Departamento de Filosofia O SUPRA-SENSÍVEL EM ARISTÓTELES Aluno: Carlos Eduardo da Silva Rocha Orientadora: Barbara Botter Introdução “Se não existisse nada de eterno, não poderia existir nem mesmo o devir.” (Aristóteles, Metafísica Β 4, 999 b.) Em sua “Metafísica”1, Aristóteles propõe um estudo do ser, ou melhor, uma ciência do “ser enquanto ser”. Segundo o Estagirita o “ser” não pode ser compreendido de modo unívoco, mas sim de forma múltipla, isto é, de muitas maneiras. Porém, Aristóteles chama atenção para o fato de que esta multiplicidade de significados do ser recai sobre um princípio que os sustenta, um princípio sem o qual as várias maneiras de dizer o ser não poderiam existir. Portanto, qual é este princípio do qual derivam as maneiras de dizer o ser? Ora, esta unidade, este princípio que sustenta os modos de “dizer” o ser não é outro senão a substância. O filósofo relaciona a questão do ser com a questão da substância, pois como mostra Aristóteles, ao questionar o problema do ser, de fato, se questiona o problema da substância. Mas o que Aristóteles compreende por “substância”? O filósofo responde esta questão na seguinte passagem do livro ∆ da “Metafísica”2: “Segue-se daí que a substância se entende em dois significados: (a) o que é substrato último, o qual não é predicado de outra coisa, e (b) aquilo que sendo algo determinado, pode também ser separável, como a estrutura e forma de cada coisa.” Nesta passagem do livro ∆, fica claro como Aristóteles considera, em um sentido, a substância como o “sustentáculo” das maneiras de dizer o ser, pois a substância não se predica de nada, sendo que todos os outros predicados do ser dependem da substância para existirem, enquanto em outro sentido, o filósofo concebe a substância como “algo determinado”. Estes dois significados pelos quais a substância é concebida podem ser 1 Metafísica (tá meta tá physiká) não é um termo de Aristóteles, tendo sido provavelmente usado pelos peripatéticos. 2 Metafísica, ∆ 8, 1017b, 23-25. 1 Departamento de Filosofia resumidos na expressão da língua grega “tóde ti”, isto é, o “este aqui”. O tóde ti, é um termo de difícil tradução, porém é essencial para a compreensão da substância em Aristóteles, o tóde ti é, como coloca Reale3, a “determinação essencial e formal”, ou seja, é a coisa quando tomada por si mesma, como uma realidade individual. Nas palavras de Jonathan Barnes4 esta questão se torna mais clara: “A substance is a “this-so-and-so”, a tode ti. Aristotle’s Greek is as odd as my English and, Aristotle presumably coined the phrase himself. The point is this: a substance is whatever may be referred to by an appropriate phrase of the form “This-soand-so” or “This F”, and this mode of reference is the mode which picks the substance as a substance. We can immediately see the force of the expression, for surely the demonstrative adjective “this”, answers the first of Aristotle’s demands on substances, while the dummy expression “so-and-so” or “F” answers the second. The demonstrative indicates that substance are individuals, the predicate indicate that they must be definable, and the combination of the demonstrative and the predicate unites into a consistent whole the two apparently inconsistent requirements.” Nas palavras de Barnes, torna-se claro como termo tóde ti, ou seja, o “este aqui” ou “this-so-and-so” embora possa soar estranho, consegue abordar os dois sentidos propostos por Aristóteles para o significado de substância. Barnes mostra como o demonstrativo “este” ou “this” responde o primeiro significado, ou seja, o “este” mostra a substância como algo separado que de nada depende, mas que todos os outros predicados necessitam para existirem. Enquanto o “aqui” ou “so-and-so”, é o ser em si mesmo, que precisa ser definível. Porém, a teoria aristotélica acerca da substância não se restringe apenas ao cosmo sensível. Para Aristóteles a substância é a realidade primeira e tudo o que existe depende da substância, sendo que se todas as substâncias fossem corruptíveis, nada haveria de incorruptível. Segundo o Estagirita, o tempo e o movimento são imperecíveis, pois se o tempo fosse gerado e pudesse se destruir necessariamente haveria um “antes e depois” do tempo, o que é absurdo já que “antes e depois” não são outra coisa senão concepção de tempo, o mesmo ocorre com o movimento, pois o tempo nada mais é do que uma determinação de movimento. Chegando a conclusão da eternidade do tempo e do movimento, Aristóteles levanta a hipótese da necessidade de um “Princípio Primeiro” que deve ser, por sua vez, eterno, imóvel e puro ato, que move 3 4 Giovanni Reale, “Metafísica vol. III: sumário e comentários”, p. 241. Jonathan Barnes, “Metaphysics”, In: “The Cambridge Companion to Aristotle”, p.91. 2 Departamento de Filosofia permanecendo ele próprio imóvel. Este “Princípio Primeiro” o filósofo denominou “Motor Imóvel”, ou seja, com a hipótese da existência de um “Primeiro Motor”, o filósofo apresenta sua teoria de uma “substância supra-sensível”. No entanto, em um estudo acerca do supra-sensível em Aristóteles é necessário, antes, a compreensão da substância no âmbito sensível, sendo o melhor caminho para isto o “tratado da essência” apresentado pelo Estagirita no livro Z da “Metafísica” para, então, começar o estudo da substância supra-sensível no livro Λ. A definição de essência Tò tí en einai, ou melhor, a essência é aquilo que a coisa é em “si mesma”, isto é, a coisa determinada, ou seja, a essência tem um caráter explicativo, ela explica o que a coisa é. Para melhor compreensão da substância no sentido de essência tomemos as palavras do próprio Aristóteles acerca do assunto no capítulo 4 do livro Z da “Metafísica”5: “A essência de cada coisa é o que ela é por si mesma. Tua essência, de fato, não é essência do músico, porque não és músico por ti mesmo. Mas nem tudo o que uma coisa é por si mesma é essência: por exemplo, não é essência que algo é por si do modo como uma superfície é por si branca: de fato, a essência da superfície não é a essência do branco. Ademais a essência da superfície também não consiste na união de dois termos, isto é, no fato de ser superfície-branca. Por quê? Porque neste caso a essência da superfície é pressuposta. A definição da essência de uma coisa é só a que exprime a coisa sem incluí-la na própria definição. Portanto, se alguém dissesse que a essência da superfície branca é a essência da superfície lisa estaria dizendo que a essência do branco e a essência do liso são uma só e mesma coisa. (...) Na realidade, só o que é determinado é essência; mas quando algo é predicado de outro não se tem algo determinado, dado que a característica de ser algo determinado só pertence às substâncias.” Nesta passagem, Aristóteles começa a tratar da essência, como lembra Reale6 no âmbito do logikós, isto é, no âmbito estritamente racional. O filósofo mostra que ao falar da essência toma-se a coisa “por si” e não por seus acidentes, de fato, os acidentes, 5 6 “Metafísica”, Z4, 1029b 14-1030a 6. Giovanni Reale, “Metafísica volume III: Sumários e comentários”, p. 340. 3 Departamento de Filosofia devido sua natureza parasitária, ou seja, simbiótica dependem de outra coisa para existirem, não existindo, portanto, por si mesmos. Só pode ser considerado como essência aquilo que é em si mesmo, Aristóteles demonstra isso com exemplos como o de “músico”. “Músico” constitui uma característica acidental que não existe em si mesma, dependendo de outra coisa para ser, isto é, depende de uma essência que no caso de músico é obviamente a essência de homem. Com este exemplo Aristóteles mostra que, nem tudo o que é tomado por si mesmo pode ser considerado essência, como mostra outro exemplo do filósofo o da “superfície branca”. A essência da “superfície branca” está no fato de ser “superfície” e não “superfície branca”, a “superfície” pode muito bem existir sem o “branco”, pois a “superfície” constitui uma essência, ou seja, pode ser tomada por si mesma, enquanto que “branco” constitui um acidente qualitativo que depende de uma determinada essência para ter sua existência, neste caso à essência de superfície. “Superfície branca” é o composto de duas coisas distintas e justamente por sua natureza composta não pode ser tomada por si mesma, pois o composto não é uma coisa determinada. Aqui se torna importante a questão da “definição”. Definição é o mesmo que delimitação, ou seja, o que mostra o limite da coisa. Aristóteles toma a definição no sentido lógico e ontológico, pois é a delimitação racional do ser da essência em comparação a dos demais seres, ou seja, a definição é o que mostra a coisa “por si”. O termo “kath’ autó”, ou seja, “por si” é particularmente difícil dentro do pensamento aristotélico, pois no capítulo 8 do livro ∆ da “Metafísica”7 o filósofo compreende o termo de várias maneiras: (a) o “por si” significa a essência própria de cada coisa; (b) Significa tudo o que se encontra na essência; (c) As propriedades que pertencem de forma original a uma coisa ou as suas partes; (d) O que não tem outra coisa além de si mesmo; (e) Os atributos que pertencem a um único tipo de sujeito enquanto único. Porém, é perceptível que o “por si” buscado por Aristóteles no livro Z está contido no segundo significado, ou seja, o da essência própria de cada coisa, por isso que o composto “superfície branca” não pode constituir uma essência, pois como já foi dito a essência de superfície está na própria superfície e não no seu acidente, ou seja, o branco. A essência de superfície, como mostra o Estagirita, é pressuposta, aí está a importância da definição, pois como disse Aristóteles: “a definição 7 “Metafísica” ∆ 8 1022ª, 25-35 4 Departamento de Filosofia da essência de uma coisa é só a que exprime a coisa sem incluí-la na própria definição”. Nas palavras de J.L. Ackrill8 a compreensão desta questão se torna mais simples: “(…) Essence is what a thing is “in itself”, that on which it’s identify depends and change in which would make it a different thing. Aristotle ties these ideas to the idea of definition _ not the verbal definition of what a word means, but the definition of what something is; and he holds the only species of a genus will have an essence. “Tailor” can have a verbal definition, but there is strictly speaking no essence of tailor, since a tailor does not become thing if he ceases to be a tailor. A tailor is a man who happens to do a certain job: he would become a different thing only if he ceased to be that man.” Nesta passagem de Ackrill, fica mais claro o papel da definição na caracterização da essência como aquilo que existe por si mesmo, pois como mostra Ackrill, Aristóteles relaciona a idéia do “ser por si” à idéia de definição, mostrando que esta não é meramente uma definição verbal, mas sim o que define a coisa por ela mesma. O comentador mostra que “tailor” (alfaiate) assim como “músico” não constitui uma essência, já que, tailor indica uma profissão, ou seja, uma característica acidental que pressupõe a essência de homem para existir, pois se um indivíduo deixar de ser tailor sua essência de homem não será alterada de nenhuma forma. É importante perceber que quando se toma as características de músico ou tailor não há a necessidade de mencionar essência de homem na própria definição, pois ela é obviamente perceptível, e nisto está a importância desta para a essência, isto é, a definição pressupõe a essência da coisa, ou seja, a coisa “per se”, definida. Aristóteles aponta o tó tì en einai como o melhor candidato para ousia no segundo significado proposto em ∆ 8, no entanto, é preciso considerar a análise que o filósofo faz de cada um de seus candidatos para melhor compreender sua opção pela essência. O substrato: a matéria, a forma e o sínolo No terceiro capítulo do livro Z da “Metafísica”9, Aristóteles diz: “O substrato é aquilo de que são predicadas todas as outras coisas, enquanto ele não é predicado de nenhuma outra. Por isso devemos tratar dele em primeiro lugar, 8 9 J. L. Ackrill “Aristotle the Philosopher”, p. 126. “Metafísica” Z.3., 1028b 35-1029a 5. 5 Departamento de Filosofia pois, sobretudo o substrato primeiro parece ser substância. E chama-se substrato primeiro, em certo sentido, a matéria, noutro sentido a forma e num terceiro sentido o que resulta do conjunto de matéria e forma.” Hypokeimenon, isto é, o substrato é, como disse Aristóteles, aquilo do qual tudo se predica, mas que não é predicado de nada, o que o qualifica como substância no primeiro significado de ∆ 8, ou seja, é a substância como sujeito inerente de predicados, isto é, o suporte das demais categorias. No entanto, o filósofo divide o substrato em três partes, a matéria, a forma e o sínolo. Para explicar melhor as partes do substrato, o filósofo usa o brilhante exemplo da estátua de bronze10 onde o bronze é a matéria, a forma é a estrutura e a configuração formal e o sínolo é o resultado da união da matéria e da forma, ou seja, a estátua. Hýle , ou seja, a matéria é o “stuff” do qual algo é feito, isto é, o material bruto que compõe as coisas, é a causa material como a carne nos animais ou os tijolos de uma construção, segundo o Estagirita a matéria é aquilo que, por si, não constitui algo determinado, tampouco alguma categoria, o que não enquadra a matéria por si em nenhum dos significados de substância de D 8, pois como estabeleceu Aristóteles o que caracteriza a substância é justamente o fato de ser separável e de ser algo determinado. Assim sendo, fica claro que Aristóteles não concebe a matéria por si só como substância, pois a matéria só é ser enquanto “informada”, isto é, composta com a forma, ou seja, a matéria só é ser enquanto sínolo, enquanto parte do composto. Morphé ou eidos, isto é, a forma é, segundo Aristóteles, a essência íntima das coisas, ou seja, sua natureza interior, o que faz com que a coisa seja aquilo que ela é. É a causa formal como a alma para os homens e os animais. A forma, diferente da matéria, é aquilo que é determinado, eterno e imutável. É a forma que determina a matéria, tirando-a da condição de “matéria bruta” para a condição de “matéria informada” ou “matéria segunda”, a forma em conjunto com a matéria individualiza o ser. Entretanto, é importante perceber que assim como a matéria para Aristóteles não constitui um ser, tampouco a forma por si só constituirá o ser, pois embora seja determinada e imutável a forma só constituirá ser enquanto “informar” algo, ou seja, a forma só é ser enquanto parte do composto. A seguinte passagem do oitavo capítulo do livro Z da “Metafísica”11 expõe bem a relação entre a matéria e a forma: 10 11 “Metafísica” Z.3., 1029b 3-6. “Metafísica” Z.8., 1034ª 5. 6 Departamento de Filosofia “O que resulta, enfim, é uma forma de determinada espécie realizada nessas carnes e ossos: por exemplo Cálias e Sócrates; e eles são diferentes pela matéria (ela é diversa nos diversos indivíduos), mas são idênticos pela forma (a forma, de fato, é indivisível).” Nesta passagem de Z 8, Aristóteles mostra que a matéria devido seu caráter indeterminado é diversa no seres diversos, porém a forma por seu caráter individualizante, isto é, de fazer a coisa ser o que ela é faz com que Cálias e Sócrates tenham a mesma essência, ou seja, a essência de homem. A forma ao “informar” a matéria diversa gera um determinado composto, neste exemplo de Z 8 este composto é o homem. J. L. Ackrill em sua obra “Aristotle the philosopher”12 fez um comentário a esta passagem de Z 8 que esclarece mais a relação entre a matéria e a forma: “(…)Yet to count Callias and Socrates as two depends on counting them as men, and to speak of them as men is to refer to their form. What makes Callias Callias? ‘Why is a man a man?’ such questions, as they stand, make no sense. Aristotle argues that the question must really be why such and such materials are (say) a man; and that the answer must give the form which such materials constituents must have if they are to constitute (say) a man. Only a composite thing (form plus matter) can the question ‘What makes it a so-and-so?’ be asked, and always in the sense ‘What makes such and such matter a so-and-so?’ The answer will be an account of the form (shape, structure or function) that defines so-and-so’s. (…) It is only a so-and-so’s that objects can be picked out and counted, and to be a so-and-so is to be a composite, matter with certain form. It is qua having the form that the matter is a so-and-so; possession of the form explains the thing’s being the individual substance it is.” Ackrill mostra que na realidade perguntar por que um homem é um homem não faz sentido, pois o que deve ser questionado é: o que faz de determinado material um homem? Como mostra Ackrill a resposta para esta questão é a forma. A forma através de sua característica individualizante “informa” a matéria, determinando-a criando assim um determinado composto que neste exemplo é o homem, uma substância individual. Apenas enquanto sýnolon, isto é, sínolo de matéria e forma uma substância individual pode existir no mundo sensível. Todos os entes sensíveis são, para Aristóteles, um composto da união concreta de uma matéria diversa com certa forma, 12 J. L. Ackrill, “Aristotle the philosopher”, p. 122. 7 Departamento de Filosofia que faz com que aquela determinada coisa seja o que ela de fato é. A passagem de Z 8 da “Metafísica” mostra que o melhor exemplo de sínolo é o próprio homem, pois o que é um homem senão a união concreta da matéria e da forma, sendo a sua constituição física, isto é, os seus ossos e a sua carne a matéria que é “informada” ou determinada pela sua alma, ou seja, pela sua forma. A alma do homem se divide em vegetativa, sensitiva e racional, a característica racional da alma do homem é o que o separa dos demais seres, pois unicamente o homem tem a capacidade do pensamento. Portanto, a alma tripartida do homem é a forma que o determina fazendo com que o homem seja homem. Ao estudar as partes do substrato, fica óbvia a semelhança entre a forma e o tò tí en einai, já que a essência é o que a coisa é por si mesma e a forma é o que faz da coisa aquilo o que ela é. Esta semelhança não é uma coincidência, pois para Aristóteles a forma e a essência são sinônimos para a mesma coisa, isto é, o princípio determinante que faz com uma coisa seja um “tóde ti”, um “certo isto”. Este princípio determinante individualiza a coisa tornando-a uma “substância individual”. A forma consiste na substância no segundo sentido proposto pelo filósofo em ∆ 8, isto é, aquilo que é estrutura e forma de cada coisa, ou seja, a substância no sentido de essência. O universal, o gênero e a espécie No capítulo 13 do livro Z, Aristóteles começa sua análise do tò kathólou, ou seja, do universal como candidato para substância no sentido de essência. O filósofo apresenta um longo comentário mostrando as razões pelas quais o universal não pode ser substância no sentido de essência. A seguinte passagem de Z 1313 resume bem a opinião de Aristóteles quanto o universal: “Ora, alguns consideram que também o universal é, em máximo grau, causa e princípio de algumas coisas. (...) Na realidade parece impossível que algumas das coisas predicadas no universal sejam substâncias. Com efeito, a substância primeira de cada indivíduo é própria de cada um e não pertence a outros; o universal ao contrário é comum: de fato, diz-se universal aquilo que, por natureza, pertence a uma multiplicidade de coisas. De que, portanto, o universal será substância? Ou de todas ou de nenhuma. Mas não é possível que seja de todas. E se for substância de uma única 13 “Metafísica” Z.13.1038b 6-15. 8 Departamento de Filosofia coisa, também as outras se reduzir-se-ão a esta: de fato, as coisas cuja substância é uma só e a essência é única são uma coisa só.” Nesta passagem de Z 13, fica evidente a crítica aristotélica aos platônicos e sua “teoria das Idéias”. Platão, assim como seus discípulos, considerava as Idéias como a causa não física dos entes físicos, o que significa que as Idéias são dotadas de uma série de características14 como a “inteligibilidade”, que significa que as Idéias são objeto de inteligência, podendo ser captadas unicamente pela inteligência; a “incorporeidade”, ou seja, as idéias pertencem a um plano supra-físico; “o ser no sentido pleno”, isto é, as Idéias são o ser por excelência; “imutabilidade” o que significa que as Idéias não sofrem a ação do devir, permanecendo sempre as mesmas; a “perseidade”, ou seja, as Idéias existem em si e por si; a “unidade”, cada Idéia é uma unidade que unifica a multiplicidade. Estas características mostram como as Idéias, segundo os platônicos, são eternas, incorruptíveis e perfeitas, constituindo o ser por excelência, o ser verdadeiro, o paradigma, isto é, o modelo para os entes do mundo físico. No entanto, o universal consiste na “identidade na multiplicidade”, ou seja, o universal é aquilo que é comum, o que para Aristóteles recai sobre a questão da definição, pois para o filósofo, as coisas cuja essência é uma são elas também uma. Segundo o Estagirita, a essência é o que faz com que a coisa seja aquilo que ela é, é o princípio determinante da coisa, ou seja, a essência é aquilo que define a coisa fazendo dela um tóde ti, um “certo isto”. Os entes físicos são, segundo Aristóteles, sínolos de matéria e forma, sendo que a forma é o princípio determinante que informa a matéria criando um composto, isto é, uma substância individual definida. Isto significa que, para Aristóteles, a essência das coisas se encontra nas próprias coisas e nunca separadas delas. Aristóteles mostra que os universais, ou seja, as Formas platônicas não são determinadas o que significa que não são definidas, não constituindo, portanto, substância. Se existisse, por exemplo, uma “Idéia de Animal” que fosse o modelo Ideal de todos os entes animais do mundo físico, o gênero animal teria que existir igualmente nas espécies do cavalo e do homem, no entanto, o cavalo e o homem são diferentes em essência, pois enquanto a espécie cavalo tem, em sua alma, as características vegetativas e sensitivas, a espécie homem tem, além destas, a faculdade racional o que o torna essencialmente diferente do cavalo. Assim a “Idéia de Animal” não poderia participar 14 Características tiradas do livro “História da filosofia antiga vol. II: Platão e Aristóteles”, de Giovanni Reale p. 64. 9 Departamento de Filosofia igualmente no homem e no cavalo, pois homem é um animal, mas não como o cavalo é um animal, já que eles são, por definição, substâncias individuais diferentes. Portanto, o universal e com ele o gênero e a espécie, não pode constituir substância no sentido de essência, pois o universal é, segundo a teoria aristotélica da substância, um “ou kath’ autó”, isto é, um “não por si” indeterminado e conseqüentemente indefinível. Ao estudar os candidatos propostos por Aristóteles para o título de substância no sentido de essência, fica óbvio que o “tó ti en einai” ou a “ forma” é, na concepção do filósofo, o melhor candidato para o título de ousía. A seguinte citação de Z 1715 confirma a opção do filósofo: “Por exemplo, este material é uma casa: por quê? Por que está presente nele a essência de casa. E se pesquisará do seguinte modo: por que esta coisa determinada é homem? Ou: por que este corpo tem estas características? Portanto, na pesquisa do porquê busca-se a causa da matéria, isto é, a forma pela qual a matéria é algo determinado: esta é, justamente, a substância.” Nesta passagem de Z 17, Aristóteles expõe com clareza o motivo pelo qual a essência ou forma constitui substância, pois o filósofo mostra que ao se questionar do “porquê” de algo o que na verdade se questiona é a sua causa. A forma é o princípio individualizante, ou seja, é o que faz da coisa aquilo que ela é determinando-a e definindo-a. A forma ao “informar” a matéria confere a esta uma essência gerando um composto, isto é, uma substância individual. Fica claro que a forma ou a essência, devido seu caráter de determinar e definir a coisa, é, de fato, a aítion próton, isto é, a causa primeira do ser, é o princípio que, ao definir o ser, permite o conhecimento do mesmo. A substância supra-sensível Embora Aristóteles tenha trabalhado a questão da substância no âmbito sensível com muito afinco, a sua “teoria da substância” não se restringe unicamente ao cosmo sensível, pois o filósofo no livro Λ da “Metafísica” estudou a possibilidade de uma substância “supra-sensível” que, para Aristóteles, consiste no “Princípio Primeiro”, 15 “Metafísica”, Z 17, 1041b 5-9. 10 Departamento de Filosofia eterno, imóvel, ato puro e causa de todo o movimento. Mas como Aristóteles chegou à concepção da existência deste “Princípio Primeiro”? A resposta está no estudo do filósofo acerca do tempo e do movimento. Na “Física”, Aristóteles diz que: “Tempo é a medida do movimento segundo o antes e o depois”16. O filósofo percebe que a contagem do tempo, em um sentido geral17, implica a mudança, ou seja, a passagem do ser em potência para o ser em ato. No entanto, como o filósofo chega à conclusão de que o tempo é uma medida de movimento? A resposta é a alma, ou seja, a essência. Na “Física” diz Aristóteles:18 “A existência do tempo (...) não é (...) possível sem a da mudança: quando, de fato, não mudamos nada dentro de nossa alma e não percebemos qualquer mudança, parecenos que o tempo absolutamente não passou.” Nesta passagem da “Física”, mostra claramente que Aristóteles considera a alma como o princípio de medição da passagem do tempo, pois como coloca o filósofo se não mudamos nada em nossa alma, parece simplesmente que o tempo não passou, ou seja, é devido à percepção da mudança na alma que se torna possível a noção de um “antes” e um “depois”, isto é, a noção da passagem do tempo. A seguinte passagem da “Física”19 corrobora esta tese: “Poder-se ia (...) duvidar da existência do tempo, sem a existência da alma. De fato, se não se admite a existência do numerante, é também impossível a do numerável, de modo que, obviamente, nem o número existirá. Número, com efeito, é o que foi numerado ou o numerável. Mas se é verdade, que na natureza das coisas, só a alma ou o intelecto que está na alma têm a capacidade de numerar, torna-se impossível a existência do tempo sem a da alma (...).” Nesta passagem da “Física” fica claro que a alma, como lembra Reale20, é a conditio sine qua non do próprio tempo, pois é a alma que percebe a continuidade do tempo e do movimento. Eis a importância do estudo do “tratado da essência” para a compreensão da substância “supra-sensível”, pois é a alma, ou seja, a forma, ou melhor, 16 “Física”, D 11, 219 b 1-2. Reale lembra em “História da filosofia antiga v. V: Léxico, índices, bibliografia” verbete: Movimento que “em geral” significa todas as formas de mudança e devir, p.177. 18 “Física”, ∆ 11, 218 b 21-23. 19 “Física”, ∆ 14, 223 a 21-26. 20 Giovanni Reale, “História da filosofia antiga v.II:Platão e Aristóteles” P. 382. 17 11 Departamento de Filosofia a essência do homem que determina a percepção da passagem do tempo, ou seja, foi através da percepção, em sua alma, do contínuo movimento-temporal que levou Aristóteles a levantar a hipótese da necessidade da existência de um “Princípio Primeiro” que fosse a causa da continuidade do tempo e do movimento. Na seguinte passagem de Λ 621 Aristóteles expõe sua tese acerca da existência de uma substância “supra-sensível”, a qual é a causa de todo o movimento: “(...) Mas é impossível que o movimento se gere e se corrompa, por que ele sempre foi, e também não é possível que se gere e se corrompa o tempo, porque não poderia haver o antes e o depois do tempo. Portanto, o movimento é contínuo, assim como o tempo: de fato, o tempo ou é a mesma coisa que o movimento ou uma característica dele. E não há outro movimento contínuo senão o movimento local, antes propriamente contínuo só é o movimento circular. Se existisse um princípio motor e eficiente, mas que não fosse em ato, não haveria movimento; de fato, é possível que o que não tem potência não passe ao ato (...). Também não basta que ela seja em ato, se sua substância implica potência: de fato, nesse caso, poderia não haver o movimento eterno, porque é possível que o que é em potência não passe ao ato, Portanto, é necessário que haja um Princípio, cuja substância seja o próprio ato. Assim, também é necessário que essas substâncias sejam privadas de matéria, porque devem ser eternas, se é que existe algo de eterno. Portanto, devem ser ato.” Nesta passagem de Λ 6, Aristóteles apresenta sua hipótese de um “Primeiro Motor” partindo da questão da continuidade do tempo e do movimento, pois, segundo o filósofo, se o movimento e o tempo são eternos, obviamente não podem ser gerados tampouco ser destruídos. Se fosse possível a geração e a destruição do tempo, haveria um “antes” e um “depois” do tempo, ora, isto seria um total absurdo, pois, como já foi visto, “antes” e “depois” não são outra coisa senão concepções de tempo, o mesmo ocorre com o movimento, já que este nada mais é do que uma determinação de tempo. Portanto, este Princípio deve ser totalmente desprovido de potencialidade, ou seja, deve ser puro ato, pois se a substância do Princípio implicasse potencialidade, seria corruptível e se o Princípio fosse corruptível não existiria absolutamente nada de incorruptível. Porém, demonstrada a eternidade movimento-temporal, naturalmente o Princípio, que é a causa desta eternidade, deve ser ele próprio eterno, imaterial e ato 21 “Metafísica”, Λ 6 1071b 5-20. 12 Departamento de Filosofia puro. Este “Princípio Movente” eterno, perfeito e desprovido de potência, Aristóteles denominou de “Motor Imóvel”. A natureza do Primeiro Motor Como lembra David Ross22, as substâncias são as primeiras coisas a existirem e se todas as substâncias fossem perecíveis, todas as coisas seriam perecíveis. Porém o comentador aponta que, segundo Aristóteles, existem duas coisas que não são perecíveis, ou seja, o tempo e o movimento. Portanto, para haver um movimento e tempo eternos é necessário que haja um Princípio que tenha determinadas características que o permitam ser a causa deste contínuo movimento-temporal. Eis a passagem na qual Ross enumera as características do “Princípio Primeiro”: “To produce eternal motion there must be (1) eternal substance. So far the platonic Forms would suffice. But (2) this eternal substance must be capable of causing motion, which Forms are not. (3) It must not only have this power but exercise it. (4) Its essence must not be power but activity, for otherwise it would be possible for it not to exercise this power, and change would not be eternal, i.e. necessarily everlasting. (5) Such substance must be immaterial, since it must be eternal.” Como mostra Ross, em ordem de ser a causa da continuidade do tempo e do movimento, o Princípio tem que ser uma substância eterna cuja própria essência seja puro ato, ou seja, desprovida de potencialidade, pois do contrário não poderia exercer o seu poder de causar o movimento. Este Princípio deve também necessariamente ser eterno e conseqüentemente imaterial, pois se eternos são o movimento e o tempo eterno deve ser a sua causa. A eternidade significa que o Princípio move permanecendo ele próprio imóvel, ou seja, não sofre os efeitos do devir, do movimento, devido sua essência de puro ato. Estas características compõem o “Motor Imóvel”, concebido por Aristóteles como o “Princípio Primeiro” e causa de todo o movimento. A seguinte citação de Λ 723 expõe, com clareza, como o Estagirita concebeu a natureza do Primeiro Motor: 22 23 David Ross, “Aristotle”, p. 185. “Metafísica”, Λ 7, 1072b 13-18 e 24-30. 13 Departamento de Filosofia “Desse Princípio, portanto, dependem o céu e a natureza. E seu modo de viver é o mais excelente: é o modo de viver que só nos é concedido por breve tempo. E naquele estado Ele está sempre. Isso é impossível para nós, mas para Ele não é impossível, pois o ato de seu viver é prazer. E também para nós a vigília, a sensação e o conhecimento são sumamente agradáveis, justamente porque são ato, e, em virtude deles, também esperanças e recordações (...). Se, pois, nessa feliz condição na qual nos encontramos, às vezes, Deus se encontra perenemente, é maravilhoso; e se ele se encontra numa condição superior, é ainda mais maravilhoso. E nessa condição ele se encontra efetivamente. E Ele também é Vida, porque a atividade da inteligência é Vida, e ele é, justamente, aquela atividade. E a sua atividade, que subsiste por si, é vida ótima e eterna. Dizermos, com efeito, que Deus é vivente, eterno e ótimo; de modo que a Deus pertence uma vida perenemente contínua e eterna: esse, pois, é Deus.” Esta passagem de Λ 7 expõe, em detalhes, como o Aristóteles concebeu a natureza do Primeiro Motor. O filósofo mostra como a vida do Primeiro Motor é a “Vida” derradeira, ou seja, a vida de perfeição, pois ele se encontra na condição que para nós é apenas concedida por breves momentos, isto é, a condição da contínua contemplação. Para o homem é impossível a contemplação contínua, já que o homem sofre os efeitos da mudança, mas a essência do Primeiro Motor é o puro ato, o que implica imaterialidade e eternidade, o que significa que a sua atividade contemplativa é, assim como ele, eterna. Sendo a atividade da contemplação o mais sublime prazer, a vida do Motor Imóvel é o prazer sublime em contínua abundância, o que faz do seu viver o mais perfeito. Aristóteles concebe o Primeiro Motor como “Vida” no sentido forte, pois ele é a “atividade da inteligência” e esta atividade é Vida, ou seja, o Primeiro Motor é a inteligência em ato, a inteligência “em si e por si”. Sendo o Deus concebido por Aristóteles a inteligência por si que detém a vida da perpétua contemplação, o que será que ele pensa? O que o Primeiro Motor contempla continuamente? Ora, o Princípio Primeiro eterno, perfeito e puro ato que é em si a atividade da inteligência não pode contemplar outra coisa senão aquilo que há de mais perfeito para ser contemplado, ou seja, a si mesmo. Sendo a atividade da inteligência, o Primeiro Motor é, por si, puro pensamento, portanto, ao contemplar a si mesmo a inteligência divina não constitui outra coisa, senão, pensamento de pensamento. Eis a passagem de Λ 724 na qual Aristóteles, expõe a atividade pensante do Primeiro Motor: 24 “Metafísica”, Λ 7, 1072b 20-25. 14 Departamento de Filosofia “Ora, o pensamento que é pensamento por si, tem como objeto o que por si é mais excelente, e o pensamento que é assim maximamente tem como objetivo o que é excelente em máximo grau. A inteligência pensa a si mesma, captando-se como inteligível: de fato, ela é inteligível ao intuir e ao pensar a si mesma, de modo a coincidirem inteligência e inteligível. A inteligência é, com efeito, o que é capaz de captar o inteligível e a substância e é em ato quando os possui. Portanto, muito mais do que aquela capacidade, o que de divino há na inteligência é essa posse; e a atividade contemplativa é o que de mais prazeroso e mais excelente.” Portanto, esta é a natureza do Princípio Primeiro concebido por Aristóteles, um Princípio que é substância eterna, perfeita cuja essência é ato puro, que tem a Vida mais feliz e perfeita, ou seja, a vida da contínua contemplação, pois ele é a atividade da inteligência e esta atividade é a “Vida” em seu mais forte sentido, contemplando aquilo que há de mais perfeito, a si mesmo. Este, pois, é o Motor Imóvel. A relação entre o Motor Imóvel e o mundo Aristóteles concebeu a natureza do Primeiro Motor como o “Princípio Primeiro” que é eterno, perfeito, ato puro e que, como Movente Primeiro, deve ser absolutamente imóvel. No entanto, será o Motor Imóvel a única substância eterna e imóvel existente? Em Λ 8, o filósofo mostra que, além do Primeiro Motor, que produz o movimento eterno e único, há também outros movimentos eternos, os de translação, isto é, dos planetas que geram movimento eterno e contínuo, ou seja, o movimento circular. Aristóteles mostra que cada um destes movimentos gerados pelos astros tem que ser produzidos por substâncias que, assim como o Primeiro Movente, devem ser eternas e imóveis. Eis a passagem de Λ 825 na qual o filósofo afirma a existência destas substâncias: “De fato, a natureza dos astros é uma substância eterna, e o Movente eterno é anterior relativamente ao que é movido, e o que é anterior relativamente a uma substância deve necessariamente ser, ele mesmo, substância. Portanto, é evidente que deverão existir necessariamente outras substâncias e que deverão ser eternas por sua natureza, essencialmente imóveis e sem grandeza (...). Portanto, é evidente que existem essas substâncias, e que, destas, uma vem primeiro e a outra depois na mesma ordem hierárquica dos movimentos dos astros.” 25 “Metafísica”, Λ 8 !073a 34 à 1073b 3. 15 Departamento de Filosofia Nesta passagem de Λ 8 fica clara a percepção de Aristóteles de que o Motor Imóvel, por si só, não bastava para a explicação de todo o movimento, sendo necessária a existência de outras substâncias eternas e imóveis. Em vista disto, o filósofo concebeu, para estas substâncias, uma hierarquia de cinqüenta e cinco esferas que se estende desde o cosmo supra-sensível ou supra-lunar ao sensível ou sublunar. Em seu sistema hierárquico, Aristóteles estabeleceu que o Primeiro Motor move diretamente a primeira esfera e que as outras cinqüenta e cinco são movidas por inteligências motrizes análogas e hierarquicamente inferiores ao Motor Imóvel. A seguinte passagem de Λ 826 mostra como o filósofo concebeu esta hierarquia: “Todavia, se o conjunto das esferas deve explicar o que nos aparece, é necessário que para cada um dos planetas existam outras tantas esferas, exceto uma, que girem em sentido contrário e reconduzam sempre à mesma posição a primeira esfera do astro que, em cada caso, se encontra logo abaixo. Só desse modo que o conjunto de todas elas produza o movimento dos astros. Portanto, como as esferas nas quais se movem os astros são oito para os dois primeiros, e vinte e cinco para os outros, e, destas, só não devem girar ao contrário aquelas e que se move o planeta que vem logo abaixo, seguese que serão seis as que deverão produzir o movimento contrário para os dois primeiros planetas, e, para os quatro planetas seguintes serão dezesseis; o número completo das esferas, das que se movem em sentido normal e das que giram ao contrário será de cinqüenta e cinco.” Esta passagem mostra com clareza a concepção de Aristóteles da hierarquia das esferas e de como, através desta hierarquia, ocorre o movimento, no entanto, ainda resta uma questão. Como o Primeiro Motor pode ser a causa de todo o movimento permanecendo, ele próprio, imóvel? A atividade motora do Primeiro Motor remete a sua natureza de perfeição, pois, como já foi dito, o Motor Imóvel é o Princípio Primeiro eterno e de puro ato que é, em si, a “Vida” de perfeição, ou seja, a vida do puro pensamento, que só pode contemplar aquilo que há de mais perfeito, isto é, a si mesmo. Sendo assim, como ele causa o movimento? O Primeiro Motor move como o objeto do amor move o amante. Nas palavras de David Ross27 esta questão se torna mais clara: 26 27 “Metafísica” 1074a 1-10. David Ross, “Aristotle”, p. 186. 16 Departamento de Filosofia “And this movement, like the other special movement of the sun, moon and planets is due to the “intelligences”. These too move ‘as ends’, i.e. they move by being desired and loved. Their relation to the first mover is not specified, but since the first mover is the single ruler of the universe, that on which ‘the heaven and the whole of nature depends’, we must suppose that it moves the intelligences as the object of their desire and love. The detail of the system is left somewhat obscure, but we must probably think of which heavenly sphere as a unity of body and soul desiring and loving its corresponding ‘intelligence’.” Ross descreve com exatidão a ação motora do Primeiro Movente, o comentador mostra como as esferas, como compostos de corpo e alma, ou seja, sínolos de matéria e forma se movimentam impulsionados pelo amor e o desejo por suas determinadas inteligências e estas, por sua vez, devido sua natureza supra-sensível, causam o movimento de suas esferas devido seu amor e desejo pelo Primeiro Motor. Portanto, fica claro que o Motor Imóvel é a causa suprema de todo o movimento devido sua natureza de perfeição, que faz com que as inteligências motrizes movam, suas respectivas esferas, devido uma atração irresistível de desejo e amor para com o Princípio Primeiro, causando, assim, o movimento entre as esferas dos cosmos supralunar e sublunar. Como lembram Reale e Antiseri28, o Deus de Aristóteles por ser amado e não amante não é o criador do mundo tampouco das esferas, mas, sim, as esferas e o mundo, em certo sentido, “produziram a si mesmos” atraídos pela pureza da perfeição do Primeiro Motor. Portanto a relação entre o Primeiro Motor e o mundo se dá pela natureza de perfeição do Princípio Primeiro que é objeto de amor e desejo, cujo poder de atração faz com que as inteligências motrizes movam suas esferas e assim ordenem o cosmos, através do movimento. Conclusões Com o estudo do supra-sensível em Aristóteles, foi possível a percepção de como o filósofo alcançou uma resposta conclusiva para a questão da substância através da teoria de um “Princípio Primeiro” que é causa de todo o movimento. A filosofia platônica com sua “teoria das Formas” defendeu a existência de um mundo supra-sensível, no qual as Idéias eternas e perfeitas consistem no “ser por 28 Giovanni Reale e Dario Antiseri, “História da Filosofia vol. I: Filosofia pagã antiga”, p.203. 17 Departamento de Filosofia excelência” sendo o paradigma, ou seja, o modelo para os entes dom mundo real. No entanto, em sua “teoria da substância” Aristóteles mostrou que essência das coisas se encontra nas próprias coisas e nunca separadas delas, a essência é o que define a coisa tomando-a por si, ou seja, a essência é o princípio determinante que faz da coisa um tóde ti, um “este aqui”, isto é, uma substância individual. O melhor exemplo de uma substância individual estudado nesta pesquisa foi, com certeza, o homem, pois este, como mostra o Estagirita, nada mais é do que um sínolo, isto é, um composto de matéria e forma sendo o seu corpo a matéria que é “informada” pela alma. Ao conceber a alma como a essência do homem, ou seja, como o princípio que o define, que o faz ser aquilo que ele é, o filósofo chegou à conclusão de que é, através desta, que se torna possível a noção de um “antes” e um “depois”, isto é, da passagem do tempo. Ora, isto significa que é a alma do homem, devido sua capacidade racional, que percebe a continuidade movimento-temporal, o que significa que é através de sua essência que o homem percebe a eternidade do tempo e do movimento. Assim, é possível afirmar que foi através da percepção, em sua alma, da continuidade movimento-temporal que levou Aristóteles a desenvolver a hipótese da existência de um “Princípio Primeiro” que, assim como o tempo e o movimento, deveria ser eterno, pois se eternos são o movimento e o tempo necessariamente eterna deve ser a sua causa. Assim Aristóteles desenvolveu sua teoria da existência de um “Primeiro Motor Imóvel”. Com a teoria de um Motor imóvel que é eterno, perfeito e puro ato, Aristóteles concebeu uma causa para a origem de todo o movimento, mas que tipo de causa? Final? Eficiente? Na verdade, como mostra David Ross29 o Primeiro Motor é a causa eficiente por ser a causa final, o que significa que ele é o ser eterno que estende sua influência por todo o universo causando o movimento através da irresistível atração que a sua perfeição opera nas inteligências motrizes e nas esferas por elas movidas. Portanto, foi através da elaboração da teoria de uma substância supra-sensível imóvel, eterna, ato puro que é pensamento de pensamento, que Aristóteles chegou a uma resposta conclusiva para a questão da substância, pois ele não só demonstrou a origem do movimento, mas também demonstrou que é através de sua própria essência que o homem é capaz de conceber a existência da essência suprema, isto é, do Princípio Primeiro. 29 David Ross, “Aristotle”, p. 186. 18 Departamento de Filosofia Referências 1- ARISTÓTELES. Metafísica vols. I, II, III, 2ª edição. Ensaio introdutório, tradução do texto grego, sumário e comentários de Giovanni Reale. Tradução portuguesa Marcelo Perine. São Paulo. Edições Loyola. 2002. 2- ROSS, David. Aristotle. Sixth edition. New York. Routlegde. 1995. 3-ACKRLL, J.L. Aristotle the philosopher. Tenth impression. New York. Oxford University Press. 1995. 4-BARNES, Jonathan. Metaphysics. In: The Cambridge Companion to Aristotle. New York. Cambridge University Press. 1995. 5-REALE, Giovanni. História da filosofia antiga vol.II. 2ª edição. Tradução Henrique Cláudio de Lima Vaz & Marcelo Perine. São Paulo. Edições Loyola. 2002. 6-REALE, Giovanni & ANTISERI, Dario. História da filosofia: Filosofia pagã antiga. 2ª edição. Tradução Ivo Storniolo. São Paulo. Paulus. 2004. 7-MORA J.F. Dicionário de filosofia, tomos I, II, III, VI. 2ª edição. Trad. Maria Stela Gonçalves, Adail U. Sobral, Marcos Bagno & Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo. Edições Loyola. 2004. 19