PAN-AMERICANISMO E PROJETOS DE INTEGRAÇÃO

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PAN-AMERICANISMO E PROJETOS DE INTEGRAÇÃO: TEMAS RECORRENTES NA HISTÓRIA
DAS RELAÇÕES HEMISFÉRICAS (1826-2003).
Clodoaldo Bueno*
1. As raízes: o Congresso do Panamá (1826)
O Congresso do Panamá é o marco inicial da história do pan-americanismo. Convocado por
iniciativa de Bolívar, realizou-se entre 22 de junho e 15 de julho de 1826, com a presença de delegados de
países centro e sul-americanos recém independentes, além de observadores europeus. O objetivo do
conclave era a constituição de uma união, liga e confederação perpétua das jovens nações.
Já em 1815, por ocasião de sua estada na Jamaica, Bolívar sonhara com uma América Latina
“governada como uma grande república”, embora reconhecesse que isto fosse impossível. O Libertador
planejou inicialmente um congresso, no qual apenas os governos dos países latino-americanos fossem
representados, destinado a dar alguma consistência à união da América Latina. Todavia, em fins de 1825,
em nome da solidariedade continental, convidou os Estados Unidos e, pelo fato de estarem ligadas ao
continente em razão do comércio, finanças e possessões, convidou também a Grã-Bretanha e a Holanda
para assistirem ao conclave.1
O ministro do exterior britânico, Canning2, ao enviar um representante, estava interessado em saber
até que ponto as novas nações estavam dispostas a aceitar a influência norte-americana, com o receio de
que do Congresso do Panamá surgisse uma federação de nações liderada pelos Estados Unidos, pois o
sentido das instruções passadas pelo Departamento de Estado aos seus delegados era neutralizar o mais
possível a ingerência comercial inglesa nas novas nações. De fato, os aspectos comerciais ocupavam o
primeiro plano das preocupações do governo norte-americano.3
No Senado norte-americano as opiniões estavam divididas quanto ao envio de uma delegação ao
congresso do istmo. Havia uma minoria de senadores frontalmente contrária à participação de seu país no
congresso; outra partidária, por entender que ela seria benéfica aos interesses econômicos nacionais.
Todavia, entre essas duas posições havia um denominador comum: os Estados Unidos não deveriam
abandonar sua tradicional linha de neutralidade e não firmar, em hipótese alguma, qualquer aliança
*
Universidade Estadual Paulista (UNESP) – campus de Assis.
FENWICK, 1965, p.25-6; WHITAKER, 1964, p.424-5.
2
Canning assumiu o ministério do exterior britânico em 1822 e em 1827 tornou-se primeiro ministro.
1
2
comprometedora.4 Entre os representantes, havia aqueles dos Estados do sul que enxergavam nos países
situados abaixo do Rio Grande eventuais competidores na produção e comercialização de produtos que
consistiam na principal riqueza daqueles estados: cereais, gado, tabaco e algodão. Os representantes dos
Estados do nordeste americano vislumbravam, na aproximação dos Estados Unidos à América Latina,
possibilidades de ampliação das exportações, o que daria saída às manufaturas que sobravam no mercado
interno.5
Os delegados nomeados por pelo presidente J. Q. Adams não chegaram a comparecer ao congresso.
Um deles, Richard C. Anderson, faleceu durante a viagem; o outro, John Sergeant, nem sequer partiu, pois
se soube, em Washington, que o congresso do istmo havia se interrompido para se reunir, posteriormente,
em Tacubaya. Os norte-americanos, assim, acabaram deixando o campo livre para a arguta diplomacia
britânica.
Em razão dos receios existentes em relação aos planos do Libertador6, o congresso não logrou os
objetivos esperados. Os seus trabalhos encerraram-se em 15 de julho de 1826 com a assinatura de um vago
“Tratado de União, Liga e Confederação Perpétua” pelos quatro Estados representados (México, América
Central, Colômbia e Peru)7, que não chegou a ser ratificado por todos os signatários. 8 Mesmo assim, o
encontro foi utilizado, posteriormente, como precedente histórico para a convocação de congressos do
mesmo gênero, dando assim certa continuidade ao espírito de colaboração pan-americana.9 Foi em nome
desse espírito pan-americano, alentado ao longo do século XIX por meio de congressos sem periodicidade,
que o governo dos Estados Unidos convidou, quase no apagar daquele século, os governos latinoamericanos para participar de uma conferência internacional americana em Washington, inaugurando uma
nova etapa nas relações interamericanas. O capitalismo norte-ameticano procurava expandir-se para além
das fronteiras de seu território e penetrar na América Latina. Foi neste momento que os Estados Unidos
adotaram a retórica pan-americanista.
3
Cf. WHITAKER, 1964, p.425-6.
Cf. WHITAKER, 1964, p.430-1. Veja-se ainda FOHLEN, 1967, p.24.
5
Cf. WHITAKER, 1964, p.428-9. Por ocasião do debate no Senado norte-americano, houve manifestação de preconceito por
parte de um representante do Sul: “[o seu país] não devia ter compromisso algum com repúblicas que possuem generais
negros nos seus exércitos e senadores mulatos nos seus parlamentos”. (Apud LOBO, 1939, p. 11).
6
FENWICK, 1965, p.29.
7
Apesar do pequeno número de representações presentes ao congresso, esses quatro Estados abrangiam então boa parte do
território americano que mais tarde se dividiu em doze Estados independentes.
8
Cf. FENWICK, 1965, p.30. WHITAKER, 1964, p.431-2.
9
Entre esses congressos, destacam-se os Lima, realizados em 1847 e 1864. (FENWICK, 1965, p.46).
4
3
2. O novo pan-americanismo e as conferências internacionais americanas.
A partir de 1830 os Estados Unidos retraíram-se na América Latina, pois seus comerciantes e
industriais preferiram o crescente mercado interno, resguardado pelo protecionismo alfandegário. Os
tratados bilaterais substituíram a política latino-americana de Jefferson e Monroe.10 Só no último quartel do
século XIX os Estados Unidos voltaram a considerar a América Latina como um todo, formulando uma
política exterior pan-americana com objetivos econômicos nítidos.11
Após o período de Reconstrução (1865-77), que do ponto de vista econômico significou o triunfo
do industrialismo sobre o agrarismo12, o mercado interno norte-americano estava saturado de manufaturas
e havia capital para ser aplicado. O período que vai de 1870 até cerca de 1893, é denominado “idade áurea
da América”.13 A jovem nação, já com a maior economia do planeta, reivindicou sua integração no rol das
grandes potências e procurou formar sua esfera de influência. O comércio e a grande finança passaram a
informar a política externa dos Estados Unidos. A América Latina passou a ser vista pelos norteamericanos como uma área naturalmente destinada à expansão econômica do seu país, tanto por razões
geográficas quanto históricas, pois americanos latinos e americanos anglo-saxônios tinham em comum o
passado colonial.14
Foi nessa conjuntura que o Secretário de Estado norte-americano, James Blaine, convocou todas as
nações do hemisfério, à exceção do Canadá, para uma conferência internacional, que teve lugar em
Washington, no período de 20 de outubro de 1889 a 19 de abril de 1890. Pelo exame da agenda do
encontro percebe-se claramente a intenção norte-americana de ampliar o intercâmbio comercial com a
América Latina: medidas tendentes a promover a prosperidade dos diversos Estados americanos, união
pan-americana de comércio, comunicação dos portos, união aduaneira, pesos e medidas, direitos de
invenção, moeda comum, e arbitramento.15 Como se vê, os temas de natureza econômica eram
predominantes.
A Primeira Conferência teve poucos resultados práticos. Todos os projetos apresentados pelos
norte-americanos, à exceção do referente à criação de uma união das repúblicas americanas, foram
10
O primeiro tratado bilateral entre o Brasil e os Estados Unidos foi celebrado em deaembro de l828. William Tudor, excônsul norte-americano em Lima, na ocasião encarregdo de negócios no Rio de Janeiro. (Cf. WHITAKER, 1964, p.437).
11
WHITAKER, 1964, p.433-5. LOEWENHEIM, 1969, p.42-3. FENWICK, 1965, p.46.
12
Vejam-se EKIRCH JR., 1965, p.154. LINK, 1965, v.1, p.24-5. MORISON & COMMAGER, s.d., t.2, p.194-214.
13
FISCHMANN, 1966, p.3. LINK, 1965, v.1, p.24-6. PÉPIN, 1938, p.32, 35.
14
FOHLEN, 1967, p.24. THOMSON, 1973, p.28. BOSCH GARCIA, 1961, passim. COSTA, 1968, p.178-183. PÉPIN, 1938,
p.32, 96. BANDEIRA, 1973, p.125, 136. FERREIRA, 1971, p.125. LOEWENHEIM, 1969, p.42.
15
Cf. LOBO, 1939, p.50-5. RODRIGUES, 1966, p.100.
4
rejeitados pelos delegados latino-americanos. A projetada união aduaneira proposta por aqueles, inspirada
no Zollverein alemão (união aduaneira criada em 1833, que foi um dos fatores da unidade alemã, afinal
completada em 1870), provocou amplas discussões, tendo os latino-americanos dado mostras de visão
larga ao perceber as decorrências de sua eventual aprovação. O representante argentino Roque Saenz Peña
apresentou contra o projeto argumentos ainda hoje válidos para certas repúblicas: todos os países da
América Latina tinham então uma economia caracterizada pelo predomínio do setor agroexportador e,
nessas condições, a principal fonte de ingressos era constituída pelos impostos sobre a importação de
manufaturados. Sem uma indústria nacional, o estabelecimento da liberdade de troca, além de significar a
abdicação de preciosa fonte de ingressos, comprometeria, a curto e a longo prazos, as possibilidades de
industrialização. A delegação do Império do Brasil partira com instruções expressas para rejeitar qualquer
projeto no estilo do Zollverein, reafirmando, assim, a recusa da proposta de 1887 do então presidente dos
Estados Unidos, Grover Cleveland. 16
A Conferência, todavia, criou uma associação permanente das repúblicas do continente, sob a
denominação de “União Internacional das Repúblicas Americanas”, em 14 de abril de 1890. Era uma
organização frouxa, destinada a compilar e distribuir dados relativos ao comércio continental. Para isto,
criou-se o “Bureau Comercial das Repúblicas Americanas”, sediado em Washington, que por meio de um
boletim publicaria dados estatísticos, tarifas e regulamentos aduaneiros de interesse para o desenvolvimento
do comércio entre os países representados.17 O bureau deveria ainda organizar as conferências panamericanas. Uma “união” frouxa e um modesto bureau, mas permanentes. Este, aos poucos, teve suas
atribuições ampliadas pelas sucessivas conferências do mesmo gênero e transformou-se num agente do
comércio norte americano. Ambas as instituições são as antecessoras da atual Organização dos Estados
Americanos.18 Cumpre ainda registrar que a idéia da criação de um organismo financeiro continental
remonta às primeiras conferências internacionais americanas.19
A União Pan-americana despertava, na época, receio entre os hispano-americanos. Vivia-se o
momento dos “panismos”, que acobertavam desejos de hegemonia, como por exemplo, pan-germanismo e
pan-eslavismo, atrás dos quais estavam, respectivamente, Alemanha e Rússia. O aparecimento, neste lado
16
LOBO, 1939, p.55-6. CASTAÑEDA, 1958, p.10-11. Arquivo Histórico do Itamaraty (AHI), I Conferência Internacional
Americana. BANDEIRA, 1973, p.127.
17
PÉPIN, 1938, p.33. FENWICK, 1965, p.50. GOMEZ ROBLEDO, 1958, p.168.
18
Embora a OEA tenha sido criada por ocasião da IX Conferência Internacional Americana, realizada em Bogotá (1948),
como um bloco regional no âmbito da ONU, a sua existência é contada a partir de 1890. É ainda interessante recordar que se
convencionou comemorar o “dia do pan-americanismo” em 14 de abril, dia da criação da União das Repúblicas Americanas.
5
do Atlântico, de um pan-americanismo patrocinado pelos Estados Unidos, provocava nos latinoamericanos a sensação de que este país apenas procurava exercer sua hegemonia sobre o hemisfério, por
meio da busca de uma união continental, transformada em palavra de ordem.
A segunda conferência internacional americana realizou-se em 1902, na cidade do México, com
uma agenda igual à da primeira. A Terceira Conferência Internacional Americana teve ampla repercussão.
Realizou-se no Rio de Janeiro entre 23 de julho e 27 de agosto de 1906. Com exceção do Haiti, da
Venezuela e do Canadá (este não foi convidado), todas as demais nações do hemisfério enviaram
delegações, o que resultou num total de 19 países representados, incluído o Brasil. 20
O programa do encontro abrangeu, em linhas gerais, quase todas as propostas apresentadas pelos
diferentes governos. Sérios problemas, todavia, tiveram que ser contornados sob pena de pôr em risco o
sucesso do conclave. O expediente utilizado, sobretudo pelo Secretário do Estado E. Root, foi evitar a
inclusão de temas considerados melindrosos. O chanceler do país anfitrião, barão Rio Branco, teve a
mesma opinião.21 Foram, assim, desprezados os temas que pudessem reacender ou intensificar
controvérsias, até mesmo porque não se deveria esperar grandes resultados do encontro. 22
No que se referia à cobrança de dívidas públicas, a solução foi propor a transferência da discussão
do assunto para a Segunda Conferência de Paz que se realizaria em Haia, oportunidade em que se
solicitaria o exame da validade, no âmbito do Direito Internacional Público, da cobrança de dívidas com o
uso da força.23
A doutrina Monroe (naquele momento, Theodore Roosevelt acabara de reinterpretá-la em sua
Mensagem de 6 de dezembro de 1904) foi, da mesma forma, excluída das discussões. O Departamento de
Estado não consentiu que o assunto fosse apreciado em um fôro internacional, no qual teriam assento todas
as nações latino-americanas abrangidas, unilateralmente, pelo corolário Roosevelt.
O programa da conferência, a final aprovado, constou de 14 itens: Secretaria Internacional das
Repúblicas Americanas, arbitramento, reclamações pecuniárias, dívidas públicas, codificação do Direito
Internacional Público, naturalização, desenvolvimento das relações comerciais entre as repúblicas
19
LEITE, 1959, p.30.
“Haiti não tomou parte por dificuldades financeiras. Venezuela, pelo fato de seu encarregado de negócios em Washington
ter sido tratado com pouco caso durante os trabalhos preparatórios da Conferência, e pelo fato do ditador da Venezuela ter
entendido que Caracas deveria ser a sede da reunião”. (AHI. Despacho para Washington, 6 nov. 1906).
21
Apud LINS, 1965, p.352. Nabuco também afirmou que “os Congressos de delegados não tocam em certos pontos
melindrosos,havendo uma tendência geral de os ocultar da opinião pública (...)” (Do discurso de Nabuco na Universidade de
Chicago, em 28 ago. 1908. In NABUCO, s.d., p.148-9).
22
McGANN, 1960, p.358-9.
20
6
americanas, leis aduaneiras e consulares, privilégios e marcas de fábrica, política sanitária e quarentenas,
estrada de ferro
pan-americana, propriedade literária, exercício de profissões liberais, e futuras
conferências.24 Quase nada mudou em relação ao temário das conferências anteriores.
Durante a Terceira Conferência foram assinadas convenções sobre naturalização, reclamações
pecuniárias, privilégios e marcas de fábrica, propriedade artística e literária e Direito Internacional Público e
Privado. As resoluções firmadas versaram sobre arbitramento, reorganização da Secretaria Internacional,
seção de comércio, alfândegas e estatística, profissões liberais, dívidas públicas, política sanitária, estrada
de ferro pan-americana, relações comerciais, futuras conferências, sistema monetário, recursos naturais e
comércio de café.25
A Secretaria Internacional das Repúblicas Americanas localizava-se em Washington e tinha por
finalidade incrementar o comércio e promover a aproximação das nações do hemisfério, por meio de um
melhor conhecimento recíproco e do intercâmbio intelectual. Criada, como se viu, em 1890 por resolução
da primeira Conferência Internacional Americana, a Secretaria não era filiada a nenhum governo e deveria
ser um órgão independente. Todavia, o Conselho Diretor, que a administrava, era composto pelos
representantes diplomáticos acreditados em Washington, mas presidido pelo Secretário de Estado norteamericano. A Terceira Conferência estabeleceu que cada governo deveria nomear uma comissão para
auxiliar a Secretaria nos seus trabalhos; que se organizasse uma seção especial de estatística comercial; que
a Secretaria elaborasse um projeto para a criação de linhas de navegação entre os principais portos dos
países americanos, com a finalidade de facilitar o comércio e as comunicações em geral; que se estudasse o
projeto da estrada de ferro pan-americana, trabalhando junto aos diversos governos no sentido de que estes
determinassem as concessões de terras, subvenções, garantia de juros sobre o capital empregado, isenção
de direitos aduaneiros e outros auxílios para o material de construção; que se estudasse os sistemas
monetários de cada uma das repúblicas, com o fim de preparar um relatório para a Quarta Conferência
(Buenos Aires, 1910), no qual constasse as flutuações do câmbio e sua influência sobre o comércio e o
desenvolvimento industrial; que se fizesse um levantamento das leis que então regiam as concessões
públicas nos diversos países da América; e que, finalmente, preparasse o programa da próxima conferência.
Formalmente, a Secretaria destinava-se a promover o desenvolvimento do comércio e da riqueza de todas a
nações americanas, mas, de fato, era um organismo que estava em função da penetração capitalista e
23
McGANN, 1960, p. 355-8.
AHI. 3ª Conferência.
25
AHI. 3ª Conferência.
24
7
comercial norte-americana. Não havia quase intercâmbio entre as nações latino-americanas em razão da
falta de intercomplementaridade. A Secretaria Internacional das Repúblicas Americanas era, assim, um
organismo auxiliar dos norte-americanos para penetrar num mercado há longa data dominado pelos
europeus.
Desenvolvimento das relações comerciais
As discussões relativas ao item VII do programa da conferência (“adoção de medidas que a
Conferência considera próprias para assegurar: a) a mais rápida comunicação entre as diversas nações; b) a
celebração de tratados de comércio; c) a maior divulgação possível de dados estatísticos e comerciais; d)
medidas tendentes a desenvolver e ampliar as relações comerciais entre as Repúblicas que formam a
Conferência”26), e as dos itens referentes à Secretaria Internacional, à estrada de ferro pan-americana e ao
arbitramento, provocaram poucos resultados efetivos. Na Quarta Conferência, já citada, o assunto esteve
novamente em pauta. Segundo o relatório do Diretor da Secretaria Internacional, Barret, apresentado a
esta conferência, apesar do esforço desse organismo, que ficara encarregado de elaborar um projeto sobre
as bases em que se deveriam fazer os contratos com companhias de vapores para ligar os principais portos
dos países da América, não recebera até então nenhuma resposta concreta. Além disso, o Congresso norteamericano não estava interessado em fazer qualquer subvenção a esse setor.27
Pelo interesse que as discussões de natureza comercial despertavam, percebe-se que tanto os norteamericanos quanto os latino-americanos esperavam um aumento das trocas entre eles como reflexo dos
repetidos encontros hemisféricos, em contraposição com as intensas comunicações econômicas e culturais
da América Latina com o Velho Mundo, herdadas do passado colonial. Assim, a Conferência aprovou sem
debates, em 23 de agosto de 1906, a resolução relativa à estrada de ferro pan-americana, pois todas as
nações da América Latina interessavam-se em dar mais consistência à sua unidade. Os Estados Unidos,
todavia, eram os maiores interessados, pelo fato de a ferrovia ensejar o aumento do comércio em dois
aspectos. O primeiro relacionava-se de maneira direta com sua construção, ensejando-lhes oportunidade
para a venda de trilhos, material rodante e de construção de pontes. O segundo dizia respeito ao comércio
em geral e ao crescimento da demanda.
26
27
AHI. 3ª Conferência. Ata da 5ª Comissão.
AHI. 3ª Conferência, 273/3/9, documento nº 24.
8
Os recursos naturais foram alvo de atenção especial da representação dos Estados Unidos. Tanto
assim que foi a única que apresentou uma proposta concreta, segundo a qual ao Bureau das Repúblicas
Americanas caberia fornecer informações seguras sobre o estado em que então se encontravam nas
diferentes repúblicas os recursos em questão, no que dizia respeito à legislação que regia os investimentos
de capital e às concessões públicas de terras, florestas e minas. De acordo com o projeto norte-americano,
o Bureau das Repúblicas Americanas ficaria autorizado a estabelecer, como parte de sua Secção de
Comércio, Alfândegas e Estatística, “um serviço especial destinado a facilitar o desenvolvimento dos
recursos naturais e os meios de comunicação nas diversas Repúblicas da América”. O Bureau deveria, além
de coligir e analisar de modo permanente as informações, publicá-las regularmente em seu boletim,
colocando-as, assim, à disposição dos governos e dos interessados. A proposta norte-americana
recomendava, ainda, que por ocasião da próxima conferência internacional americana, o Bureau
apresentasse uma memória especial sobre as leis, referentes à matéria, em vigor nas diversas repúblicas. O
plenário da Conferência acolheu, por unanimidade, as sugestões norte-americanas.28
Já foi acentuada a ineficácia de todas as conferências pan-americanas que precederam à Segunda
Guerra Mundial, pelo fato de boa parte do que foi votado não ter tido aplicação prática. 29 Afirmou-se que
as conferências não foram assembléias de plenipotenciários, mas, preferentemente, “uma espécie de
parlamento animado de um idealismo continental e à busca de soluções impossíveis de conciliar com as
realidades políticas e econômicas”.30 Foi dito, também, “que a só enunciação de tantas e tão variadas
recomendações de interesse geral, mesmo de finalidade platônica, constitui um apelo permanente à opinião
pública continental”.31
Com efeito, os encontros internacionais, no estilo em que foram realizadas as conferências em
questão, não têm poder deliberativo. Mas a pobreza de resultados dessa fase das conferências decorre
também da cisão entre Estados Unidos e América latina. Aqueles estavam em plena ascensão imperialista:
guerra contra a Espanha, emenda Platt, criação do Panamá, corolário Roosevelt.32 Sob o ponto de vista
político, o programa e as deliberações foram, com efeito, anódinas. O mesmo, todavia, não pode ser dito
caso se situe a conferência no âmbito da expansão econômica dos Estados Unidos. Os norte-americanos, a
28
AHI. 3ª Conferência. 273/3/12. Ata da 12ª sessão (23 ago. 1906).
“Mostra uma estatística recente que, das 210 recomendações aceitas desde 1889, apenas 20% tiveram aplicação prática, e
que elas vieram aumentando com os anos: 29, em Santiago do Chile; 40 em Havana; 42 em Montevidéu; 62 em Buenos
Aires”.(LOBO, 1939, p.145-6). Veja-se, também, LINS, 1945, v.2, p.525.
30
PÉPIN, 1938, p.42-3.
31
LOBO, 1939, p.145-6.
29
9
cada conclave, procuravam expandir o âmbito das atribuições da Secretaria das Repúblicas Americanas de
modo a dotá-la de mecanismos que lhes permitisse ter um controle de tudo que dissesse respeito a
comércio internacional e oportunidades de investimentos. Tanto é assim que para boa parte da imprensa
européia não escapou, por ocasião da Terceira Conferência, a percepção de que a mesma tinha propósitos
comerciais. Alarmada, aquela viu, nos Estados Unidos, desejo manifesto de “implantar o imperialismo
comercial” na América Latina, “com a exclusão do comércio europeu”.33 Estava, assim, visível para os
contemporâneos que o congresso pan-americano cumpria finalidades econômicas, vale dizer, abertura de
novos mercados para a produção e para os capitais norte-americanos, e o redirecionamento das correntes
comerciais dos países latino-americanos para os Estados Unidos.34 Estava claro que os encontros panamericanos faziam parte do esforço dos Estados Unidos para aumentar suas trocas com a área em questão,
e que estes se serviam do pan-americanismo como elemento catalisador da aproximação. Os sistemas
políticos nacionais dessa área eram, em geral, dominados pelas oligarquias ligadas à agroexportação e estas
estavam impregnadas de idéias do liberalismo econômico e suas regras comerciais
Os norte-americanos não mais abandonariam a retórica pan-americano-integracionista consoante
seus interesses econômicos ou estratégicos, tanto os de âmbito hemisférico quanto o mundial, como
ocorreu, por exemplo, no contexto da segunda guerra mundial, na expulsão de Cuba da OEA, e como
ocorre agora com a proposta da Área de Livre Comércio das Américas (Alca).
3. A complementaridade Brasil-Argentina é anterior ao Mercosul
Nas análises sobre a formação e as perspectivas do Mercosul, não raro se desprezam os
fundamentos de natureza histórica em favor daqueles centrados no presente e sob a égide dos conceitos de
globalização e de integração. É importante, todavia, recuperar os dados históricos do relacionamento das
duas principais nações que hoje compõem o Mercado Comum do Sul e discutir se aqueles sempre
apontaram no sentido da integração e por conseguinte se contribuem para se fazer alguma previsão, mesmo
de modo precário.
32
GOMEZ ROBLEDO, 1958, p.172.
Cf. La Nación e La Prensa, Buenos Aires, 4 ago. 1906.
34
La Nación, Buenos Aires, 8 mar. 1906. RAPOSO, Luís. Os congressos pan-americanos. Jornal do Brasil, 6 jun. 1906. New
York Herald, 30 jul. 1906, apud COSTA, 1968, p.221. El Diario, Buenos Aires, 1 dez. 1905. El Diario, Buenos Aires, 17 abr.
1906.
33
10
Com o advento da República (1889), o Brasil procurou dar início a uma nova fase nas suas relações
internacionais, redirecionando-ás para as nações do hemisfério. Atentando-se para as razões de ordem
econômica e para a nova distribuição do poder mundial, deu-se ênfase às relações com os Estados Unidos e
à mudança do padrão do relacionamento com os países latino-americanos mais próximos, com a Argentina
de modo especial. Boa dose de idealismo, fundado na unidade institucional da América, contribuiu,
também, para justificar a integração ao hemisfério.
O idealismo, todavia, teve pouca duração. Mesmo depois de superada a Questão das Missões pelo
arbitramento do presidente dos Estados Unidos, a diplomacia brasileira monitorou com muita atenção os
passos da chancelaria da Argentina, sobretudo no referente ao rearmamento naval, às suas relações com
Chile, e às suas relações com os países de menor expressão territorial do Cone Sul. No referente às
relações comerciais, apesar do expressivo intercâmbio Brasil-Argentina, houve dificuldades de natureza
tarifária que afetavam primordialmente o comércio de farinha de trigo. Os exportadores do Prata eram
sérios competidores dos norte-americanos no abastecimento do mercado brasileiro. Mesmo com
dificuldades alfandegárias, Argentina e Brasil nunca deixaram que se deteriorassem suas relações oficiais.
As trocas comerciais, de qualquer modo, eram expressivas e não havia mais nenhuma questão específica
entre os dois países a perturbar suas relações. Todavia, o contexto externo, tanto o contíguo quanto o
mundial, a instabilidade política interna no Prata e, até, o caráter dos dois povos, provocavam oscilações no
relacionamento entre eles. A atitudes de prevenção e disputa pelo prestígio eram alternadas por expansões
de amizade e promessas de amor eterno. Assim têm transcorrido as relações Brasil-Argentina.
Esse padrão de relações não se alterou. Mesmo no período Vargas (1930-45), quando, no início,
houve melhora nas relações, sobretudo pela atuação dos chanceleres Macedo Soares e Saavedra Lamas na
mediação da Guerra do Chaco, na assinatura (1935) do protocolo para a construção da ponte internacional
sobre o Rio Uruguai, e na troca de visitas presidenciais. A partir da gestão de Juscelino Kubitschek (195660) as relações do Brasil não só com a Argentina, mas com toda a América Latina, entraram numa nova
fase. O presidente brasileiro deu ênfase à aproximação da Argentina, Bolívia e Paraguai. A Operação PanAmericana (OPA) por ele lançada em 1958 teve uma abrangência latino-americana. Tanto é assim que um
dos resultados visíveis da OPA foi a criação da Associação Latino-americana de Livre Comércio (ALALC),
pelo Tratado de Montevidéu de 1960. Jânio Quadros (1961) deu continuidade à política de aproximação
com a nação platina e firmou com o presidente Arturo Frondizi o Acordo de Amizade e Consulta e duas
declarações (uma econômica e outra política) em Uruguaiana, Rio Grande do Sul, em abril de l96l. Neste
11
mesmo ano começou a se reunir o Grupo Misto de Cooperação Industrial Brasil-Argentina, que fora criado
em 19 de setembro de l958, na gestão JK.
A renúncia de Jânio não provocou alteração na política externa. Atos visíveis dessa continuidade
foram a Declaração do Galeão assinadas pelos presidentes Goulart e Frondizi, em 24 de setembro de 1961,
e a declaração conjunta firmada pelos ministros das relações exteriores (San Tiago Dantas e Miguel Angel
Cárcano), em Buenos Aires, na qual se reafirmou o entendimento entre os dois países. A intenção era
desenvolver uma zona de livre comércio. Parecia estar superada a fase de rivalidade em favor da
integração. Esta era quase que um imperativo em razão da complementaridade entre as duas economias.
Brasil e Argentina deveriam formar o núcleo de um grande mercado latino-americano.
Durante os períodos militares dos dois países, houve um novo surto de rivalidade sobretudo em
razão do contencioso que se estabeleceu em torno do aproveitamento dos recursos hídricos do Rio Paraná.
O Brasil teve, com conta disso, problemas na esfera multilateral, especialmente na Conferência Mundial do
Meio Ambiente de Estocolmo, em 1972, quando a Argentina defendeu a tese da consulta prévia e das
informações técnicas que um país deveria prestar a outro no caso de aproveitamento de recursos naturais
compartilhados.
Uma vez superada a questão da construção de Itaipu (Acordo Tripartite de 1980) houve uma
verdadeira inflexão nas relações dos dois maiores países da América do Sul. Redemocratizados Brasil e
Argentina, a integração caminhou a passos largos, favorecida pela contexto mundial, marcado pela
formação de blocos econômicos e pela intensificação da globalização. A formação do Mercosul é uma
atualização das relações entre Brasil e Argentina, mas assenta-se, também, em razões históricas e sobretudo
na intercomplementaridade comercial, existente desde o século XIX.
4. Os desafios do Mercosul
O Mercosul, todavia, enfrenta problemas e corre o risco de, como se tem dito, ser mais uma
tentativa de integração, como foi a ALADI. As grandes diferenças nacionais (e as diferenças intranacionais) são obstáculos a uma integração que ultrapasse a esfera comercial. Um regime de livre-mercado
acentuaria essas diferenças, em razão da falta de uma efetiva concorrência entre alguns segmentos da área
produtiva. As diferenças nacionais são um complicador para a integração, também em outros sentidos.
Veja-se o caso do Paraguai. Se este der ampla liberdade à instalação de montadoras de terceiros países, que
12
“nacionalizariam” suas mercadorias e, conseqüentemente, gozariam do livre comércio regional, criar-se-á
um verdadeiro "enclave" econômico entre Brasil e Argentina, com conseqüências que são fáceis de se
imaginar.
Além da falta de organismos institucionais, sempre existe a questão cambial, sujeita às concepções
daqueles que exercem o poder transitoriamente. Por isso, impõe-se a necessidade de coordenação das
políticas macroeconômicas, a fim de se obter um mínimo de segurança no futuro dos termos do comércio e
dos investimentos. Outro desafio é falta de capacitação tecnológica. Um dos objetivos da integração é a
transformação das economias nacionais pelo progresso técnico a fim de que as mesmas se insiram
competitivamente no mercado internacional. Argentina e Brasil puseram em prática planos de estabilização,
com modernização, privatização, redução de tarifas alfandegárias, mas tais providências não foram
suficientes para a retomada do desenvolvimento. Há necessidade de política industrial e tecnológica
comum. Necessita-se, portanto, de criação de programas regionais de desenvolvimento científico e
tecnológico para adaptar as empresas ao novo paradigma produtivo que se observa no mundo. Há, também
que se investir em programas educacionais, uma vez que estes levam ao aumento da produtividade. Os
países sul-americanos, de modo geral, carecem de estabilidade em termos de perspectivas estratégicas de
desenvolvimento. Estas estão sujeitas a plebiscito a cada eleição presidencial, tanto na Argentina quanto no
Brasil.
O Mercosul, todavia, assenta-se numa retórica moderna, num corpo de idéias que reforça e atualiza
as relações comerciais do Brasil e da Argentina. Mas, hoje, as economias dos dois países não são
exatamente complementares, mas, a muitos respeitos, concorrentes. Há setores nas economias dos mesmos
que concorrem entre si na disputa dos respectivos mercados internos. Do final do século XIX até ao
período anterior à Primeira Guerra, vigeram os tratados de aliança, as ententes, os pactos de cordial
inteligência, a corrida aos armamentos, à noção de equilíbrio. Brasil, Argentina e, também, o Chile
passaram por tudo isso, desde o armamentismo ao pacto do ABC em 1915. É, portanto, pertinente indagar
se o Mercosul não seria versão sul-americana de um modismo. Não se pode pretender que, em nome de um
aggiornamento, a lógica política contrarie a lógica econômica, esbarrando em interesses econômicos
específicos. Por isto, a busca da integração deve ser cautelosa, realista, sem retórica e sem tiradas de
entusiasmo. Arrebatamentos só prejudicam. A cautela é necessária porque em um bloco de nações, mais
cedo ou mais tarde, quando acabam as juras de amor, se manifesta a questão da hegemonia intra-bloco.
13
Mesmo que Brasil e Argentina forem além da integração comercial sempre persistirão problemas por conta
de antigas, inúteis e desgastantes rivalidades.
5. ALCA e/ou Mercosul: retórica nova para os mesmos fins
No começo do século XX o concerto internacional, tanto no ponto de vista econômico quanto
político, era multipolar até porque a Grã-Bretanha sofria uma erosão de poder e perdia a capacidade de
governar o mundo. Nesse contexto, os EUA reivindicavam sua inclusão no rol das grandes potências,
entendidos de que o hemisfério era sua área de preferência para exercício de hegemonia. Hoje, os EUA
acumulam enorme poder político, na condição de única superpotência mundial, mas, embora ainda sejam a
maior economia do planeta, têm que se movimentar em um concerto internacional que economicamente se
apresenta cada vez mais multipolar, sobretudo pela formação de blocos, entre estes um agrupamento das
nações mais expressivas do Cone Sul hemisférico. Os EUA, atentos, procuram reafirmar sua hegemonia
hemisférica, até porque esta é condição essencial, conforme afirmou Albuquerque, para o exercício de sua
liderança global.35. Hoje, da mesma forma que no início do século XX, assiste-se, no mundo, o predomínio
das idéias liberais, que impregnam os conceitos de globalização e regionalização. Há cem anos, os norteamericanos inspiraram-se no então relativamente recente e bem sucedido Zollverein alemão para formular a
ousada proposta de integração econômica, na qual não faltou, até, a sugestão de moeda comum, apoiada
na busca da integração hemisférica, que deveria ser alimentada pelo pan-americanismo. A proposta do
Zollverein, feitas as devidas adaptações, foi substituída pela de um acordo para a formação da Área de
Livre Comércio das Américas (ALCA). Esta é uma proposta norte-americana destinada a atender interesses
norte-americanos, até porque é preciso aproveitar a tendência de crescimento do comércio da América
Latina, sobretudo de emergentes. É preciso examinar até que ponto ela vem ao encontro de nossas
demandas, pois a formação de uma área de livre-comércio, nos termos propostos, não interessa ao Brasil.
A falta de competitividade de vários setores de sua economia não recomenda uma brusca exposição com
conseqüências que são fáceis de se prever. Esta posição, todavia, não significa que se deva adotar uma
atitude completamente contrária à intenção do nosso importante parceiro comercial do norte, mas sim
saber exatamente do que se trata e de aproveitar o momento para, sem receio, propor barganhas que nos
sejam vantajosas.
35
ALBUQUERQUE, 1996, p.8.
14
A Alca e o Mercosul, de acordo com a boa lógica, são excludentes.
O Mercosul foi até recentemente apontado como um, senão o maior, sucesso mundial de integração
regional em razão do rápido acréscimo no volume e nos valores comerciados, sem que se desse conta de
que isto ocorreu porque agilizou-se e aprofundou-se, pela via alfandegária, a integração pré-existente.
Mesmo assim, o Mercosul refluiu por razões que já são conhecidas. Embora, de qualquer forma, constatese um aumento no percentual do total das exportações brasileiras que são destinadas à Argentina, o que
esta recebe do Brasil é pouco em termos absolutos, seja pelas limitações de seu mercado, seja pela
concorrência de fluxos tradicionais de comércio por ela mantidos. O país do Prata, assim, não é suficiente
para atender à expansão do comércio exterior brasileiro na proporção que se deseja. As exportações
brasileiras carecem de mercados mais amplos do que aqueles que fazem parte do Mercosul. Este, mesmo
no período de seu “esplendor” (1996-1998), não conseguiu elevar a participação da Argentina no total
exportado pelo Brasil além do limite de 13,20%, máximo alcançado no último ano citado.36 Assim, o
crescimento das exportações brasileiras depende, sobretudo, daquelas destinadas ao país mais rico do
mundo (Estados Unidos) e para a União Européia, além do Japão e outros países asiáticos. O grande
desafio de hoje é, portanto, derrubar barreiras que as exportações brasileiras encontram nos mercados,
norte-americano e europeu sobretudo. Os termos da equação do problema comercial do Brasil não se
alteraram muito em relação aos do tempo de Rio Branco (1902-12) que, como seus contemporâneos, tinha
consciência, amparada em dados irrefutáveis, do papel de motor da economia brasileira desempenhado
pelos Estados Unidos, bem como da incapacidade da Argentina em absorver em uma escala que resolvesse
minimamente os problemas de uma economia agroexportadora. Não se pode, todavia, perder de vista que
ao tempo de Rio Branco as economias brasileira e norte-americana eram complementares. Hoje o quadro é
um pouco distinto. Os dois países, a muitos respeitos, são concorrentes. 37 E isto torna as coisas mais
difíceis e faz parte, portanto, do desafio atual.
Além disso, entre Brasil e Argentina existe uma diferença de concepção sobre o Mercosul. O jornal
O Estado de S. Paulo afirmou, em editorial de 29 de março de 1997 (a propósito da controvérsia que se
estabelecera entre os dois países por causa das restrições impostas pelo Brasil ao financiamento de
importações com o objetivo de diminuir seu déficit comercial), que o vizinho platino “tem no Mercosul um
projeto econômico de ocasião, e não um projeto econômico e político duradouro, que é como o Brasil o vê
e sempre viu o processo de integração regional”. Esta constatação combina com interpretações, de outras
36
FARID & TEREZA, 2003.
15
procedências, sobre a diferença de enfoque que os dois maiores países do Cone Sul têm sobre o bloco que
ora se tenta ressuscitar. Assiste razão aos argentinos quando dão primazia aos ganhos econômicos na
integração em questão, pois mostra que são, em primeiro lugar, fiéis ao seu país.
Sem entrar agora em debate sobre concepções de política externa, cumpre observar que as relações
entre as nações são informadas por interesses precisos, e que não há espaço para visões românticas,
sobretudo quando essas contrariam interesses específicos. Os empresários argentinos, sempre acenando
com o fantasma da “invasão” de produtos brasileiros, já pregaram e pregam retaliações à eventual
diminuição de suas exportações para o Brasil. Até o momento o vizinho platino, tradicionalmente
superavitário com o Brasil, mantém, mesmo assim, uma lista de exceções, maior do que a brasileira, de
produtos que não são contemplados pelo acordo Mercosul. Esse quadro conjuntural, convida-nos a
revisitar as posições do barão do Rio Branco, manifestadas em 1907. Quando os argentinos pediram
favores alfandegários para suas exportações, semelhantes aos concedidos pelo Brasil aos EUA, Rio Branco
observou que o mercado argentino era, como agora, limitado para os produtos brasileiros. Situação inversa
representava o mercado brasileiro para a produção da Argentina. Rio Branco foi categórico: “A Argentina
(...) tem no Brasil o principal ou antes o único mercado para as suas farinhas e (...) vai nele ganhado
terreno todos os dias a ponto de haver suplantado completamente as farinhas americanas. Cabe, portanto, à
Argentina que nos vende muito e compra pouco, fazer concessões aduaneiras ao Brasil sem nos pedir
favores em troca”. Rematando o argumento, aduziu que no momento em que a Argentina suprimisse os
direitos que então cobrava sobre o café, o mate, o açúcar e o cacau do Brasil, e o consumo dos mesmos
atingisse níveis comparáveis aos dos Estados Unidos e de alguns países europeus, poderiam os argentinos
pleitear algum favor comercial. Para o barão do Rio Branco tais acordos “são sempre objetivo de
demorados e refletidos exames” e que “nenhum país se deixa levar nestes assuntos pelo sentimentalismo ou
por espírito de camaradagem. Todos procuram atender aos seus interesses”. Apesar de o Brasil ser e
desejar ser sempre bom amigo da Argentina, a amizade não entraria em contra em questões de intercâmbio
comercial. Insistia: “Não é o Brasil que tem de dar compensações ao fraco comprador que é para nós a
Republica Argentina: é ela que deve dar compensações ao grande comprador de produtos argentinos que é
o Brasil”. Além disso, lembrava-se o Chanceler, a proximidade do porto de Buenos Aires do mercado
brasileiro barateava os fretes, o que dava aos seus exportadores de farinha vantagem sobre os concorrentes
norte-americanos.
37
Veja-se BANDEIRA, 1989, p.314.
16
Atualizando-se as lições de Rio Branco, fica a óbvia lição de que para o Brasil o ótimo é a
diversificação de parcerias, a busca da afirmação de um verdadeiro global trader. No referente ao
Mercosul, ao Brasil convém adotar uma atitude semelhante àquela dos argentinos e ao mesmo tempo
seguir os passos de Rio Branco, sem receios, pois não se está pondo em risco a paz nem a concórdia. É
preciso negociar sempre com realismo, para que atitudes românticas não se traduzam em prejuízos para
setores da economia nacional em ascensão e, por conseguinte, ao invés de aproximar, provoquem, no
futuro, situações de descontentamento internacional. Assim, é preciso examinar o quanto nos vai custar em
termos de concessões o querer reavivar, a todo custo, o Mercosul, na expectativa, pouco provável aliás, de
uma liderança duvidosa que poderia satisfazer nosso ego, mas sem os dividendos materiais na proporção
que se espera. Deve-se liderar para ganhar alguma coisa, não para se ter perdas materiais.
Com certa dose de licença interpretativa, a impressão que se tem que é que o Brasil, retomando
pretensões que, no período mais recente, vêm desde a gestão Juscelino Kubitschek, a fim de se conformar
com a concepção que tem de si próprio como potência média regional e, a exemplo dos EUA, sente
necessidade de liderar um bloco. Esta seria uma razão de ordem política a explicar sua relutância frente à
Alca, pois, uma vez consolidada esta, o Brasil, ao invés de líder, seria apenas “mais um” num bloco
incontestavelmente dominado pelos EUA. Com tais dúvidas existenciais e sem a possibilidade de ampararse em simulações estatísticas de credibilidade, o que faria subir o nível de previsibilidade, o governo
brasileiro, desde a gestão FHC, dá a impressão de que não tem meta clara a respeito, isto é, se quer ou não
integrar a Alca ou, o que parece mais provável, prefere esvazia-la. O Brasil precisa saber, o mais
exatamente possível e por meio de projeções, se lhe interessam projetos de integração, e se definir logo, a
fim de poder abandonar a protelação, esta transformada em um fim em si mesmo.38 As dimensões do
mercado interno e as oportunidades de investimentos que oferece, permitem-lhe, com senso de
oportunidade e pragmatismo, trilhar um caminho fora de blocos, negociando, com realismo, caso a caso.
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Correspondência diplomática de Assunção, Buenos Aires, Montevidéu, Washington, Santiago.
Arquivo particular do barão do Rio Branco.
Maços referentes a I e III conferências internacionais americanas.
Jornais
38
Veja-se, a propósito, ALBUQUERQUE, 1996, p. 13-14.
17
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Nova York: New York Herald.
Rio de Janeiro: Jornal do Brasil.
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