Sobre sublimação e(m) análise

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Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, 36-45
Sobre sublimação e(m) análise*
Estela Ribeiro Versiani
O
presente trabalho tem como objetivo lançar algumas questões sobre a
noção de sublimação a partir de sua relação com a prática analítica. Nesse
sentido, buscam-se possíveis formas de articulação entre o trabalho de análise
e a sublimação. Partindo de alguns textos de Freud, são apontados dois eixos
principais segundo os quais essa articulação pode ser concebida.
Palavras-chave: Análise, sublimação, transferência, pulsão
T
his essay raises certain questions about the notion of sublimation and its
relationship with analytical practice. Possible modes of articulating
sublimation and the work of analysis are also considered. Taking several of
Freud’s texts as starting points, two main approaches towards this articulation
are indicated.
Key words: Analysis, sublimation, transference, instinct/drive
A
idéia deste trabalho é pensar o que
ocorre em análise à luz da noção
de sublimação. Sendo esse o norte que
guiará minhas elaborações, é importante
deixar claro, de antemão, que a sublimação vai ser aqui trabalhada nas suas possíveis relações com determinados aspec*
tos do trabalho analítico e que, portanto,
não há a pretensão de dar conta da sublimação enquanto conceito psicanalítico. Colocando em outros termos, gostaria de lançar algumas questões sobre a
noção de sublimação a partir de sua relação com a prática psicanalítica. Ao fa-
Trabalho apresentado no Encontro Latino-Americano dos Estados Gerais da Psicanálise,
realizado de 12 a 14 de outubro de 2001, em São Paulo.
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zer isso, é possível que algum tipo de definição de sublimação se delineie, mas
será uma definição que dirá respeito especificamente à relação a ser enfocada a
seguir, e não uma definição que dê conta
do conceito como um todo.
A dificuldade de chegar a uma “definição
psicanalítica” de sublimação não significa que não tenha pensado sobre a questão. A sensação que ficou, entretanto, é
que, por mais que me debruçasse sobre
a sublimação enquanto objeto de estudo,
ela escapava, fugidia, resistindo a ser limitada por uma definição. Apesar disso,
o termo tem me indicado um caminho,
embora não claramente demarcado, para
pensá-lo.
O sentido aproximado desse caminho diz
respeito, basicamente, a compreender a
noção de sublimação como direção possível da pulsão (uma das direções possíveis ou a direção possível?). A idéia, assim, é que a noção de sublimação seja
ampliada – para além do que se convencionou chamar de “sublimação artística”,
por exemplo.1 Abordar a sublimação dessa forma implica aproximá-la de outros
conceitos psicanalíticos, o que, longe de
simplificar a questão, parece a princípio
impossibilitar qualquer delimitação mais
precisa da noção, pois podemos pensar,
por exemplo, que o sintoma também é
um destino da pulsão, e como diferenciar,
então, o sublimatório do sintomático?
Existiria sempre uma diferenciação cla-
ra entre o sintoma como retorno do recalcado e o sublimado?
Não tenho a pretensão de necessariamente responder a questões como essas,
mas de deixá-las indicadas, antes de iniciar minha articulação, a fim de mostrar
por que caminho(s) a questão da sublimação tem me feito transitar.
Pensar o trabalho analítico à luz da sublimação só faz sentido se isso trouxer
um ganho para nossa compreensão tanto
acerca do que ocorre em análise como
acerca da própria noção de sublimação,
o que equivale a perguntar pelos ganhos
de uma articulação do tipo que estou
propondo aqui. Sugiro, entretanto, que
tal ganho não pode ser garantido a priori, e que, sendo assim, tal pergunta deverá ser deixada em suspenso para, só
depois (depois de minhas articulações,
portanto) ser retomada.
PRIMEIRAS
APROXIMAÇÕES
Com o objetivo de começar a pensar a
respeito de uma possível articulação entre o trabalho analítico e a sublimação,
foram escolhidos dois textos de Freud,
justamente os que incitaram meus primeiros questionamentos a respeito da
possibilidade de tal articulação: “A dissolução do complexo de Édipo”, de 1924,
e “Análise terminável e interminável”, de
1937.
Freud inicia o primeiro texto se perguntando pelo que levaria à dissolução, ao
1. Nesse sentido, concordo com André Green quando ele afirma que o campo da sublimação “vai
muito além daquilo a que normalmente a restringimos” (Green, 1997, p. 228).
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declínio do complexo de Édipo. Para
essa questão, propõe duas respostas, representantes de duas dimensões, a princípio aparentemente excludentes, mas
que Freud sugere como compatíveis, a
saber: uma visão ontogenética e outra filogenética. Pensando “ontogeneticamente”, o declínio do Édipo se daria por conta de sua própria “impossibilidade interna” (Freud, 1924, p.173), ou seja, pelo
fato de a satisfação esperada não ser alcançada. Partindo do princípio, entretanto, como Freud sugere, de que o complexo de Édipo é determinado hereditariamente, faz-se necessário levar em
conta também o fato de que ele será dissolvido simplesmente porque “chegou a
hora de sua desintegração” (Ibid.).
Em seguida, Freud procura delinear as
diferenças no desenvolvimento da sexualidade no menino e na menina, a partir do complexo de castração. Em “Análise terminável e interminável”, ele irá
voltar a essas diferenças, indicando
como comparecem em análise.
No menino, a dissolução do complexo
de Édipo é promovida pela ameaça de
castração, cuja efetividade é estabelecida, retroativamente, a partir da constatação da ausência do pênis feminino, que
torna sua própria castração representável. O medo de perder o pênis o leva a
renunciar ao objeto incestuoso, e os investimentos objetais são substituídos por
identificações. Além disso, como efeito
do declínio do complexo de Édipo, a autoridade dos pais é introjetada, formando o núcleo do superego.
Ainda como efeito desse processo – um
efeito que nos interessa particularmente
no contexto deste trabalho –, Freud afirma que
... as tendências libidinais pertencentes ao
complexo de Édipo são em parte dessexualizadas e sublimadas (algo que provavelmente acontece com toda transposição em
uma identificação) e em parte inibidas em
sua meta e transformadas em impulsos ternos. (Freud, 1924, p. 177)
Ele está chamando atenção, portanto,
para o fato de a sublimação ser uma conseqüência da dissolução do complexo de
Édipo, pois uma meta sexual é substituída por uma outra, a princípio não-sexual, mas sustentada pela força da pulsão sexual. O que podemos entender
aqui, levando em conta a referência feita à identificação, é que a substituição do
investimento objetal por uma identificação traz consigo, e é apoiada por, uma
mudança na meta, que não é mais expressamente sexual, mas que diz respeito
a uma relação de outra ordem.
Logo em seguida, Freud continua: “O
processo como um todo, por um lado,
preservou o órgão genital (...) e, por outro, o paralisou – removeu sua função”
(Freud, 1924, p. 177). Penso que com
essa frase ele está justamente descrevendo, de forma sucinta, o que ocorre na
sublimação, com a transformação, propulsionada pela força da pulsão sexual,
de uma atividade sexual em uma outra
atividade. O sexual é, portanto, preservado, mas demovido de sua função direta.
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O complexo de castração do menino,
que determina o declínio de seu complexo de Édipo, comparece em análise sob
a forma de um “repúdio à passividade”,
que Freud aborda em seu texto de 1937,
deixando claro que o que o homem rejeita não é a passividade em geral, mas
especificamente a passividade em relação a outro homem. Diz Freud (1937)
logo após fazer essa distinção: “... em
outras palavras, o ‘protesto masculino’
[Freud se refere aqui à expressão introduzida por Adler] nada mais é do que a
angústia de castração” (p. 252, nota 1).
O que, em última instância, levaria o homem à análise, portanto, seria sua luta
contra a passividade, seu “repúdio à feminilidade” (Ibid., p. 250).
Sabemos que o complexo de castração
se inscreve de forma distinta na menina,
uma vez que é justamente ele, no seu
caso, que introduz e torna possível o
complexo de Édipo. A diferença essencial, nas palavras de Freud (1924), é que
“a menina aceita a castração como fato
consumado, enquanto o menino teme a
possibilidade de sua ocorrência” (p.
178). A partir da constatação de sua
castração, abrem-se os três destinos
possíveis da sexualidade feminina, como
Freud (1931) aponta no seu trabalho dedicado a esse tema.
O primeiro destino possível é uma inibição sexual na qual a menina renuncia tanto a sua atividade fálica como a sua sexualidade em geral. O segundo caminho
leva a um “complexo masculino”, em
que o desejo de obter um pênis não é
abandonado, e que pode resultar em uma
escolha objetal homossexual manifesta.
O terceiro destino, que Freud considera
como a feminilidade normal, implica
uma transformação do desejo de ter um
pênis em um desejo pelo pai, que passa
a ser tomado como objeto. E Freud
(1933[1932]) completa: “A situação feminina só é estabelecida, entretanto, se o
desejo por um pênis é substituído pelo
desejo por um bebê” (p. 128), de acordo com “uma antiga equivalência simbólica” (Ibid.).
Apesar dessa distinção aparentemente
bem delimitada entre os três destinos,
Freud deixa ver que a questão não é tão
simples assim, ao chamar atenção para
o fato de que, mesmo na mulher que
aparentemente desenvolveu sua feminilidade, persiste o desejo (ainda que inconsciente) por um pênis:
É estranho (...) o quão freqüentemente descobrimos que o desejo pela masculinidade
foi retido no inconsciente e que, a partir de
seu estado de recalque, exerce uma influência perturbadora. (Freud, 1937, p. 251)
E é justamente esse persistente desejo
pela masculinidade que Freud considera
como força motivadora da entrada da
mulher em análise. Como ele diz, “seu
motivo mais forte ao buscar o tratamento era a esperança de que, afinal, ela ainda poderia obter um órgão masculino”
(Freud, 1937, p. 252). Enquanto o homem chega em análise procurando
uma solução para o conflito contra sua
feminilidade, então, a mulher chega
com a esperança de conseguir o tão almejado pênis, que é uma forma do seu
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conflito com a feminilidade se mostrar.
Como Freud deixa claro, entretanto, nenhum dos dois encontra o que está buscando. Isso porque, segundo ele, “o repúdio da feminilidade pode ser nada mais
do que um fato biológico” (Freud, 1937,
p. 252) e, portanto, deparar-se com esse
repúdio em análise é atingir o “campo
biológico” (Ibid.) no qual o trabalho analítico não tem mais efeito. Freud conclui
esse texto de 1937 dizendo ser difícil
afirmar se foi possível dominar esse repúdio em um determinado tratamento
analítico e que a alternativa é “nos consolarmos com a certeza de que fornecemos à pessoa analisada todo encorajamento possível no sentido de ela reexaminar e alterar sua atitude em relação a
ele [ao repúdio]” (Ibid., p. 253).
SUBLIMAÇÃO COMO EFEITO DA ANÁLISE
A partir dos dois textos de Freud abordados acima, uma primeira, e talvez mais
óbvia, articulação possível seria a de pensar que, assim como a partir do complexo de Édipo, abrem-se diferentes possibilidades de desenvolvimento para a sexualidade (inclusive a possibilidade da
sublimação, como Freud nos mostrou),
a análise também possibilitaria um caminho de sublimação para a pulsão. Pelo
efeito de seu trabalho, portanto, a análise abriria um destino sublimatório para a
pulsão, desviando para outras metas a
meta sexual originária. Freud inclusive,
na última de suas cinco “lições de psicanálise”, publicadas em 1910, cita a sublimação como um dos possíveis caminhos para as moções pulsionais revela-
das pela análise. Como ele diz, uma vez
que o recalque é suspenso pela análise,
“o caminho para a sublimação [da pulsão até então recalcada] se torna livre
novamente” (Freud, 1910[1909], p. 54).
Em relação a essa idéia, cabem alguns
comentários. Em primeiro lugar, sabemos que a sublimação tem um limite.
Como lembra Lacan, ao discutir essa
questão, “no indivíduo (...) encontramonos diante de limites. Alguma coisa não
pode ser sublimada, há uma exigência libidinal, a exigência de uma certa dose, de
uma certa taxa de satisfação direta” (Lacan, 1997, p. 116-7). Com isso, Lacan
está reafirmando algo já dito por Freud,
que, na “lição” a que nos referimos acima, por exemplo, diz: “Uma determinada porção das moções libidinais recalcadas tem direito a satisfação direta e deve
encontrá-la na vida” (Freud, 1910[1909],
p. 54). A sublimação, portanto, não
pode ser o único destino oferecido pela
análise à pulsão sexual.
Freud, inclusive, irá nos advertir para o
fato de que não é necessariamente à sublimação que uma análise deve se direcionar. Em um de seus artigos sobre técnica, “Recomendações aos médicos que
exercem a psicanálise”, Freud fala da
tentação que o analista pode ter de querer indicar a seu paciente “novas metas
para as tendências que foram liberadas
[por meio da análise]” (Freud, 1912b, p.
118), ou seja, de encorajá-lo a seguir a
via da sublimação. Chama atenção em
seguida para o fato de que “nem todo
neurótico possui grande talento para a
sublimação” (Ibid., p. 119) e que, se in-
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sistirmos com o paciente nessa via como
alternativa às satisfações pulsionais “mais
acessíveis e convenientes” (Ibid.), poderemos tornar sua vida mais difícil.
Conclui essa argumentação afirmando
que “esforços de, invariavelmente, se
fazer uso do tratamento analítico para
ocasionar a sublimação da pulsão, embora sem dúvida sempre louváveis, estão
longe de ser aconselháveis em todos os
casos” (Ibid.). Penso que Freud, com
essa passagem, que não deixa de apresentar pontos enigmáticos (é sempre louvável, mas em alguns casos desaconselhável promover a sublimação?), está
apontando para o erro de pensar a sublimação como constituindo necessariamente a “saída” para a neurose.
Além disso, a princípio, Freud parece
estar se referindo à sublimação como
efeito consciente da análise, uma vez
que sua ênfase é no fato de o analista
poder apontar caminhos (sublimatórios)
a seu paciente. Mas ele também fala que
naqueles que “têm uma capacidade para
a sublimação” (Freud, 1912b, p. 119), ‘o
processo geralmente acontece por si
mesmo assim que suas inibições tiverem
sido superadas pela análise’” (Ibid.). Ou
seja, a sublimação pode aparecer como
efeito “natural” da análise, sem uma intervenção direta do analista nesse sentido.
Pensar a sublimação como efeito da análise pode levar a elaborações acerca do
final de análise, no sentido de pensar que,
ao final de sua análise, o analisa(n)do
terá a via da sublimação como direção
pulsional privilegiada, embora não exclusiva. Apesar de considerar ser este um
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caminho legítimo para procurar delimitar
uma articulação entre sublimação e o trabalho de análise, gostaria de propor outro.
SUBLIMAÇÃO NA ANÁLISE
A idéia que gostaria de introduzir aqui é
que, além de a sublimação poder ser um
efeito do trabalho de análise, esse próprio
trabalho pode ser concebido como tendo uma dimensão sublimatória. Pois,
numa psicanálise, o sexual se transforma em trabalho, possibilitando-o (é a
pulsão sexual que propulsiona o trabalho
psicanálise), e, portanto, penso fazer sentido conceber esse trabalho como “sublimatório”. Voltando a uma afirmação de
Freud em “A dissolução do complexo de
Édipo” para a qual chamei atenção anteriormente por me parecer sintetizar o
processo de sublimação – a saber: “O
processo [da dissolução do Édipo] como
um todo, por um lado, preservou o órgão genital (...) e, por outro, o paralisou
– removeu sua função” (Freud, 1924, p.
177), penso que, também em análise, o
sexual é preservado (na transferência),
mas destituído de sua função (e transformado em trabalho).
A sublimação, apesar de constituir um
desvio para uma meta não mais expressamente sexual, é sustentada pela pulsão
sexual. De forma análoga, o trabalho de
análise não é em si sexual, mas só é possível por conta do sexual da transferência. E assim como, a partir do complexo de Édipo, diferentes caminhos se
abrem, a transferência permite que o sexual leve a outros caminhos que não explicitamente sexuais.
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Com essa idéia, não considero estar
abandonando o tema do final de análise
ao qual fiz alusão acima, uma vez que falar do trabalho de análise é falar de sua finalidade e, portanto, de seu fim. Pensar,
com Freud, a análise como interminável
implica que o que está sendo feito desde
o início do trabalho caracteriza o seu fim.
Para desenvolver aqui essa sugestão de
que o próprio trabalho de análise tem
uma dimensão “sublimatória”, diferentes
aspectos desse trabalho poderiam ser
privilegiados como norte. Minha escolha
foi abordar essa articulação pela via da
transferência, “motor da análise”, e o
objetivo a seguir, portanto, é usar a
transferência como porta de entrada para
pensar possíveis entrelaçamentos do trabalho de análise com a sublimação.
SUBLIMAÇÃO E TRANSFERÊNCIA
Uma primeira dimensão da transferência
que vai ao encontro de uma possível articulação com a sublimação é a idéia de
que a transferência não consiste meramente numa repetição, mas diz respeito
a algo de criativo. A transferência, portanto, não apenas repete “imagos infantis do sujeito” (Freud, 1912a, p. 102), mas,
ao atualizar tais imagos, permite que
algo de novo apareça, modificando aquilo que reproduz. Como diz Lacan – que,
no seminário dedicado à transferência,
acentua sua dimensão criadora – “se a reprodução é uma reprodução em ato, então existe na manifestação da transferência algo de criador” (Lacan, 1992, p. 176).
Partir do princípio de que a transferência cria algo parece-me contribuir para a
idéia de que o trabalho que se dá em análise tem um caráter de sublimação. Pois
o ato de criação, pensado a partir da psicanálise, nos leva à noção de sublimação,
na medida em que se considera que uma
criação artística, por exemplo, se dá a
partir de um desvio da pulsão sexual para
uma meta aparentemente não-sexual.
Ainda em relação à transferência, Lacan
se refere a ela como uma “fonte de ficção”, dizendo que, na transferência, “o
sujeito fabrica, constrói alguma coisa”
(Lacan, 1992, p. 176). Podemos pensar,
então, que parte do trabalho de análise se
refere à construção de algo e não simplesmente a um resgate de alguma coisa que
se encontrava escondida (recalcada). E
a sugestão é que esse trabalho de construir possui uma dimensão de sublimação.
Entretanto, simplesmente afirmar que a
transferência não se limita a uma repetição não encerra a questão. Afinal, fazendo minha a pergunta de Tania Rivera
(2000): “O que permitirá que da repetição do mesmo algo se dê diferente?” (p.
40). Remetendo-se ao jogo do fort-da
em busca de uma resposta para essa
questão, a autora irá sugerir que a transferência, assim como o jogo do carretel,
possibilita um “pôr em cena” da repetição, e que tal encenar “é repetir, mas,
repetindo, tornar-se outro” (Ibid., p.
41). É justamente esse movimento de
pôr em cena, conforme entendo, que
permite que, em análise, a partir do mesmo, emerja o novo ou, nas palavras da
autora, “permite ver-se outro, no mesmo” (Ibid., p. 46).
Freud (1914) nos mostra como o pacien-
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te em análise a princípio atua – em vez
de recordar – aquilo que encontra-se esquecido ou recalcado, ou seja, ele repete e não recorda. Em seguida comenta
que esse repetir é de fato uma forma de
recordar e que, na sua “compulsão à repetição”, o paciente está recordando,
embora de uma forma diferente, pois “os
impulsos inconscientes não querem ser
lembrados da forma que o tratamento
deseja que eles sejam” (Freud, 1912a, p.
108).
O analista, contudo, continua querendo
que seu paciente recorde – no sentido de
fazer uma “reprodução no campo psíquico” (Freud, 1914, p. 153) – aquilo
que ele insiste em repetir, o que contribui para que haja uma “luta perpétua”
(Ibid.) entre paciente e analista. Luta
essa que se encena, podendo chegar a
uma solução, na transferência: “O principal instrumento (...) para refrear a
compulsão à repetição do paciente e
torná-la um motivo para a recordação
encontra-se no manejo da transferência”
(Ibid., p. 154). A partir das repetições
que se mostram na transferência, então,
é possível chegar a determinadas recordações até então recalcadas.
Sabemos que transformar a repetição em
recordação não constitui o único trabalho da análise, uma vez que a perlaboração também desempenha papel funda-
mental no tratamento analítico, especialmente no que diz respeito à superação
de resistências. No contexto deste trabalho, entretanto, a idéia não é abordar a
especificidade da perlaboração,2 mas antes ressaltar como, a partir da transferência e na transferência, é possível que o
trabalho analítico se dê, provocando
mudanças e deixando que, no mesmo,
compareça o novo.
A transferência, ao atualizar conflitos
sexuais infantis,3 torna possível o trabalho analítico e, aqui, volto a sugerir um
caráter de sublimação ao que se dá em
análise, com o sexual sendo transformado em trabalho. Penso que essa idéia se
ilustra de modo exemplar no trabalho de
Freud acerca da Gradiva de Jensen, no
qual a maneira como o amor suscita trabalho, belamente descrita por Jensen, é
apontada por Freud.
A TRANSFERÊNCIA A PARTIR DE GRADIVA
Como o amor se faz é graças a dois.
(Guimarães Rosa)
Na quarta parte do trabalho que Freud
(1907[1906]) intitulou “Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen”, ele mostra
como Zoe – a “Gradiva” do romance de Jensen – consegue curar Hanold – o arqueólogo protagonista da história – de seus
delírios, de maneira análoga a uma análise.
2. O que não quer dizer que, em outro momento, não possa ser interessante pensar as
ressonâncias que a articulação entre a sublimação e o trabalho analítico poderiam trazer para
a noção de perlaboração.
3. Em “Além do princípio do prazer”, Freud (1920) fala de como as reproduções na transferência
“sempre têm como tema alguma porção da vida sexual infantil – isto é, do complexo de Édipo e
seus derivados” (p. 18).
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O que havia provocado o delírio de Hanold tinha sido uma combinação de determinados desejos sexuais seus (em relação à própria Zoe) com uma resistência a que esses desejos se tornassem
conscientes, daí a necessidade de que
aparecessem apenas sob a forma de sintomas. A partir de suas conversas com
Zoe, entretanto, essas memórias, até então recalcadas, conseguem vir à tona, e
seu amor por ela pode ser expresso
conscientemente. Como diz Freud, o
“tratamento” dado a Hanold por Zoe
“consistiu em lhe devolver, pelo exterior, as lembranças recalcadas que ele
não conseguia libertar no seu interior”
(Freud, 1907[1906], p. 88).
Mas isso só foi possível pelo fato de Zoe
se encontrar numa posição muito especial em relação a Hanold: a de seu objeto de amor. Assim, quando Freud nos
diz que Zoe se encontrava numa “posição ideal” (Freud, 1907[1906], p. 89)
para desempenhar a tarefa analítica de
trazer para a consciência o material recalcado, podemos pensar essa posição
em termos transferenciais. Afinal, numa
análise, é o amor transferencial que possibilita o trabalho analítico.
A tradução final do delírio de Hanold feita por Zoe – “Olha, tudo isso apenas significa que você me ama” (Freud, 1907
[1906]) – pode ser pensada como análoga a uma interpretação da transferência por parte do analista. Além disso, nos
remete ao fato de a resolução da trans-
ferência ser considerada por Freud como
“uma das principais tarefas do tratamento” (Freud, 1912b, p. 118). E, para que
tal resolução seja possível, é necessário
que o analista, assim como Zoe, sustente
a posição de ser alguém que suscita o
afeto amoroso de seu paciente.
O fato de ser possível fazer uma analogia entre o procedimento usado por Zoe
e o procedimento analítico, entretanto,
não significa que a sobreposição entre os
dois métodos seja total. No primeiro
caso, Zoe era objeto tanto do afeto consciente de Hanold durante o “tratamento”
como objeto de seu amor infantil recalcado. Já na análise, sabemos que não há
tal coincidência e que, ao mesmo tempo
em que o analista sabe que é a sua pessoa que suscita o amor de transferência,
ele sabe também que esse amor “é por
outro alguém”. Tomando liberdade com
as palavras de Guimarães Rosa, poderíamos dizer que o amor de transferência se faz “graças a três”.4
Além disso, Zoe foi capaz de retribuir o
amor de Hanold que, no final do processo, já se tornara consciente. Freud, por
outro lado, em vários momentos, adverte para os riscos de o analista querer retribuir o amor de seus pacientes e sugere que, se antes da análise o analista era
um estranho para o paciente, ele “deve
se esforçar para novamente tornar-se
um estranho após a cura” (Freud, 1907
[1906], p. 90).
E a cura na análise, assim como na Gra-
4. O próprio fato de a transferência ser “a três”, inclusive, já indica que a análise pode proporcionar
uma outra “solução” que não a erótica.
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diva, é uma “cura pelo amor” (Freud,
1907 [1906]), por um amor que provoca trabalho. O que nos traz de volta à
questão que instigou estas elaborações.
PRÓXIMOS
PASSOS
O que foi feito neste breve percurso
constitui uma primeira aproximação ao
objetivo inicial de pensar o que ocorre
em análise à luz da sublimação. A partir
da sugestão, deixada aqui, de que ao
trabalho de análise pode ser conferido
um caráter de sublimação, abrem-se
diferentes possibi l i d a d e s de desenvolvê-la.
Já de imediato ocorre-me algumas questões, que poderão ser abordadas em outro momento, decorrentes da sugestão
de que o que se dá em análise tenha uma
dimensão de sublimação: O trabalho analítico é um modo de satisfação da pulsão? Como pensar os efeitos de um trabalho que é por si só sublimatório? De
que forma a questão da “valorização social” – presente na noção freudiana de
sublimação – se articula (ou não) com o
que está sendo proposto aqui? E ainda
uma outra questão que já havia sido anteriormente apontada, mas deixada em
suspenso: Que ganhos a articulação sugerida – entre trabalho analítico e sublimação – nos traz?
Essa última questão continuará tendo sua
resposta remetida a um só depois, uma
vez que, no momento, o que posso dizer
é apenas que tal articulação provocou
trabalho (de elaboração e de escrita). O
que não deixa de ser um ganho. „
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RIVERA, T. Transferência, arte, psicanálise.
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Artigo recebido em outubro/2001
Aprovado em janeiro/2002
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002
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