Uma agenda para uma teoria dos conceitos no Direito. Resumo

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Uma agenda para uma teoria dos conceitos no Direito.1
Saulo Monteiro de Matos2
Resumo: Conceitos e proposições são os instrumentos mais fundamentais do ser
humano para o conhecimento do mundo. Em meio ao tema direito e linguagem, é
complexo assumir a primazia de um ou de outro no que concerne à produção do
conhecimento acerca do direito. Decerto, não se pode pensar em conceitos de maneira
isolada, a dizer, fora de proposições. Todavia, conceitos, comparados com proposições,
parecem possuir uma relação mais direta com a realidade na medida em que são as
unidades mais fundamentais das representações mentais do mundo. Dessa forma,
assumindo a importância dos conceitos para o conhecimento do direito, busca-se, nesta
comunicação, discutir os principais desafios de uma teoria dos conceitos no direito.
Dois casos serão, num primeiro momento, apresentados como exemplos da importância
de uma discussão conceitual para o direito, a saber, Maurice vs. Judd, julgado pela
Corte de Nova Iorque em 1818 e o caso “união homoafetiva”, julgado pelo Supremo
Tribunal Federal. Num segundo momento, os principais eixos de uma teoria dos
conceitos no direito serão indicados: (1) valor e contribuição dos conceitos para o
significado; (2) formação e espécies de conceitos no direito; (3) relações internas e
externas entre conceitos; e (4) emprego dos conceitos pela jurisprudência e dogmática.
Por fim, uma possível diferenciação entre uma visão natural e uma hermenêutica acerca
dos conceitos será sugerida como pano de fundo para qualquer tentativa de construção
de uma teoria conceitual. Uma provisória conclusão consiste em defender a hipótese de
que não é possível construir uma teoria dos conceitos no direito sem considerar a
dimensão ética desta espécie de conhecimento.
Palavras-chave: conceitos – palavras – direito – linguagem – hermenêutica.
Abstract: Concepts and propositions are the fundamental human tools to grasp the
world. Considering a possible relation between law and language, it is not simple to
1
O presente trabalho corresponde a uma comunicação apresentada no I Café Filosófico da Faculdade de
Castanhal (FCAT). Agradeço a todos e todas presentes, em especial, aos colegas Davi José, Ricardo Dib
Taxi, João Arouck e Diego Mascarenhas.
2
Professor da Faculdade de Castanhal (FCAT). Doutorando e Ex-assistente do Departamento de Filosofia
do Direito e Filosofia Social da Universidade de Göttingen (Alemanha). Mestre em Direito pela
Universidade de Heidelberg (Alemanha). Pesquisador Visitante (2013) da Universidade da Califórnia em
Los Angeles (UCLA). Ex-bolsista da Fundação Konrad Adenauer.
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assume the primacy either of concepts over propositions or propositions over concepts
for the process of building knowledge about law. In fact, it seems to be impossible to
imagine concepts isolated, that is to say, without propositions. However, comparing to
propositions, concepts seem to have a more direct relation with the world due to the fact
that they are formed through the most basic unities of mental representation of the
world. Assuming the importance of concepts for the formation of human knowledge
about things, the goal of this communication consists in discussing the central
challenges of a contemporary theory of concepts in law. First, I will present two cases in
order to show the importance of a discussion about concepts in law, namely, the
Nineteenth-century New York Court case Maurice vs. Judd and the Brazilian Supreme
Court case “união homoafetiva”. Then, the central issues of a conceptual theory in law
will be presented: (1) value and contribution of concepts to the meaning; (2) formation
and kinds of concepts in law; (3) internal and external relations between concepts; and
(4) use of concepts in jurisprudence and legal dogmatics. Finally, I will suggest a
possible difference between a natural and an hermeneutic approach to legal concepts as
fundamental background for each conceptual theory in law. A possible conclusion
consists in defending the impossibility of building a theory of concepts in law without
considering the moral dimension of this kind of knowledge.
Keywords: concepts – words – law – language – hermeneutics.
1. Direito e Linguagem.
Embora o primeiro livro com o título “philosophia juris” (filosofia do direito)
tenha sido publicado por juristas, a saber, Franciscus-Julius Chopius, “Philosophia juris
vera ad duo de potestate ac obligatione, ut summa ac prima, quae definire intendit omnis
jurisprudentia,
capita,
universum
hujus
systhema
referens”,
em
1650
(Leipzig/Alemanha) e Christian Thomasius, “Philosophia juris, ostensa in doctrina de
obligationibus et actionibus”, em 1682, o desenvolvimento da filosofia do direito é
fruto, em grande parte, numa perspectiva histórica, de discussões conduzidas,
sobretudo, por filósofos interessados em filosofia prática (Pfordten, 1999, pp. 151–161)
. Basta lembrar que as grandes obras de filosofia do direito, até o século XIX, foram
escritos por filósofos, tais como, parte da “Suma Teológica” (Quest. LVII ss.) de Tomás
de Aquino (1980), “Metafísica dos Costumes” de Immanuel Kant (1993) e “Linhas
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Fundamentais da Filosofia do Direito” de Hegel (2010). Pois, a filosofia, como reflexão
acerca das condições de possibilidade daquilo que precisa ser tomado por natural em
outras áreas do conhecimento diferentes da filosofia, precisa sempre se preocupar com
todos os âmbitos do conhecimento humano, inclusive, com o direito, mesmo que isto
implique, amiúde, a necessidade reformulações dos sistemas científicos.
O fim do direito natural como fonte do direito, através da Escola Histórica do
Direito, fundada por Savigny, marca o início de uma separação problemática entre
filosofia do direito e teoria do direito e, por conseguinte, da dificuldade em se discutir
sobre filosofia nas faculdades de direito. Há ainda uma forte expectativa, por parte
daqueles que adentram numa faculdade de direito, de que as diversas cadeiras que
formam o curso de direito ensinem métodos objetivos para que todas possam descobrir,
sem maiores dificuldades, proposições jurídicas válidas, i.e., o real sentido das leis e do
direito. Aqueles que já estão mais avançados no curso e, outrossim, aquelas que já
concluíram o curso, dificilmente, acreditam nessa ideia.
Curioso notar, contudo, que, mesmo para aquelas que acreditam na
insignificância do conhecimento filosófico para o desenvolvimento e compreensão da
ciência do direito, há um campo da filosofia do direito ou, para aqueles que adotam tal
divisão, da teoria do direito, cada vez mais, discutido por juristas e determinante para a
solução de conflitos jurídicos, a saber, a filosofia da linguagem ou a relação entre direito
e linguagem.
A linguagem sempre foi uma das preocupações mais fundamentais na filosofia,
desde os escritos platônicos acerca das palavras e da impossibilidade da sua
compreensão isolada em Crátilo (Platão, 2011, 383a ss.). O que é novo, a partir do
início do século XX, é, no entanto, a radicalização de alguns estudos acerca da
linguagem como mediadora e, agora, determinante do conhecimento humano. A
linguagem, que antes era considerada apenas um mero instrumento para conhecer o
mundo, passa a ser colocada no centro da investigação filosófica. Os dois elementos,
antes determinantes para o conhecimento humano, de um lado, os dados do mundo e, do
outro, a mente humana e suas representações, passam se subordinar à linguagem, como
uma espécie de jogo que determina as condições de possibilidade do conhecimento
humano. É como se as filósofas estivessem em um quarto escuro, sem possibilidade de
enxergar nada: em um primeiro momento, elas acreditariam que o conhecimento está no
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que é tocado, naqueles objetos tocados, dados do quarto; num segundo momento,
haveria a impressão de que o que existe é fruto apenas da mente, representações
mentais; e, num terceiro momento, a crença de que nada existe, a não ser o que pode ser
expresso pela linguagem.
Além disso, a filosofia e, também, o direito puderam, a partir do século XX, se
valer do desenvolvimento de pesquisas no âmbito do que se convencionou chamar
linguística. Os resultados dos experimentos da linguística, mormente ligados a estudos
psicológicos e neurológicos, transformaram e transformam o nosso conhecimento do
mundo e, sobretudo, o papel da linguagem na determinação do nosso pensar e agir.
Questões, como, por exemplo, se alguns animais possuem consciência ou linguagem, já
foram respondidas de forma positiva a partir de experimentos envolvendo a linguística e
a neurociência.
Nesse contexto, discute-se, hoje, no âmbito da neurociência, algo há muito
indagado por filósofas, i.e., como se dá o acesso humano ao mundo, a dizer, como eu
posso dizer que algo está diante de mim. A resposta, aqui, é a mesma disponibilizada no
âmbito da filosofia: conceitos são, em geral, o nosso único modo de acesso ao mundo
(Laurence; Margolis, 1999, pp. 3–81). Conceitos são, assim, representações mentais do
mundo e exigem uma moldura para a realidade. Eles formam, então, a base de todo o
nosso conhecimento acerca de algo e, portanto, são fundamentais para o
desenvolvimento científico e filosófico. Caso, por exemplo, o Davi expresse o
pensamento que prefere ir de barco do que de avião para Itaituba, embora seja mais
caro, porque é mais seguro, eu posso imputar-lhe a proposição de que “segurança é mais
importante do que preço”, na qual “segurança” e “preço” são os conceitos. No direito,
não ocorre de forma diversa. Caso um juiz, por exemplo, afirme que a lei de crimes
hediondos é inconstitucional porque o constituinte originário assim determinou, eu
posso imputar ao juiz a seguinte proposição “o constituinte originário determina o
sentido da constituição”, na qual “constituinte originário” e “sentido da constituição”
formam os conceitos centrais a serem discutidos.
II. Aparições da relação entre direito e linguagem no direito.
Conforme asseverado, a linguística e a filosofia da linguagem têm contribuído
muito para o enriquecimento e aprofundamento das discussões no âmbito direito. As
juristas reconhecem, claramente, a importância de uma teoria dos conceitos para uma
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boa interpretação dos textos legais. A fim de exemplificar importância de uma reflexão
acerca da linguagem no direito e os seus limites, dois julgados serão apresentados como
fenômenos dessa relação, a saber, (1) o caso Maurice vs. Judd, julgado em 1818, pela
Corte de Nova Iorque; e (2) o caso da união homoafetiva, julgado recentemente pelo
Supremo Tribunal Federal.
1. Quando a baleia se transformou em peixe: o caso Maurice vs. Judd.
Um caso interessante para explicitar a relação entre direito e linguagem e,
sobretudo, a importância de uma discussão acerca dos conceitos no direito foi
apresentado por Graham Burnett (2007, pp. 4–10) em “Trying Leviathan”. No verão de
1818, o proprietário de uma empresa de peixes, Samuel Judd, se nega a pagar uma taxa
de inspeção para o Estado de Nova Iorque referente a três barris de óleo de baleia
(whale oil). Esta taxa foi criada através de uma lei (statute) do Estado de Nova Iorque,
segundo a qual todo barril de óleo de peixe (fish oil) precisa ser controlado por um
inspetor do Estado, a fim de ser comercializado. Dessa forma, todo óleo de peixe
precisava passar por uma inspeção e, neste caso, o proprietário precisava pagar a taxa de
inspeção, caso quisesse que o seu produto fosse comercializado.
O motivo da sua recusa à obrigação de pagar a taxa de controle no caso dos
referidos três barris de óleo de baleia é muito clara: o seu óleo não era óleo de peixe
(fish oil), mas, sim, óleo de baleia (whale oil). Assim, por se tratar de óleo de baleia, ele
não estaria obrigado a pagar a referida taxa, uma vez que, claramente, baleias não são
peixes (Burnett, p. 4). O inspetor do Estado de Nova Iorque, James Maurice, apresentou
representação contra Samuel Judd junto à Corte de Nova Iorque. A partir de então,
famosos cientistas, advogados e magistrados passaram a debater se a baleia, segundo a
lei do Estado de Nova Iorque, deveria ser considerada peixe ou não.
A estratégia do Estado de Nova Iorque para obrigar o proprietário a pagar a taxa
de inspeção no caso do óleo de baleia foi no sentido de defender que, embora a lei se
referisse, expressamente, a peixe, este conceito deveria ser estendido a todo animal que
nadasse e vivesse no mar. Assim, o conceito de peixe, no contexto da referida lei do
Estado de Nova Iorque, seria resultado das seguintes proposições: (1) “Toda espécie de
animal, que nada e vive no mar, é um peixe”; e (2) “Outras possíveis características
animalescas são irrelevantes para categorizar um animal como peixe, como é o caso do
fato de que as baleias respiram ar”. Dessa forma, como conclusão a partir das
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características apresentadas como pertencentes ao conceito “peixe” da lei de Nova
Iorque, “a baleia é um peixe porque nada e vive no mar”. A Corte de Nova Iorque, no
caso Maurice vs. Judd, decidiu em favor do Estado de Nova Iorque, ou seja, que a
baleia é um peixe e que o óleo de balei é, portanto, óleo de peixe.
2. União Homoafetiva: ADPF 132/RJ.
Outro caso, agora mais recente e conhecido dos brasileiros, é a decisão do
Supremo Tribunal Federal, em sede de Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) 132/RJ, que declarou inconstitucional a proibição de constituição
de união estável entre pessoas do mesmo sexo no Brasil. Trata-se de uma decisão
relativa ao estabelecido pelo art. 226, caput e § 3° da Constituição Federal e art. 1.723
do Código Civil:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do
Estado.
§3°. Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável
entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei
facilitar a sua conversão em casamento.
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre
o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e
duradoura e estabelecida com objetivo de constituição de família.
O Tribunal discutia, então, claramente o significado dos conceitos “homem e
mulher” e “família”. Nesse sentido, como é sabido, o resultado foi uma interpretação
ampla dos conceitos de homem e mulher no sentido de açambarcar a possibilidade da
união estável entre homossexuais, i.e., homem e homem ou mulher e mulher. O
conceito “homem e mulher” passa, por conseguinte, a ser compreendido como “pessoas
adultas”. A partir dessa decisão, no âmbito da ADPF 132/RJ, a união estável entre
casais do mesmo sexo passou a ser permitida no Brasil e o conceito “homem e mulher”
do art. 226, §3° da CF e art. 1723 do CC passou a possuir outros elementos ou
características, distintos de um possível conceito biológico de homem e mulher.
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É fundamental observar, em ambos os casos apresentados, que há uma
determinada relação entre conceitos e expressões linguísticas ou palavras, na qual,
contudo, os conceitos parecem possuir primazia. Conceitos, com base nos exemplos
acima, são significados (unidades e proposições) de expressões linguísticas. Isto
significa: [x] = conceito, o qual é expresso através da expressão “x”. Ou seja, [baleia] é
um conceito, o qual é expresso pela palavra “baleia”, ou [homem e mulher] é um
conceito, o qual é expresso pela palavra “homem e mulher”. Dessa forma, dado que
conceitos formam, essencialmente, o significado de expressões linguísticas, toda teoria
dos conceitos deve ser, necessariamente, uma espécie de teoria dos significados e,
assim, contribuir para uma teoria dos significados (Fodor, 1998, p. 4).
Porém, quais os possíveis fins de uma teoria dos conceitos no direito, i.e., a sua
possível agenda?
(1) Uma teoria dos conceitos no direito deve ser capaz de explicar o valor do
conhecimento dos conceitos e a possível contribuição dos conceitos para o
significado. Para isso, deve-se questionar, primeiramente, o que é um conceito.
(2) Ela deve ser capaz de explicar a formação dos conceitos e, consequentemente, as
espécies de conceitos existentes no direito.
(3) Além disso, ela deve esclarecer e propor como se deve conceber um sistema
conceitual relativamente objetivo, i.e., as relações internas e externas entre
conceitos no direito. Dessa forma, deve esclarecer de que forma conceitos
dependem do contexto e dos fins.
(4) Finalmente, uma teoria dos conceitos deve atentar para o emprego dos conceitos
pela jurisprudência e dogmática.
Uma das contribuições mais significativas para o desenvolvimento de uma teoria
dos conceitos no século XX foi feita por Gottlob Frege ao defender uma aproximação
entre a filosofia e a matemática. Frege, ao assumir a ideia de que conceitos só pode ser
compreendidos em meio a proposições – tal ideia já está, de fato, implícita em Platão e
na teoria da predicação aristotélica, defende que conceitos são como funções de
primeiro grau de um argumento (Angioni, 2006, p. 17). Então, por exemplo, se a função
»A capital de x« for preenchida com o argumento “Brasil”, sendo, então, x = Brasil,
resulta que o valor da função é “Brasília”. Assim, a assertiva »A capital do Brasil é
Brasília« possui o valor de verdade na medida em que o seu objeto determina o seu
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significado, i.e., “Brasília” determina que o valor de verdade da função »A capital do
Brasil«. Um conceito, segundo esta ideia, precisa atribuir à assertiva um valor de
verdade, ou seja, determinar se determinados objetos correspondem à função ou não
(Frege, 2008, pp. 12–13).
IV. Teoria dos Conceitos Naturais e Teoria dos Conceitos Hermenêuticos.
Conquanto o mérito da teoria dos conceitos de Frege não possa ser questionado
(Patzig, 2008, pp. VII–XX), sobretudo, pela sua posterior influência nas obras de
Russel, Wittgenstein (“Tractatus logico-philosophicus”) e Carnap, o debate acerca da
relação entre direito e linguagem, dificilmente, pode ser apresentada a partir da sua
obra. Um autor, contudo, parece ter estabelecido um marco fundamental para toda a
discussão acerca da teoria dos significados das palavras, ou teoria dos conceitos, a
saber, Ludwig Wittgenstein.
Ao abondonar a sua teoria realista, diretamente influenciada por Frege, em sua
obra “Tractatus logico-philosophicus”, Wittgenstein defende a hipótese de que conceitos
não possuiriam sempre condições suficientes e necessárias para a sua aplicação, i.e., não
possuiriam, portanto, um critério fixo e claro de determinação do valor de verdade para
as funções, uma vez que eles seriam formados como uma espécie de jogo (Wittgenstein,
2008, §7), no qual os próprios participantes determinam o sentido das palavras a partir
do seu uso. Conceitos, segundo Wittgenstein, podem ser explicados por meio da
seguinte alegoria:
66. Observe, p. ex., os processos a que chamamos “jogos”. Tenho em
mente os jogos de tabuleiro, os jogos de cartas, o jogo de bola, os
jogos de combate etc. O que é comum a todos estes jogos? – Não
diga: “Tem que haver algo que lhes seja comum, do contrário não se
chamariam “jogos” – mas olhe se há algo que seja comum a todos. –
Porque, quando olhá-los, você não verá algo que seria comum a todos,
mas verá semelhanças, parentescos, aliás, uma boa quantidade deles.
Como foi dito: não pense, mas olhe! (...)
E o resultado desta observação é: vemos uma complicada rede de
semelhanças que se sobrepõem umas às outras e se entrecruzam.
Semelhanças em grande e em pequena escala.
67. Não posso caracterizar melhor essas semelhanças do que por meio
das palavras “semelhanças familiares”; pois assim se sobrepõem e se
entrecruzam as várias semelhanças que existem entre os membros de
uma família: estatura, traços fisionômicos, cor dos olhos, andar,
temperamento etc. – Eu direi: os ‘jogos’ formam uma família.
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A ideia de que os conceitos são formados a partir do uso das palavras, como uma
espécie de jogo, pode levar a diferentes conclusões, i.e., intepretações da tese de
Wittgenstein. Dentre as possíveis interpretações, uma seria mais radical: deveríamos
abandonar qualquer tentativa de definição conceitual clássica, i.e., de estabelecer as
condições necessárias e suficientes para os conceitos, uma vez que os conceitos não
podem determinar o valor de verdade de uma proposição. O importante seria, nessa
esteira, sempre observar o uso das palavras. Assim, para compreender o que significa
“baleia”, deveríamos simplesmente observar o uso desta palavra pelos falantes da
língua, i.e., participantes do jogo.
Essa interpretação radical da tese de Wittgenstein é bastante problemática,
sobretudo, quando se pensa acerca dos conceitos no direito.3
Primeiro, porque o direito possui um caráter normativo, diferindo, portanto, da
simples observação do uso de palavras pelos falantes da língua portuguesa. Ou seja, o
intérprete de textos legais visa influenciar o comportamento de determinado grupo e
pode, assim, atribuir sentidos a palavras, sem que este sentido corresponda
necessariamente ao uso daquela palavra pelos participantes do jogo, i.e., ele pode criar
novas regras.
Segundo, não parece claro que todas as palavras se formem com base nas
semelhanças familiares. Embora seja claro que as condições necessárias e suficientes
dos conceitos não valem de forma absoluta, i.e., dependem das relações específicas
entre conceitos, não parece óbvio que esta ideia necessite ser abandonada, porquanto o
conhecimento humano, sobretudo, o científico ainda se baseia na formação de sistemas
conceituais, os quais buscam determinar, com uma relativa precisão, as extensões dos
seus conteúdos. Nesse sentido, de forma mais clara, a tese de Wittgenstein dificilmente
conseguirá explicar a força normativa dos conceitos.
Mas, responderia Wittgenstein que o falante da língua também pode modificar o
sentido das palavras, atribuindo novos significados a elas, parecendo, assim, que o
3
Afora as questões relativas à linguagem pré-proposicional, os adeptos do denominado
linguistic turn defendem, amiúde, com base no exemplo acima de Wittgenstein, a tese de que a
linguagem não pode ser tratada como instrumento para a compreensão do mundo. Porém, é
necessário questionar se palavras, como “jogo” ou “amor”, podem servir de fundamento ou
modelo para as demais palavras e, inclusive, para a linguagem como um todo.
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caráter normativo do direito não o diferencia das demais determinações da linguagem.
A linguagem possui de fato um caráter normativo, uma vez que serve à reflexão e
valoração do mundo. Ademais, o fato de que a ciência ainda se baseia em sistemas
conceituais, na busca da determinação da condições, relativamente, necessárias e
suficientes dos seus conceitos não impõe a validade desta perspectiva e, muito menos,
que não seria melhor abandoná-la.
O cerne do problema criado por Wittgenstein parece, no caso do direito, consistir
na inclusão ou exclusão do critério dos fins do direito na determinação do conteúdo
conceitual do mesmo (Pfordten, 2012, pp. 203–211). Explico. Caso se aceite, por um
lado, a ideia de que conceitos são meramente determinados pelo uso e, por conseguinte,
são fatos, a interpretação dos textos legais se dá, simplesmente, através do
reconhecimento do uso específico feito pelo legislador com respeito à palavra a ser
interpretada – excluídas as possíveis discussões acerca de quem seria o legislador
(hipotético ou real) e da impossibilidade de uma comunicação entre legislador e
intérprete. Por outro lado, caso se aceite a hipótese de que o direito possui um fim
específico, a dizer, por exemplo, a justiça, e de que tal fim influencia na determinação
do conteúdo dos conceitos jurídicos, a questão, no caso da intepretação do texto legal,
não seria apenas o uso daquela palavra pelo legislador, mas, outrossim, até que ponto do
conteúdo deste conceito não estaria subordinado ao fim do direito. Na primeira hipótese,
tratar-se-ia de uma teoria positivista dos conceitos, enquanto a segunda hipótese
compreende uma teoria hermenêutica dos conceitos. De outra forma, a primeira
perspectiva não admite a possibilidade de outros mundos como determinantes para o
fenômeno do direito, enquanto a segunda hipótese admite tal possibilidade, culminando
assim em uma linguagem modal para a determinação do conceito de direito.
V. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Imaginem que vocês estão diante do caso julgado pelo STF acerca da
constitucionalidade da união homoafetiva, i.e., da intepretação do termo “homem e
mulher” do art. 226, §3°, da CF. Duas intepretações são possíveis: visando constituir
uma família, entender que “homem e mulher” se refere a “homem e mulher” no sentido
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biológico, i.e., a partir do critério da quantidade e tipo de cromossomos; ou entender
que “homem e mulher” se refere a “homem e mulher” simplesmente como duas pessoas
adultas. A primeira hipótese poderia ser justificada com base no uso da palavra “homem
e mulher”, i.e., no fato de que esta palavra foi usada de um determinado modo por
alguém com fito de se referir a “homem e mulher” no sentido biológico. A segunda
hipótese poderia ser justificada com base no fim do direito, a dizer, na medida em que o
direito visa garantir a liberdade de escolha da sexualidade e à igualdade entre os sujeitos
de direito, não haveria razão para não interpretar “homem e mulher” no sentido de
“pessoas adultas”. As duas visões são defensáveis na arena da teoria do direito. A
pergunta central passa a ser, então, qual é a “melhor” visão acerca do direito.
Dessa forma, uma outra possível conclusão dessa reflexão acerca dos conceitos
no direito é que a filosofia da linguagem e a linguística, embora auxiliem e desvelem
possíveis dificuldades na compreensão dos textos legais, evitando, inclusive, equívocos
crassos, não conseguem estabelecer um ponto final para a questão da intepretação, pelo
menos, no direito. Os possíveis fins do direito estão sempre “dificultando” qualquer
tentativa de determinação de proposições jurídicas válidas por meio da mera
observação. A questão ética, para aquelas que adotam uma visão hermenêutica acerca
da linguagem, surge sempre como determinante em meio à compreensão do direito.
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