata da violência, entendida esta como um acto efectivo (e não apenas potencial) de agressão física (e não apenas verbal) explicitamente fora de qualquer consideração de violência simbólica, que implicaria, segundo o autor, o desvirtuamento de qualquer tentativa de objectivação científica do que possa ser a contribuição da teoria social para a compreensão do fenómeno. O autor prometeu para mais tarde uma análise macro da violência, que se aguarda. Terceiro, como acontece com a sociologia em geral (Therborn, 2006:3), não dedicam atenção nem aos aspectos vitais nem existenciais das pessoas, dos grupos e das sociedades. Concentram a atenção nas relações de poder, que envolvem violência, mas excluem – paradoxalmente – o Estado e os níveis macro-sociais da equação do poder. Poder de se constituir em sujeito, no caso de Wieviorka; poder de ultrapassar a barreira emocional da tensão/medo que a possibilidade de violência automaticamente implica, no caso de Collins. Naturalizando – provavelmente de forma inconsciente – as diferenças sociais entre os que estejam em condições de se constituírem em sujeitos históricos e os que sejam capazes de acumular energias emocionais suficientes para serem protagonistas-autores de actos de violência. Quarto, embora reconhecendo a extrema multiplicidade de fenómenos violentos, a sua importância e a ausência de um debate sociológico proporcional à presença e importância do fenómeno, nenhum dos autores se preocupa em compreender ou, menos ainda, explicar a colaboração das teorias sociais com esse modo de produção de segredos sociais, que é a violência. Ora, isso é particularmente importante quando, como é o caso, uma proposta para tratar a violência fá-lo a partir de uma perspectiva multidisciplinar: Wieviorka afirma ser necessário sair do estrito campo da teoria social e ir a montante, às “difficultés de construction de soi comme sujet” histórico, psicossocial (Wieviorka, 2005 :67), para empreender um estudo e intervenção (normativos) sobre o sujeito, o actor (individual, grupal, comunitário ou social, conforme as ocasiões concretas) localizado no espaço e no tempo de que o próprio investigador procura ser parte integrante: trata-se de “explorer les processus et les mécanismes par lesquels se forme et passe à l´acte le protagoniste de la violence, individuelle ou collective, le considérer en tant que sujet, au moin virtuel, pour envisager autant qu´il se peut le travail qu íl produit sur lui-même (…)” (Wieviorka, 2005:218). Outra proposta é hiperespecializada em processos interactivos, sem consideração da parte simbólica nem da parte dos contextos sociais (Collins 2008:20). Ambos recomendam, a partir das suas indagações, formas particulares de controlo social da violência a aplicar pelas forças repressivas do Estado (Wieviorka, 2005:314-5; Collins 2008:21). Quinto, para ambos, cada um à sua maneira, a violência não é natural. Para o francês, a sociedade resulta, em cada momento, da acção dos sujeitos (actores históricos) e é destruída pela violência dos anti-sujeitos: “La notion de sujet inclus ou, tout au moins, implique son contraire, (…) l´anti-sujet (…)” (Wieviorka, 2005:287). Embora haja que ponderar – como o autor faz na sua tipologia (Wieviorka, 2005:293-301) – as misturas e os cinzentos próprios da utilização de tipos ideais como método de análise. Em Collins, o centro mesmo da sua interpretação da violência é a negação da sua naturalidade. Tem a vantagem de ser menos ambíguo: “(…) all kinds of violent confrontation have the same basic tension (…) the basic tension can be called non-solidarity entrainment” (Collins, 2008:82). “(…) most of the time quarreling is normal, regularized, limited. (…) what are the special circumstances that take some of them over the ultimate limit into actual violence?” (Collins 2008:338). Enquanto Wieviorka concebe a organização conflitual (capaz de oferecer canais de organização do sentido útil para as tensões violentas) como a forma institucional de minorar os riscos de violência, o norte-americano atribuiu aos custos espontâneos de estabelecer a violência, de ultrapassar a tensão/medo que a perspectiva de violência implica em cada ser humano, a fonte principal de controlo da violência. Mas, se assim é, se a violência não é fácil de protagonizar (como insistentemente escreve) não se percebe o seu pessimismo final, afirmando, mesmo antes do tal estudo macro social que nos prometeu e depois das recomendações de controlo social que encara, “eradicating violence entirely is unrealistic” (Collins 2008:466). É claro que a violência é um tema que provoca emoções fortes: tabus, medos, mitificações, acumulações de energia emocional, traumas, transformações pessoais e sociais, etc. E que a teoria social está ainda distante de reunir as condições para tratar do assunto de forma científica, capaz de manter à distância as emoções e firmar algum tipo de objecto de estudo razoavelmente fixo – para que um conjunto alargado de cientistas o possa tratar, seguros de que estão todos a trabalhar o mesmo e não a pisar areias movediças da polissemia das palavras de senso comum. O que nos revela quem trabalha no terreno da prevenção da violência? Que perspectivas adoptam e com que resultados? Vejamos o que nos dizem Wolfe e outros (1997): “The expression of violence is most commonly seen in the context of relationships” (Wolf, 1997:x). “Current policies to address personal violence are outdated and superficial (…) Violence does not affect everybody equally – it is ingrained in cultural expressions of power and inequality, and affects women, children, and minorities most significantly” (Wolf, 1997:xi) (itálico no original). Estamos imediatamente noutro mundo, bem distinto. Passamos do mundo público – onde efectivamente a violência não é fácil, como nota Collins, e é sobretudo um problema para as forças da ordem conterem os agressores, como refere Wieviorka – para um mundo privado, em que as vítimas parecem indefesas – porque são sempre as mesmas, digamos assim, e com fracas possibilidades de recorrer às forças da ordem em sua defesa. As tarefas encaradas têm também outra ambição e outra profundidade: “Prevention of violence entails building on the positive (through empowerment) in the context of relationships, not just focusing on individual weakness or deviance. (…) Youth are important resources and are part of the solution” (Wolf, 1997:xii). Agressores e vítimas são, afinal, familiares entre si e, uns e outros, são recursos para a prevenção da violência através da sua própria evolução natural na vida, através dos processos de sociabilidade que fazem o dia-a-dia. Muito longe de nos concentrarmos na compreensão do sentido da acção violenta ou da energia emocional necessária a ultrapassar a tensão/medo que permite ser violento, a proposta aqui é a de mobilização da acção e das emoções para dar seguimento a sentidos mais satisfatórios e construtivos que substituam e combatam a possibilidade, sempre presente, de recurso à violência, seja ela instrumental ou expressiva. Para quem trabalha no terreno a violência não é o senso comum produzido por autoressujeitos, como para Wieviorka, e não é também um facto que possa escapar à avaliação subjectiva dos protagonistas (agressores, vítimas e testemunhas) e da própria sociedade e também do Estado. “(…) violence is any attempt to control or dominate another person (…) such as isolating one´s self or partner; limiting self or partner´s gender roles (…) as well as physical (…) and sexual abuse (…)” (Wolf, 1997:9). Não é só o poder e o acesso a recursos (razão, interesse, solidariedade, identidade) que causam violência. São também as relações íntimas e de afiliação, as perspectivas de sociabilidade disponíveis e valorizadas socialmente (alternativas às carreiras criminais e de marginalização social) sobretudo ao tempo das idades naturalmente envolvidas com as instáveis aprendizagens dos controlos da corporização (expressão de si) em desenvolvimento. “Rather than focusing on efficiency, cost, safety, protection, or deviance, this perspective places a high emphasis on health promotion and empowerment (…) the importance of attaining a balance between the abilities of the individual (or groups of individuals) and the challenges and risks of the environment” (Wolf, 1997:47). A violência, portanto, não é uma luta entre duas partes. É a escolha social pela luta entre duas partes, em vez de escolher a harmonização em todas as partes envolvidas. Perante as contradições e os problemas há duas grandes famílias de maneiras de os enfrentar: pela violência e pela concertação. O problema de civilização será, pois, como valorizar a segunda escolha e desvalorizar a primeira. O que não se faz pelo método da justiça criminal, a saber, isolar o acusado e potencial bode expiatório e ignorar tudo o resto, a começar pela vida social que estabelece os contextos propícios (ou não) à realização da violência. Um dos contextos propícios à violência é a valorização social da luta e, no quadro da luta, do agressor (tantas vezes glorificado como o vencedor, sobretudo quando esmaga a vítima e subordina as testemunhas a contarem a história que melhor lhe interessar). Será difícil negar que a experiência vivida da violência – num campo de batalha como num campo desportivo – é exaltante e singular. Algo na natureza humana promove tanta satisfação – os endocrinologistas sabem explicar isso, entre hormonas e emoções; um dia talvez os geneticistas também o saibam explicar, à sua maneira. Mas nada é inelutável na natureza humana, dada a sua extrema plasticidade e, sobretudo, a sua enorme permeabilidade às influências sociais, nomeadamente as sistematicamente realizadas familiar e institucionalmente através da educação. A violência não é típica dos jovens machos, nota Collins. Ela é prevalecente em meio doméstico e praticada por crianças, refere. O que acontece é que a força e a violência são das raras mais-valias dos jovens sem estatuto (Collins, 2008:25-6). Para este autor, a argumentação da psicologia do desenvolvimento, de base genética, que atribuiu aos jovens machos maior probabilidade de entrar em violência esquece os contextos situacionais (Collins 2008:25). “(…) foundations for (…) violence are organized in childhood but are often activated in adolescence (…)” (Wolf, 1997:74). Isto é, em contextos apropriados as potencialidades biogenéticas são moldadas em cada pessoa e em cada grupo de convivas, em função de valores incorporados. Bem assim essas potencialidades são confirmadas ou negadas (por omissão ou contraposição) quando os contextos sociais perdem a influência junto das pessoas, por exemplo, abandonando-as ou estigmatizando-as como seres desumanos. A experiência dos encarceramentos mostra como as pessoas reagem automática e violentamente à negação social do acesso às sociabilidades (Zimbardo, 2007). “Youth must be supported with the information and skills needed to be actively involved in working toward prosocial change in the youth subculture and in their broader environment” (Wolf, 1997:64). Na verdade, não só os jovens mas as crianças também são educadas a entenderem a sociedade como uma fonte de oportunidades ou como uma fonte de opressão. “(…) recent research suggests that abuse behavior is primarily learned through the same-sex parent (…), identifying that males would be most detrimentally affected by being victimized by their father figure(s) and witnessing male assaults of their mothers” (Wolf, 1997:109). Outro dado que resulta da observação – dada a dificuldade em promover estudos em meios prisionais – é o de que metade dos presos (como se sabe na quase totalidade homens) são filhos de pessoas que estiveram presas também. Há, portanto, a hipótese de haver uma reprodução das práticas de isolamento social, de violência, de encarceramento, que se autoalimentam sob a forma de síndromes sociais. Síndrome cujo reconhecimento é significativamente difícil e controverso, como o mostra a polémica de Saraiva (1994) com um universitário francês especialista em temas da Inquisição. Saraiva ressalta o facto de o Tribunal do Santo Ofício ser, também, uma fonte de prestígio e rendimentos para os seus protagonistas e colaboradores. A ponto de estes serem levados a inventar crimes onde não os havia – através das célebres técnicas de tortura para obter confissões, bem como a recompensa da delação e das testemunhas de acusação. O que significa, evidentemente, que os relatos sobre os acontecimentos delituosos inscritos nos processos devem ser entendidos com uma distância suficiente da crença de que possam reproduzir a verdade material. E não como testemunhos fidedignos das práticas sociais da época. Tanto mais que, desde que o Tribunal foi abolido, quando os crimes que tutelava deixaram de ser perseguidos e criminalizados, nunca mais se ouviu falar de ocorrências semelhantes, nem secretas nem para manifestar orgulho identitário dos resistentes. Todas as instituições gozam de grande autonomia face ao meio social ambiente. Essa autonomia é construída sobre processos de não ingerência social nos negócios institucionais, portanto, numa privatização (maior ou menor) de certos domínios sociais (geralmente posteriormente elaborados de forma labiríntica, para protecção dos funcionários e dos interesses que se apropriam da direcção das instituições). Na prática, toda a sociedade é afectada pelo balanço que cada instituição encontra entre os interesses que a colonizam e as funções sociais de representação de valores sociais outorgados pela vontade geral, digamos assim para simplificar. Valores como a justiça e a não-violência são mais ou menos valorizados socialmente consoante os equilíbrios pragmáticos desenvolvidos historicamente entre os balanços institucionais e as relações de incorporação e corporização, de inculcação e de expressão, que se estabelecem entre os sistemas institucionais e os sistemas sociais. No terreno, “long-term follow-up (…) indicated that only the normative beliefs approach consistently predict future drug and alcohol abuse. Neither resistance skills nor knowledge alone were significant preditors (…) of substance use” (Wolf, 1997:125). A educação, isto é o exemplo das pessoas e das instituições significativas para a sociedade, é preditoras do comportamento das pessoas singularmente consideradas. O que é uma grande responsabilidade para os sociólogos, que têm, portanto, no campo da prevenção da violência uma função que reconhecidamente não estão a exercer. O que se passa com a teoria social? Esta é a pergunta que faz Mouzelis (1995), dando conta do distanciamento entre o pensamento sociológico e as realidades que deveria ser capaz de dar conta. Como é possível começar a teorizar a violência a partir de concepções tão distantes daquelas que na prática suscitam a atenção da intervenção social? Em síntese, Mouzelis identifica a continuidade dos principais problemas epistemológicos entre a fase da hegemonia do estrutural-funcionalismo e a actual fase de contestação pós-moderna, digamos assim, desse paradigma. A saber, a incapacidade de superar o reducionismo e a reificação combinados, entretanto reproduzidos, a seu modo, pelos melhores autores, que, porém, se apresentam a estigmatizar e excluir as contribuições de Talcott Parsons para a teoria social. Acrescente-se a este diagnóstico contribuições de Lahire (2003, 2012), nomeadamente quando denuncia a falsa unicidade das pessoas e do mundo que é preconcebida pelas teorias de Bourdieu, como um dos representantes mais qualificados da teoria social contemporânea, em especial pelo facto de uma valorização exclusiva das dimensões de poder (na prática segregado a níveis de género, étnico, de classe, cultural, etário) e conflitualidade, e um alheamento das dimensões, mais abaixo, de solidariedade, ajuda mútua e cooperação, em função das necessidades e possibilidades de cada um, sem o que a produção dos bens e das relações sociais, inclusive as relações de poder, seriam impensáveis. A pluralidade do mundo deve-se à existência de dimensões comunitárias (onde as pessoas nascem e morrem, e onde se alimentam e ganham competências e forças para a luta) em suporte das dimensões sociais, no sentido de relações racionais, contratuais, frias, centradas nos interesses, mobilizadores de recursos e de riscos para estabelecer hierarquias, ao mesmo tempo simbólicas e físicas, a partir das quais as instâncias sociais hegemónicas dirigem e se defendem da sociedade, volúvel. Ninguém melhor do que os dirigentes sabe o que as instituições (em favor de interesses privados e/ou públicos) e as sociedades (tomada por emoções fortes, em nome de valores) se dispõe a fazer aos seus dirigentes: glorificá-los e/ou, no momento seguinte, se preciso for, humilhá-los, implícita ou explicitamente. Segundo estes diagnósticos, a teoria social, embora bebendo de tradições muito diversas, acabou por recolher-se num campo fechado em si mesmo, cercado por um lado pelo alheamento das ciências sociais relativamente às outras ciências – a pretexto de lidarem com um objecto mais complexo –, alheamento das diferentes disciplinas das ciências sociais entre si e, também, alheamento das diferentes subdisciplinas entre si, num processo centrípeto de hiperespecialização promovido em torno de um objecto de estudo – a sociedade – cuja definição acaba por não se saber qual seja. Uma das propostas mais desafiadoras e interessantes para combater a violência, AAVV (2013), que partiu de organizações dedicadas a trabalhar socialmente casos de abuso sexual de crianças nos EUA, estabeleceu o prazo de cinco gerações para atingir os objectivos traçados, de tal forma as dificuldades e obstáculos à prevenção da violência estão arreigados e escondidos nos processos de socialização e de sociabilidade das sociedades actuais. Noutro quadrante dos debates ideológicos, Acosta (2013), os direitos da natureza, a prioridade há harmonização de interesses entre pessoas, animais, plantas e meio ambiente em detrimento da luta pela exploração (dos recursos mineiros, do gado, da agricultura, da biodiversidade patenteada, da força de trabalho) e pela hegemonia (subordinação dos trabalhadores e genocídio dos excluídos), pressupõem uma natureza concebida não como habitat mas como totalidade indissociável, na saúde e na doença, na vida e na morte, da espécie humana, conforme proposta dos povos primeiros dos Andes, que assim vivem desde que resistem às ocupações violentas dos ocidentais. Desafiam e contestam a irracionalidade do desenvolvimento ocidental, genocida, anti-ecológico e suicida, na esperança – longa de mais de 400 anos – de um dia a sua razão seja entendida. Apesar desses direitos estarem consagrados nas constituições do Equador e da Bolívia, ainda não há nem legislação, nem procedimentos, nem jurisprudência susceptíveis de os por em marcha. Quer dizer: as sementes que podem vir a germinar na terra lavrada da actual crise ocidental, financeira a curto prazo mas civilizacional a longo prazo, foram lançadas há muitos anos e sabem que as espera um longo e laborioso caminho de muitas dezenas ou centenas de anos. Como pode uma teoria social concentrada no presente, imaginando original, sem passado nem futuro, referindo-se quanto muito às origens da modernidade como se esta tivesse apenas 200 anos, como pode uma perspectiva temporal tão limitada (dir-se-ia reducionista e reificada) dar-se conta da natureza social da violência? Wieviorka trata, como vimos, da violência tratada pelos livros que escolheu, que por sua vez se centram sobretudo em questões de poder, para caracterizar uma época histórica de 30 anos. Esta redução do objecto de estudo é, depois, reificada através da ventilação das várias concepções de violência exposta à luz de um conceito extra-sociológico, um conceito de autor (Alain Touraine) imaginado fora dos quadros disciplinares, mas na verdade um conceito hiperespecializado e auto-referencial. Conclui, de maneira funcionalista e moralista, que há tipos de violência que marginalmente podem ser construtivas, mas a maioria dos tipos de violência são destrutivos e, por isso, anti-sociais. Collins, por outro lado, estabelece o reducionismo de maneira expressa, numa definição física de violência, excluindo a violência simbólica, as ameaças, os insultos, as provocações – e também a macro violência, na prática, a violência institucional. Com tal definição, chega à conclusão (tautológica?) de que a “violence is difficult to carry out, not easy” (Collins, 2008:20). Isto é, se o senso comum tem a noção de a violência estar por toda a parte é porque entende por violência, para além dos actos físicos de agressão, todas as ameaças e riscos que possam ser imaginados como contextos onde a violência pode ocorrer mas, na esmagadora maioria das vezes, prova-o a observação e a ciência, não acontece – por incapacidade, falta de vontade, incompetência do potencial agressor, sobretudo, o que é relevante para a teoria social, porque o agressor terá de se munir de energia emocional suficiente para ultrapassar a barreira da tensão/medo que também o atinge em caso de probabilidade de vir a ocorrer uma situação violenta. A sociedade, para Collins, é a interacção, isto é, a micro-sociabilidade, reificada para substituir a grande problema que é saber de que sociedade se está a falar. A violência nos EUA é a mesma que em Portugal ou em França? No século XXI e no século XIX? Ou do que se trata é criar mais uma especialidade ao lado de todas as outras especialidades sociológicas e não tocar nos seus problemas, nomeadamente nos que podem ser a explicação para o facto de a violência ter-se mantido como um tema tabu, nas últimas décadas? As tarefas da sociologia da violência A sociologia da violência, qual órfão, deve ser capaz de descobrir as razões dessa orfandade. Elas devem ser semelhantes às da orfandade de muitas ou todas as subdisciplinas sociológicas e devem também ser específicas. A estratégia centrípeta da teoria social resulta na defesa de um espaço universitário defendido por teorias sempre cada vez mais especializadas e alheias entre si. Resulta também em limitações no acompanhamento das dinâmicas implementadas no terreno, nomeadamente ao nível da intervenção social, pois na prática é mais difícil, do que na teoria, separar aquilo que aparece conjuntamente. A ser assim, todas as subdisciplinas sofrerão do mesmo problema. Que se resolverá, talvez, quando as ciências sociais se puserem em condições de se abrirem umas às outras e a outros conhecimentos também, de que aqui não falaremos. No curto prazo, porém, a violência não é uma questão menor – é uma questão tabu. Referiu-se acima como Giddens propôs actualizar as dimensões analíticas – incluindo a guerra e o controlo social, além do capitalismo e do industrialismo, como referências nucleares, e portanto a violência. Poder-se-ia referir o impressionante tratado de sociologia das guerras de Bouthoul (1991) sem seguidores. Cuja inconsequência se pode ficar a dever a uma perspectiva de vistas curtas por parte da sociologia, ao comprometer-se ideologicamente com os interesses sociais e políticos que fazem da violência um segredo ideológico (Hirshman, 1997). No longo prazo, as cinco gerações que a associação com o mesmo nome perspectiva a sua política de prevenção da violência é pouco menos do que o intervalo temporal a que a teoria social geralmente se refere, como se a socialização e a sociabilidade não sejam características naturais da espécie humana e, por isso, devessem ser estudadas conjuntamente com características genéticas, fisiológicas e biológicas, num quadro científico mutuamente aberto – epistemologicamente falando – sem o estigma do biologismo (Dores, 2013). Em particular, caracterizando-as de forma científica. Collins deixa muitas e claras pistas para estabelecer e desenvolver esta abertura: “Human have evolved to have particular high sensitivities to micro-interactional signals given off by other humans (…) to resonate emotions from one body to another in common rhythms”, escreveu a pp. 26; “emotional dynamics at the center of a micro-situational theory of violence” (Collins, 2008:4). “Emotional energy (EE) is variable outcome of all interactional situation” (Collins:19), o que significa que, com ou sem violência, se poderia e deveria estudar as energias emocionais que evoluem nas diferentes situações sociais. “Eradicating violence entirely is unrealistic” (Collins:466). Porque ela (mesmo na sua forma mais directa e física) é natural na espécie humana, como manifestamente mostram as observações dos comportamentos infantis. Ser natural não é o mesmo que ser banal, fácil ou espontânea. Pela simples razão de a espécie humana ser, por natureza, extremamente dependente das socializações e das sociabilidades, mesmo (ou sobretudo) em contextos violentos: “Violent interaction is all the more difficult because winning a fight depends on upsetting the enemy´s rhythms (…)” (Collins, 2008:80) “the basic tension can be called non-solidarity entrainment” (Collins, 2008:82). Bibliografia: AAVV (2013) Transformative justice, S. Francisco, Generations FIVE. Acosta, Alberto (2013) El Buén Vivir - Sumak Kawsay, una oportunidad para imaginar otros mundos, Barcelona, Icaria&Antrazyt Almeida, Ana Nunes, Isabel Margarida André, Helena Nunes de Almeida (1999) “Sombras e marcas, os maus tratos às crianças na família”, Análise Social, N.150 (Outono), pp.91-121. Bouthoul, Gaston (1991/1961) Traité de polémologie - Sociologie des guerres, Paris, Payot. 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