INTERNACIONAL Superando desafios ◗Cirurgião fala sobre a importância da flexibilidade para atuação em zonas de guerra e em locais remotos Atuando em missões internacionais humanitárias, o médico finlandês Ari Leppäniemi teve que aprender rapidamente a contar com poucos recursos no atendimento a feridos de guerra e populações remotas, o que envolve práticas não relacionadas a sua especialidade, como a Anestesia. Em entrevista à Emergência, durante o World Trauma Congress 2012, no Rio de Janeiro/RJ, ele compartilhou suas experiências marcantes e avaliou os pontos essenciais para profissionais que atuam ou desejam atuar nestes cenários. Ter equilíbrio emocional e ser saudável são requisitos imprescindíveis. Citou, ainda, atributos importantes para o bom funcionamento do APH, mesmo em lugares onde não há o suporte de hospitais locais. Por Priscilla Nery COMO AVALIA A EXPERIÊNCIA COMO PROFISSIONAL DA SAÚDE EM ZONAS DE GUERRA? Geralmente, trabalho com a Cruz Vermelha três ou quatro meses por vez, em pequenas missões. Passei três meses na Tailândia, em 1995, no Quênia, de 1986 a 1987, e no Paquistão, em 1992. Atendi pessoas com ferimentos de guerra feitos por balas, bombas, etc. Na Tailândia, tratei 400 pacientes em três meses com este tipo de ferimento. Nos lugares aonde fui, tínhamos que atender a todo tipo de emergência, realizar cirurgias na cabeça, no corpo, nos braços, até os olhos, amputações, entre outros procedimentos. Também já passei anos em missões humanitárias, realizando cirurgias, mas não cirurgias de guerra. Passei um ano na Nigéria e dois anos numa pequena ilha cha- mada Tuvalu. Ali, fiz todo tipo de cirurgia, inclusive obstetrícias e ginecológicas. Eu mesmo ministrava as anestesias, pois não tinha quem me ajudasse. Tudo isto trouxe uma experiência ampla em tratamento a todos os tipos de Trauma. Aprendi, nestas ocasiões, duas coisas muito importantes. Uma delas foi a realização de muitos tipos de cirurgias, das mais simples às complexas. A segunda é que o fato de ter pouquíssimos recursos à disposição para atendimento das vítimas pede que nossa equipe seja bastante flexível, que adapte os materiais para salvar e cuidar das pessoas. COMO SUPERAR A FALTA DE RECUROS MATERIAIS E HUMANOS? Você não tem todo o recurso de que precisa. Por exemplo, na Nigéria, tivemos uma epidemia de cólera em 1984 - não era um problema cirúrgico, mas serve como exem- plo - e tivemos que ajudar a sanar. Na ocasião, o soro que deveria ser ministrado pela veia acabou. A saída foi dar a eles outro fluido, mas pela boca ou nariz. Se fosse necessário, compraríamos mais soro até no mercado negro. Então, a questão é ter uma equipe preparada para qualquer situação. Você faz o seu melhor com os recursos que dispõe. Se puder fazer 80%, ótimo, mas se puder fazer 10%, ainda é melhor do que nada. Meu desejo é fazer 100% no atendimento, mas nem sempre é possível. EXISTIAM OUTRAS DIFICULDADES? Eu não diria dificuldades, a palavra certa é desafios. Por exemplo, neste tipo de missão, temos muitos médicos de diferentes países, cada um com sua formação e sua maneira de trabalhar. Então, você tem que ser flexível, deve ter a mente aberta para aprender com todos. Ninguém é dono da verdade, um modo não é necessariamente o único válido para realizar um atendimento ou cirurgia. Assim, aprendi várias formas de atendimento, compartilhadas por outros médicos do mundo inteiro. COMO É A INTERFACE DO ATENDIMENTO COM HOSPITAIS NESTES LOCAIS? Trabalhando com a Cruz Vermelha, somos enviados para áreas isoladas. Na maioria destes lugares, não há suporte local. Não há hospitais locais disponíveis, então, temos que fazer tudo, desde o início. Se for necessário realizar um exame complicado como uma colostomia (em que é necessário abrir o abdômen), devemos evitá-lo ao máximo. Caso não haja escolha, devemos fechar o abdômen do paciente logo em seguida, para que ele não corra risco de adquirir uma infecção ou até morrer. Num PERFIL VALDIR LOPES ARI LEPPÄNIEMI 48 48 Emergência Emergência Com formação inicial em Cirurgia Geral e Gastroenterologia, Ari Leppäniemi se especializou em Medicina Pré-Hospitalar, Medicina de Desastres e Saúde Internacional. Desde a década de 1980, atua como cirurgião de campo para a Cruz Vermelha Internacional nas guerras civis do Camboja, Sudão e Afeganistão. Foi cirurgião voluntário do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas em Tuvalu, Polinésia, e para o Departamento de Medicina Comunitária em Zaria, Nigéria. Atualmente, é o chefe de Cirurgia de Emergência e Terapia Intensiva Cirúrgica do Hospital Meilahti, da Universidade de Helsinki, na Finlândia. É professor associado de Cirurgia da Universidade de Helsinki e professor adjunto de Cirurgia da Universidade Militar de Ciências da Saúde, em Bethesda, Estados Unidos. ÕUTUBRO OUTUBRO // 2012 2012 EXISTE ALGUM MECANISMO PARA TRANSPORTAR ESTES PACIENTES DE ZONAS ISOLADAS PARA O HOSPITAL? Em geral, não é possível mandar ninguém para o hospital. De vez em quando, em casos mais complexos, conseguimos enviá-los para um país vizinho. Mas, em geral, temos que fazer tudo em zona de guerra, infelizmente. No Quênia, por exemplo, havia uma sala para operação, com uma lâmpada e uma ajudante, que não era treinada e nem médica. Porém, eu precisava contar com o recurso disponível, então, realizei cirurgias e ela me auxiliou. PODERIA CONTAR UMA EXPERIÊNCIA MARCANTE? Na Tailândia, encontrei várias mulheres do Camboja que foram estupradas por rebeldes e por militares. Muitas ficaram grávidas e não quiseram os bebês, queriam fazer aborto. Vários médicos de lá não consentiram em abortar, devido a suas religiões e princípios. Eu, porém, fiz vários abortos. Não concordo com o aborto, mas acredito que a vida da mulher é muito mais importante que minha opinião. COMO AVALIA A INSERÇÃO DA TELEMEDICINA NESTES CENÁRIOS? A Telemedicina deve ser utilizada, mas como um auxílio. Ela não pode substituir o exame e tratamento, nem a atuação ao vivo do médico. Já atuei com um tipo primitivo dela, uma tecnologia semelhante, mas bem básica. Em 1989, estava em Tuvalu, quando recebi uma ligação informando que alguém tinha muita dor no estômago e estava em outra ilha. Pela descrição de sintomas, suspeitei de uma apendicite. Dei instruções pelo rádio a respeito de procedimentos de emergência e pedi que enviassem este paciente para a ilha onde me encontrava o mais rápido possível, por barco. Quando o paciente chegou, tive certeza de meu diagnóstico inicial e realizei a cirurgia necessária. Hoje, temos ainda o auxílio da imagem e o médico pode ver em que estado se encontra OUTUBRO / 2012 VALDIR LOPES hospital comum, temos a estrutura para finalizar o tratamento de forma adequada. Em muitos países pobres, não há equipamentos próprios para este exame. Assim, se tratamos os pacientes nestes locais, também precisamos fechar rapidamente o local da cirurgia. Em zonas de guerra, se uma vítima precisa amputar as duas pernas, é muito arriscado. Tentamos amputar apenas uma delas, ou uma parte de ambas, para que esta pessoa não morra. Fazemos somente o mínimo necessário até que o paciente possa ser encaminhado para um hospital e receba o tratamento adequado. Médico diz que zonas de guerra exigem estabilidade emocional o paciente. Temos informação em tempo real. Se eu tiver uma dúvida, posso acionar um colega do outro lado do mundo para ajudar. Então, nestas situações, a Telemedicina é importante. Se for usada corretamente, é um bônus grande. Se existisse Telemedicina quando precisei atender ao paciente citado, eu poderia ajudar com mais eficácia. É claro que outras práticas utilizadas durante estes conflitos foram e serão transferidas para o mundo civil. Reposição volêmica, uso de controle de danos durante a ressuscitação e novos tipos de torniquetes são apenas alguns exemplos que foram, principalmente, usados em zonas de guerra e, mais tarde, adaptados para a prática civil. COMO OS MÉDICOS DEVEM SE PREPARAR PARA A ATUAÇÃO NO CENÁRIO DE GUERRA? Para atuar nestes locais, o médico deve ter algumas características. A primeira é ser estável emocionalmente. Na Nigéria, um médico precisou retornar a sua terra natal, porque não conseguiu lidar com as situações no cenário de guerra. Ele não deveria ter ido para uma missão como aquela. O profissional também deve saber e aceitar que nem sempre poderá fazer 100% o tratamento desejado, já que faltam recursos. Então, também é preciso ser flexível: se um tratamento não funcionar, deve “ Você faz o seu melhor com os recursos que dispõe. Se puder fazer 80%, ótimo, mas se puder fazer 10%, ainda é melhor do que nada achar outro caminho. É necessário ser receptivo com a cultura local e respeitá-la. Ao mesmo tempo, não se pode aceitar tudo. Numa das missões, era tradição entre a população local a realização de mutilação vaginal. Como médico, não pude concordar com aquela prática e manifestei minha opinião. Mas tive que respeitar as culturas locais e, ao mesmo tempo, ficar firme em meus princípios. Algo simples e muito útil nestes trabalhos é sorrir e ser amigável. No mundo todo, as pessoas respondem bem a isto. Ter disposição para aprender coisas novas e rapidamente é essencial, porque, em zonas de guerra, você não vai atuar somente na sua especialidade, mas terá que aprender várias habilidades. E, por último, é fundamental ser muito saudável, estar em boa forma, pois será exposto a várias doenças. Houve, na Nigéria, um médico que morreu de malária. Ele não havia tomado a vacina contra esta doença. Ou seja, temos que observar certos cuidados básicos, como ter dentes em boas condições para evitar qualquer possibilidade de ficar doente. O QUE CONSIDERA FUNDAMENTAL PARA QUE O APH FUNCIONE DE FORMA SATISFATÓRIA NESTES CENÁRIOS? Existem alguns pontos interessantes neste contexto. O primeiro é que há vários modos de se realizar este primeiro atendimento aos doentes e nenhum jeito é correto em si. Então, qualquer maneira que atenda às necessidades do paciente deve ser considerada pela equipe de emergência. Segundo, para que tudo funcione, é necessário ter um sistema bem fundamentado, uma estrutura por meio da qual as atividades sejam realizadas e todos devem segui-la. Portanto, a equipe deve ser muito bem treinada para seguir este sistema. Emergência 49