Apresentação - Contraponto Editora

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PREFÁCIO
Modernidades alternativas
Quando publiquei Vida e pensamento de Antonio Gramsci,1
este livro já estava em gestação havia alguns anos. Pertencem
ambos ao mesmo programa de investigação, mas antecipei a
reconstrução da biografia de Gramsci nos anos de reclusão
porque as vicissitudes políticas e humanas de sua vida são essenciais para compreender também seu pensamento elaborado em
segregação. Sucessivamente, reconstruí a gênese, o desenvolvimento e as correlações entre suas principais categorias, nascendo
este livro que se coloca no novo período de estudos gramscianos
de que falo no ensaio introdutivo. Aqui gostaria de desenvolver
algumas considerações sobre cada capítulo e sobre seu título.
Como testemunha a bibliografia gramsciana on line,2 há
quarenta anos os escritos de Gramsci e os estudos a ele dedicados conhecem crescente difusão internacional. Por isso, desde
quando me tornei diretor do Instituto Gramsci (janeiro de 1988),
tentei dar impulso ao diálogo entre os estudiosos de Gramsci na
Itália e no exterior, adquirir novos documentos e promover as
pesquisas filológicas necessárias para reconstruir seu pensamento. A alavanca principal destes trabalhos ainda em curso é a
1
2
G. Vacca, Vita e pensieri di Antonio Gramsci 1926-1937, Turim, Einaudi, 2012 [Brasília: Fundação Astrojildo Pereira; Rio de Janeiro: Contraponto, 2012].
Esta bibliografia pode ser consultada no site da Fundação Instituto Gramsci,
<http://www.fondazionegramsci.org/bibliografia-gramsciana/>.
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Giuseppe Vacca
Edição Nacional dos Escritos, sobre a qual me detenho na introdução. A tal empreendimento polifônico e coletivo acrescentei
um trabalho pessoal de clarificação das categorias gramscianas,
uma vez que, diante da expansão de seus usos, pareceu-me útil
uma obra de limpeza conceitual.
Tanto com a reconstrução de sua vida quanto com a clarificação de seu pensamento não pretendo estabelecer um cânone
interpretativo, mas, mais simplesmente, proponho-me preencher lacunas a fim de ampliar as possibilidades de leitura de
Gramsci. Convém, portanto, referir o conceito de ortodoxia evocado por Gramsci a propósito de seu “retorno a Marx”. Ele aparece na primeira série dos “Apontamentos de filosofia” e faz
parte das notas escritas entre maio e agosto de 1930 em que se
delineia seu projeto de “revisão” do marxismo. Na terceira nota
(“Dois aspectos do marxismo”, de maio de 1930), Gramsci define
a situação do marxismo que se desenvolvera nos cinquenta anos
transcorridos a partir da morte de Marx em termos que não
sofreram o desgaste do tempo:
O marxismo tinha duas tarefas: combater as ideologias em sua
forma mais refinada e esclarecer as massas populares, cuja cultura
era medieval. Esta segunda tarefa, que era fundamental, absorveu
todas as forças, não só “quantitativamente”, mas “qualitativamente”; por razões “didáticas” o marxismo confundiu-se com
uma forma de cultura um pouco superior à mentalidade popular,
mas inadequada para combater as outras ideologias das classes
cultas, enquanto o marxismo original era precisamente a superação da mais alta manifestação cultural de seu tempo, a filosofia
clássica alemã.3
Para desimpedir o campo dos “marxismos em combinação”, Gramsci propõe um “retorno a Marx” sob o signo de
uma nova ortodoxia:
3
A. Gramsci, Quaderni del carcere, edição crítica do Instituto Gramsci, organização
de Valentino Gerratana, Turim, Einaudi, 1975, p. 422-423.
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Modernidades alternativas. O século XX de Antonio Gramsci
A ortodoxia não deve ser buscada neste ou naquele discípulo
da filosofia da práxis, nesta ou naquela tendência ligada a
correntes estranhas ao marxismo, mas no conceito de que o
marxismo basta a si mesmo, contém em si todos os elementos
fundamentais não só para construir uma total concepção do
mundo, uma total filosofia, mas para vivificar uma total
organização prática da sociedade, isto é, para tornar-se uma
civilização total e integral.4
Como se demonstrou ponto por ponto, os critérios indicados por Gramsci para captar “o ritmo do pensamento” de
Marx também valem para seu pensamento5 e tentei segui-los. As
duas citações, portanto, servem para esclarecer os objetivos e os
limites das investigações recolhidas no volume.
Os temas dos dois primeiros capítulos – “O conceito de
hegemonia” e “O que é a revolução passiva” – foram objeto de
um bimestre de cursos de pós-graduação dados na Universidade
Nacional Autônoma do México em 2009. Mantive o caráter
didático não por fidelidade servil a sua origem, mas para precisar o significado e os âmbitos de aplicação de duas categorias
fundamentais do pensamento de Gramsci, submetidas algumas
vezes a usos superficiais e enganosos.
O pensamento de Gramsci só assume uma forma que convencionalmente se pode definir sistemática nos Cadernos do cárcere: obra póstuma, é bom recordar, que vive através do trabalho
cada vez mais acurado de seus editores.6 Ele tem origem na análise
das vicissitudes políticas, dos processos econômicos e da vida cul4
5
6
Ibidem, p. 435.
G. Cospito, Il ritmo del pensiero. Per una lettura diacronica dei ‘Quaderni del carcere’ di Gramsci, Nápoles, Bibliopolis, 2011.
C. Daniele (org.), Togliatti editore di Gramsci, introdução de G. Vacca, Annali
della Fondazione Istituto Gramsci, XIII, Roma, Carocci, 2005; F. Giasi, L’eredità
di Antonio Gramsci, in P. Togliatti, La politica nel pensiero e nell’azione. Scritti
e discorsi 1917-1964, organização de M. Ciliberto e G. Vacca, Milão, Bompiani,
2014, p. 919-962.
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Giuseppe Vacca
tural de seu tempo, tendo como principal laboratório a Itália; no
entanto, desde a Grande Guerra a mente de Gramsci projeta-se
numa dimensão global. Já nos primeiros anos de sua reflexão concebe a história contemporânea como “história mundial”, de que
se podem recortar “histórias nacionais” sob a condição de saber
apreender os nexos com a história internacional. Nasce assim um
estilo de pensamento que caracteriza as análises de Gramsci
mesmo quando – grosso modo, entre 1916 e 1930 – ainda não
elaborara uma verdadeira narrativa do século XX. Ela pode ser
extraída dos Cadernos, os quais, contudo, não são apenas isto,
uma vez que seu pensamento se nutre de uma reinterpretação
geral da modernidade.7 De todo modo, a tarefa que me propus no
primeiro capítulo é seguir o desenvolvimento do conceito de
hegemonia a partir do momento em que aparece o termo (em
L’Ordine Nuovo, 1919) até a redação dos “cadernos especiais”, tentando lançar luz sobre as situações históricas às quais se vincula.
Esta me parece a via mestra para esclarecer o significado da concepção da política como luta pela hegemonia, em torno da qual
gira a filosofia da práxis. Segui o mesmo procedimento no segundo
capítulo, analisando o conceito de revolução passiva, complemento historiográfico do conceito de hegemonia.8
7
8
M. Ciliberto, La fabbrica dei ‘Quaderni’ (Gramsci e Vico), in idem, Filosofia e politica
nel Novecento italiano da Labriola a ‘Società’, Bari, De Donato, 1982; idem, Cosmopolitismo e Stato nazionale nei ‘Quaderni del carcere’, in G. Vacca (org.), Gramsci e
il Novecento, Roma, Carocci, 1999, v. I, p. 157-176; idem, Rinascimento e Riforma
nei ‘Quaderni’ di Gramsci, in M. Ciliberto e C. Vasoli (orgs.), Filosofia e cultura. Per
Eugenio Garin, Roma, Riuniti, 1991, v. II, p. 759-88; idem, Gramsci e Guicciardini.
Per un’interpretazione ‘figurale’ dei ‘Quaderni del carcere’, in Attualità del pensiero
di Antonio Gramsci, Roma, Bardi, 2016, p. 59-75; M. Montanari, Introduzione, in A.
Gramsci, Pensare la democrazia. Antologia dai ‘Quaderni del carcere’. Turim, Einaudi, 1997; F. Izzo, Democrazia e cosmopolitismo in Antonio Gramsci, Roma, Carocci,
2009, cap. 2, 4 e 5.
Esta formulação é confirmada pelas introduções à edição anastática dos Cadernos
do cárcere, devidas a G. Francioni, G. Cospito e F. Frosini, que em seu conjunto
compõem uma iluminadora história dos Cadernos.
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Modernidades alternativas. O século XX de Antonio Gramsci
A partir dos anos setenta do século passado, “hegemonia” e
“revolução passiva” são conceitos sobre os quais se aplicam a
maior parte dos intérpretes de Gramsci e todos aqueles que a ele
se referem para reconstruir histórias nacionais e vicissitudes
mundiais. Nesta vastíssima literatura aparecem pares conceituais do tipo hegemonia/“contra-hegemonia”, revolução
passiva/“revolução ativa”, que revelam evidentes desentendimentos de seu pensamento. A dificuldade de compreendê-lo
deriva quase sempre da urgência de extrair receitas para uso
político imediato. Valha como exemplo a tendência a aplicar o
conceito de “revolução passiva” às últimas décadas da história
mundial. No discurso público, este período histórico muitas
vezes é associado a uma presumida hegemonia neoliberal e o
conceito de “revolução passiva” é evocado para afirmar que as
classes dominantes teriam se aproveitado das revoltas de 1968
para canalizar suas pulsões libertárias rumo a um fortalecimento mundial da mercantilização. Nos Cadernos do cárcere, o
conceito de “revolução passiva” conjuga-se com o de “guerra de
posição” e o conceito de hegemonia implica a capacidade das
classes dominantes de produzir estabilidade e gerar consenso.
Portanto, são conceitos dialéticos, que pressupõem uma unidade
espaço-temporal compartilhada por governantes e governados,
demarcada por geometrias variáveis e, de todo modo, reversíveis. Tais conceitos repelem lógicas binárias ou classificatórias:
se o conceito de hegemonia só pode ser declinado como “luta de
hegemonias”, o de “revolução passiva” implica o consenso mais
ou menos consciente das “classes subalternas” mesmo quando as
“classes dominantes” reforçam sua subordinação, absorvendo-lhes as elites e assumindo parte de suas demandas. O conceito
define, pois, a fenomenologia da modernidade na época em que
as “massas” estão presentes na cena da história variadamente
organizadas, ainda que incapazes de disputar a hegemonia com
as classes dominantes. Seria difícil sustentar que as lutas polí17
Giuseppe Vacca
ticas internas e internacionais em curso há quarenta anos procedem segundo as modulações da “guerra de posição” e seria
mais difícil ainda demonstrar que o mundo no qual vivemos,
assinalado por novas guerras, extermínios e desvastações que
ainda não conseguimos definir conceitualmente, seja caracterizado pela substituição de uma ordem em dissolução por nova
ordem hegemônica.
Obviamente, com estas especificações não pretendo “atualizar” Gramsci. Um clássico é tal porque seu pensamento ultrapassa as fronteiras de seu tempo e esta virtude lhe permite às vezes
atravessar séculos e milênios. Mas quem concorda com o juízo de
um Gramsci clássico tem a tarefa de colocar o pensamento dele
em sua época, porque só este trabalho abre suas páginas à mais
ampla pluralidade de leituras que a mudança dos tempos e das
questões pode suscitar. Este é o sentido da referência ao conceito
gramsciano de ortodoxia, do qual parti. Portanto, o método
seguido na reconstrução dos conceitos de hegemonia e revolução
passiva tem caráter nitidamente historiográfico.
Isto vale também para o terceiro capítulo – “Do materialismo
histórico à filosofia da práxis” – que tem andamento ensaístico.
Ele se propõe fazer emergir a dimensão mais propriamente filosófica do pensamento de Gramsci, lançando luz sobre a tradutibilidade das linguagens que Gramsci indica como traço distintivo de
sua reflexão. Mesmo neste caso, pode ser útil para esclarecer o
conceito, partir de alguns equívocos sobre seu pensamento. Gramsci usa correntemente as noções de “unidade” ou “identidade”
de política e filosofia, e isto pode fazer surgir a ideia de que tenha
pretendido desenvolver uma “filosofia da revolução” a ser posta a
serviço da política. Esta leitura nasce dos difusos equívocos existentes sobre o modo de conjugar pensamento e ação: para Gramsci, a unidade de teoria e prática não é um imperativo moral,
mas um problema histórico e gnosiológico. O lema “filosofia da
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Modernidades alternativas. O século XX de Antonio Gramsci
práxis”, que a partir de 1932 toma o lugar de “materialismo histórico”, designa a formação de um pensamento ritmado por conceitos que valem tanto para a análise histórica quanto para a iniciativa política. Trata-se, pois, de uma nova filosofia que só se
compreende reconstruindo a especificidade das categorias analíticas e estratégicas que a compõem.
Todavia, não pretendi expor todo o sistema da filosofia da
práxis. Aderindo ao princípio de que Gramsci foi “um teórico da
política, mas sobretudo [...] um político prático, isto é, um
combatente”,9 tentei precisar seu problema fundamental, vale
dizer, o problema do sujeito, em torno do qual gira toda a filosofia moderna. Nos Cadernos do cárcere, ele culmina na questão
sobre “como [...] se formam as vontades coletivas permanentes”,10
desembocando numa concepção processual da subjetividade:
para Gramsci, em outras palavras, o sujeito não está dado, mas é
o resultado de combinações dinâmicas das relações entre “intelectuais” e “massas”. No dispositivo teórico da constituição dos
sujeitos, hegemonia, revolução passiva e tradutibilidade das linguagens são conceitos fundamentais e, por isso, dediquei minha
investigação principalmente à sua reconstrução. Gerados por
original entrelaçamento de análise histórica e projeto político,
eles dão corpo a uma narração do século XX centrada em “americanismo”, comunismo e fascismo. A história mundial para a
qual Gramsci dirigia o olhar só recobre um vintênio, mas suas
análises superam as de seus contemporâneos e compõem uma
figura vívida da primeira metade do século XX. Desmanteladas
entre os anos setenta e oitenta as narrações progressistas da história do século XX que sustentaram a difusão da democracia,
passaram a predominar narrações ideológicas – o século do
9
P. Togliatti, Il leninismo nel pensiero e nell’azione di A. Gramsci (Appunti), in
idem, La politica nel pensiero e nell’azione, cit., p. 1.121.
10 A. Gramsci, Quaderni del carcere, cit., p. 1.057.
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Giuseppe Vacca
Holocausto, a “era dos extremos”, o século dos totalitarismos –
que paralisam o tempo nos anos quarenta do século passado.
Mas o nexo entre passado e presente não pode ser cortado.
Quando isto acontece, torna-se aleatório, se não inteiramente
impossível, interrogar o presente com a mente voltada para o
futuro. Se se quiser, pois, declinar a “atualidade” de Gramsci,
convém remontar até sua percepção de americanismo, comunismo e fascismo como figuras alternativas de uma nova época
da modernidade, percebida por um olhar sobre a história do
século XX que ainda nos fala.
O último capítulo – “Hegemonia e democracia” – refere-se a
um tema crucial do debate entre os intérpretes de Gramsci. Ele
oferece um exame rigoroso do nexo entre a política como luta pela
hegemonia e uma teoria da democracia que deita suas raízes na
morfologia da modernidade. Diante da crise do sujeito moderno
– o Estado-nação, o movimento operário, o partido político do
século XX –, não podemos nos deter em procedimentos e temas
tradicionais da democracia. Portanto, a proposta de ler Gramsci
como teórico da sociedade civil, apresentada por Bobbio em 1967,
pode ser considerada novo exemplo de revolução passiva. O paralelo com a leitura de Marx formulada por Benedetto Croce no
final do século XIX, sugerido na Introdução e no quarto capítulo,
não é um gesto polêmico. A proposta formulada por Bobbio pertence a um período histórico em que a luta política tinha o caráter
de “guerra de posição” e, tal como a leitura crociana de Marx,
parece o reflexo condicionado de uma cultura dominante, a qual,
não contemplando a possibilidade de desafios hegemônicos que
ultrapassem seu universo conceitual, tende a reduzir o novum à
reiteração do vetus.
O paralelo, pois, também constitui válido exemplo de como
o conceito de “revolução passiva” possa ser aplicado a experiên-
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Modernidades alternativas. O século XX de Antonio Gramsci
cias sucessivas àquelas investigadas por Gramsci, desde que se
saiba considerar os contextos históricos.
Francesca Izzo, Marcello Mustè e Silvio Pons leram no todo
ou em parte o original e lhes agradeço as observações e conselhos que me permitiram melhorá-lo. O livro está dedicado a
Dora Kanoussi, pioneira dos estudos gramscianos no México e
na América Latina, amiga querida e colaboradora preciosa há
quarenta anos.
Giuseppe Vacca
6 de outubro de 2016
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