Itinerário Quaresmal Quinta Semana: Chamados a converter o coração Leituras do 5º Domingo da Quaresma: Is 43,16-21; Salmo 125 (126); Fil 3,8-14; Jo 8,1-11 O primeiro domingo da Quaresma fazia-nos o apelo para nos deixarmos conduzir ao deserto. Convite igual para fazermos deste itinerário um tempo de silêncio e fecundidade interior. O deserto e a montanha das duas primeiras semanas fizeram eco desse desafio. Logo após veio o convite para descermos do monte e nos embrenharmos nos caminhos da planície. Caminhos do quotidiano que Jesus percorreu cantando a beleza do Reino em notas de sublime compaixão e ternura. Anunciando aos peregrinos de cada tempo oportunidades sempre novas de refazer a vida para que ela dê frutos abundantes. As notas mais harmoniosas dessa sinfonia ouvimo-las no domingo passado. O domingo da alegria convida-nos à festa do e no coração de Deus. O pai misericordioso abraça o filho que regressa a casa e faz festa abundante de carnes suculentas e vinho abundante. O banquete do Reino é convite à misericórdia tanto para os de dentro como para os de fora. Chegamos à quinta semana. A Palavra continua a fazer convites ousados. A celebração do mistério pascal já se avista no horizonte. A força da ressurreição que brotará do escândalo da Cruz vai desenhando como que em antecipação, derradeiros apelos de conversão. As palavras do evangelho deste domingo evidenciam-no. Chamados a converter o coração. Sintetiza outros tantos convites: a perdoar, à não-violência, à compaixão, ao resgate da dignidade, à valorização da mulher. Converter o coração. Caminho e processo. Contínuo. Retomado a cada momento de desânimo ou depois de cada tropeço. O coração é deserto que pode transformar-se num campo de trigo. Pela acção fecunda da graça. “Vou abrir um caminho no deserto, fazer brotar rios na terra árida.” – são palavras de Isaías na primeira leitura. Converter o coração. Proposta para esta semana. Para a vida inteira. 1. Vamos escutar o Evangelho que a Liturgia nos propõe (Jo 8,1-11) Naquele tempo, Jesus foi para o Monte das Oliveiras. Mas de manhã cedo, apareceu outra vez no templo, e todo o povo se aproximou d’Ele. Então sentou-Se e começou a ensinar. Os escribas e os fariseus apresentaram a Jesus uma mulher surpreendida em adultério, colocaram-na no meio dos presentes e disseram a Jesus: «Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério. Na Lei, Moisés mandou-nos apedrejar tais mulheres. Tu que dizes?». Falavam assim para Lhe armarem uma cilada e terem pretexto para O acusar. Mas Jesus inclinou-Se e começou a escrever com o dedo no chão. Como persistiam em interrogá-l’O, ergueu-Se e disse-lhes: «Quem de entre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra». Inclinou-Se novamente e continuou a escrever no chão. Eles, porém, quando ouviram tais palavras, foram saindo um após outro, a começar pelos mais velhos, e ficou só Jesus e a mulher, que estava no meio. Jesus ergueu-Se e disse-lhe: «Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?». Ela respondeu: «Ninguém, Senhor». Disse então Jesus: «Nem Eu te condeno. Vai e não tornes a pecar». Chamados a converter o coração 2. Um dia Pedro teve a ousadia de perguntar ao Mestre: Se um irmão me ofender, até quantas vezes poderei perdoar-lhe? Até sete vezes? A resposta não se fez esperar. E o Mestre deixou-o perplexo e confundido. Não somente sete vezes, mas setenta vezes sete. A perplexidade atravessou as eras e aninhou-se na consciência de homens e mulheres de todos os tempos. O efeito nunca foi o desejado. As relações humanas intempestivas e a dificuldade em aceitar os erros dos outros fazem eco dessa incapacidade. Não bastasse isso desde sempre, e não só na nossa tradição religiosa, apropriamo-nos do nome de Deus para justificar os nossos desejos de violência e a nossa dificuldade para a convivência fraterna. O legalismo e a intransigência fizeram vítimas aos milhares. Umas derramaram o sangue. A outras roubaram-lhes a dignidade. A muitas o brilho dos olhos esmoreceu para sempre tolhido pela incompreensão e pela intolerância. O relato deste domingo enquadra-se neste contexto. Jesus passa a noite no monte das Oliveiras. De manhã cedo desce ao Templo para ensinar. O Templo remete para o lugar do encontro com Deus. Mas que se configura também com o património intocável da Lei judaica. Uma lei que “permite” que se apedreje uma mulher apanhada em adultério. Foi colocada na roda. Aviltada pela Lei e pelos intocáveis escribas e fariseus. Condenada mesmo antes de ser exposta ao insulto. Jesus tem de se posicionar. 3. «Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério. Na Lei, Moisés mandou-nos apedrejar tais mulheres. Tu que dizes?». Jesus fica calado. Remete-se ao silêncio. Abaixa-se e escreve no chão. Insistem e pressionam. Levanta-se e desmascara a sua intocabilidade. A sua condição de superioridade, garantia para executar uma lei injusta. Onde estava o homem que fora apanhado junto com a mulher? A mulher veio para a roda. Ele não. «Quem de entre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra». Inclinou-Se novamente e continuou a escrever no chão. Saíram todos. A começar pelos mais velhos. A consciência começa a pesar mais do que a Lei. Não dá para esconder a voz da consciência repentinamente acordada. Atirar a primeira pedra. Uma enorme responsabilidade. Que ninguém quer assumir. A responsabilização impede a violência iminente. Saem apressados. Jesus fica a sós com a mulher. «Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?». Ela respondeu: «Ninguém, Senhor». Disse então Jesus: «Nem Eu te condeno. Vai e não tornes a pecar». Duas vezes Jesus interrompe o seu silêncio. Para desmascarar e para perdoar. Aos acusadores da mulher atira palavras que obrigam ao silêncio. E o silêncio leva ao desconforto. O desconforto leva à necessidade de retiraremse depressa. Deixando as pedras no chão. A segunda vez envia palavras de compaixão ao coração da mulher que ficara sozinha. Oferece o perdão. Convida a uma vida carregada de dignidade. Onde o pecado não trave o conforto de se sentir amada. Entre um olhar de ternura e as palavras de misericórdia uma vida é resgatada. Arrancada à violência da Lei e ao puritanismo dos seus líderes. 4. Arrisquemos lembrar de situações actuais onde “mulheres adúlteras” são colocadas na roda. Lembremos dos jovens delinquentes, prisioneiros de práticas violentas em que se inserem cada vez mais cedo; os jovens atirados para as ruas onde a droga os convida a descer ao inferno; os imigrantes que nos procuram em busca de dignidade e respeito; as prostitutas de qualquer esquina vivendo na esperança de alcançar um amor que nunca virá; os homossexuais obrigados a carregar o estigma da rejeição social; os presos condenados ao isolamento à espera que um dia alguém lhe dê uma oportunidade; os desempregados que a crise e o desmando lançou na pobreza iminente, apenas mitigada por breves meses de subsídio. A atitude de Jesus leva-nos a pensar na forma como lidar com situações de tantas “mulheres adúlteras” na nossa sociedade. A quem o peso da lei continua a ser imposto. A quem a sociedade quer manter longe nem que seja à custa de práticas violentas e leis indignas. Indignas porque incapazes de olhar para a pessoa no seu conjunto, na sua humanidade e dignidade. No respeito que merece. No resgate e na oportunidade que não sabem realizar. É muito fácil julgar e condenar. Sobretudo quando a nossa vida está segura. E o emprego garantido. E a fama intocável. E o reconhecimento dos outros a elevar a auto-estima. E o sentido do dever cumprido em alta. E a religião como garantia. E Deus pretensamente do nosso lado. Assim, não custa nada atirar a primeira pedra. A não ser que alguém (Jesus) nos acorde. E nos responsabilize. Para que da nossa condição de humanidade, de crentes e sobretudo de pecadores, ousemos lançar as pedras ao chão. 5. Reflecte em silêncio os apelos que a Palavra desta semana te faz. Partilha o teu momento de reflexão com alguém (do teu grupo, família, comunidade). Converter o coração! Abrir as portas à misericórdia. Aceitar o silêncio de Jesus e cair em si de tantos “adultérios”. Olhar os próprios pecados. Acolher misérias pessoais. Aceitar desconcertos interiores sem constrangimento e escrúpulo. Integrar na vida o mistério do mal que nos habita. Abrir-se ao silêncio do coração de Deus que regenera. E não condena. E dignifica. E perdoa. Converter o coração! Oferecer uma oportunidade. A si mesmo como pecador. E aos outros pecadores. A oportunidade para que a graça habite. Para que o ser se refaça. Para que o caminho recomece. E no caminhar a vida se instale. E arme uma tenda definitiva. A mesma tenda que Deus armou no coração da terra. Converter o coração. Abrir-se à compaixão infinita. À misericórdia do coração de Deus. Ao seu amor sempre criativo. Regenerador. Deixar-se encontrar por esse amor. Como a adultera do evangelho. E nesse encontro salvador lançar-se na aventura de amar. Converter o coração! Assumir esta atitude revolucionária e escandalosa de não julgar. Aceitar e resgatar. Devolver a dignidade. Perdoar. Sete vezes. E setenta vezes sete. Converter o coração! E não discriminar. E não calar a voz quando o silêncio de todos os “adúlteros” se fizer ouvir. Os excluídos da sociedade. Os injustamente acusados, julgados e condenados. Os injustamente discriminados. As vítimas da violência doméstica. No namoro e no casamento. Os jovens delinquentes. Os imigrantes indesejados. Os drogados e as prostitutas. Os maltrapilhos das cidades que moram ao relento. Converter o coração! Valorizar. Acolher. Tratar com igual dignidade. A todos. Homens e mulheres. Na sociedade e na igreja. No emprego e em casa. Na política ou em qualquer ambiente. Dentro e fora. Converter o coração! Acreditar na paz. Atirar pedras ao chão para quebrar ciclos de violência. Responsabilizar-se por caminhos novos de justiça verdadeira. Dar o primeiro passo para ir ao encontro de qualquer coração. Mesmo daqueles a quem a nossa “lógica” gostaria de apedrejar. Converter o coração! Proposta para esta semana. Para a Quaresma. Para a vida inteira. Comunidade Shalom Afonso, CSh.