Você é o que seu coito diz que é? Monday, February 22, 2010 By Paulo Ghiraldelli Desculpas Bill Clinton precisou ir à TV e pedir desculpas por fazer sexo com a estagiária Mônica Lewinsky. Hugh Grant trouxe para o carro a prostituta Divine Brown e também teve de pedir desculpas ao seu público. Mais recentemente, a celebridade pressionada para o ritual do perdão público por sexo é o famoso Tiger, o milionário jogador de golfe. A cena é sempre um tanto ridícula, mas as desculpas são, em geral, aconselhadas pelos assessores das celebridades. “Os fãs querem as desculpas e as aceitam” – dizem os assessores. E o ritual que nós, os latinos, dizemos que é o show de hipocrisia da sociedade protestante, alimenta a TV de modo a render um bom dinheiro. Os analistas dessas situações não dizem outra coisa que não seja isso que todos os que não são analistas também dizem. Fazem a acusação de hipocrisia e então acreditam ter explicado alguma coisa. No entanto, sabemos bem, dar o nome de hipocrisia ao comportamento hipócrita não explica nada. O bom seria termos algo a dizer a respeito das razões que levam as pessoas a desejarem as desculpas de seus ídolos. No que segue abaixo, tentarei dizer algo melhor do que já ouvi sobre o assunto e, na seqüência, tirarei algumas conclusões sobre nossos comportamentos no julgamento de outros. Intimidade Os ídolos ou celebridades têm vida privada e vida pública. Não do mesmo modo das celebridades, mas nós todos temos essa dupla situação, em graus diferenciados. Ficamos furiosos quando nossa vida privada é invadida e somos julgados não pelo que fazemos todo dia em público, mas pelo que fazemos nos fins de semana a quatro paredes,. Ora, isso também ocorre com as pessoas famosas – elas se zangam. Mas, em relação a elas, as platéias – ao menos a americana e a inglesa – são exigentes. Não é permitido que o homem público faça na vida privada algo diferente do que ele faz na vida pública. É como se as pessoas dissessem: “ele escolheu ser um homem público, que se comporte então somente como homem público. Caso faça algo em privado que seja diferente do que faz em público, ele deve se desculpar, pois o que fez no âmbito privado aparece como a sua verdadeira personalidade, ainda que tais feitos nunca ultrapassem os da sexta feira à noite”. Então, a infeliz celebridade tem de ir para a TV e afirmar que aquelas dez mil vezes que fez sexo fora do casamento ou que fez sexo fora da posição de “papai e mamãe” não tinham a ver com ele, que ainda que tenham sido feitas na intimidade, foram “momentos de fraqueza”. Tudo que os fãs parecem esperar é exatamente essa frase: “aquele não sou eu, não sou verdadeiramente daquele modo, me desculpem”. Tudo que é verdadeiro a respeito de uma pessoa é, para nós modernos, o que ela faz a quatro paredes. O superficial e falso é o que aparece, o que não é visto é o verdadeiro. Temos isso como pressuposto na vida moderna. Assim, guardamos tal tese e a aplicamos para tudo, inclusive para a nossa compreensão da vida das pessoas com quem nos relacionamos direta ou indiretamente. Por isso mesmo, na busca da verdade de cada um, queremos saber de sua vida íntima. Por tal razão o sexo está na nossa mira. Mas, desde quando esse é o nosso modo de pensar? Quando foi que demos início a essa estranha maneira de ver o mundo? Sim, sabemos que a modernidade institucionalizou essa situação, mas quando é que, em termos da história da cultura, começamos a forjar o consenso sobre essa mentalidade que mira o sexo para encontrar a verdade? Sexo e verdade O sexo não era algo do campo íntimo até o mundo moderno ou burguês se tornar o nosso mundo. Com a modernidade, a casa burguesa – bem diferente do castelo feudal – reservou os quartos fechados para o sexo, colocando-o longe do lugar onde não poderia ocorrer nenhuma distração: a frente dos prédios, onde passou a reinar o balcão de negócios. Onde se lida com os clientes, não pode haver riso ou brincadeira. O balcão de negócios é o lugar em que ocorrem as tramas que garantem o sustento da família burguesa. Então, o sexo que é, enfim, o divertimento dos adultos, se privatiza. Uma vez caindo para o fundo da casa, para o quarto, no campo do que é o mais íntimo e, de certo modo, se tornando um sinônimo da própria noção de intimidade nascente, o sexo passou a ser o que temos de mais verdadeiro. Quando alguém quer saber a verdade de outro, parece ser mais que natural que o investigue na sua vida privada e, automaticamente então, olha para a vida íntima que é, na modernidade, a vida sexual. Assim é que o sexo ganhou a prerrogativa de guardar a verdade de cada um de nós. Uma sociedade assim criou o hábito de querer saber e conversar a respeito do sexo alheio. Tal prática se instaurou de uma forma peculiar, ou seja, como se o que o outro faz na atividade sexual seja bem diferente do que cada um de nós faz. Não é diferente, a maioria dos adultos sabem disso. Então, por que se quer olhar o sexo alheio? Por uma razão: acredita-se que só se sabe quem é aquela pessoa se ela é observada no sexo. Ali estará o seu núcleo, o que ela é verdadeiramente. A avidez pelo saber do sexo do outro, saber de suas “perversões”, vem do desejo do observador não de saber se o outro é diferente, mas de saber se ele é igual, se ele é o que ele é ou o que deve ser. No limite, há um interesse quase que científico pelo outro. A idéia é a seguinte: fica-se sabendo com quem se está lidando não por meio da conversa, mas por meio do conhecimento de como que o interlocutor se porta na atividade sexual. Acredita-se nisso na medida em que se passa a aceitar que é no que não aparece que está a verdade. Desvendar o mundo de modo científico (ou filosófico) é, para a maioria dos modernos, saber o que está “por detrás”. Ora, o que está escondido, o que não está à vista, é o sexo. Então, é nele que cada um de nós se mostrará como é ou, de certo modo, o que é. O nosso vocabulário denuncia essa nossa postura que, em certo sentido, tem a ver com um tipo de doutrina filosófica na modernidade. Conhecemos uma pessoa durante trinta ou quarenta anos. Eis que em um belo dia ficamos sabendo que ela, lá por uma época da vida, foi adepta do coito anal e o fazia vestida de anjo. Nossa reação, não raro, é a seguinte: “nossa, então, na realidade, ela é assim é?” Sim! Usamos a expressão “na realidade” ou “em verdade”. Tudo que se passou nos trinta ou quarenta anos de convivência com aquela pessoa se torna bem menos verdadeiro comparado com os cinco minutos ou menos de “coito anal vestida de anjo” durante alguns feriados de um breve período. Penso que essa explicação que mostra nossas atitudes guiadas pela ligação entre vida privada, verdade e sexo, inspirada em Foucault, diz muito mais do que a inicial conversa sobre hipocrisia. Todavia, ela ainda não diz tudo. De um modo mais detalhado, deveríamos também perguntar quando é exatamente que começamos a mudar na direção de assumirmos o que assumimos na modernidade. Também aí, Foucault é bom colaborador. Sua interpretação a respeito de Sócrates nos dá boas pistas. Sócrates e os modernos Sabemos que Sócrates foi um filósofo que não se preocupou com metafísica ou epistemologia. Sua ocupação foi a de fazer perguntas morais. Particularmente, assumo essa visão consensual, que segue o que dizem os melhores scholars atuais que se dedicam ao mundo grego antigo. Todavia, ao mesmo tempo em que nós, filósofos, endossamos essa interpretação, isto é, a de que Sócrates é essencialmente um filósofo moral, não damos a devida importância à frase “conhece-te a ti mesmo”. Ou seja, não raro, nós a tomamos como uma frase que efetivamente diz respeito única e exclusivamente ao conhecimento, mesmo que tenhamos declarado que acreditamos na interpretação que diz que Sócrates está empenhado, mesmo, não exclusivamente em qualquer tipo de discussão sobre o conhecimento em um sentido restrito, mas no saber que guia a vida, a conduta ético-moral. O que é que Sócrates faz? As perguntas de Sócrates são do tipo “o que é F?”, e se ele não tem respostas para elas, também seus interlocutores não se mostram mais capacitados. Pior: eles imaginam saber o que não sabem. Então, Sócrates diz que ao menos ele sabe que não sabe o que investiga, que as respostas que outros imaginam que poderiam satisfazer suas perguntas, não são suficientes. A sua peregrinação por Atenas e suas perguntas alimentariam o que ele precisaria alimentar para levar adiante “o conhece-te a ti mesmo”. Notando a peculiar ignorância dos outros ele qualifica a sua própria ignorância. Sim, e isto que sempre dizemos de Sócrates! Mas, uma leitura desse tipo a respeito da atividade de Sócrates, acaba por negar o que no início foi aceito. Sócrates é um filósofo moral, então não deveria ser muito correto tomar a frase “conhece-te a ti mesmo” como uma frase interessada em uma questão a respeito do saber de si. Foucault esteve atento para isso. A leitura de Foucault a respeito de Sócrates inova. Ele diz que o “conhece-te a ti mesmo” só foi lido sob uma ótica excessivamente epistemológica na modernidade. O “conhece-te a ti mesmo” estava relacionado, na época de Sócrates e na trama do que Sócrates fazia, ao seu trabalho exclusivamente ético e moral. O conhece-te a ti mesmo, em Sócrates, segundo Foucault, estava subjugado ao “cuidado de si”. Isto é, o conhecer de si foi adotado por Sócrates no contexto dos preceitos da construção do eu, nas regras para a vida correta, na preocupação com a alma, nos modos de prestar a atenção em si mesmo e exercer com sabedoria o auto-governo. Assim, Foucault nos ensinou que é com os tempos modernos que a interpretação do “conhece-te a ti mesmo” se desviou e, então, a frase foi tomada como expressando uma preocupação com o conhecimento objetivo do eu – a busca de sua verdade. Descartes associou o eu à busca da verdade e da certeza. Esse objetivo da filosofia cartesiana, que é a marca da modernidade, fez toda uma releitura da história da filosofia e, assim, também da filosofia socrática. Pois somente com a modernidade é que, então, houve a divisão que conhecemos entre filosofia prática e filosofia teórica. O erro na leitura da frase de Sócrates indicaria o modo como a modernidade distinguiu as duas faces do homem: ele pode conhecer, de um lado, e de outro lado pode valorar e agir. Agir e valorar são atividades diferentes do conhecer. Essa distinção moderna quebrou com a tradição antiga, vinda do “cuidado de si”, da filosofia como uma construção da vida voltada para a felicidade e a perfeição. A partir dos modernos, filosofia e ciência tentaram buscar antes avaliar o verdadeiro do que ensinar a viver. Finalmente, desse modo, o “conhece-te a ti mesmo” se fez frase filosófica em um mundo em que fazer filosofia e ciência tinha por objetivo o conhecimento, desvinculado do agir correto ou errado. Para nós modernos o importante sobre o “si mesmo” é conhecê-lo, e o importante da filosofia é conhecer – eis então que o mandamento moderno é de encontrar o conhecimento, o que é verdadeiro, no nosso interior. O que é o nosso interior senão o que fazemos conosco mesmo? Ora, mas o que fazemos conosco mesmo, nos tempos modernos ou burgueses, não o que está no recôndito do eu, isto é, o sexo? Eis o ponto de chegada: o eu em suas partes mais internas reserva a verdade. O que Foucault no ensinou, portanto, principalmente a partir de Hegel, Nietzsche e Heidegger – todos os que descreveram a história da filosofia como uma espécie de história da subjetividade –, foi que tivemos de corromper uma específica maneira de fazer filosofia e, enfim, de produzir a cultura, para chegar ao ponto que chegamos. Paulatinamente desprezamos o Sócrates que nada escreveu e que privilegiou a conduta e, no seu lugar, passamos a acreditar na mentira que montamos para nós mesmos: Sócrates nada teria escrito simplesmente porque tinha Platão para escrever por ele. Acreditamos nisso porque torcemos a filosofia de modo a torná-la uma estratégia do saber separado do valorar e do agir. Afinal, tudo na cultura nos arrastou para os tempos modernos, quando então viemos, de fato, a achar que ou a verdade está no âmbito subjetivo ou ela não está em lugar algum. Freud e “árabes” Descartes abriu a modernidade. Quando deixamos Descartes um pouco de lado para, no final do século XIX, criar descrições do nosso interior (a subjetividade) um pouco mais complexas, foi Freud e não outro que obteve sucesso em falar de nossa mente. Foi aí que a subjetividade e a verdade, articuladas em Descartes, finalmente se uniram ao comportamento sexual. Freud obteve enorme sucesso, e não era para menos. Após ele, nunca mais os bem escolarizados do Ocidente puderam deixar de olhar para o mundo subjetivo como o que, de certo modo, abrigava realmente o altar da verdade. Não só o ego, mas, principalmente, o mais escondido de nossa mente, agora tripartida na descrição freudiana, foi mostrado como aquilo que deveríamos tentar investigar: o Id e o Superego seriam as partes que tínhamos de agarrar e tirar do subterrâneo. Ambos, Id e Superego, vivendo em função de conter ou liberar energia sexual, nada seriam senão o que Freud chamou de libido e lhe deu a condição de energia psíquica. Um saber vagamente freudiano percorre a mentalidade escolarizada nos dias de hoje. Esse saber reforça a impressão moderna de que a nossa verdade de animais sociais realmente deve ser procurada em nossa atividade sexual ou, de modo mais sofisticado, em nosso desenvolvimento pessoal que, enfim, deve ser descrito segundo fases de prazer e desprazer psíquico-corporal. Esse desenvolvimento, na vida adulta, aponta para a fase da genitalização, ou seja, do que é normal e popularmente visto como o efetivamente sexual. Não é difícil para uma cultura assim construída vir a exigir dos que querem conhecer os outros, que observem tudo o que esses observados fazem no sexo. É interessante notar que essa nossa mentalidade, ao funcionar desse exato modo, determina também aqueles nossos olhares incumbidos de dizer o que são e o que não são os inimigos que temos de combater. Com essa nossa mentalidade, criamos uma lista de inimigos que podem estar em nosso bairro e inimigos que vivem fora de nosso bairro. Saímos à rua e perguntamos: “o que faz aquele vizinho que tanto olha para crianças?” No passado, seríamos ensinados a respeitá-lo, pois ele seria tomado como um homem bom, que gosta de crianças – ele seria julgado pelo que vemos dele. Hoje, desesperados, nós começamos a acreditar que o velhinho, nosso vizinho, não é o que é em público, que sua verdadeira personalidade se revela naquilo que nunca pudemos ver: a quatro paredes, ele é um pedófilo. Sim, a quatro paredes sua verdade se manifesta, e é o que ele faz no sexo – sua verdade, então, no caso, é a de “monstro”. Esse nosso modo de pensar, que fertiliza então nossa imaginação louca, não pára aí. Longe de nós, outros monstros se revelam da mesma forma: “os árabes” querem ter mulheres novas ou até mesmo crianças dentro de casa? “Eis aí a verdade deles: a de serem monstros da perversão”. Passamos a acreditar que existem, então, nações inteiras de monstros. Essas descrições “do Outro” são esboçadas diante do Ocidente que, se incentivadas por um fascista, podem servir de base para uma cruzada absurda que tentaria no “libertar do barbarismo dos pedófilos orientais”. Alguns entre nós não sabe bem como veio a pensar assim, mas se pega assim falando. A atividade pública desses homens que, porventura, sejam mesmo árabes e, por determinadas contingências, façam parte de grupos contrários à vida ocidental, é desconsiderada. O fato de optarem pelo atentado terrorista não revelaria nada sobre eles ou, digamos, revelaria pouco. O que revelaria suas personalidades deveria ser notado no seguinte: eles colocam suas mulheres cobertas com a burca, mulheres que eles trouxeram para a vida sexual quando meninas ainda. Isso sim seria a verdade deles. Esses homens, se nós avaliamos que devem desaparecer da face da Terra, não é por condenarem o capitalismo, e sim por serem pervertidos! A condenação política é substituída pela condenação moral, talvez até médica. Quando essa mentalidade ocidental, que uniu subjetividade, verdade e sexo, apenas obriga uma celebridade a pedir desculpas, ela já é condenável. Mas quando, nesse trajeto, começamos a pedir também o confronto com nações inteiras, a situação toda nossa ultrapassou o que se pode chamar apenas de condenável, estamos já em um tipo de comportamento pouco inteligente – e perigoso. Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo