ESCOLA E ESPORTE: CAMPOS PARA OCUPAR, RESISTIR E PRODUZIR* SÁVIO ASSIS DE OLIVEIRA* * RESUMO O texto apresenta uma breve abordagem sobre a escola e a aula como espaços possíveis de resistência à mera reprodução dos valores dominantes, podendo, também, configurarem-se como espaços de produção de cultura, estimulando a crítica e a criatividade, tendo o trabalho como mediador da relação professor-aluno e saber. Essa abordagem se desdobra no trato com o esporte, apresentando e discutindo algumas proposições e exemplos. PALAVRAS-CHAVE: Escola, aula, trabalho, esporte CONSIDERAÇÕES SOBRE A ESCOLA I * nicialmente, busco desenvolver uma reflexão em torno do caráter da escola no momento histórico atual e das possibilidades de intervenção O artigo é um recorte da dissertação “A reinvenção do esporte: possibilidades da prática pedagógica”, defendida junto ao Mestrado em Educação da UFPE. “Ocupar, resistir, produzir” é lema do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. ** Mestre em Educação pela UFPE. Diretor de Divulgação do Colégio Brasileiro de Ciências do Pensar a Prática 19-35, Jul./Jun. 1999-2000 19 Esporte – Gestão3:1999/2001. no seu interior. Aqui está presente um antigo questionamento a respeito de a escola servir tão-somente como instância reprodutora das desigualdades sociais, ou, também, como portadora de possibilidades de mudanças. Esta reflexão, além de contribuir para a discussão específica sobre o esporte, tendo em vista a necessidade de superação da sua apreensão como algo reificado, parece adequada para o momento, sobretudo porque, conforme denuncia Freitas (1995), há uma tendência crescente para considerar o reprodutivismo como algo superado, parecendo que a face reprodutora da escola deixa de existir ou que não tenha mais importância nos estudos. A “reprodução” não é uma invenção de Bourdieu e Passeron [...]. É uma realidade que está colocada para as sociedades estratificadas em classes e que necessita ser compreendida e superada na prática. (Freitas, 1995, p. 56) A escola não é uma ilha na sociedade. Não está totalmente determinada por ela, mas não está totalmente livre dela. Entender os limites existentes para a organização do trabalho pedagógico ajuda-nos a lutar contra eles; desconsiderá-los conduz à ingenuidade e ao romantismo. (Freitas, 1995, p. 99) Cortella (1998, p. 131-137) apresenta, sob a denominação de “apelidos circunstanciais”, três concepções sobre a relação entre a sociedade e a escola, que servem de baliza para definir o sentido do trabalho no interior da instituição escolar. O otimismo ingênuo atribui à escola uma função salvadora, capaz de alavancar a sociedade, ou seja, a escola tem uma autonomia absoluta na sua inserção social, é capaz de modificar a sociedade, mas não é modificada por ela, razão da ingenuidade dessa concepção. Segundo o autor, o otimismo dessa concepção reside na valorização da escola. A docência é entendida como uma missão, com ênfase no seu aspecto vocacional. Sua atividade estaria orientada pela neutralidade, pela ação politicamente desinteressada, como se isso fosse possível numa sociedade de desiguais, como se a pretensa neutralidade não significasse, na prática, o apoio aos mais fortes, aos que estão na frente. 20 Oliveira, S. A. – Escola e esporte: campos para ocupar, resistir e produzir O pessimismo ingênuo tem uma visão inversa sobre a função da escola. Ao invés da autonomia diante da sociedade, a escola é completamente subordinada a ela, ou seja, sofre a influência da sociedade, uma determinação absoluta, não sendo capaz de influenciá-la. A escola é mera reprodutora da desigualdade social. O papel do educador é o de adequação das pessoas ao modelo social. Para Cortella, essa concepção falha ao não reconhecer uma permeabilidade da escola aos conflitos sociais, mas oferece grande contribuição ao chamar a atenção para a não-neutralidade do processo educativo. O otimismo crítico procura superar tanto o otimismo desenfreado quanto o imobilismo fatal. Reconhece a natureza contraditória das instituições sociais e a possibilidade de mudanças. Dessa forma, a educação assume uma dupla função, podendo servir tanto à reprodução e conservação como também à inovação, funcionando como instrumento para mudanças. O autor sugere que a resistência das elites à universalização qualitativa da escola reside justamente nessa possibilidade de resistência e mudanças vislumbrada a partir das contradições sociais.1 No otimismo crítico, o educador tem um papel político-pedagógico e sua atividade nem é neutra, nem é absolutamente determinada, possuindo uma autonomia relativa. Cortella propõe a seguinte representação para essas três concepções: SOCIEDADE ESCOLA SOCIEDADE ESCOLA SOCIEDADE ESCOLA Ainda sobre o caráter/função da escola, encontra-se a análise de Pérez Gómez (1998). Para esse autor, o processo de socialização na escola tem como objetivos ou funções a preparação para a incorporação no mundo do trabalho (dimensão econômica) e a formação para a intervenção na vida pública (dimensão política).2 Pérez Gómez considera que a escola se encontra diante de demandas específicas e contraditórias. De um lado, a incorporação eficaz no mundo civil e, de outro, a incorporação subordinada e disciplinada Pensar a Prática 3: 19-35, Jul./Jun. 1999-2000 21 no mundo do trabalho assalariado. No entanto, mais adiante, o autor reconhece que essa contradição é apenas aparente e logo se dissolve, pois também na esfera política, no âmbito civil, o que se requer é apenas um arremedo de comportamento democrático, em que a participação se reduz a mecanismos formais que servem para legitimar os processos excludentes e as desigualdades (Pérez Gómez, 1998, p. 14-15, 20). Um trecho do trabalho de Pérez Gómez é bastante elucidativo sobre o processo de socialização como reprodução na escola. Dessa forma, aceitam-se as características de uma sociedade desigual e discriminatória, pois aparecem como o resultado natural e inevitável das diferenças individuais evidenciadas em capacidades e esforços. A ênfase no individualismo, promoção da autonomia individual, no respeito à liberdade de cada um para conseguir, mediante a concorrência com os demais, o máximo de suas possibilidades, justifica as desigualdades de resultados, de aquisições e, portanto, a divisão de trabalho e a configuração hierárquica das relações sociais. O caráter aberto da estrutura social para a mobilidade individual oculta a determinação social do desenvolvimento do sujeito como conseqüência das profundas diferenças de origem que se introjetam nas formas de conhecer, sentir, esperar e atuar dos indivíduos. Este processo vai minando progressivamente as possibilidades dos mais desfavorecidos social e economicamente, em particular num meio que estimula a competitividade, em detrimento da solidariedade, desde os primeiros momentos da aprendizagem escolar. (p. 16) Pérez Gómez discute a diferença entre instrução e educação, entendendo a segunda como um processo que ultrapassa a transmissão e a troca de conhecimentos, em que estão presentes também as interações que ocorrem na escola e na aula. Segundo ele, o conteúdo oficial do currículo serve para as avaliações, para os exames escolares, mas logo pode ser esquecido. Já a aprendizagem dos mecanismos, estratégias, normas e valores de interação social configura uma conduta que vai além da própria escola (p. 17). Viver na escola, sob o manto da igualdade de oportunidades e da ideologia da competitividade e meritocracia, experiências de diferenciação, discriminação e classificação, como conseqüência 22 Oliveira, S. A. – Escola e esporte: campos para ocupar, resistir e produzir do diferente grau de dificuldade que tem para cada grupo social o acesso à cultura acadêmica, é a forma mais eficaz de socializar as novas gerações na desigualdade. Deste modo, inclusive os mais desfavorecidos aceitarão e assumirão a legitimidade das diferenças sociais e econômicas e a mera vigência formal das exigências democráticas da esfera política, assim como a relevância e utilidade da ideologia do individualismo, a concorrência e a falta de solidariedade. (p. 21) Da mesma forma como descrita por Cortella, Pérez Gómez reconhece que a escola, como qualquer instituição social, é marcada por contradições e interesses em confronto e, nesse quadro, há espaços de autonomia (relativa) que podem ser utilizados para desequilibrar a tendência reprodutora do processo de socialização. A reprodução, não sendo um processo linear e mecânico, é marcada por profundas contradições e inevitáveis resistências que podem ser individuais e/ou grupais. Pelo que se pode verificar da leitura desses autores, há o reconhecimento da face reprodutora da escola mas há, também, o reconhecimento de um espaço para resistências e desequilíbrios. Há, portanto, uma recomendação clara: sejamos críticos, porém otimistas! Freitas (1995, p. 96), apoiando-se em Bourdieu e Passeron, adverte que “se não houver resistência, a escola traduz as desigualdades econômicas em educacionais e, depois, retraduz as desigualdades educacionais em desigualdades econômicas”. Mas, quais seriam os caminhos ou as alternativas para reforçar ou viabilizar as possibilidades de resistências e mudanças? Freitas (1995) prega o rompimento com a “aula” da escola capitalista, que se configura na verbalização sobre o mundo, ou seja, na distância em relação à prática social concreta. A organização do trabalho pedagógico da escola e da aula é desvinculada da prática, porque é desvinculada do trabalho material, sendo uma prática artificial, diferente do trabalho vivo. O autor não se satisfaz com a compreensão, embora considere no geral como correta, sobre a não-materialidade do trabalho docente. Para ele, reconhecer o caráter não material do trabalho não implica, necessariamente, reduzir-se a ele, como faz a aula da escola capitalista. O autor defende, como outros, que a prática social deve ser o ponto de partida e de chegada do processo educativo, mas propõe a Pensar a Prática 3: 19-35, Jul./Jun. 1999-2000 23 superação do modelo tradicional de articulação das relações entre professor, aluno e saber, em que o trabalho está substituído pela atividade do professor, ou melhor, pelo verbalismo do professor, pelo discurso sobre a prática. O mundo é transformado em matéria escolar sobre a qual o professor discursa. A finalidade da organização do trabalho pedagógico deve ser a produção do conhecimento por meio do trabalho com valor social e não do trabalho de faz-de-conta, artificial. Uma frase de Pura Lúcia O. Martins, citada por Freitas (1995, p. 55), é suficiente para consolidar a crítica e sugerir uma superação: “não se trata de falar sobre, mas de se vivenciar com”. A organização adequada supõe o trabalho como mediador da relação professor-aluno e saber, dando consistência à idéia do professor que ensina aprendendo e de alunos que aprendem ensinando. Segundo Wachowicz (1995, p. 42), não se trata portanto de um processo de transmissão, mas de apropriação. O confronto que se passa na sala de aula não se passa entre alguém que sabe um conteúdo (o professor) e alguém que não sabe (o aluno), mas entre estas pessoas e o próprio conteúdo, na busca de sua apropriação. Segundo Wachowicz, a forma didática é uma conseqüência dos objetivos. Esta afirmação é o desdobramento do que a autora chama de “conjunto de que se trata no processo de ensino”, ou seja, conteúdo, forma e objetivos. Para ele, os objetivos determinam a relação entre o conteúdo e a forma. No entanto, se eles não forem explicitados, tornandose “objetivos conscientizados”, a forma já existente é afirmada (Wachowicz, 1995, p. 93). Ter o trabalho como mediador da relação professor-aluno e saber significa buscar a união ensino-produção, buscar a superação das rupturas históricas entre trabalho manual e intelectual, entre concepção e execução, entre ciência e trabalho. É ter a prática social como ponto de partida e de chegada, objetivando uma compreensão integral do processo produtivo e uma reaproximação entre ciência e produção, no sentido da formação do homem produtor numa dimensão completa. Há uma citação de Veiga (apud Freitas, 1995, p. 50) que bem se adequa a esse ponto e, em particular, à Educação Física, entendida durante 24 Oliveira, S. A. – Escola e esporte: campos para ocupar, resistir e produzir muito tempo, e até hoje, como uma disciplina essencialmente prática. “É teórica sem ser mera contemplação, uma vez que é a teoria que guia a ação e é prática sem ser simples aplicação da teoria e que não se confunde com um mero exercício.” Pérez Gómez reclama uma nova forma de organização escolar e propõe o que ele denomina “eixos complementares de intervenção”. Um primeiro eixo ou objetivo diz respeito à superação do caráter reprodutor da escola, propondo o desenvolvimento radical da função compensatória das desigualdades de origem. Apesar de o termo compensatório apresentar problemas em outras áreas, parece que esse eixo responde ao intento de quebrar o ciclo a que Freitas se refere: as desigualdades econômicas geram desigualdades educacionais e as desigualdades educacionais geram as desigualdades econômicas. O autor defende a substituição da lógica da homogeneidade pela lógica da diversidade. Afirma que tratar os desiguais de forma igual é consagrar a desigualdade e a injustiça presentes desde a sua origem social. O tratamento uniforme representaria tão-somente a ratificação de um atraso imediato e de um fracasso anunciado a médio prazo. [...] a igualdade de oportunidades não é um objetivo ao alcance da escola. O desafio educativo da escola contemporânea é atenuar, em parte, os efeitos da desigualdade e preparar cada indivíduo para lutar e se defender, nas melhores condições possíveis, no cenário social. (Pérez Gómez, 1998, p. 24) O segundo objetivo é provocar e facilitar a reconstrução de conhecimentos, atitudes e formas de conduta que os alunos assimilam direta e acriticamente nas práticas sociais de sua vida anterior e paralela à escola. Para isso o autor anuncia dois movimentos básicos: · diagnosticar pré-concepções e interesses com que os alunos interpretam a realidade e agem; e · oferecer o conhecimento público como ferramenta para análise e reconstrução das pré-concepções, interesses e atitudes. O autor afirma que a reconstrução de conhecimentos e atitudes não se dá apenas com transmissão e intercâmbio de idéias. Ele argumenta em favor da vivência de relações sociais na aula e na escola, de experiências de aprendizagem, intercâmbio e atuação que justifiquem e requeiram esses novos modos de pensar e fazer. Pensar a Prática 3: 19-35, Jul./Jun. 1999-2000 25 [...] requer outra forma de organizar o espaço, o tempo, as atividades e as relações sociais na aula e na escola. É preciso transformar a vida da aula e da escola, de modo que se possam vivenciar práticas sociais e intercâmbios acadêmicos que induzam à solidariedade, à colaboração, à experimentação compartilhada, assim como a outro tipo de relações com o conhecimento e a cultura que estimulem a busca, a comparação, a crítica, a iniciativa e a criação. (Pérez Gómez, 1998, p. 26) Essa outra organização requer, como anunciam Wachowicz, Freitas e Pérez Gómez, uma reordenação dos objetivos da escola e da aula, que se desdobra ou se articula no trato com o conhecimento, incluindo a dimensão da avaliação. Tudo isso no terreno dos conflitos, das contradições e da autonomia relativa da e na escola. Um desafio prioritário é superar a alienação que se opera na produção de conhecimento, devolvendo-lhe sentido e significado de modo que, sem desconsiderar as exigências formais, extrapole-se o sentido valorativo determinado pelo sistema de ensino, pela escola e, em última instância, pelo próprio professor. ESPORTE DA ESCOLA X ESPORTE NA ESCOLA: RETOMANDO O DEBATE Em artigo publicado em 1996, Tarcísio Mauro Vago revive a discussão sobre o caráter da escola trazendo-a para a especificidade da Educação Física e do trato com o esporte. O texto, como o próprio título3 indica, estabelece um diálogo com algumas posições sustentadas por Valter Bracht e expressas em diferentes artigos reunidos no livro Educação Física e aprendizagem social. Vago questiona a formulação que contrapõe o esporte na escola ao esporte da escola de forma absoluta, em que a existência de um representa a ausência do outro. A idéia central defendida é a de que a escola pode, ao invés de reproduzir as práticas de esporte hegemônicas, produzir uma cultura escolar de esporte, estabelecendo uma relação de tensão permanente. Minha leitura é no sentido de que o texto de Bracht serve apenas de mote para a reflexão de Vago. As críticas às posições defendidas por Bracht são compreendidas e as formulações criticadas são até mesmo justificadas no próprio texto de Vago. Ainda assim, há alguns pontos que 26 Oliveira, S. A. – Escola e esporte: campos para ocupar, resistir e produzir merecem observações. Parece-me que a reflexão do autor é consistente e adequada, cabendo apenas uma rearrumação nos argumentos. O texto tomado como um todo não deixa dúvidas de que o autor reconhece em Bracht e nele próprio um posicionamento em torno de que a escola possui tanto uma face reprodutora, como uma face autônoma. O que eu chamo de necessidade de rearrumação diz respeito às categorias realidade e possibilidade, que se materializam no uso que o autor confere à expressão também. Depois de argumentar, baseado em Nóvoa e Chervel, que Bracht se fixa apenas na visão reprodutora da escola, sem ainda reconhecer o trabalho interno de produção de cultura, Vago (1996, p. 7) faz o seguinte comentário: O entendimento de Bracht não é improcedente: a escola pode, sim, de um lado, estar cumprindo também aquela tarefa por ele exposta. Mas, de outro lado, a escola pode não se reduzir a ela, como se fosse “correia de transmissão” de uma cultura produzida por outros “sistemas”, sem intervir nela. Qual é o problema? Segundo Cheptulin (1982), a realidade é o que realmente existe e a possibilidade, realidade potencial, é o que pode produzir-se quando as condições são propícias. Desse modo, questiono sobre qual é a face atual da escola e qual a face possível. A escola não pode também ser reprodutora. Ela é! Ela pode também, isto sim, ser espaço de resistência, de luta, de contra-hegemonia, de contracultura, o que depende de uma intervenção consciente e articulada. O próprio Vago afirma, em dois momentos distintos, que as apropriações e práticas não autorizadas de esporte por alunos e professores se constituem em temas de investigação que precisam ser mais explorados. Esta afirmação indica que a localização adequada da escola, como produtora de cultura (contracultura), é adiante do também e não antes. Para seguir adiante, devo fazer um registro sobre o questionamento à proposição do esporte da escola em contraposição ao esporte na escola. Tal registro é importante porque eu mesmo tenho questionado a atualidade e a abrangência dessa contraposição. No meu entendimento, faz-se necessário aqui um acerto de contas, em dois sentidos. O primeiro é reconhecer que é próprio da produção de um conhecimento que objetiva servir de instrumento de intervenção o uso tático de termos para ilustrar contraposições, sugerindo inversão de prioridades, mudança de eixo, Pensar a Prática 3: 19-35, Jul./Jun. 1999-2000 27 enfim, sugerindo desequilíbrios. Parece-me o caso. Sendo assim, a contraposição em tela tem características semelhantes a outras do tipo qualidade x quantidade, lúdico x competitivo, entre outros exemplos. O segundo sentido diz respeito à idéia de produção de uma cultura escolar. Argumentando sobre a impossibilidade de a escola ficar alheia ao esporte que acontece fora dela, ou seja, da impossibilidade de desconsiderar o esporte na escola, Vago afirma: [...] por suas relações com a totalidade social, da qual é uma manifestação, a escola não poderia ficar alheia a todo esse processo histórico de consolidação do esporte como prática cultural da sociedade moderna. Ele penetra por seus portões, é praticado em seus espaços e em seus tempos, consolida-se como conteúdo de ensino da Educação Física (o espaço e o tempo oficiais para o seu ensino). É eleito (ou imposto?) como algo digno de ser ensinado. Em suma, é por esse processo histórico que se tem o “esporte na escola”: o esporte entrou no “campo” da escola. (p. 10) O acerto de contas no sentido da produção de uma cultura escolar reside, justamente, no fato de que o esporte penetra pelos portões da escola, ocupa seus espaços e seus tempos e sai da escola tal como entrou, sem modificações, sem alterações, tendo apenas produzido (formado) os atletas e os consumidores do espetáculo esportivo. Ou será que essa situação não é real, é só invenção dos “teóricos”, do pessoal “do contra”, dos “pouco práticos”? Quero dizer com isso que, nas “condições normais” do momento, o esporte entra e sai da escola do mesmo jeito, o que significa que a cultura escolar do esporte, ou a cultura produzida na escola, não estabelece uma tensão de forma inexorável, estando também no plano das possibilidades. Diferentemente do exposto nos textos de Bracht e de Vago, analiso que o esporte da escola pode ser exatamente igual ao esporte na escola. A possibilidade de serem diferentes está inscrita na esfera da ação do professor, na prática pedagógica, que, por sua vez, está instruída pelo projeto político-pedagógico da escola. Vago sugere a problematização do esporte como fenômeno sociocultural, a partir do confronto dos valores e códigos que o fazem excludente e seletivo, com valores e códigos “que privilegiam a participação, o respeito à corporeidade, o coletivo e o lúdico”. Dessa forma, acredita o autor, a escola “produz uma outra forma de apropriação 28 Oliveira, S. A. – Escola e esporte: campos para ocupar, resistir e produzir do esporte, produz um outro conhecimento acerca do esporte” (p. 12). Em outro trecho ele afirma: Não sendo mesmo possível à escola isolar-se da sociedade, já que a escola é, ela mesma, uma instituição da sociedade, uma de suas tarefas, então, é a de debater o esporte, de criticá-lo, de produzi-lo... e de praticá-lo! (p. 13) Em suma, dessa forma é que a escola pode provocar a tensão. E o que significa isso, senão mais uma tentativa de reaproximar ensino e produção? Significa a referência no trabalho, na atividade humana, na prática social. Significa dizer que a escola não é lugar de repetir o trabalho, ou melhor, simular o trabalho, mas o lugar de realizar trabalho e isso também se dá no esporte. Um dado importante proveniente do entendimento da escola como produtora de cultura é que ele responde a uma preocupação recorrente, qual seja a de que as mudanças que têm lugar na escola não devem se encerrar nela mesma. Embora determinada socialmente, a escola pode transformar-se e gerar transformações, ou seja, a escola não é uma ilha, um gueto onde se pode fazer um esporte diferente, mas um lugar que, fazendo o esporte de forma diferente, pode motivar diferenças em outros âmbitos, numa relação em mão dupla com a sociedade. [...] o que de pior poderia acontecer à idéia de se construir um esporte como prática cultural portadora de valores que privilegiam, por exemplo, o coletivo e o lúdico, é o enclausuramento dessa idéia na escola, como se ela fosse possível e desejada somente em seu interior. Aprisionar essa idéia na escola é antecipar a sua morte. (Vago, 1996, p. 12) Ora se se quer o confronto – a tensão permanente – com os códigos e valores agregados ao esporte pela forma capitalista de organização social para construirmos outros valores a partir da escola (a solidariedade esportiva, a participação, o respeito à diferença, o lúdico, por exemplo), é fundamental que o façamos para toda a sociedade. (Vago, 1996, p. 13) A partir dessa preocupação, o autor retoma, com novo fôlego – e, a meu ver, adequadamente –, a crítica à idéia de um esporte da escola Pensar a Prática 3: 19-35, Jul./Jun. 1999-2000 29 descolado do esporte de fora da escola, que só possa ser praticado no interior da escola. Para Vago, [...] isso seria esvaziar de sentido o ensino do esporte como um dos temas da Educação Física ou, então, até mesmo reforçar o seu ensino nos moldes atuais, baseado predominantemente na exclusão de muitos e na performance de poucos” (p. 13). Um desafio que deve orientar novos estudos e experiências é justamente identificar diferentes formas de modificação do esporte e, noutro sentido, formas de esse esporte modificado “retornar” à sociedade de modo que, também nesse cenário mais amplo, possa provocar tensões. DISCUTINDO PROPOSIÇÕES E PROPONDO DISCUSSÕES Em sua proposta de “Transformação didático-pedagógica do esporte”, Kunz (1994) apresenta os seguintes passos ou procedimentos: a) identificar o significado central do se-movimentar de cada modalidade, o qual que deve ser preservado; b) compensar as insuficientes condições físicas e técnicas dos alunos através de arranjos materiais; e c) transformar o sentido individual e coletivo das atividades através da reflexão. Kunz apresenta significativos exemplos, abordando o atletismo, cuja principal característica é a substituição do confronto e da competição entre os alunos – forma tradicional de tratar o atletismo – por ações coletivas e lúdicas. Mesmo quando o elemento comparação/superação está presente, ele se dá em relação às possibilidades de cada aluno. Desses exemplos, é fundamental extrair princípios e procedimentos que possam ser contemplados em novas experiências. Aqui, discuto dois pontos que me chamam a atenção. O primeiro diz respeito à possibilidade de extrapolação para outras modalidades esportivas. O processo de filtragem do significado central e a questão dos arranjos materiais estão bastante claros, dependendo mesmo de estudos e experimentações para viabilizá-los em relação a outros esportes. A dificuldade maior está justamente na alteração do sentido das atividades, sobretudo quando se trata da superação do confronto e da competição. Se essa alteração é, de certo modo, tranqüila em relação ao atletismo, não se vislumbra da mesma forma para outros esportes, especialmente os jogos coletivos com bola. Mas, por que essa diferença? 30 Oliveira, S. A. – Escola e esporte: campos para ocupar, resistir e produzir Na forma tradicional do atletismo, nas provas propriamente ditas, independentemente de a disputa envolver escolas, clubes ou outras representações, há dois elementos de comparação que mobilizam a competição. Explicando de outra forma: a competição se estabelece em dois níveis comparativos, um local-visual e outro genérico-temporal. No primeiro, a comparação se dá entre os que comparecem à prova, podendose verificar o resultado e estabelecer uma classificação imediata até mesmo pela simples visualização. O segundo nível comparativo ultrapassa o local da prática e se dá através do confronto entre marcas obtidas em diferentes locais e períodos, estabelecendo-se também uma classificação. Nas “provas” de atletismo na escola, sobrevive apenas o nível comparativo local-visual. Mas, busca-se uma classificação, uma definição do sucesso alcançado por meio da comparação entre os alunos. Já numa “prova” transformada, como o autor procura mostrar, há uma mudança de meta, de desafio, ou seja, busca-se a realização e a superação das próprias possibilidades que são, reconhecidamente, diferenciadas de um aluno para outro. No jogo coletivo com bola, seja ele o handebol, o voleibol, o basquete ou o futebol, no próprio significado central do jogo está a busca de um objetivo que, uma vez atingido por um dos grupos, configura imediatamente uma desvantagem para o outro. Esta desvantagem pode ser superada, ou não, até o final do jogo e a proclamação final do resultado, seja pelo esgotamento do tempo, seja pelo alcance da quantidade de pontos, com ambas as situações previamente definidas. Ou seja, no significado central dessas atividades esportivas está definida uma incompatibilidade de objetivos para as equipes participantes. Aqui reside a maior dificuldade de alteração do sentido do jogo. Isso não quer dizer que as alterações de sentido não sejam possíveis. Estou apenas alertando que os exemplos mostrados trabalhados por Kunz, embora extremamente válidos, encerram menores contradições e resistências do que pode ser encontrado em outras modalidades. Pelas experiências que conheço posso afirmar que nesses casos aumenta sobremaneira o papel do elemento reflexivo e merecem cuidados especiais os mecanismos utilizados para a formação dos grupos para jogar, em que deve predominar o equilíbrio entre as equipes; internamente a cada uma delas, deve ser fomentada a contribuição dos mais experientes e habilidosos para a aprendizagem Pensar a Prática 3: 19-35, Jul./Jun. 1999-2000 31 dos menos habilidosos e menos experientes, ao invés de apenas fazerem a “cobertura” para evitar e/ou corrigir possíveis erros. A segunda questão diz respeito à relação com a técnica e, por analogia, com as regras e as táticas dos diferentes esportes. O que quero destacar nesse ponto é que a correta prioridade ao significado e à alteração de sentido individual e coletivo, numa perspectiva crítica de ensino dos esportes, não pode deixar de fora a abordagem da técnica, como também das regras e das táticas. Pelo contrário, a técnica e a tática e, com algumas diferenças, também as regras precisam igualmente ser preservadas em seus significados centrais e alteradas em seus sentidos individual e coletivo. Uma coisa é certa: esses conhecimentos não podem ser sonegados aos alunos. Mas, para mudar o tratamento desses conhecimentos, é preciso identificar como ele vem se dando. Em relação à técnica, o comum é tratá-la como movimento previamente estabelecido e padronizado, que é geralmente praticado (treinado) fora do jogo e aplicado no jogo de forma condicionada e mecânica. Mas é possível uma outra abordagem. A técnica pode ser tratada na perspectiva da resolução de problemas colocados para os alunos, incentivando a descoberta e a pesquisa, no sentido de buscar a melhor maneira de fazer algo. Pode, ainda, ser tratada como elemento do jogo e não como algo de fora para dentro, razão pela qual precisa ser aprendida, descoberta e praticada no próprio jogo ou em situações que, mesmo parciais, preservem o significado do jogo e a própria condição de jogo, fugindo à monotonia de exercícios fragmentados e maçantes. Mas esse processo também deve garantir ao aluno o conhecimento e a reflexão a respeito do desenvolvimento das técnicas em função do esporte de alto rendimento ou espetáculo. Do contrário, a abordagem crítica fica a meio caminho, quase crítica ou semicrítica. O conhecimento tático também precisa ser libertado da mera aplicação de esquemas prévios. Como está mais relacionada à dinâmica do jogo, a tática pode não só ser trabalhada na perspectiva da resolução de problemas concretos como se configurar em processo desafiador de entendimento e análise de como se desenvolve um jogo, das razões de ter se configurado um determinado resultado e não outro. Enfim, um conhecimento que, de fato, extrapola o saber-fazer. Também em relação à tática, devem ser garantidos o conhecimento e a reflexão sobre os 32 Oliveira, S. A. – Escola e esporte: campos para ocupar, resistir e produzir esquemas utilizados nas diferentes modalidades e por diferentes “escolas esportivas”. Da mesma forma deve ser encarado o trato com as regras. Deve ser desmistificada a idéia de que são as regras que definem o jogo por si só. O significado central do jogo não é explicado pelas regras, embora esteja contido nelas. O significado é, ao mesmo tempo, algo mais simples e mais amplo. As regras, isto sim, dirigem, regulam e modelam o andamento do jogo. E quando se quer modificar o andamento do jogo, a sua direção, regulação e modelagem, alteram-se as regras. Não esquecendo, porém, que, mesmo trabalhando com regras alteradas, as regras oficiais das modalidades também precisam ser conhecidas pelos alunos, podendo, inclusive, ser apresentadas e experimentadas para que, daí, sejam geradas as mudanças.4 Um aprendizado importante nesse aspecto é quanto ao fato de que as regras mais respeitadas são justamente as que são (re)elaboradas e definidas pelos próprios participantes. Essas três dimensões (da técnica, da tática e da regra) devem ser tratadas articuladamente, porque é dessa forma que elas existem na realidade do jogo. Assim, deve-se buscar a compreensão de que, em cada uma dessas dimensões, para cada definição tomada é exigida uma outra que a complementa e assim por diante (uma tática puxa a outra), ocorrendo o mesmo processo entre as diferentes dimensões, ou seja, uma técnica permite uma tática que, por sua vez, é facilitada ou dificultada por uma regra etc. Em suma, um trato diferenciado e crítico do esporte não deve afastar os alunos do esporte criticado, mas dirigir esse contato através de uma “transformação” que garanta a preservação do significado, a vivência de sucesso nas atividades e a alteração de sentidos através da reflexão pedagógica. Tudo isso dentro de um programa que dê conta do percurso do aluno no processo de apreensão do conhecimento, ou seja, de um currículo para a Educação Física. ABSTRACT The text presents a brief boarding about the school and the class as possible spaces of resistance to the mere reproduction of the dominant values. The school and the class can, also, configure as spaces of production of culture, stimulating the criticism and creativity, having the work as mediator of the relationship teacher – student and knowledge. This approach unfolds in the treatment with the sport, presenting and discussing some propositions and examples. KEY WORDS: School, work, sports Pensar a Prática 3: 19-35, Jul./Jun. 1999-2000 33 NOTAS 1. Pode ser acrescentado aqui o fato de que a elite, quando se dispõe a defender a qualidade na educação, sempre a reduz a uma qualidade técnica e formal. 2. Essas dimensões também são apontadas por Mészáros, citado por Freitas (1995, p. 95). 3. O “esporte na escola” e o “esporte da escola”: da negação radical para uma relação de tensão permanente – Um diálogo com Valter Bracht. Movimento, Porto Alegre, a. III, n. 5, p. 4-17, 2. sem. 1996. 4. Uma estratégia a ser melhor examinada na Educação Física é a de “transgressão intencional”, utilizada em trabalhos na área da linguagem. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSIS DE OLIVEIRA, Sávio. A reinvenção do esporte: possibilidades da prática pedagógica. Recife, 1999. Dissertação (Mestrado em Educação). Centro de Educação – UFPE. BRACHT, Valter. Educação física e aprendizagem social. Porto Alegre: Magister, 1992. CHEPTULIN, Alexandre. A dialética materialista: categorias e leis da dialética. São Paulo: Alfa-Omega, 1982. CORTELLA, Mario Sergio. A escola e o conhecimento: fundamentos epistemológicos e políticos. São Paulo: Cortez, 1998. FREITAS, Luis Carlos de. Crítica da organização do trabalho pedagógico e da didática. Campinas: Papirus, 1995. KUNZ, Elenor. Transformação didático-pedagógica do esporte. Ijuí: Unijuí, 1994. PÉREZ GÓMEZ, A. I. As funções sociais da escola: da reprodução à reconstrução crítica do conhecimento e da experiência. In: GIMENO SACRISTÁN, J.; PÉREZ GÓMEZ, A. I. Compreender e transformar o ensino. 4. ed. Porto Alegre: ArtMed, 1998. p. 13-26. VAGO, Tarcísio Mauro. O “esporte na escola” e o “esporte da escola”: da negação radical para uma relação de tensão permanente – Um diálogo com Valter Bracht. Movimento, Porto Alegre, a. III, n. 5, p. 4-17, 2. sem. 1996. 34 Oliveira, S. A. – Escola e esporte: campos para ocupar, resistir e produzir WACHOWICZ, Lilian Anna. O método dialético na didática. 3. ed. Campinas: Papirus, 1995. Pensar a Prática 3: 19-35, Jul./Jun. 1999-2000 35