cidade e segregação: vicissitudes e contradições do espaço

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Cidade e Segregação:
vicissitudes
e contradições
do espaço contemporâneo
estudos, Goiânia, v. 35, n. 2, p. 311-323, mar./abr. 2008.
Juliana Bazan
Resumo: pretende-se entender uma modalidade de espaço que expressa as vicissitudes, o modo de vida, as contradições e os símbolos da
sociedade contemporânea: a cidade. O espaço geográfico é formado
por um conjunto de objetos e ações: o primeiro constitui as formas
e o segundo, as práticas sociais. Entende-se que o espaço urbano é
produzido a partir do capital, fragmentando a cidade e originando lugares, buscando-se a idéia de que os espaços segregados possuem
características comuns internas e forte disparidade social entre elas,
não deixando também de ressaltar o lado habitacional diretamente
atingido por essa diferenciação de lugares e costumes.
Palavras-chave: cidade, renda, segregação, habitação
P
odemos considerar a cidade como uma projeção da sociedade. O quadro de extrema desigualdade social dificulta,
cada vez mais, a construção de uma cidade e, por extensão, uma sociedade mais justa.
A discussão sobre políticas e desenvolvimento urbano é
uma das mais complexas e ricas fazendo despertar vários questionamentos. É preciso considerar que, no tempo presente, mais
do que em qualquer tempo passado, as verdades são sempre relativas, pois, se são verdades agora, podem não ser depois. As verdades mudam em razão dos fatos, de quem as analisa, em razão
do mundo em que vivemos, da nossa sociedade, do que consideramos justo e de bem comum. O poder público deve, então, rever
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seus conceitos sobre o modo de conduzir as políticas públicas
no seu município, de maneira bem mais ampla e significativa na
vida de cada munícipe.
As políticas de desenvolvimento urbano têm que superar a
visão de cidade como algo apenas funcional. A cidade é muito
mais que isso: é algo que possui vivência. É um lugar de morar,
trabalhar, circular, cuidar do corpo, do espírito. É o lugar em que
construímos nossa vida que se compartilha com ela. É uma obra
do homem que ultrapassa o conceito de paisagem –, como se ela
fosse tudo e só o que a visão alcança. Nela estão contidos o sentir, o calor, as nossas emoções e as interpretações.
As políticas de desenvolvimento urbano devem buscar as
condições de urbanidade: resgatar a rua não só como funcionalidade da circulação, mas também como lugar de encontro de
pessoas, por onde elas passam todos os dias; fazer desse espaço
o seu cotidiano e lugar de vivência; transformar as funcionalidades em lugares de momentos e histórias. É preciso que haja, nas
políticas de desenvolvimento urbano e também nas condições de
urbanidade, um resgate da cidadania que, na cidade, exige a concretude de uma vida decente, pressupondo o acesso às condições
dignas de sobrevivência. Entre essas está a terra urbanizável.
É importante ressaltar que o desenvolvimento que importa
a todo cidadão não é ou não deve ser o meramente econômico,
mas sim o socioespacial. Conforme Souza (2003), conceitua-se
desenvolvimento econômico como uma combinação de duas
coisas: crescimento econômico e modernização tecnológica.
Podemos entender como desenvolvimento socioespacial o reconhecimento do sistema político, dos valores e padrões culturais,
acrescentando-se a organização espacial. Tudo isso irá influenciar no nível de bem-estar e de justiça social em uma sociedade.
Segundo Leme (2005), quando tratamos da urbanização
brasileira podemos estudá-la em três períodos no recorte temporal de 1895-1965. No primeiro período, que se estende de 1895
a 1930, segundo o autor, foram propostas e realizadas melhorias
localizadas em partes das cidades. A primeira geração de profissionais que atuava nesse momento era formada em cursos de
engenharia. Os principais trabalhos se concentravam na construção de ferrovias, em obras de infra-estrutura: – saneamento,
abertura e regularização do sistema viário – e em projetos para
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as áreas centrais. Existiram benefícios em questões diversas,
tanto naquelas relativas aos projetos e à construção de obras de
infra-estrutura, nos projetos e ajardinamento de parques e praças, como também na elaboração de uma legislação urbanística.
Nesse período também acontece a reforma e ampliação de portos
nas principais cidades litorâneas, nas duas primeiras décadas do
século 20. Já os melhoramentos nas áreas centrais buscavam valorizar novas áreas próximas aos centros comerciais tradicionais,
dando início ao processo de descentralização, por volta de 1903.
Conforme Leme (2005), o segundo período, de 1930 a 1950,
é marcado pela elaboração de planos, com uma visão de totalidade, que propuseram a articulação entre os bairros, o centro e a
extensão das cidades, através de sistemas de vias e de transportes. É importante mencionar que, nessa época, são formuladas as
primeiras propostas de zoneamento. O Plano de Avenidas, elaborado por Francisco Prestes Maia para São Paulo, em 1930, é
um exemplo expressivo dessa nova forma de planejar a cidade,
propondo um sistema articulado de vias radiais e perimetrais.
O terceiro período, entre 1950 e 1964, caracterizou-se pela iniciação dos planos regionais em razão de uma nova realidade que se
configura nessa época, causada pela migração campo-cidade, pelo
processo crescente de urbanização, pelo aumento da área urbana e
pela conseqüente conurbação, do encontro de dois ou mais tecidos
urbanos em expansão. A temática regional como objeto de planejamento e intervenção aparece no período após a Segunda Guerra
Mundial e, conseqüentemente, constatam-se novos perfis de profissionais que passam a atuar na área. Com a vinda do padre dominicano Louis Joseph Lebret ao Brasil, em 1946, para difundir o Movimento Economia e Humanismo e fundar os escritórios regionais
da SAGMACS em Recife, São Paulo e Belo Horizonte, surge uma
nova expectativa de inserção e resultados do trabalho.
De acordo com Rodrigues (2001), pode-se dizer que o urbano é tido como “símbolo da libertação do homem”, de sua superioridade sobre a “natureza” e como lugar de opressão. A cidade
mostra o avanço tecnológico e científico, a globalização dos fluxos sociais, culturais, econômicos, entre outros. Em se tratando
de oprimir, ela se expressa pelas rupturas, pela violência, pobreza, miséria, falta de habitações, infra-estrutura, segurança, nos
transportes coletivos, na poluição do ar, da água etc.
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A urbanização brasileira vem apontando para um processo
de hierarquização e segregação da sociedade porquanto as desigualdades socioespaciais vêm se ampliando cada vez mais nas
cidades brasileiras. Temos um valor correspondente a 80% da
população urbana de todo o Brasil vivendo como reflexo de uma
sociedade hierarquizada. A região Centro-Oeste pode ser considerada uma das que possui atividades econômicas muito dinâmicas no país atualmente. No estado de Goiás, o novo urbano
chega antes da modernização rural, por causa da crescente busca
e da necessidade da população de atividades e serviços urbanos.
É importante ressaltar que, dentro do Estado, municípios como
Itumbiara, com 81.430 habitantes, ou Catalão, com 64.347 habitantes, embora não possuam um número populacional bastante
significativo, exercem centralidade maior que os outros.
As pessoas que vão à procura da cidade anseiam por novas oportunidades que não encontram no campo. Na cidade não são bem absorvidos, por vários fatores, como a não-qualificação profissional.
A falta de emprego e de renda acarreta, diretamente, a desigualdade socioeconômica no município. Isso se reflete no processo de espacialização da pobreza. Por causa da falta de unidades
habitacionais e de um sistema funcional para pessoas de baixa
renda, elas procuram um espaço para se instalar, que, quase sempre, é um local inadequado para moradia.
Esses habitantes vão à procura das regiões periféricas do
aglomerado urbano, já que na região central e em suas redondezas não há mais espaço para instalações. Além disso, o custo
é elevado, quase sempre inviável para pobres e para quem, na
maioria das vezes, busca irregularidade. Esse fato ocasiona a
fragmentação, pois os habitantes de baixa renda vão em busca
de áreas ainda não loteadas, justamente pelo fato de não terem
custo algum com a instituição pública, fazendo destas áreas invadidas assentamentos subnormais. A análise de casos concretos
mostra características comuns desses assentamentos:
• Localizam-se, em sua maioria, nas regiões periféricas da
malha urbana, nos fundos de vale e nos cortiços do centro
das cidades.
• Nas unidades habitacionais moram muitas famílias.
• Unidades mistas (comerciais e habitacionais), funcionam
no mesmo espaço.
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• Ausência de infra-estrutura urbana.
• Falta de infra-estrutura pública (equipamentos públicos).
• Insustentabilidade na Mobilidade Urbana (falta do transporte público).
Afirma Corrêa (2005) que várias linhas de análise proclamam que a cidade pode ser vista como a expressão concreta de
processos sociais na forma de um ambiente físico construído sobre o espaço geográfico. Há três elementos que proporcionam
esses processos: de um lado, os processos sociais e, de outro, a
organização espacial, existindo entre eles o elemento mediador e
viabilizador, que é formado por um conjunto de forças que atuam ao longo do tempo, permitindo localizações, relocalizações e
permanência das atividades.
O agenciamento de tais processos é feito pelos atores que
modelam a organização do espaço: proprietários de meios de
produção, proprietários de terras, empresas imobiliárias e de
construção e o poder público, conforme apontam Form (s/ano),
Harvey (s/ano) e Capel (s/ano), entre outros. Dessa maneira, pode-se dizer que a cidade é construída, reconstruída, percebida e
significada por ações de sujeitos de diferentes estirpes, de gênero, de raça etc., ligados a uma estrutura social mediante vivências e cruzamentos diversos.
Segundo Ribeiro (2006, p. 2), podemos antever que
há uma conexão estreita entre as características das nossas
cidades e o padrão de desigualdades prevalecentes na sociedade brasileira, que se dá na vigência dos clássicos mecanismos da acumulação urbana, cujos fundamentos são as
próprias desigualdades cristalizadas na ocupação do solo.
Vários estudos já mostraram, com efeito, que a dinâmica
urbana da cidade brasileira tem como base a apropriação
privada de várias formas de renda urbana.
De acordo com a afirmação do autor, o conceito de desenvolvimento tem sido utilizado em dois sentidos: o primeiro,
relacionado à evolução de um sistema nacional de produção, à
medida que este, mediante a acumulação e o progresso das técnicas, eleva a produtividade do conjunto de sua força de trabalho,
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podendo-se admitir que a divisão social do trabalho acresce a
eficiência deste; o segundo sentido está relacionado com o grau
de satisfação das necessidades humanas.
As tendências dos efeitos da globalização são apontadas por
Furtado (1997) como o aumento do desemprego e a concentração do patrimônio e da renda, que resultam no aumento das desigualdades sociais.
Segundo Villaça (2001, p. 141), “uma das características
mais marcantes da metrópole brasileira é a segregação espacial
dos bairros residenciais das distintas classes sociais, criando-se
sítios sociais muito particulares”. Dessa maneira, como afirma
Carlos (1992), torna-se mais fácil a constatação de que a desigualdade espacial é fruto da social.
De acordo com Corrêa (2005), a segregação refere-se especialmente à questão residencial (daí a fundamental participação das tipologias habitacionais no decorrer da nossa pesquisa),
relatando-se à reprodução da força de trabalho.
Villaça (2001, p. 142) explicita, ainda, que a “segregação é
um processo segundo o qual diferentes classes ou camadas sociais tendem a se concentrar cada vez mais em diferentes regiões
gerais ou conjuntos de bairros”. O funcionamento da sociedade
urbana transforma seletivamente os lugares, adaptando-os à suas
necessidades de funcionamento.
Para Lojkine (1997, p. 166), “a segregação é uma manifestação da renda fundiária urbana, um fenômeno produzido
pelos mecanismos de formação dos preços do solo, estes por
sua vez determinados pela nova divisão social e espacial do
trabalho”.
Sabe-se que o mais freqüente modelo de segregação é o do centro versus periferia. O primeiro ocupa-se da maioria dos serviços e
equipamentos urbanos, públicos ou privados, e segundo já dispõe de
uma distância bem maior para a utilização deles, com um valor de
solo geralmente bem inferior ao do primeiro caso.
Corrêa (2005) explica que centralização é uma característica presente na cidade moderna, em que as principais atividades
se concentram em uma determinada área central, um produto
da economia do mercado levado pelo capitalismo industrial. Um
processo mais recente do que o da centralização é o da descentralização que, segundo Corrêa (2005, p. 125),
[visa] diminuir a excessiva centralização, causadora de deseconomias de aglomeração, a saber:
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• Aumento constante do valor da terra, impostos e aluguéis,
afetando certas atividades que perdem capacidade de se
manter localizadas na Área Central.
• Congestionamento e alto custo do sistema de transportes
e comunicações, que dificultam e oneram as interações
entre firmas.
• Dificuldade de obtenção de espaço para expansão.
• Restrições legais que implicam na ausência de controle
do espaço.
• Ausência ou perda de amenidades, que afetam atividades
e a população de alto status; mas também se deve à pressões contra determinados tipos de uso de terra, como indústria, poluentes, por exemplo.
Na concepção de Corrêa (2005), o espaço urbano é produzido com base numa ordem econômica e social. Em uma sociedade capitalista, a divisão social do trabalho cria as desigualdades
sociais, que se refletem na produção do espaço urbano, encontrando-se a lógica da estruturação espacial em duas vertentes:
a renda e a divisão social do trabalho. A primeira é responsável
pela aglomeração da mesma camada social no espaço urbano,
influenciando, desta forma, a estruturação dos bairros.
Para Marinho (2005), a cidade, enquanto lugar de maior
concentração de pessoas e de capital, concentra, também, uma
maior diversidade de classes sociais, que se apropriam desigualmente do espaço urbano e produzem formas espaciais fortemente segregadas. Por outro lado, em um outro foco, observamos
que esses indivíduos se encontram em constante movimento e,
portanto, em constante produção do espaço, significando que,
assim como a sociedade, este também é mutável:
A partir dessas reflexões, afirma-se que a cidade e o urbano
constituem “dois lados de uma mesma moeda”, ou seja, são
ambos produto e condição do trabalho humano. Os indivíduos, com o seu trabalho, produzem o espaço urbano e,
através da divisão técnica e social do trabalho, promovem
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De acordo com Ribeiro (2006), o novo milênio começa com
crescentes evidências de que novos mecanismos de espoliação
urbana estão emergindo nas cidades, relacionados com o fato de
que a segregação e a exclusão habitacional produzem espaços nos
quais se verifica a acumulação de desvantagens sociais; lugares
que possuem uma característica comum entre eles; segmentos
sociais decorrentes da precarização do emprego, do desemprego,
resultando na desestruturação familiar, no isolamento social e na
guetificação. Todas as características deste mundo encontram-se
no conteúdo da cidade, de suas atividades e da vida urbana, e
sobra como produto espacial a imensa periferia proletária, que
pode ser considerada como atraso ou resultado da exploração por
parte de outros. A globalização impõe a lógica do mercado e, ao
mesmo tempo, cria a massa marginal, enquanto a modernização,
enquanto promove, quebra os laços de integração social.
As políticas públicas municipais, que têm como resultado
concreto as interferências no espaço, implicam a instituição de
um tempo. Pintaudi (2001) afirma que, muitas vezes, as implicações futuras dessa conduta acontecem sem nenhuma priorização
das atividades, o que resulta em inúmeras intervenções desconexas e sem possibilidades duráveis, já que muitas são lançadas
para solucionar problemas imediatos. Suas intervenções interferem na valorização e na significação dos vários espaços que
compõem a cidade, pela atividade da infra-estrutura realizada,
inicialmente, e, posteriormente, através da imagem urbana.
Explique-se que o termo valorização deriva do conceito de
valor:
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Neste sentido, a valorização do espaço (objetiva e material)
deve ser entendida como aquela que exprime em sua forma
mais geral o longo processo histórico de produção do espaço pela sociedade humana, que pressupõe uma evolução
contraditória em sua relação com os objetos da natureza,
sucessivas apropriações de parcelas cada vez mais amplas
do espaço terrestre, seguidas de povoamento, fixação e de-
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relações e conflitos entre as pessoas na vida cotidiana, estimulando o movimento e a produção desigual do espaço
(MARINHO, 2005, p. 18).
finição de uma certa especialidade nos diferentes usos que
faz desses espaços (COSTA, 1983, p. 93).
Moraes e Costa (1989) compreendem que a valorização do
espaço acontece por uma articulação entre o valor do espaço e o
valor no espaço (produção social).
Segundo Carlos (1996, p. 70),
estamos, aqui, chamando de guetos urbanos áreas do desenvolvimento necessário de ações sociais que marcam
a articulação entre o individual e o coletivo, bem como o
modo de percepção afetando o comportamento humano.
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Para o autor (idem), o gueto pode significar a liberdade de
atuar e reivindicar, pois são elementos de construção de identidades que lhes permitem lutar. Temos muitos bairros de cidades
brasileiras que se assemelham à situação dos guetos negros americanos, como afirma Wacquant (2001):
[...] o gueto é um dispositivo socioespacial que permite a um
grupo estatuário, dominante em um quadro urbano, desenterrar e explorar um grupo dominado, portador de um capital simbólico negativo, isto é, uma propriedade corporal
percebida como fator capaz de tornar qualquer contato com
ele degradante, em virtude daquilo que Max Weber chama
de ‘estimação social negativa da honra’. Em outros termos,
um gueto é uma relação etnorracial de controle e de fechamento composta de quatro elementos: estigma, coação,
confinamento territorial e segregação institucional.
Segundo Barros, Henriques e Mendonça (2000), a pobreza pode responder a dois determinantes imediatos: a escassez
agregada de recursos e a má distribuição dos recursos existentes.
A importância da insuficiência de recursos na determinação da
pobreza brasileira pode ser avaliada com base em três critérios:
uma comparação do Brasil com o resto do mundo, uma análise
da estrutura da renda média do país e, finalmente, um exame do
padrão de consumo médio da família brasileira. Ela não deve
ser associada prioritariamente à carência, absoluta ou relativa, de
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recursos, apesar de a nação dispor de um enorme contingente de
sua população abaixo da linha de pobreza.
Conforme os autores, “tanto o processo de segregação espacial pela via da formação dos bolsões periféricos, como também
pela imagem de determinadas porções da cidade, são produtos
de ações sociais dos sujeitos de cidade, mediante a renda” (BARROS; HENRIQUES; MENDONÇA, 2000, p. 40). E seguem:
Diante da relevância conceitual da relação entre as rendas
pelos segmentos extremos de uma sociedade, enquanto parâmetro econômico de justiça social, não podemos deixar de ficar
perturbados e atônitos com os valores reportados. Como último
destaque, descrito na Tabela 1, vemos que os indivíduos que se
encontram entre os 10% mais ricos da população se apropriam
de cerca de 50% do total da renda das famílias. No outro extremo, os 50% mais pobres da população detêm, ao longo de todo
período analisado, pouco mais de 10% da renda. Vemos ainda
que o grupo dos 20% mais pobres se apropria, em conjunto, somente de cerca de 2% do total da renda. Por fim, o seleto grupo
composto pelo 1% mais rico da sociedade concentra uma parcela
da renda superior à apropriada por todos os 50% mais pobres.
Resumindo, vivemos em uma perversa simetria social em que
os 10% mais ricos se apropriam de 50% do total da renda das famílias e, como por espelhamento, os 50% mais pobres possuem
cerca de 10% da renda. Além disso, 1% da população, o 1% mais
rico, detém uma parcela da renda superior à apropriada por metade de toda a população brasileira.
A análise do modo como a renda interfere na estrutura do
espaço urbano e em suas contradições pode ser melhor visualizada com os números (Tabela 1).
Outra importante questão a ser aqui mencionada é o problema habitacional dos municípios brasileiros. Tanto as autoridades
governamentais ligadas à política de habitação como os representantes do capital imobiliário referem-se, freqüentemente, à
questão da moradia em termos numéricos de déficits, ignorando
que o assunto seja muito mais que números e unidades. De acordo com Maricato (1997), quando falamos nisso nos referimos à
conexão com água, esgoto, energia elétrica, drenagem pluvial,
pavimentação, com o apoio dos serviços urbanos (transporte coletivo, coleta de lixo, educação, saúde etc.). Na zona rural, algu-
mas dessas necessidades podem ser resolvidas individualmente,
porém, na cidade, sua inexistência pode inviabilizar a função de
moradia ou acarretar danos sociais e ambientais, além de exigir
sacrifícios por parte dos moradores.
Tabela 1: Evolução Temporal da Desigualdade de Renda no
Brasil – Percentagem da Renda Apropriada pelas Pessoas
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Nota: a distribuição utilizada foi a de domicílios segundo a renda domiciliar
per capita. Fonte: PNAD de vários anos.
O estudo de Maricato (1997, p. 53) sobre a questão é revelado em suas próprias palavras:
[...] os paradigmas que marcam a sociedade brasileira –
profunda desigualdade e exclusão social; cidadania restrita
a uma minoria; relações sociais no favor, no clientelismo
e, portanto, no privilégio; penetração da esfera pública na
esfera privada e vice-versa; atribuição de poder baseada no
patrimonialismo; concentração do mercado, da propriedade e do poder; dependência externa – explicitam-se muito
claramente na produção e apropriação desigual do espaço
urbano dos anos 90. O modo arcaico de governar, concentrando os investimentos nas áreas valorizadas pelo mercado imobiliário e nas áreas de moradias de rendas mais
altas, é predominante.
Em resumo, constata-se, em acordo com Ribeiro (s/data),
que novos mecanismos de espoliação urbana estão surgindo nas
cidades, relacionados com o fato de a segregação e a exclusão
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habitacional produzirem espaços nos quais se verifica a acumulação de desvantagens sociais; são aglomerados urbanos de
segmentos sociais vivendo o processo de vulnerabilização social decorrente da precarização do emprego, do desemprego e
da perda da renda do trabalho, processo ao qual se somam os
efeitos do empobrecimento social, resultantes da desestruturação do universo familiar, do isolamento social, da condenação de
bairros em vias de guetificação. Neles, em razão desses processos, torna-se cada vez mais problemático o surgimento de ações
coletivas que possam compensar a perda da renda e o relativo
abandono pelo poder público; produz-se, assim, um círculo perverso de desposseção que transforma a marginalização social em
exclusão territorial; estudos sobre a chamada violência urbana
têm trazido também evidências da relação entre as taxas de incidência de homicídios e a precariedade urbana desses locais.
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Abstract: it intends to understand a kind of space which expresses the
vicissitudes, the way of life, the contradictions and symbols of the contemporary
society: the city. The geographic space is formed by a group of objects and
actions. The objects constitute the shapes and the actions the social practices.
It is understand that urban space produced based on the money, reducing to
fragments the city and creating places and taking the idea that the fragmented
spaces have internal common characteristics and strong social disparity
between themselves. It also should be emphasized the housing side which is
directly reached by this differentiation of places and customs.
Key words: city, income, segregation, housing
JULIANA BAZAN
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Anhembi Morumbi
(SP). Mestranda na Universidade Federal de Goiás. E-mail: [email protected]
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