FEMINISMOS E CRIMINOLOGIAS Do diálogo à construção de uma ciência criminal interseccional Ana Carolina de Oliveira Marsicano Discente do Mestrado em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora, e-mail: [email protected] Resumo: O presente artigo tem por objetivo, através da criminologia e do(s) pensamento(s) feminista(s), reivindicar uma forma de olhar a relação entre a mulher e o crime para além da perspectiva da mulher enquanto um sujeito de direito abstrato, ressaltando as especificidades dificuldades e vulnerabilidades enfrentadas por essa mediante o sistema penal. Questiona-se assim, a urgente necessidade de incorporar a perspectiva e o debate referente a gênero dentro do campo teórico-prático Criminológico, priorizando a perspectiva interseccional como norteador. Palavras-Chave: Mulher, Crime, Gênero, perspectiva interseccional. INTRODUÇÃO A discussão de gênero ganhou um enfoque especial a partir da década de 70 dentro dos debates teóricos e políticos, mediante a insurgência da segunda onda do movimento feminista, tornando-se, essencial, para a compreensão dos papeis, relações e identidades inerentes a um contexto de modernidade. A dissertação de onde derivou esse presente artigo, pretende tratar dentro da perspectiva da evolução do pensamento criminológico e dos movimentos de conquista social das mulheres, como a mulher foi e continua sendo tratada e retratada pelos estudos relacionados com criminalidade e políticas de controle social. O saber criminológico durante grande parte da evolução (evolução em uma perspectiva de mutação, fluxo) do pensamento cientifico, foi dominado pelo androcentrismo, centrando os estudos na figura do homem. Porém, diante da perspectiva da Criminologia Crítica, ressaltou-se a necessidade de tratar a mulher, tanto enquanto sujeito diretamente relacionado à Criminologia e ao Sistema de Justiça Criminal, como enquanto objeto criminológico do crime (para além da ótica da vitimologia). Dessa forma, procura-se, demarcar, a partir do vasto horizonte do pensamento social e da Criminologia Crítica, as diversas discussões acerca do tema, destacando a figura da mulher enquanto um ator social, autônomo, e passível das próprias escolhas frente a uma multiplicidade de fatores históricos, imaginários, e sócio - culturais. Nos países da America Latina, tanto a questão da construção de um amparo legislativo aos Direitos das Mulheres, quando da construção de um espaço público e privado em que esses Direitos sejam respeitados, criou um ambiente consensual quanto à necessidade de consolidação de um movimento interseccional de efetivo impacto no âmbito das políticas sociais, e da elaboração de uma agenda social consonante com as diversas demandas de gênero, raça e classe. A teoria da interseccionalidade surge na dissertação enquanto um norteador para compreender com maior amplitude como a mulher foi até o presente momento e como deve ser a partir de então retrada nos estudos pertinentes a Criminologia, tendo em vista que os diversos grupos sociais que se formam mediante as relações, não são heterogêneos e nem unificados, e que uma só pessoa pode sofrer múltiplas formas de discriminação. DESENVOLVIMENTO Desde o século XIX, os estudos relacionados ao crime e a administração do sistema penal e de justiça foram racionalizados e centralizados na figura do homem, referenciando categorias totalizantes e distanciando-se de uma produção que englobe a epistemologia da mulher. Através de critérios matemáticos e gráficos utilizados para explicar os fenômenos sociais e criminais, revelou-se um menor e diferente contingente de mulheres que cometem crimes em comparado com os homens. Esse fato foi explicado tendo por base uma suposta singularidade e raridade desse comportamento criminal por parte das mulheres, onde rompia-se com categorias socialmente construídas, alicerçadas em relações generalizadas que instituíam o que é ser mulher. Dessa forma, a explicação para a criminalidade feminina, tradicionalmente, percorreu por argumentos individualizados, respaldados essencialmente em patologias decorrentes de especificidades biológicas e psicológicas do sexo feminino. As teorias sociológicas que muito tem influenciado o pensamento criminológico negligenciaram um espaço de destaque em seus estudos ao tema da criminalidade feminina. Porém, apesar da negligencia da sociologia quanto aos estudos sobre a relação entre a mulher e o crime, ressalto Emile Durkheim, que contribuiu fundamentalmente para a compreensão do crime e para a produção dessa “virada sociológica”, no sentido de ter provocado uma importante ruptura com o pensamento criminológico positivista. A primeira grande contribuição da analise durkheimiana diz respeito à afirmação de ser o crime um fato social normal e necessário para toda sociedade, e não patológico como afirmavam os positivistas; a segundo contribuição consistiu em deslocar o objeto de análise, que anteriormente era o homem delinquente, e suas possibilidades patológicas ou não de vir a cometer um crime, para uma dimensão mais macrossociológica, ou seja, passando a investigar o fenômeno crime sob a lente dos corpos sociais e das relações culturais, trazendo a consciência coletiva dos agentes que compõem a coletividade como o fator que irá estipular o que é considerado como um crime, através de representações coletivas da sociedade onde se definem o que é permitido, e o que não é; e a terceiro contribuição foi quanto à afirmação de ser o criminoso um agente regulador da vida social, mantendo coesos os laços sociais. Apesar de o crime ser um ato plurissignificativo que se altera em diferentes períodos e indivíduos de forma independente das leis e dos laços sociais de solidariedade, os diversos significantes do crime foram e ainda tendem a ser desconsideradas, existindo somente enquanto uma verdade geral. Durkheim, por intermédio do discurso da influência do âmbito familiar e da socialização diferenciada entre homens e mulheres, apontou para o fato de que as mulheres são educadas voltadas para as atividades domésticas, para cuidar do marido e dos filhos, o que contribuiu para a criação e manutenção de relações sociais generalizadas, e também para o afastamento das análises sobre o crime do século XIX do contexto social das mulheres. Porém, o ápice da marginalização da mulher dentro do pensamento criminológico incorreu no surgimento do entendimento da existência de uma criminalidade tipicamente feminina, onde se compreendia que as mulheres estavam mais restritas, segundo Carol Smart , nas áreas de ações mais arriscadas, e de pequenas ofensas. De acordo com Heidensohn, mulheres cometem crimes de menor gravidade e de forma menos profissional, ou seja, teriam carreiras criminosas mais curtas, sendo assim responsáveis por uma parcela menor de crimes que chegam a ser relatados às agencias de controle. Ou seja, a crença em um tipo especifico de crime cometido aliado ao pequeno volume de mulheres que transgridem em comparado aos homens, influenciaram diretamente no desinteresse da criminologia sobre o assunto e a negligencia das mulheres enquanto sujeito passiveis de cometerem crimes violentos. Quando não ocorre uma invisibilidade no que concerne a criminalidade feminina, essa é referida, como ressaltam os autores Soares e Ilgenfritz, mediante a utilização de “títulos acessórios, em curtos capítulos subsidiários, de obras que privilegiam sempre o criminoso masculino”. Porém, confrontando o dado de se tratar de uma realidade menos relevante por representar um contingente menor, em dados estatísticos, em comparação aos homens, considero essencial que compreendamos a problemática da condição da mulher na estrutura de violência, a partir das representações sobre essas mulheres e os crimes cometidos, a fim de ir além das representações criadas pelo âmbito jurídico que muita das vezes se porta enquanto julgador de papeis sexuais. Portanto, apesar da pouca visibilidade dada ao tema, não é a importância social e política do objeto que faz dele um objeto de cunho sociológico com afirma Bourdieu, sendo esses importantes objetos de análise, pois o que conta na realidade, é a construção do objeto, e a eficácia de um método de pensar. A despeito da quase exclusividade de estudos referentes a crimes cometidos por homens, essa questão ainda se agrava quando tratamos de modalidades violentas de crimes cometidos por mulheres. Apesar de alguns crimes estarem ganhando um enfoque diferente do enfoque biopsicológico, ainda nos abstemos de argumentos que enfatizem as condições sociais e as trajetórias de vida dessas agentes. Não só as correntes criminológicas ditas “tradicionais”, mas também as criticas, muitas vezes incorrem no erro de desconsiderar a premissa da liberdade de escolha e do livre arbítrio ao tratar de mulheres que cometeram crime. A escassez de produção de estudos criminológicos na America Latina acerca na delinquência feminina é evidenciada por Sánchez, ao afirmar que as investigações criminológicas sobre a mulher são por vezes excessivamente particularizadas e inaplicáveis à população desviante em geral. Muitos dos estudos produzidos na America Latina ainda utilizam de uma perspectiva masculina da criminalidade, ou seja, empregando o gênero masculino como uma representação totalizante do delinquente e do crime, produzindo supostas verdades universais. Portanto, esses estudos produzidos na America Latina produziram uma espécie de “sobre generalização”, prejudicando a objetividade das analises, aplicando as mulheres valores no que concerne a conduta, necessidade e interesse que são inerentes aos homens. Tendo em vista esse déficit, verifico a necessidade de um redimensionamento das pesquisas criminológicas para o sentido das experiências dessas mulheres, já que “(...) a criminologia não pode calar as “vozes emudecidas” (Benjamin) quando pretende escutá-las, ou seja, quando faz dessa escuta sua profissão de fé e o argumento de sua legitimidade”. Para além da representação da mulher como vitima, o retrato que se busca aqui é da tensão existente entre essas mulheres e a sociedade em que vivem e integram, conferindo protagonismo às mulheres, e expondo que o crime pode representar a busca de significação e autoafirmação diante de condições adversas. A identidade das infratoras, como observa Howard Becker, não se dá a partir do momento em que o ato criminoso é cometido, sendo o comportamento desviante realizado através do modelo sequencial, em que o estudo de cada etapa no processo de formação dessas identidades contribui para compreender os processos resultantes. A carreira desviante não é criada somente pelo cometimento de um ato criminoso, englobando outros elementos como a rotulação, ou seja, a forma como essa agente é vista pela sociedade. O conceito de carreira desviante aqui neste trabalho será utilizado no sentido de compreender o processo de interação através do qual essas mulheres são vistas e se veem como criminosas. Durante toda a dissertação, conceitos como sexo, papel social, poder, discurso, identidade, etc., serão enunciados e delimitados, dentro da construção de um aporte teórico que oriente a abordagem de categorias como dominação masculina, categorias de gênero, arranjos sociais excludentes, e relações de poder entre homens e mulheres dentro da perspectiva dessas mulheres que transgrediram, rompendo com o papel social de mulheres submissas e frágeis. A escolha por trabalhar com a categoria de gênero teve como finalidade a ampliação da noção de experiência, já que essa categoria, como muito bem observa Joan Scott, possibilita uma análise da organização social da relação entre os sexos, para fins de buscar respostas de como o gênero opera nas relações sociais e históricas. Como referencia a historiadora feminista norte-americana pós-estruturalista, gênero é um elemento constitutivo nas relações sociais que nos permite perceber as diferenças não só físicas entre os sexos, mas também as diferenças socialmente e culturalmente constituídas que acabam sendo admitidas naturalmente. Enfatizo que a proposta aqui é de promover uma análise interseccional15 acerca da criminalidade feminina, envolvendo além de gênero enquanto marcador social, elementos como cor e classe, já que esses são elementos indissociáveis na construção da posição social e das identidades dessas mulheres. A teoria da interseccionalidade permitira então, que essas mulheres sejam vistas dentro das múltiplas pertenças categoriais, tendo em vista o entendimento de que “não é possível estudar e intervir separadamente sobre pessoas que sofrem duplas e triplas experiências de discriminação assentes numa experiência de opressão marcada pelo gênero, classe e raça.”. O crime nesse presente trabalho será compreendido como criação, ato cheio de significados e sentidos, como uma possível busca pelo rompimento com a condição feminina de “ser doméstico”, como uma linguagem que busca autoafirmação, que busca informar uma condição de aprisionamento, de sofrimento, de ausência de reconhecimento social, onde “(...) muitas mulheres encontram na violência uma “solução”, deixando de ser vitimas e afirmando-se como sujeitos.”. As mulheres entrevistas para esse trabalho serão encaradas, portanto, não como objetos de intervenção, mas sim como sujeitos de diálogos, com uma racionalidade instrumental que modela suas práticas sociais e punitivas, e com uma narrativa capaz de fornecer elementos acerca do contexto econômico, histórico, social e cultural. Assim, como afirma Raquel Soihet, através da busca por essas histórias Acentuamos a relevância da oportunidade de apresentar uma face da mulher, via de regra oculta, em termos de reação a uma violência que lhe é imposta, além de muitas vezes esta tomar a iniciativa de agir violentamente. Não esqueçamos que, tradicionalmente as mulheres são apresentadas como passivas dóceis, frágeis, submissas... Importa, pois, recuperar a história das mulheres dessas camadas, desmistificando estereótipos, e revelando novas dimensões no comportamento das mesmas. (SOIHET, 1989, pag. 84). Ressalto a importância para esse trabalho dos Estudos Feministas e da Criminologia Feminista, a fim de conferir manancial para analisar as trajetórias de vida dessas mulheres, reconhecendo seus papeis em todos os processos e evitando incorrer no erro de restringir crime e liberdade como concepções opostas, mas sim questionando a tensão produzida entre elas. À analise será em feita em duas etapas: a primeira referente a um recorte macro, analisando as estruturas de punição e os discursos legitimantes proferidos por “porta-vozes autorizados”, buscando compreender o que as diferentes formas de punição refletem sobre as estruturas que sustentam determinada sociedade em dado momento histórico, e o lugar que ocupam as mulheres no cenário de violência; e a segunda referente a um recorte micro, baseado em entrevistas realizadas individualmente, focando a história de vida de cada uma das entrevistadas, a partir da compreensão de que se trata de indivíduos que podem interpretar suas ações. Ademais a necessidade de debatermos a relação entre a mulher e o crime sob uma ótica emancipada, ou seja, desvencilhada de paradigmas antropocêntricos, precisamos analisar as transformações nos crimes femininos em consonância com a estrutura social, política e econômica ao qual estamos imersos, analisando o papel social das mulheres na criminalidade conferindo protagonismo social a essas agentes. Necessário se faz, portanto, fazermos uma breve abordagem das correntes criminológicas que versão sobre o crime e como a agencia e o comportamento criminoso ou desviante da mulher é ou deixa de ser retratado. Portanto, o primeiro capítulo do presente trabalho irá abordar os paradigmas criminológicos clássico, positivista e crítico, até alcançar a relação entre criminologia critica e estudos feministas. Já no segundo capítulo, serão abordados os estudos feministas e o surgimento de uma Criminologia Feminista. No terceiro capítulo serão apontadas algumas teorias sobre a criminalidade feminina, para no quarto capítulo tratar especificamente sobre a relação entre mulheres e o cometimento de assassinatos. E por fim, serão tratadas no quinto capitulo as entrevistas com as mulheres encarceradas por crime de assassinato, e subsequente, no capitulo seis, os resultados e as conclusões dessas entrevistas. CONCLUSÃO Os estudos elaborados pelos criminologistas no século XIX consolidaram as representações femininas ou do imaginário feminino que irá influenciar no imaginário da mulher que transgride, ou seja, a mulher sensível, frágil, desconsiderando os elementos sociais que envolvem a vida dessas mulheres. Dessa forma, trabalha-se com um conceito de “criminalidade feminina”, generalizando uma tipificação do crime para as mulheres, sem atentar para as variantes inerentes a esses crimes e o contexto social e cultural no qual são cometidos. A leitura dos criminologistas sobre o crime, e até mesmo alguns estudos mais recentes que abordam a relação da mulher e o crime, se fundam na explicação do médico e criminalista Cesare Lombroso, para quem a mulher possui tendência ao homicídio passional, movida pelo ciúme e pela vingança. Ao longo de uma melhor análise das perspectivas analíticas das escolas criminológicas, percebe-se que a ausência de visibilidade da mulher como um agente passível de cometer ou arquitetar um crime provém de toda uma construção discursiva, reservando para essa mulher no máximo a figura de instigadoras ou cúmplices, devido a sua condição de sensibilidade, debilidade física e emocional. Dessa forma, só lhe são atribuídos os crimes relacionados aos atributos de ordem biológica que influenciam uma ação delituosa típica na mulher. Historicamente, a mulher foi condicionada ao espaço privado, submetida á condição de não pertença ao espaço público, considerado esse como o lócus do homem, lugar da política, do discurso e do reconhecimento social, onde os indivíduos podem ouvir e ser ouvidos, questionar, deliberar, e participar ativamente na construção da sociedade. Ressalto a discussão política em torno da questão da elaboração ideológica do que se diz por “natureza feminina”, baseada em uma perspectiva essencialista do sexo – que além de compreender “o gênero como uma propriedade estável, [considera-o] como um traço que descreve as personalidades, os processos cognitivos, o julgamento moral etc” de maneira que o gênero é concebido “em termos de atributos fundamentais, (...) internos, persistentes (...) e, geralmente, separados das experiências quotidianas de interação com os contextos sociopolíticos”, ou seja – da mulher sensível, dócil, frágil, submissa, doméstica, destinada a ocupar exclusivamente o espaço privado e exercer a função de mãe e dona do lar. Essa perspectiva essencialista da mulher reforça o condicionamento de ordem histórica e de ordem teórica aos quais as mulheres foram/são submetidas, perpassando pela concepção da ocupação do espaço público-privado, até alcançar o imaginário que baseia os discursos utilizados nas sentenças penais, onde as representações jurídicas sobre essas mulheres e seus crimes são construídos dentro de um sistema que pretende muito mais do que julgador do fato delituoso, mas dos papeis sexuais. Neste sentido, é o pensamento da Criminologista Vera Regina Pereira de Andrade, que em um Seminário sobre Criminologia e Feminismo afirmou que (...) o sistema penal duplica a vitimação feminina porque as mulheres são submetidas a julgamento e divididas. O sistema penal não julga igualitariamente pessoas, ele seleciona diferencialmente autores e vítimas, de acordo com sua reputação pessoal. No caso das mulheres, de acordo com sua reputação sexual, estabelecendo uma grande linha divisória entre as mulheres consideradas "honestas" (do ponto de vista da moral sexual dominante), que podem ser consideradas vítimas pelo sistema, e as mulheres "desonestas" (das quais a prostituta é o modelo radicalizado), que o sistema abandona na medida em que não se adéquam aos padrões de moralidade sexual impostas pelo patriarcalismo à mulher. Mulheres vivem um cotidiano hibrido, envolto por conquistas sociais e políticas, porém vivendo, ainda assim, uma realidade mesclada por traços da velha subordinação doméstica. A transgressão, o crime cometido por uma mulher, não é um fato dissociado das relações sociais e das representações históricas e jurídicas construídas no entorno desse discurso de dominação simbólica onde se traça o perfil da mulher “do lar”. A mulher passa despercebida no que tange os discursos criminológicos, tanto no que diz respeito à ausência de reconhecimento do possível potencial delitivo (e autodeterminado), como sob a ótica dos argumentos utilizados para justificar a prática delitiva, sempre “respingando” em justificativas provenientes da biológica da mulher, quanto de argumentos que estabelecem a necessária vinculação dessa mulher transgressora a um agente do sexo masculino. Confrontando a percepção de uma “criminalidade” tipicamente feminina, entendo ser extremamente necessário que os estudos investiguem as categorias estruturais presentes na vida dessas mulheres, a fim de abarcar o contexto social, político e econômico para compreender o crime não em sua individualidade, mas enquanto manifestação social. Diante desse cenário, acredito ser fundamental a subversão da forma de produzir conhecimento, provocando assim uma ruptura epistemológica com esse conjunto de articulações intelectuais, que muito se distanciam das experiências das mulheres e da compreensão das relações sociais e de gênero. É de extrema necessidade delimitar um domínio que se dedique a desmistificar – segundo o conceito de mística feminina elaborado na obra de Betty Friedan, onde essa mística é retratada como “uma estranha discrepância entre a realidade de nossa vida de mulher e a imagem à qual nos procurávamos moldar”– e a de contribuir para a busca da desconstrução de categorias opressivas de feminilidade e masculinidade como categorias essenciais a governar a vida social, comparando-as dentro de uma perspectiva binária e essencialista Precisando rejeitar o caráter fixo e permanente da oposição binária, precisamos de uma historicização e de uma desconstrução autêntica dos temos da diferença sexual. Temos que ficar mais atentas às distinções entre nosso vocabulário de analise e o material que queremos analisar. Temos que encontrar os meios (mesmo imperfeitos) de submeter, sem parar, as nossas categorias à critica, nossas analises à autocrítica. Se utilizarmos a definição da desconstrução de Jacques Derrida, esta critica significa analisar no seu contexto a maneira como opera qualquer oposição binária, revertendo e deslocando a sua construção hierárquica, em lugar de aceitá-la como real, como obvia ou como estando na natureza das coisas. Existe, de fato, um crime feminino típico, ou se trata de uma construção de dominação legitimada pelo discurso criminológico? Quem são essas mulheres que cometem crimes, e que representações e sentidos são criados por elas e pelo órgão jurídico que emitirá a sentença? Qual lugar na estrutura social essas mulheres ocupam, e como o Judiciário tem direcionado suas práticas a fim de zelar por uma Política Criminal redimensionada a julgar com equidade? Ao tratar das experiências e das representações sociais dessas mulheres, importante se faz ressaltar a tensão entre a submissão e a luta pela liberdade, entre características dadas como universais (frágil, dona de casa, mãe), e características ocultas como a batalha diária na esfera pública, da transgressão, da violência, enfrentando a visibilidade e a invisibilidade que através do crime revela uma nova dimensão desse comportamento dado como “universal” Acentuamos a relevância da oportunidade de apresentar uma face da mulher, via de regra oculta, em termos de reação a uma violência que lhe é imposta, além de muitas vezes está tomar a iniciativa de agir violentamente. Não esqueçamos que, tradicionalmente as mulheres são apresentadas como passivas dóceis, frágeis, submissas... Importa, pois, recuperar a historia das mulheres dessas camadas, desmistificando estereótipos, e revelando novas dimensões no comportamento das mesmas É importante inserir no debate sobre violência e criminalidade a representação da mulher não somente como vítima, mas também como potenciais autoras de atos transgressores, vivenciando a tensão existente entre essas mulheres e a sociedade em que vivem e a qual integram, envolvidas em um imaginário social que se instala cotidianamente em suas relações. Ressalto a importância dos estudos feministas e da Criminologia se integrarem, a fim de conferir manancial para analisar o processo de criminalização sob a perspectiva de gênero, reconhecendo o papel dessas mulheres como sujeito em todos os processos. Tanto os estudos feministas quanto a Criminologia Crítica construíram explicações voltadas para a subordinação da mulher no caso do primeiro, e para o crime e o criminoso no caso do segundo. Porém, essas duas perspectivas estão em crise no sentido que já não podemos mais falar na mulher como uma categoria una e heterogênea, ou seja, sujeitas às mesmas formas de opressão e subordinação, e na medida em que não podemos mais explicar o delito e a delinquência com base em uma perspectiva estrutural. Precisamos reconhecer primeiramente que (...) há um profundo déficit de recepção da criminologia critica e da criminologia feminista e, mais do que isso, há um profundo déficit de produção criminológico critico e feminista. Há, ao mesmo tempo, um profundo déficit no dialogo entre a militância feminista e a academia e as diferentes teorias criticas do Direito nela produzidos ou discutidos Portanto, se faz fundamental inserir a mulher efetivamente nos discursos da criminologia, fora da perspectiva biopsicológica tradicional, a fim de tratar essas mulheres dentro das múltiplas pertenças categoriais, possibilitando uma análise à luz das diversas experiências de discriminação assente em elementos como gênero, classe e raça. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Rosemary de Oliveira. Mulheres que matam: Universo imaginário do crime no feminino. Rio de Janeiro: Relume Dumará: UFRJ, Núcleo de Antropologia da Política, 2001. ANDRADE, Vera Regina Pereira. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Revista CCJ/ UFSC, n. 30, ano 16, p. 24-36, junho de 1995. 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