FACULDADE DE DIREITO DE CAMPOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E PROCESSO ÉRICA DE SOUZA PESSANHA PEIXOTO A SOCIEDADE INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEA E O DEBATE ACERCA DO ALCANCE DAS NORMAS DE DIREITOS HUMANOS: UNIVERSALISMO E/OU RELATIVISMO CULTURAL Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito, da Faculdade de Direito de Campos/RJ, para obtenção do grau de MESTRE EM DIREITO. Orientador: Dr. Sidney Guerra CAMPOS DOS GOYTACAZES, RJ Dezembro de 2006 ÉRICA DE SOUZA PESSANHA PEIXOTO A SOCIEDADE INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEA E O DEBATE ACERCA DO ALCANCE DAS NORMAS DE DIREITOS HUMANOS: UNIVERSALISMO E/OU RELATIVISMO CULTURAL Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito, da Faculdade de Direito de Campos/RJ, para obtenção do grau de MESTRE EM POLÍTICAS PÚBLICAS E PROCESSO. BANCA EXAMINADORA ____________________________________________________ Dr. Sidney César Silva Guerra (orientador) Faculdade de Direito de Campos _____________________________________________________ Dra. Lílian Márcia Balmant Emerique Faculdade de Direito de Campos ______________________________________________________ Dr. Marco Aurélio Lagreca Casamasso Universidade Candido Mendes - RJ CAMPOS DOS GOYTACAZES, RJ 2006 Ao meu marido, Clóvis dos Santos Peixoto Pessanha (Clovinho), por me amar pelo que sou, por seu constante incentivo, por me fazer feliz, por estar sempre perto, por ser revelação do caráter de Deus pra mim. Aos meus pais, Ericson Faria Pessanha Júnior e Conceição de Maria Rodrigues de Souza Pessanha, por vocês existirem, por tudo o que são, por tudo o que fizeram e fazem, por me ensinarem, dia após dia, que na vida, o mais importante é o amor. Ao meu irmão, Ericson Faria Pessanha Neto, por estar comigo desde o meu aniversário de um ano (mesmo tendo nascido depois de mim... hauahuahau), por ser uma benção na minha vida. AGRADECIMENTOS Poder agradecer é um privilégio e nos traz à lembrança a certeza de que nunca estamos sozinhos. O reconhecimento pode vir sobre apenas um, mas qualquer um que sobe ao podium sabe que a vitória pertence a muitos, que direta ou indiretamente contribuem para que se chegue lá. Assim, meus mais sinceros agradecimentos: À Faculdade de Direito de Campos, na pessoa do diretor Dr. Levi Quaresma, por ter me recebido de braços abertos, por apostar em mim, por não medir esforços para que eu pudesse cursar o mestrado; Ao coordenador do Mestrado da Faculdade de Direito de Campos, Dr. Leonardo Greco, pelas brilhantes aulas ministradas, por estar sempre presente e contribuindo para o aperfeiçoamento acadêmico dos seus alunos; Ao meu orientador-amigo, Dr. Sidney Guerra, por investir e acreditar em mim, por conjugar sabedoria e simplicidade de uma forma ímpar, por me dar a honra de publicar um artigo ao seu lado, por toda a sua dedicação em esclarecer minhas dúvidas, sempre me fazendo pensar e ir além; À querida co-orientadora, Dra. Lílian Balmant, por seu constante incentivo, pela sua dedicação contagiante à vida acadêmica, pelo referencial de pesquisadora que é para mim. A todos os professores do curso de Mestrado em Políticas Públicas e Processo da Faculdade de Direito de Campos, em especial à querida Dra. Bethânia Assy e Dra. Gisele Cittadino, pelos textos cedidos, pelos momentos de compartilhamento, por me ensinarem a vibrar com a filosofia. Aos meus amigos do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, em quem encontrei apoio e incentivo. Ao meu tio, José Fernando Rodrigues de Souza, por você existir, pelo exemplo de dedicação que representa pra mim e por seu amor incondicional. À Denise Terra, do Centro de Pesquisas da Candido Mendes, por estar perto, por ter sempre as mãos estendidas e ser, para mim, um abrigo certo. Ao Dr. Gilmar Bedin, da Unijuí, por construir pontes e, por meio de incentivos e “doações”, contribuir para o meu aperfeiçoamento acadêmico. A todos os meus familiares e amigos, por entenderem minhas ausências e perdoarem o meu “stress” nessa reta final de conclusão do mestrado. Por fim, e acima de tudo e de todos, agradeço a Deus, por me amar primeiro, por ter enviado Jesus, por estar no controle, por ser fiel, por fazer sempre infinitamente mais. A Ele a glória, a honra, a majestade, o poder e o domínio, agora e para todo o sempre! Amém. “O sofrimento do outro me interpela. Eu não posso evitar uma resposta, pois se a resposta for a indiferença já dei um tipo de resposta. Como Caim, posso voltar as costas para o sofrimento do outro, porém sempre serei consciente de que, no conflito das vítimas, tomei partido contra elas. O sangue derramado de Abel é uma interpelação insuperável pela indiferença de Caim. A cumplicidade com o sangue derramado, com a vida negada, deve, mais cedo ou mais tarde, confrontar-se inexoravelmente com a voz que te grita: Onde está teu irmão? A resposta histórica de Caim: O que tenho eu a ver com a vida do meu irmão? (...) Eu sou responsável pelo sofrimento do outro. A pergunta ‘Onde está teu irmão?’ me afeta diretamente e me faz responsável”. (Castor M. M. Bartolomé Ruiz) RESUMO A inserção da pessoa humana como sujeito de direito internacional e a conseqüente afirmação dos direitos humanos em diversos documentos internacionais, principalmente a partir do pós-guerra, promovem o debate em torno do alcance das normas de direitos humanos. Embora alguns fundadores do direito internacional já apontassem no sentido de conceder à pessoa humana um papel central no sistema internacional desde os tempos modernos, é na sociedade internacional contemporânea, ainda marcada pelos horrores da Segunda Guerra Mundial, que o confronto entre universalismo e relativismo cultural se estabelece. O pluralismo cultural impede a construção de uma moral universal? Os direitos humanos são universais ou culturalmente relativos? Essa problemática é desenvolvida sob alguns pilares fundamentais: a consagração da pessoa humana como sujeito de direito internacional, a internacionalização dos direitos humanos e o diálogo intercultural. Palavras-chave: sociedade internacional – direitos humanos – universalismo – relativismo cultural ABSTRACT The human beings insertion as a subject of international rights and consequent human rights affirmation in many international documents, mainly from post-war, promote discussions around the human rights rules reach. Although some international rights founders already had pointed in the direction to concede to the human beings a central role in international system since the early times, it is in the contemporaneous international society, still marked by the Second World War horrors that the confront between universalism and cultural relativism is established. Does the cultural pluralism interdite the construction of a universal moral? Are the human rights universal or culturally relatives? This problematic is developed under some fundamental pillars: the human beings consecration as an international rights subject, the internationalization of human rights and the intercultural dialog. Key-words: international society – human rights – universalism – cultural relativism SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................... 10 CAPÍTULO I – DIREITO INTERNACIONAL: UMA RELAÇÃO ENTRE ESTADOS .......................................................................................................... 13 1.1) A formação dos Estados Modernos e suas legitimações teóricas .............. 13 1.2) A sociedade internacional moderna: fundadores do direito internacional e um marco histórico importante ......................................................................... 35 1.3) As duas grandes guerras mundiais e o início de uma nova fase do direito internacional ............................................................................................. 50 CAPÍTULO II – A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E O DEBATE ENTRE UNIVERSALISMO E RELATIVISMO CULTURAL NOS DOCUMENTOS INTERNACIONAIS .......................................................... 60 2.1) A sociedade internacional contemporânea do pós-guerra e a pessoa humana como sujeito de direito internacional ..................................................... 60 2.2) A proposta universalista dos documentos surgidos no pós-guerra .............. 68 2.3) A Conferência de Viena em 1993: o triunfo do universalismo dos direitos humanos ................................................................................................... 79 CAPÍTULO III – DA SUPERAÇÃO DOS ARGUMENTOS RELATIVISTAS: A UNIVERSALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS COMO PARADIGMA DO NOVO MILÊNIO ............................................................................................ 90 3.1) Contribuições filosóficas em prol do relativismo: noções gerais do pensamento de Michael Walzer ............................................................................ 90 3.2) As atuais críticas da proposta relativista à universalidade dos direitos humanos ............................................................................................................... 100 3.3) A sociedade atual e a importância do diálogo intercultural ............................ 108 3.4) O universalismo dos direitos humanos como paradigma do novo milênio ..... 117 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 129 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 134 ANEXOS ................................................................................................................ 140 10 INTRODUÇÃO Desde o século passado, principalmente com o fim da Segunda Guerra Mundial, que os direitos humanos têm se erguido como tema global. A inserção da pessoa humana como sujeito de direito internacional trouxe novos paradigmas, flexibilizando a soberania estatal e concedendo à pessoa humana um papel central no sistema internacional. Conquanto seja recente o processo de internacionalização dos direitos humanos e da consagração da pessoa humana como elemento fundamental da sociedade internacional, desde os tempos modernos já era possível contemplar, segundo a visão de alguns fundadores do direito internacional, a pessoa humana como sujeito de direito das gentes. No entanto, toda a construção e consolidação dos Estados Modernos foi pautada pela idéia de centralização e fortalecimento do poder real. Os Estados Absolutistas traziam consigo forte noção de soberania que, num primeiro momento, repousava na pessoa do rei. É nesse contexto de poderes ilimitados do soberano que doutrinadores como Francisco de Vitória, Alberico Gentili e Hugo Grotius apareceram, trazendo uma nova visão sobre o sistema internacional, desenvolvendo normas que, inspiradas principalmente no direito natural, pudessem conduzir as relações entre os Estados, identificando também direitos relativos à pessoa humana que servissem de limites a essa atuação. Contudo, a idéia de soberania estatal 11 absoluta consolidou uma ordem em que o Estado se personificou como único sujeito de direito internacional e a sociedade internacional se estabeleceu como uma relação entre Estados. A tese dos “pais fundadores” do direito internacional somente se consagraria em meados do século XX, com o fim da Segunda Guerra Mundial e a elaboração de diversos documentos, de aspiração universal, sobre os direitos humanos. É, portanto, no cenário do pós-guerra, que se fortifica a visão de que a pessoa humana possui direitos inerentes à sua existência que devem ser protegidos e a convicção de que a soberania estatal deve ser flexibilizada em prol dos direitos humanos. O Direito Internacional dos Direitos Humanos emerge em potencialidade. A sociedade internacional moderna, que estabelecia o sistema internacional como uma relação, basicamente, entre Estados cedia espaço para uma nova forma de organização do cenário internacional, onde a pessoa humana figurava como protagonista. Assim se fortalece a sociedade internacional contemporânea. E, é justamente no momento que o sistema internacional deixa de ser apenas um diálogo entre Estados e uma série de documentos são elaborados com a finalidade de afirmar direitos referentes à pessoa humana com validade universal que a problemática sobre o alcance das normas de direitos humanos aflora. Como compatibilizar a proposta de universalidade dos direitos humanos com o pluralismo cultural? Seriam estas normas verdadeiramente universais ou apenas revelariam o esforço imperialista do ocidente de tentar universalizar suas próprias crenças? Num mundo tão plural, como estabelecer padrões universais? Tais questionamentos têm feito parte dos principais debates sobre os direitos humanos na atualidade. 12 Para analisar o confronto entre universalismo e relativismo cultural dos direitos humanos, no seio da sociedade internacional contemporânea, a presente dissertação foi elaborada em três capítulos. No primeiro capítulo será feita uma análise histórica sobre a formação dos Estados Modernos e a consagração do sistema internacional como uma relação pautada entre Estados. Será demonstrado também que, é nesse contexto que surgem os primórdios da concepção da pessoa humana como sujeito de direito internacional, por meio de fundadores do direito internacional, tais como Francisco de Vitória, Alberico Gentili e Hugo Grotius. No entanto, demonstrar-se-á que é somente com o fim da Segunda Guerra Mundial que um novo paradigma se estabelece no sistema internacional e o Direito Internacional dos Direitos Humanos se fortalece. No segundo capítulo analisar-se-á o processo de internacionalização dos direitos humanos e o debate estabelecido entre universalismo e relativismo cultural nos principais documentos surgidos no pós-guerra, dando ênfase especial à Conferência de Viena (1993) que tratou especificamente da questão. No terceiro, e último capítulo, demonstrar-se-á as principais críticas estabelecidas pela proposta relativista à universalidade dos direitos humanos, com a contribuição de algumas noções gerais sobre o pensamento de Michael Walzer. A partir de então, será feita uma análise da sociedade contemporânea, combatendo os argumentos relativistas, demonstrando a importância do diálogo intercultural e consagrando a universalidade dos direitos humanos como paradigma do novo milênio. 13 CAPÍTULO I – DIREITO INTERNACIONAL: UMA RELAÇÃO ENTRE ESTADOS 1.1) A formação dos Estados Modernos e suas legitimações teóricas A formação dos Estados Modernos1, a partir do final do século XIV, inaugura uma série de percepções sobre as razões de Estado, a soberania, a natureza humana e a relação entre os governantes. Importante observar que estão sendo construídas as bases de uma fase em que o Estado se estabelecerá como único sujeito de direito internacional, com poderes absolutos. O processo de formação e consolidação dos Estados Nacionais Modernos contribuiu para a construção de uma “sociedade internacional”, baseada na relação estabelecida entre os diversos Estados que começavam a surgir. Embora a expressão “direito internacional”2 somente seja criada tempos depois, é no contexto de formação dos Estados Modernos que essas raízes se desenvolvem. Entender o processo como os Estados foram formados e as reflexões construídas sobre a soberania neste período tornam-se essenciais, então, para a compreensão dessa fase importantíssima da construção do sistema internacional: a fase em que a sociedade internacional é basicamente formada por um diálogo entre Estados. 1 A característica “moderno” refere-se à comparação com os Impérios da Antiguidade. Estado Moderno remete à noção de território, identidade, nação. Também é “moderno” porque se inscreve no período compreendido entre os séculos XIV e XVIII, denominado Idade Moderna. 2 GENTILI, Alberico. O Direito de Guerra. Ijuí: Editora Unijuí, 2004, introdução feita por Diego Panizza: “O termo ‘direito internacional’ era desconhecido nesse período, sendo, talvez, inventado pelo jurista e filósofo inglês Jeremy Bentham no ano de 1780. Até essa data eram utilizadas as expressões ‘lei da natureza’, ‘direito das gentes’ e direito de guerra”. 14 Para compreender a formação dos Estados Modernos é necessário analisar os fatores que contribuíram para o desmantelamento da sociedade feudal. É a crise do feudalismo que proporciona as bases para a nova estrutura de poder. No entanto, cumpre observar, ainda que sinteticamente, a fase de apogeu da sociedade feudal e as contradições inerentes ao próprio sistema. Entre os séculos XI e XIII o sistema feudal experimentou mais de duzentos anos de crescimento3. A produção agrícola expandiu-se por meio de novas técnicas de cultivo, a população aumentou consideravelmente e o comércio e a vida urbana renasceram. A produção agrícola era a grande base do modo de produção feudal, no entanto, convivia também com o comércio regional de matérias-primas e produtos artesanais, além das relações comerciais advindas de mercadores árabes e sírios, que não foram interrompidas. A produção desenvolvia-se, fundamentalmente, em grandes propriedades denominadas feudos, cujos donos eram os nobres e o alto clero. O feudalismo marcou-se por uma estrutura enrijecida da hierarquia social. Era um sistema forte que reunia, basicamente, três grandes grupos: o clero, a nobreza e o campesinato. O primeiro, o clero, representava uma classe extremamente poderosa, dona de muitas terras e responsável por garantir a unidade religiosa em torno da Igreja Católica. O segundo grupo, a nobreza, também detinha muitas terras, tradição hierárquica e garantia seu parasitismo4 por meio da exploração dos servos, gerando critérios de distinção social. O campesinato era a classe maior e mais 3 Historicamente é possível distinguir três grandes fases relativas ao feudalismo: do século III ao X tem-se o período de formação, nos séculos XI, XII e XIII tem-se a consolidação do modo de produção feudal, e nos séculos XIV e XV o feudalismo enfrenta o período de crise. 4 No feudalismo, o parasitismo da aristocracia relacionava-se com o fato de ser proprietária de terras e viver da exploração dela, através da relação servil. Com a formação dos Estados Modernos, a aristocracia não perdeu sua característica parasita, mas esta agora se relacionava com o fato de pertencer a maquina burocrática do Estado, à cortesania e ser por ela sustentada. 15 pobre, que trabalhava no campo, era submetido à exploração do senhor feudal e não tinha a propriedade da terra.5 Como se percebe, a estrutura de poder apresenta-se no feudalismo de modo fragmentado, descentralizado, tendo nos senhores feudais sua expressão maior. Cada senhor feudal detinha o controle total dentro do próprio feudo. E, externamente, tinha-se a unidade religiosa em torno da Igreja Católica. A exploração das terras era realizada por meio da servidão. Por este modelo, o senhor cedia um pedaço de terra para o servo, que deveria pagar impostos pela sua utilização. Ele conseguia isso trabalhando uma parte do tempo para ele (no pedaço de terra cedido pelo senhor) e outra parte acumulando os produtos com os quais pagaria os impostos e taxas. Além disso, era comum a instituição das corvéias, que era o trabalho nas terras senhoriais.6 O camponês se submetia à servidão porque não tinha a propriedade da terra. O valor dos impostos e taxas eram decididos pelo senhor feudal. Para garantir a estabilidade nos feudos e reprimir possíveis revoltas, o senhor feudal cercava-se de um sistema de defesa particular, com cavaleiros especializados. O aparato militar era responsável pela vigilância no feudo e estava submetido às ordens do senhor feudal. Além da coação militar e jurídica, havia também a ideológica, promovida pela Igreja, que também era beneficiária do sucesso dessa relação entre senhor e servo. Durante os séculos XI e XIII o modo de produção feudal consolidou-se e fortaleceu-se7. O melhor aproveitamento da terra em conjunto com as novas 5 SILVA, Francisco C.T. da. Sociedade Feudal – guerreiros, sacerdotes e trabalhadores. São Paulo: Brasiliense, 1982. 6 FARIA, Ricardo de Moura, et. al., História. Belo Horizonte: Editora Lê, 1989, volume 3, p.14. 7 Cf. FARIA, R., et al., 1989. A utilização da charrua (arado grande de ferro) e de novas técnicas de cultivo, como o arroteamento e sistema de pousio, aumentaram a produção e os lucros. Pelo sistema antigo, o senhor dividia a terra ao meio, um ano cultivava em uma parcela e no outro ano cultivava na 16 tecnologias resultavam em produtividade. A época áurea do feudalismo foi marcada justamente por isso: forte exploração do campesinato por meio do trabalho servil, alta produtividade para o senhor feudal e aumento populacional. Com relação ao crescimento da população, dados confirmam que entre 1050 e 1300 a população européia aumentou de 46 milhões de pessoas para 73 milhões de pessoas8. No entanto, com o passar das décadas, muitos mecanismos de produção começaram a se tornar obsoletos e um novo quadro se ergue na Europa. Em fins do século XIII, o feudalismo começa a dar sinais de que já havia atingido seu ponto máximo e começava a declinar, culminando no século XIV com uma grande crise que abalou as estruturas do Antigo Regime. Vários são os fatores que conduziram ao enfraquecimento do modo de produção feudal, muitos deles nascidos como resultado de contradições inerentes ao próprio sistema. Um dos pontos importantes nesse debate é a constatação do colapso dos mecanismos de reprodução do sistema feudal. A terra já havia chegado ao ponto máximo de capacidade produtiva e começava a dar sinais de esgotamento, culminando em declínio de sua rentabilidade. Além disso, chuvas torrenciais e resfriamento do clima agravaram a situação em diversas regiões da Europa9. O esgotamento dos solos era resultado, portanto, de um somatório de fatores: rudimentaridade das técnicas de cultivo, erros de exploração, a incorporação das áreas de pastagens ao cultivo e conseqüente diminuição do adubo, condições climáticas desfavoráveis, entre outros. Com uma população que havia crescido em outra parcela. Com a inserção do modelo de rotação trienal, para exemplificar, o senhor passava a repartir a terra em três parcelas, cultivava em dois pedaços (culturas distintas) e descansava 1/3 da terra. No ano seguinte, descansava um dos dois pedaços cultivados anteriormente e usava os outros 2/3 da terra. E assim por diante. 8 SILVA, F.C.T. da., op. cit., 1982, p. 29. 9 FARIA, R., et. al., História Antiga e Medieval. Belo Horizonte: Editora Lê, 1996, Manual do Professor, p.133: “Sabe-se que o desflorestamento em larga escala contribuiu, de maneira decisiva, para um desequilíbrio geo-climático que se manifestou no Ocidente europeu, a partir de 1315-1317, e traduziu-se em pesadas chuvas, de forma intensa e ininterrupta”. 17 números alarmantes, a queda na produção significou diminuição nos gêneros de primeira necessidade e nos lucros.10 A baixa produtividade nas terras resultou de imediato um quadro sério de escassez e, conseqüentemente, de fome. Além disso, crescia a insatisfação da nobreza, que, com a queda de produtividade, já não conseguia os lucros de outrora. A parcela da sociedade que mais sofreu com essa realidade foi a que detinha menos poder econômico, o campesinato. Enfrentando a realidade de uma produção deficiente, o camponês tinha que suportar o aumento da exploração por parte do senhor feudal, que não pretendia reduzir os hábitos de consumo elevados. O luxo e o parasitismo eram marcas da aristocracia feudal. Como manter tudo isso em tempos de crise? A resposta da nobreza parecia simples: aumentar ainda mais a exploração sobre o campesinato. A denominada superexploração feudal exigia um tempo de trabalho dos servos cada vez maior. Em situação de carência de alimentos e fome, muitos camponeses estavam mal alimentados e desnutridos, vivendo num nível mínimo de subsistência. Esse quadro também atingia os trabalhadores nos pequenos burgos. O desdobramento desse quadro gerou, inevitavelmente, uma série desenfreada de revoltas, motins e fugas para as cidades. A nobreza, agora, deveria conviver com a baixa produtividade e o esvaziamento da mão-de-obra. Muitos senhores feudais faziam acordos entre si tentando unir forças para reprimir as revoltas11. Em uma revolta na França (1358), a título de exemplo, foram aniquilados mais de 20.000 10 ANDERSON, Perry. Passagens da Antigüidade ao feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 222: “O desbravamento de florestas e terras incultas não fora acompanhado por um correspondente trabalho de conservação nos casos mais favoráveis; os fertilizantes quase não eram aplicados e por isso o solo da superfície empobrecia rapidamente; as inundações e as tempestades de poeiras tornaram-se mais freqüentes. Além disso, a diversificação da economia feudal européia, com o aumento do comércio internacional, levou algumas regiões a uma diminuição da produção de cereais em benefício de outros ramos da agricultura (vinho, linho, lã e gado) e, consequentemente, a uma crescente dependência das importações, com os perigos inerentes”. 11 FARIA, R., et.al., op. cit., 1989, p.16. 18 camponeses12. As revoltas urbanas mais conhecidas são as que ocorreram nas cidades de Florença (1378), em Gand (1381) e Paris (1382)13. Um outro fator importante no desmantelamento da estrutura feudal foi o renascimento comercial. Além do pequeno comércio nos burgos, as especiarias também movimentavam um comércio internacional. Vale ressaltar que os árabes e sírios lucravam muito com os produtos trazidos do Oriente, que enchiam os olhos da nobreza, sempre procurando ostentar o luxo. Assim, o comércio a longa distância estava ocasionando um intercâmbio entre os continentes e um aumento da riqueza de uma nova classe que ganhava força na hierarquia feudal: a burguesia. Segundo Perry Anderson, a relação com o mercado introduziu elementos que modificaram a relação de servidão feudal. O autor assim expõe em sua obra: O produtor direto trabalha na terra para a satisfação das suas necessidades (...). Todavia, uma certa parte do seu sobreproduto deve ser agora transformada em mercadorias, para poder tornar-se dinheiro, o que obriga o camponês a uma relação com o mercado e com o movimento de preços, no mercado, das mercadorias que produz (...). Essa relação com o mercado introduz elementos de dinamismo e de modificação na pura relação de servidão feudal (...). O processo de diferenciação do campesinato que, como referimos, levará, por um lado, à criação de uma classe de empresários capitalistas e, por outro, de trabalhadores proletários sem terra, encontra aqui sua base real.14 12 “A Jacquerie foi uma revolta camponesa que ocorreu no Norte de França entre 28 de Maio e 24 de Junho de 1358, durante a Guerra dos Cem Anos. A designação deriva de Jacques Bonhomme, o nome com conotação paternalista dado genericamente a um camponês da região. A revolta iniciou-se de forma espontânea, reflectindo a sensação de desespero em que viviam as camadas mais pobres da sociedade, depois da Peste Negra, numa altura em que França se encontrava num vazio de poder e à mercê das companhias livres, bandos de mercenários renegados que vagueavam pelo país. As elites acabaram por esmagar a revolta menos de um mês depois, matando no processo cerca de 20,000 homens, o que viria a contribuir para o agravamento das condições demográficas do país”. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Jacquerie> Acesso em 10 out. 2006. 13 Apud. FARIA, R., et.al., op. cit., 1989, p.32-33. Assim expõe Buonaccorso Pitti sobre a Revolta de Gand (1381) e Paris (1382): “Em 1381 o povo de Gand revoltou-se contra o seu senhor, o conde de Flandres, que era o pai da duquesa de Borgonha. Marcharam em grande número para Bruges, tomaram a cidade, depuseram o conde, roubaram e mataram todos os seus oficiais e procederam da mesma maneira em relação a todas as outras cidades flamengas que caíram em suas mãos. O seu chefe era esse Filipe Van Artevelde que acima mencionei. Como crescesse o número de flamengos em rebelião contra os seus senhores, enviaram embaixadas secretas à população de Paris e Rouen incitando-a a fazer o mesmo aos seus próprios senhores e prometendo-lhe ajuda e socorro neste empreendimento”. 14 ANDERSON, P., op. cit., 2000, p. 224. 19 Definitivamente, a sociedade feudal que adentrou o século XIV não era a mesma dos séculos anteriores. O dinamismo do comércio, a tendência de despovoamento dos campos e conseqüente urbanização das cidades modificaram o quadro da estrutura feudal. E a crise abalou a todos. A escassez de metais preciosos dificultava a possibilidade de cunhar moedas, o que agravava ainda mais uma situação que já era precária. Alguns nobres estavam falindo, outros, recorreram ao assalariamento da mão-de-obra como alternativa para o momento de crise. Esgotamento dos solos, baixa produtividade, fome, revoltas, superexploração, fugas e urbanização eram conseqüências de um modo de produção feudal que já demonstrava, claramente, estar desestruturado. Até nobres insurgiram-se contra nobres, saqueando estoques para contornar o quadro da má colheita. A busca desenfreada por alimentos e terras férteis estava destruindo o vínculo de fidelidade entre os nobres e as guerras inter-feudais tornaram-se freqüentes. Agregam-se a isso as inúmeras doenças e pestes ocorridas no período. Dentre elas, a Peste Negra, responsável pela dizimação de cerca de 1/3 da população européia no século XIV15. A doença, proveniente da Ásia, levava esse nome devido ao escurecimento da pele dos que contraíam a peste. Era possível encontrar contaminados em vários lugares. A morte era inevitável. Quem tinha recursos, fugia. Quem não os tinha, lutava para sobreviver. Havia corpos em decomposição em toda parte. Giovanni Boccaccio traça um painel de como a Peste Negra se manifestou em Florença: A peste não se comportou, em Florença, como se comportara no Oriente. No Oriente, a saída de sangue pelo nariz, fosse lá de quem fosse, constituía sinal manifesto de morte inevitável. Em Florença, no começo, apareciam, tanto nos homens como nas mulheres, seja na virilha, seja na axila, determinadas 15 FARIA, R., et.al., op. cit., 1996, p.135. “É natural que existam controvérsias quanto ao número de mortos em decorrência da peste negra. No entanto, sabe-se que praticamente todas as cidades da Europa e do Oriente Próximo foram atingidas e, nestas, cerca de 2/3 da população contraíram a doença, e destes aproximadamente 70% morreram”. 20 inchações. Destas, algumas cresciam como maçãs; outras, como ovo; umas cresciam mais; outras menos; o vulgo dava-lhes a denominação de bubões (...). Os trabalhadores, míseros e pobres, morriam. Caíam sem vida pelas vilas esparsas e pelos campos, juntamente com suas famílias, sem qualquer auxílio de médico, nem ajuda de servidor; morriam, não como homens, e sim como animais, pelas ruas, plantações, pelas casas, de dia e de noite, indiferentemente.16 A Europa estava em caos. A crise do século XIV atingiu o campo e as cidades, abalou a produtividade do senhor feudal, diminuiu o lucro da burguesia e impulsionou grandes revoltas camponesas. A fome, a peste e as guerras fizeram com que a população e, conseqüentemente, a mão-de-obra européia diminuísse drasticamente. A situação de crise revelava uma nobreza atemorizada, uma burguesia surpresa e um camponês revoltado. Era preciso buscar alternativas. A aristocracia feudal, classe política e economicamente dominante no período, procurava respostas que pudessem ser capazes de reorganizar seu poderio, reprimindo as revoltas camponesas e tributando a burguesia. Mas, o que seria suficientemente forte e coeso para controlar as revoluções camponesas e urbanas que eclodiam em toda parte? O que seria suficientemente organizado para controlar e tributar os recursos da burguesia emergente? A resposta para tantas indagações culminou com a emergência do Estado Absolutista no Ocidente. Os séculos seguintes foram marcados pela enorme transição que levaria à consolidação de diversos Estados na Europa. Desse modo, percebe-se que, conquanto alguns autores defendam a idéia de que o Estado Absolutista teria sido fruto de uma união entre rei e burguesia contra os domínios da nobreza17, parece mais acertado analisar o novo momento como uma 16 BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. São Paulo, Livraria Martins Editora, 1956, p. 41. CÁRCERE, Florival. História Geral. São Paulo: Editora Moderna, 1996, p. 195. Segundo Florival Cáceres: “A burguesia ainda não tinha força política para assumir a tarefa de centralização do poder. Era uma classe numérica e politicamente fraca, que possuía o capital e a consciência de que os 17 21 tentativa de reestruturação e reorganização da própria nobreza, classe ainda fortemente dominante nesse período. Do contrário, por que teriam ocorrido as Revoluções Burguesas dos séculos XVII e XVIII, se a burguesia já era detentora do poder? Nesse ponto, concorda-se, portanto, com a vertente interpretativa que analisa o processo de formação dos Estados a partir dos interesses da aristocracia. Assim afirma Perry Anderson: Essencialmente, o absolutismo era apenas isto: um aparelho de dominação feudal recolocado e reforçado, destinado a sujeitar as massas camponesas à sua posição social tradicional – não obstante e contra os benefícios que elas tinham conquistado com a comutação generalizada de suas obrigações. Em outras palavras, o Estado absolutista nunca foi um árbitro entre a aristocracia e a burguesia, e menos ainda um instrumento da burguesia nascente contra a aristocracia: ele era a nova carapaça política de uma nobreza atemorizada.18 Então, segundo o autor, o Estado absolutista nasce como uma organização política determinada, essencialmente, pelas necessidades da nobreza, objetivando reprimir as revoltas camponesas por meio de um mecanismo armado em escala nacional e tributar os recursos monetários da burguesia para manter o luxo e o parasitismo. Ricardo e outros também descartam a argumentação de que o Estado moderno seria uma possível união entre rei e burguesia. Assim expõem os autores: É imprescindível não perder de vista que o emergente Estado moderno, que toma a forma de Monarquia Nacional, representa a exigência de uma regulamentação jurídica para os conflitos sociais que se desenvolvem. Esse Estado, cuja evolução culmina no Estado Absolutista, continua sendo a expressão da hegemonia da nobreza que, através da reorganização estatal, reforça sua dominação sobre a massa camponesa. 19 particularismos feudais eram contrários a seus interesses econômicos. Mas, sem lugar na hierarquia feudal, essa classe precisava encontrar uma força significativa, disposta a lutar contra a nobreza e centralizar o poder. Os reis, por sua vez, também estavam interessados em fortalecer seu poder, o que era impossível dentro do complexo sistema de vassalagem do feudalismo. Eles possuíam exército de nobres vassalos, mas é claro que não podiam contar com essa ajuda para combater seus próprios interesses e privilégios”. 18 ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.18. 19 FARIA, R., et. al., op. cit., 1989, p. 25. 22 No entanto, não foi tarefa simples a consolidação dos Estados Nacionais Modernos. Muitas guerras marcaram essa transição, que ocorreu lentamente, prolongando-se pelos séculos seguintes20. Cumpre ressaltar que a burguesia, classe importante no período, também se beneficiou dessa nova organização. Embora tributada, a formação dos Estados Nacionais trazia ganhos consideráveis para a burguesia, entre eles, a unificação do sistema de pesos e medidas, destacando-se a unificação monetária, o melhoramento das estradas, a criação de um exército nacional para proteger fronteiras e evitar saques. São marcas, portanto, da formação dos Estados Nacionais Modernos: a centralização política e administrativa, a formação de uma burocracia (grupo de pessoas especializadas nos negócios administrativos), a organização de um exército nacional, a unificação monetária, a codificação do direito, a instituição da diplomacia, a imposição da justiça real, entre outras21. Deve-se observar alguns pontos relevantes desses elementos que constituíam o Estado moderno. O exército nacional era remunerado, profissional, fiel ao rei e composto, basicamente, por mercenários22. Acumulava diversas funções: a) 20 Vale ressaltar que a consolidação dos Estados Nacionais italiano e alemão somente se completou na segunda metade do século XIX. 21 Apud. FARIA, R., et. al., História Moderna através de textos. São Paulo: Contexto, 1989, Textos e Documento 3, p. 56. Leon Pomer enumera algumas características das monarquias européias: “Onde elas sobrevivem, mas não em todas (Espanha é exemplo de exceção), ocorrem os seguintes fenômenos: - Um sistema legal que tende a se unificar; - Códigos administrativos operados por pessoal especializado; - Concentração de poder material e espiritual (as monarquias se legitimam por direito divino e enfrentam o poder temporal da Igreja); - Exércitos a serviço do poder real e estreitamento dependente dele; - Arrecadação de impostos para sustentar exércitos e o aparato administrativo que arrecada e transmite – e faz cumprir – as determinações do poder real; (...) – Dissolução dos vínculos feudais e afloramento das relações de subordinação pessoal; Enfraquecimento e, às vezes, eliminação dos poderes locais, regionais ou provinciais; - Eliminação das autonomias das cidades; - Mercantilização crescente da economia; - Extinção das barreiras jurídicas que sancionavam uma estratificação social do tipo estamental; - Percepção ampliada do todo social em virtude da multiplicação das interações sociais; - Construção de redes viárias e canais (estes na Inglaterra) pelos quais transitam mais facilmente homens e mercadorias”. (). 22 ANDERSON, P., op.cit., 1985, p.29-30. Expõe o autor: “Não eram, normalmente, uma força nacional formada por recrutas, mas uma massa heterogênea na qual os mercenários estrangeiros 23 cobrar impostos (“renda feudal centralizada”); b) reprimir as revoltas camponesas; c) ampliar o território por meio das guerras; d) guardar a fronteira. A assimilação do direito romano demonstrava um indício da difusão das relações capitalistas nas cidades e no campo. Economicamente, ela correspondia aos anseios e propostas da burguesia. As considerações sobre a propriedade, formas de parcelamento de dívidas e juros foram, sistematicamente, sendo apropriadas pela classe em ascensão. Politicamente, o reflorescimento do direito romano respondia às exigências da centralização política e administrativa dos Estados feudais, contribuindo para o programa de integração territorial.23 O sistema fiscal e burocrático civil era uma das formas de integração da nobreza feudal ao Estado absolutista. Por meio da aquisição de “cargos”, a nobreza assumia uma posição no aparelho público do Estado. No entanto, com o decorrer do tempo, as fraudes, os abusos de privilégios e as corrupções tornaram-se freqüentes. Manter o parasitismo de uma classe que ostentava luxo, sustentar um exército nacional e uma vasta burocracia tinham um alto custo. A tributação sobre os mais pobres aumentou consideravelmente e as revoltas foram inevitáveis também.24 Um elemento essencial no Estado moderno foi também a diplomacia. Afinal, o comércio e a guerra não eram as únicas atividades externas do Estado absolutista no Ocidente. Com o surgimento da diplomacia, nasceu na Europa um sistema político internacional. A criação de “embaixadas” (viagens de cortesia esporádicas e não-remuneradas) contribuiu na promoção de alianças políticas e militares. No entanto, uma grande estratégia da diplomacia era a realização de “políticas de desempenhavam um papel constante e central. (...) Com certeza, a mais óbvia razão para o fenômeno mercenário foi a natural recusa da nobreza em armar os seus próprios camponeses em larga escala”. 23 Ibid, p. 26-27. 24 Ibid, p.34. 24 casamento”25, duplamente interessantes, pois era um modo de expandir território menos dispendioso e menos agressivo do que a guerra, embora também revelasse contradições26. Começava-se, na Europa, por meio das embaixadas e chancelarias, uma relação entre os diversos Estados que estavam surgindo. As relações exteriores foram se aperfeiçoando e se fortalecendo. Perry Anderson afirma sobre esse ponto: A contração da pirâmide feudal nas novas monarquias centralizadas da Europa renascentista produziu, pela primeira vez, um sistema formalizado de pressão e intercâmbio entre Estados, com o estabelecimento das novas instituições das embaixadas fixas e recíprocas no exterior, chancelarias permanentes para as relações exteriores e comunicações e relatórios diplomáticos secretos, amparados pelo recente conceito de extraterritorialidade.27 Embora o sistema internacional ainda se configure de modo tênue, é a partir da consolidação dos Estados Modernos e, portanto, da transição do feudalismo para o capitalismo, que são colocadas as bases para a instituição de uma sociedade internacional, somente solidificada alguns séculos depois. Portugal foi o pioneiro no processo de formação dos Estados Nacionais Modernos, já estando centralizado no final do século XIV. Em seguida veio a Espanha, no século XV. Isso permitiu que fossem também os primeiros a investir nas grandes navegações e na conquista de novas terras. Os séculos XVI e XVII, também marcados pelo fortalecimento dos Estados, contribuem para o entendimento dessa 25 Para exemplificar, o absolutismo espanhol nasceu da união de Castela e Aragão, efetivada pelo casamento de Isabel I e Fernando II em 1469. 26 ANDERSON, P., op. cit., 1985, p. 38-39. Segundo Perry Anderson: “O supremo estratagema da diplomacia era, assim, o casamento – espelho pacífico da guerra, que tantas vezes a provocou. Menos dispendiosa como acesso para a expansão territorial que a agressão armada, a manobra matrimonial proporcionava resultados imediatos menores (em geral, apenas após uma geração) e estava sujeita, por conseguinte, aos acasos imprevisíveis da mortalidade, no intervalo entre a consumação de um pacto nupcial e a sua fruição política. Em vista disso, a longa variante do casamento muitas vezes levava diretamente ao curto atalho da guerra”. 27 Ibid, p. 37-38. 25 primeira grande fase do direito internacional28, que se estende até os tratados de Vestfália, em 1648, que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos. Antes de analisar, no entanto, o Tratado de Vestfália e as considerações de fundadores do direito internacional, tais como Francisco de Vitória, Alberico Gentili e Hugo Grotius, necessário se faz compreender que é a partir da formação dos Estados Modernos que surge a idéia de soberania, de rei com poderes absolutos, de Estado soberano. Como um soberano se mantém no poder? Como manter a ordem e a segurança? De onde vem o poder absoluto dos reis? Como se estabelecem as relações de poder? Por que o Estado é essencial? Tais considerações são imprescindíveis para a compreensão desse período que coloca os alicerces para a construção do direito internacional e que concebe a sociedade internacional a partir da perspectiva dos Estados e das relações que estabelecem entre si. 1.1.1) Estado e Soberania: A contribuição dos pensamentos de Nicolau Maquiavel, Jean Bodin e Thomas Hobbes para a legitimação teórica do Estado. Nicolau Maquiavel, Jean Bodin e Thomas Hobbes desenvolveram importantes concepções teóricas relativas ao Estado29. O primeiro, considerado o pai da ciência política, construiu uma série de considerações sobre a conquista e manutenção do poder. O objeto de suas reflexões foi a realidade política, pensada a partir de prismas racionais, concretos, terrenos. O segundo, construiu o conceito de 28 ACCIOLY, Hildebrando; G. E. do Nascimento e Silva. Manual de Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 6. O autor aponta quatro períodos fundamentais na evolução do direito internacional: “Seja como for, para fins didáticos, podem-se identificar quatro períodos: 1) da antiguidade até os tratados de Vestefália; 2) de 1648 até a Revolução Francesa e o Congresso de Viena de 1815; 3) do Congresso de Viena até a primeira guerra mundial; 4) de 1918 aos dias de hoje, com especial ênfase nos acontecimentos que se seguiram à segunda guerra mundial”. 29 Outros nomes também merecem destaque nessa discussão, tais como, Bossuet, Locke, Rousseau, Burke. Mas, preferiu-se, neste trabalho, abordar somente as concepções de Maquiavel, Bodin e Hobbes. 26 soberania. Não reconhecer nenhum poder terreno superior ao do rei foi de extrema importância para a legitimação teórica do domínio estatal e da concepção moderna de Estado. Já o terceiro justificou a formação do Estado a partir da noção de contrato, estabelecendo importantes considerações sobre a natureza humana e a soberania estatal. 1.1.1.1) Nicolau Maquiavel: a realidade política pensada em termos de prática humana concreta Nicolau Maquiavel escreve suas principais obras no início do século XVI, época que coincide com a crise feudal, o alargamento do comércio internacional, a expansão da burguesia mercantil e a formação dos Estados Nacionais Absolutistas. O autor, inspirado pela possibilidade da unificação italiana, aborda importantes temas referentes à formação do Estado (como conquistá-lo e como mantê-lo) e às razões de Estado (garantia da ordem e da segurança). Nicolau Maquiavel (1469-1527) era natural de Florença. A península era constituída por uma série de pequenos Estados, com regimes políticos, desenvolvimento econômico e cultura variados. Durante todo o século XV, Florença tivera sido governada pela aristocrática família dos Médici, que gozavam de grande prestígio junto ao Papa. Em 1502 houve um golpe e estabeleceu-se uma “tirania” comandada por Piero Soderini e Piero Savonarolla. Este governo se estendeu entre 1502 e 1512. Durante esse período, Maquiavel foi promovido de escrivão a embaixador de Florença. Como embaixador, conheceu vários países centralizados da Europa e projetou a possibilidade de unificação da Itália. Em 1512 ocorre o retorno dos Médici com apoio do Papa e do governo francês. Maquiavel foi exilado 27 em San Casciano. No exílio escreve suas principais obras, entre elas, “Os discursos da primeira década de Tito Lívio” e “O Príncipe”. Em todas as suas obras, a preocupação maior é uma só: O Estado30. Não se preocupa com o que ele deve ser, com o Estado ideal, mas pensa a realidade política em termos de prática humana concreta. Nesse sentido, rompe com os paradigmas que analisam o Estado por meio de uma percepção divina ou natural. O Estado é um fato e ponto. Assim expõe Gilmar Bedin: Isto significa, em outras palavras, que, com o Renascimento, abandonou-se a concepção de que a condição política do ser humano é uma propriedade natural ou que é uma ordem imposta por Deus aos mortais, passando o homem a percebê-la com sendo uma condição inevitavelmente constitutiva da existência coletiva. Por isso, Nicolau Maquiavel, em momento algum de sua obra, por exemplo, aborda a questão da origem do Estado ou do poder, observando-o, através de sua experiência, como uma realidade posta, um fato, um fato político real, que é tudo menos divino ou natural31. Atitudes humanistas, antropocêntricas e cientificistas marcam o discurso maquiaveliano. Num momento de grande instabilidade política, as perguntas que Maquiavel tenta responder são: Como manter um Estado estável? Como garantir a ordem e a segurança? O referido autor parte do pressuposto de que os homens são maus, ingratos, vingativos, malvados, volúveis, soberbos, invejosos32. E essa natureza humana é imutável. Sendo assim, o conflito e a anarquia são desdobramentos inevitáveis de uma natureza que sempre degenera. Ordem e desordem se sucedem constantemente porque a história é cíclica, por isso a importância de ler sobre os 30 WEFFORT, Francisco C. (org.) Os Clássicos da Política 1. São Paulo: Ática, 2001, p. 17. Trecho da carta de Maquiavel a F. Vettori (1513): “O destino determinou que eu não saiba discutir sobre a seda, nem sobre a lã; tampouco sobre questões de lucro ou de perda. Minha missão é falar sobre o Estado. Será preciso submeter-me à promessa de emudecer, ou terei que falar sobre ele”. 31 BEDIN, Gilmar. A Sociedade Internacional e o Século XXI. Ijuí: Unijuí, 2001, p. 117. 32 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 100. Segundo Maquiavel: “Geralmente, pode-se dizer que os homens são ingratos, volúveis, mentirosos, traiçoeiros, covardes, ávidos por dinheiro. Se lhes fazes o bem, todos estão contigo. Oferecem-te o sangue, as coisas, a vida, os filhos, como disse antes, quando a necessidade está longe de ti. Mas quando a necessidade chega perto, eles se rebelam”. 28 antigos. Nesse sentido, expõe Maria Teresa Sadek sobre o pensamento de Maquiavel: A história é cíclica, repete-se indefinidamente, já que não há meios absolutos para ‘domesticar’ a natureza humana. Assim, a ordem sucede à desordem e esta, por sua vez, clama por uma nova ordem. Como, no entanto, é impossível extinguir as paixões e os instintos humanos, o ciclo se repete. O que pode variar – e nesta variação encontra-se o âmago da capacidade criadora humana e, portanto, da política – são os tempos de duração das formas de convívio entre os homens.33 Sendo assim, Maquiavel admite duas formas de governo possíveis para o Estado Moderno: a República e o Principado. Sendo que, para a Itália, que precisa de instrumentos fortes para promover a unificação e dar estabilidade ao sistema, imprescindível que se levante um príncipe, um redentor. É o próprio Maquiavel que afirma: Considerando, portanto, todas as coisas que foram discutidas, pensei comigo mesmo se, atualmente, na Itália era hora de honrar um novo príncipe e se existe a matéria bruta que daria oportunidade a um príncipe prudente e valoroso de introduzir uma nova ordem que trouxesse honra a ele e benefícios para o povo. (...) De modo que, a Itália resta quase sem vida, esperando para ver quem poderá sanar suas feridas (...) Não se deve, portanto, deixar passar esta ocasião, para que a Itália, depois de tanto tempo, veja o seu redentor.34 É essencial compreender que, para Maquiavel, a garantia da ordem e da segurança constituem-se nas finalidades do Estado e, para alcançar esse objetivo, pode o Estado se utilizar de quaisquer meios. Para o autor, a política tem uma ética e uma lógica próprias. É a moralidade dos fins. Conseguir manter um Estado estável é o fim e, para isso, os meios serão sempre honrosos. Pode-se usar a lei ou a força35, pode-se ser leal ou simplesmente parecer sê-lo36. Expõe o autor: “Assim, um 33 SADEK, Maria Teresa. Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtù. In: WEFFORT, Francisco.(org.) Os Clássicos da Política 1. São Paulo: Ática, volume 1, 2001, p. 20. 34 MAQUIAVEL, N., op. cit., 1992, p. 151-155. 35 Ibid, p. 105: “Deve-se saber, portanto, que há dois modos de combater: um com as leis e outro com a força”. 36 Ibid, p. 107-108: “A um príncipe, portanto, não é necessário ter, de fato, todas as qualidades acima descritas, mas é bem necessário parecer tê-las. (...) O príncipe deve parecer clemente, leal, humano, íntegro, religioso e deve sê-lo. Mas deve estar com o espírito pronto para que, precisando não ter 29 príncipe deve conquistar e manter um Estado. Os meios serão sempre considerados honrados e por todos louvados”37. Vale ressaltar que Maquiavel escreve no período de formação dos Estados Modernos, época em que se estabelecem diversas monarquias absolutistas. No livro “O Príncipe”, Maquiavel deixa claro que o Estado é um homem. E, o que esse homem tem de diferente dos outros? Virtù e fortuna. É isso que faz dele o príncipe, o soberano. É isso que faz dele aquele capaz de manter o Estado. É isso que faz com que ele se destaque do povo, que é “massa amorfa”, e se estabeleça como príncipe. Outro aspecto importante é a maneira como o autor pontua o lugar do temor, do amor e do ódio nas relações sócio-políticas. Refletindo se é melhor ser amado do que temido, afirma que, não podendo conjugar os dois, que se opte pelo governo por meio do temor. É mais seguro, promove obediência, reflete medo. Já o amor é um vínculo frágil e, o ódio, o atalho mais próximo da ruína, da revolução. Afirma Maquiavel: Nasce daí uma questão: É melhor ser amado do que temido, ou o contrário. Responde-se que se quer ser tanto um quanto o outro. Mas como é difícil reuni-los, é muito mais seguro ser temido do que amado, no caso de ser preciso renunciar a um dos dois. (...) O amor é mantido por um vínculo de obrigação, que os homens, sendo malvados, rompem quando melhor lhe servir. Mas o temor é mantido pelo medo de ser punido, o que nunca termina. (...) Deve somente cuidar para fugir do ódio, como falei.38 O ensino da relação de poder baseada no temor, a demonstração de que descumprir promessas e mentir pode ser útil, a preocupação com a aparência e exterioridade do poder, a possibilidade da injustiça e da fraude, a justificativa, em muitos casos, da tirania e a frieza com que descreve o ser humano são marcas do pensamento maquiaveliano. Mais uma vez, demonstra-se que as atitudes, por mais essas qualidades, possa e saiba assumir o contrário. (...) Todos os homens, geralmente, julgam mais pelos olhos do que pelas mãos, pois todos sabem ver, poucos sabem sentir. Todos vêem a tua aparência, poucos sabem o que tu és”. 37 Ibid, p. 108. 38 Ibid, p. 100-103. 30 reprováveis que possam parecer, serão sempre gloriosas se servirem para manter o Estado. Escreve Maquiavel: Quando é necessário deliberar sobre uma situação da qual depende a salvação do Estado não se deve deixar de agir por considerações de justiça ou injustiça, humanidade e crueldade, glória e ignomínia. Deve-se seguir o caminho que leva à salvação do Estado e à manutenção de sua liberdade, rejeitando-se o tudo mais.39 As idéias maquiavelianas dividem a história. Antes, a Idade Média e suas concepções pautadas na divindade das coisas, depois, a Idade Moderna e o realismo político. A partir de Maquiavel, portanto, o Estado é compreendido como uma construção essencialmente humana. A moral maquiaveliana é muito bem exposta por Gilmar Bedin: Não é, portanto, em síntese, mais uma moral da alma individual, que deveria apresentar-se ao julgamento divino formosa e limpa, mas sim uma moral socialmente objetiva e centrada na especificidade do mundo político. Esta é, portanto, a grande lição de Maquiavel para a compreensão e para o estudo do Estado Moderno.40 Eis, então, uma das contribuições maquiavelianas: a realidade política pensada em termos de prática humana concreta. 1.1.1.2) Jean Bodin: a construção do conceito de soberania Jean Bodin (1530-1596) é apontado como o teórico construtor do conceito de soberania. Assim como Maquiavel, ele também escreveu suas obras no século XVI, época de formação das monarquias absolutas. Foi um dos grandes defensores da teoria do direito divino dos reis. Segundo esta concepção, os monarcas eram vistos como representantes de Deus na terra, detinham poder por ordem divina. Nesse 39 40 Idem. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Brasília: UNB, 1994, p. 419. BEDIN, G., op. cit., 2001, p. 127. 31 sentido, desobedecer ao rei era blasfemar contra o próprio Deus. A legitimidade do poder derivava de sua natureza celestial. Assim explica Bodin: Nada havendo de maior sobre a terra, depois de Deus, que os príncipes soberanos, e sendo por Ele estabelecidos como seus representantes para governarem os outros homens, e necessário lembrar-se de sua qualidade, a fim de respeitar-lhes e reverenciar-lhes a majestade com toda a obediência, a fim de sentir e falar deles com toda a honra, pois quem despreza seu príncipe soberano, despreza a Deus, de Quem ele é a imagem na terra.41 A soberania estava relacionada à idéia de autoridade maior, superior. Por isso tinha como características o fato de ser absoluta e perpétua42. Absoluta porque não admitia limitações humanas. O rei sequer tinha obrigação de obedecer suas próprias leis, uma vez que não poderia a si próprio limitar. E perpétua porque se prolongaria no tempo, sem prazo determinado. Afinal, poder absoluto recebido com data marcada para terminar, não seria poder absoluto. Mas, como o rei submetia-se somente a Deus, deveria observar as leis divinas e naturais43. Quanto à relação estabelecida entre soberania, direito interno e direito internacional, aponta Dalmo de Abreu Dallari: Embora não tenha mencionado a inalienabilidade como característica da soberania, o que outros autores fariam depois, escreve Bodin que, seja qual for o poder e a autoridade que o soberano concede a outrem, ele não concede tanto que não retenha sempre mais. Dessa forma, a soberania coloca o seu titular, permanentemente, acima do direito interno e o deixa livre para acolher ou não o direito internacional, só desaparecendo o poder soberano quando se extinguir o próprio Estado.44 41 Apud. CHEVALIER Jean-Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. Rio de Janeiro, Livraria Agir Editora, 1966,1 p. 58. 42 MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2003, p.31. Segundo o autor: “A teoria da soberania absoluta do rei começou a ser sistematizada na França, no século XVI, tendo como um dos seus mais destacados teóricos Jean Bodin, que sustentava: a soberania do rei é originária, ilimitada, absoluta, perpétua e irresponsável em face de qualquer outro poder temporal ou espiritual”. 43 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005, p.77. 44 Ibid, p. 78. 32 Deve-se observar, portanto, que a soberania está sendo concebida, nesse momento, como um poder absoluto do Estado. Tal idéia cria as bases para a compreensão do sistema internacional pelo ponto de vista do Estado, sendo este, o único sujeito possível de direito internacional. Tal paradigma será remodelado por diversos fundadores do direito internacional45 mais tarde, como se verá adiante. 1.1.1.3) Thomas Hobbes: a noção de contrato na formação do Estado Thomas Hobbes é inglês e escreve suas obras no século XVII, num momento de crise do Estado Moderno e ascensão do projeto liberal da burguesia. Assiste ao contexto da Revolução Puritana (1640), da proclamação da República em 1642 e da ascensão de Oliver Cromweel, da restauração da monarquia com os novos Stuarts em 1660 e da Revolução Gloriosa em 1688/89 na Inglaterra. Hobbes está num país em que a estrutura do absolutismo está em crise. No entanto, Thomas Hobbes escreve para justificar o absolutismo. E, sendo um contratualista, primeiro analisa o que denomina de “estado de natureza”. Segundo o autor, os homens no estado de natureza são livres e iguais. Mas, a igualdade e a liberdade possuem outras conotações. Os homens são iguais o bastante para que nenhum possa triunfar sobre o outro. Um pode ter uma força física maior e ser derrotado por outro que, embora mais fraco fisicamente, consiga maquinar um plano eficaz. Expõe Hobbes: A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito, que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que o outro não possa também aspirar, tal 45 Serão analisadas algumas considerações sobre o pensamento de Francisco de Vitória, Alberico Gentili e Hugo Grotius no próximo tópico. 33 como ele. (...) Pois geralmente não há sinal mais claro de uma distribuição eqüitativa de alguma coisa do que o fato de todos estarem contentes com a parte que lhes coube.46 Norberto Bobbio, analisando o pensamento hobbesiano, constata que o estado de natureza pode se configurar em três hipóteses: a) nas sociedades primitivas, sejam as dos povos selvagens da época, como os indígenas de algumas regiões da América, sejam as dos povos bárbaros da Antiguidade agora civilizados, ou, em outras palavras, numa situação que, sendo anterior à passagem da sociedade natural à sociedade civil, pode ser chamada de pré-estatal; b) no caso da guerra civil, ou seja, quando o Estado já existe, mas se dissolve por várias razões, ocorrendo a passagem da sociedade civil à anarquia, situação que poderia ser chamada de antiestatal; c) na sociedade internacional, na qual as relações entre os Estados não são regulamentadas por um poder comum, numa situação que poderia ser chamada de interestatal.47 A igualdade reside no fato de que, no estado de natureza, todos acreditam serem potencialmente fortes. Disso resulta o fato de que, se não há limites impostos, a morte torna-se inevitável. Se não há nada superior que possa controlar o ataque recíproco dos homens, a guerra se generaliza. É nesse sentido que expõe que o homem é lobo do homem. Assim argumenta Renato Janine Ribeiro: A igualdade, já vimos, é o fator que leva à guerra de todos. Dizendo que os homens são iguais, Hobbes não faz uma proclamação revolucionária contra o Antigo Regime (como fará a Revolução Francesa: ‘Todos os homens nascem livres e iguais...’), simplesmente afirma que dois ou mais homens podem querer a mesma coisa, e por isso todos vivemos em tensa competição.48 Na hipótese da sociedade pré-estatal, no momento que o homem descobre a possibilidade da morte violenta (quem mata pode morrer) entendem que é preciso a criação do Estado. Afinal, não há nada que o homem queira mais do que a sua própria vida. É o medo da morte que faz o homem pensar, refletir, avançar. Como alcançar um caminho de paz? Como conseguir uma situação estável o suficiente 46 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2000, p. 74. BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Rio de Janeiro: Campus, 1991, p. 36. 48 WEFFORT, F., op. cit., 2001, p. 66. 47 34 para que todos possam ter a certeza de que todos estão seguros? Assim, é a preservação da vida que justifica o poder absoluto do soberano. Então, para montar esse poder absoluto, Hobbes imagina um contrato. O contrato hobbesiano é firmado entre os homens, entre os súditos, em que cada um renuncia o seu próprio poder e o transfere ao soberano. É, nesse sentido, um pacto de submissão. Agindo assim, o homem sai do estado de natureza e ingressa no estado civil, sai da situação de insegurança para o caminho da segurança. Hobbes explica o pacto: “Autorizo e cedo meu direito de governar a mim mesmo a este homem ou a esta assembléia de homens, com a seguinte condição: que tu também lhe cedas teu direito e autorizes todas as suas ações do mesmo modo”49. Sintetizando, pacto da união é: a) um pacto de submissão estipulado entre os indivíduos, e não entre o povo e o soberano; b) consiste em atribuir a um terceiro, situado acima das partes, o poder que cada um tem em estado de natureza; c) o terceiro ao qual esse poder é atribuído, como todas as três definições acima o sublinham, é uma única pessoa.50 Importante ressaltar que o soberano, constituído a partir do contrato, possui uma soberania irrevogável, absoluta e indivisível. As concepções hobbesianas são imprescindíveis à legitimação teórica do Estado Moderno. Assim explica Norberto Bobbio: A luta do Estado Moderno é uma longa e sangrenta luta pela unidade do poder. (...) a formação do Estado Moderno coincide com o reconhecimento e com a consolidação da supremacia absoluta do poder político sobre qualquer outro poder humano. Esta supremacia absoluta se chama soberania. (...) Desse modo, à luta que o Estado Moderno travou em duas frentes corresponde o duplo atributo de seu poder soberano, que é original, no sentido de que não depende de qualquer outro poder superior, e indivisível, no sentido de que não pode ser partilhado com nenhum poder inferior. Thomas Hobbes é o grande teórico – o mais lúcido e o mais conseqüente, o mais radical sutil e temerário – da unidade do poder estatal.51 49 HOBBES, T., op. cit., 2000, p. 112. BOBBIO, N., op. cit., 1991, p. 43. 51 Ibid, p. 65-66. 50 35 A partir dessas considerações, percebe-se que a formação do Estado Moderno carrega consigo uma série de percepções que concebem o Estado como detentor de um poder absoluto e servirão de base para inseri-lo como o ator central das relações internacionais. No entanto, alguns fundadores do direito internacional começam a conceber, com base no direito natural, uma série de limitações ao arbítrio do Estado, principalmente na análise do direito de guerra, mas, a época por vir ainda será fortemente marcada pelo exercício do poder estatal, onde o sistema internacional será compreendido como uma relação entre Estados. 1.2) A sociedade internacional moderna: fundadores do direito internacional e um marco histórico importante O processo de fortalecimento dos Estados Modernos contribuiu para a construção da sociedade internacional moderna, tendo na soberania estatal o seu ponto de apoio. Diversos pensadores dedicaram-se ao estudo das relações estabelecidas entre os Estados, seus limites e possibilidades, sendo considerados fundadores do direito internacional moderno. Entre eles, destacam-se três: Francisco de Vitória, Alberico Gentili e Hugo Grotius. Vale também destacar o marco histórico de consolidação da sociedade internacional moderna: a Paz de Vestfália (1648), expressão de uma fase em que o direito internacional limitava-se a regulamentar uma relação entre Estados soberanos. 36 1.2.1) Alguns fundadores do Direito Internacional Moderno: Francisco de Vitória, Alberico Gentili e Hugo Grotius Francisco de Vitória, Alberico Gentili e Hugo Grotius são importantes representantes da escola moderna do direito natural, e desempenharam um papel essencial no processo que levou à formação do direito internacional moderno. 1.2.1.1) Francisco de Vitória Francisco de Vitória (1492-1546) nasceu em Vitória, capital da província de Alava, Reino de Navarra. Foi um teólogo renascentista. Estudou arte e teologia em Paris e foi fundador da tradição filosófica chamada Escola de Salamanca. Teceu diversas considerações sobre a dignidade e os problemas morais da condição humana. Também analisou as fontes e os limites dos poderes civil e eclesiástico. Dedicou-se ainda aos direitos dos índios, rechaçando os excessos cometidos durante a colonização americana. Mas, no que tange à sua contribuição para a formação do direito internacional moderno, desenvolveu importantes concepções sobre a guerra justa, sendo um dos primeiros a propor a idéia de uma comunidade de povos fundada no direito natural e não, simplesmente, pautada pelo uso da força52. O descobrimento da América, a interpretação das bulas papais de doação concedida pelos reis católicos da Espanha e o tratamento dado à população indígena na colonização americana serviram de marcos importantes para as considerações vitorianas sobre a guerra justa. 52 Disponível em: <http://es.wikipedia.org/wiki/Francisco_de_Vitoria> Acesso em 24 out. 2006, 12:35. 37 Francisco de Vitória rompe com a idéia maquiaveliana de um Estado moralmente autônomo, onde a soberania lhe outorga o poder de operar sem limites. Em Vitória, encontra-se a tentativa de afirmação de que a atuação estatal no mundo possui limites morais, pautados pelo direito natural. Uma de suas contribuições para o direito internacional moderno diz respeito à constatação de que o mar, os rios e os portos podem ser usados por todos. Segundo o direito natural, essas coisas seriam públicas. Expõe Vitória: Los españoles tienen derecho de recorrer aquellas provincias y de permanecer allí, sin que puedan prohibírselo los bárbaros... Por derecho natural, comunes a todos son las águas corrientes y el mar; lo mismo los rios y los puertos; y las naves por derecho de gentes es lícito atracar a ellos... parecen públicas esas cosas, luego nadie puede prohibir el uso de ellas.53 A análise da internacionalidade das águas oceânicas será um tema desenvolvido por muitos outros pensadores, como se verá adiante. Vitória defende também o livre comércio que, segundo ele, não pode ser impedido nem mesmo pelos governantes. Com relação ao comércio empreendido pelos espanhóis com os índios assim afirma Vitória: Es lícito a los españoles comerciar con ellos, pero sin perjuicio de su patria, importándoles los productos de que carecen y extrayendo de allí oro y plata u otras cosas em que ellos abundan, y ni sus príncipes pueden impedir a sus súbditos que comercien con los españoles ni, por el contrario, los príncipes de los españoles pueden prohibirles el comerciar con ellos...54 A relação entre espanhóis e índios, por ocasião da colonização americana, foi muito analisada por Vitoria. Seus estudos contribuíram para a construção da idéia de dignidade humana, pois rechaçava os excessos cometidos pelos espanhóis. Analisa 53 Apud. SIMAN, Beatriz Maldonado. La guerra justa de Francisco de <http://www.juridicas.unam.mx/publica/librev/rev/derint/cont/6/cmt/cmt18.pdf> 2006, 12:45. 54 Apud. SIMAN, Beatriz Maldonado. La guerra justa de Francisco de <http://www.juridicas.unam.mx/publica/librev/rev/derint/cont/6/cmt/cmt18.pdf> 2006, 14:32. Vitória. Disponível em: Acesso em 24 out. Vitória. Disponível em: Acesso em 24 out. 38 também o direito dos índios e não os julga como seres inferiores. Segundo o autor, a violência deveria, a todo custo ser evitada. No entanto, para defender-se de uma agressão, poderia usar a violência, uma vez que seria justa a guerra neste caso. Mais uma vez, analisa Vitória: Si los bárbaros quisieran negar a los españoles las facultades arriba declaradas de derecho das gentes, como el comercio y las otras cosas dichas, los españoles deben, primero con razones y consejos, evitar el escándalo y mostrar por todos los medios que no vienen a hacerles daño, sino que quieren amigablemente residir allí y recorrer sus provincias sin daño alguno para ellos... Más si, dada razón de todo, los bárbaros no quieren acceder, sino que acuden a la violencia, los españoles pueden defenderse... porque lícito es rechazar la fuerza con la fuerza... y si padecen injuria, pueden con la autoridad del príncipe vengarla con la guerra, y llevar adelante los demás derechos de guerra.55 Deve-se observar que Francisco de Vitória, ao impor limites ao uso da guerra, concebe a possibilidade de uma comunidade de povos fundada no direito natural e, não apenas, no uso da força. Uma das mais preciosas colaborações de Vitória são as análises sobre os limites do poder estatal. Propõe a observância de um direito, o direito das gentes, que se afirme como vinculante também para os Estados. É a noção de prevalência do Estado de Direito. É a constatação de que o ordenamento jurídico obriga tanto quem é governado como quem governa. Expõe mais uma vez Vitória: No que toca ao direito humano, consta que por direito humano positivo o imperador não é senhor do orbe. Isto só teria lugar pela autoridade de uma lei, e nenhuma há que tal poder outorgue (...). Tampouco teve o imperador o domínio do orbe por legítima sucessão, (...) nem por guerra justa, nem por eleição, nem por qualquer outro título legal, como é patente. Logo nunca o imperador foi senhor de todo o mundo...56 55 Apud. SIMAN, Beatriz Maldonado. La guerra justa de Francisco de Vitória. Disponível em: <http://www.juridicas.unam.mx/publica/librev/rev/derint/cont/6/cmt/cmt18.pdf> Acesso em 24 out. 2006, 15:15. 56 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A personalidade e capacidade jurídicas do indivíduo como sujeito de direito internacional. In: ANNONI, Danielle (org.). Os novos conceitos do novo direito internacional: cidadania, democracia e direitos humanos. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, p. 2. 39 Assim, pode-se considerar Vitória como um grande autor clássico que defende a tese do indivíduo como sujeito de direito das gentes. Comenta Cançado Trindade: Na concepção de Vitória, o direito das gentes regula uma comunidade internacional constituída de seres humanos organizados socialmente em Estados e coextensiva com a própria humanidade; a reparação de direitos (humanos) reflete uma necessidade internacional atendida pelo direito das gentes, com os mesmos princípios de justiça aplicando-se tanto aos Estados como aos indivíduos ou povos que os formam.57 É no momento que Vitória percebe que o Estado não pode tudo e que os indivíduos devem ser protegidos na esfera da comunidade internacional que a tese se confirma. 1.2.1.2) Alberico Gentili Alberico Gentili (1552-1608) é considerado um outro fundador do direito internacional. Nasceu em San Ginesio (Itália), obteve doutorado em direito romano, foi pretor de Ascoli por três anos e também procurador do município de San Ginesio. Em 1579 tomou o caminho do exílio para fugir da Inquisição, pois aderiu à Reforma Luterana. Daí o posicionamento de Gentili a favor da liberdade religiosa, considerando injusta a guerra promovida pelo Príncipe para defender a religião em seus Estados58. Como jurista e intelectual humanista, teceu importantes considerações para a construção do direito internacional moderno. Em sua obra “De Iure Belli”, traduzida como “O Direito de Guerra”, Alberico Gentili demonstra a existência de duas esferas jurídicas: uma interna e outra superior. A esfera jurídica superior estaria acima das ordens jurídicas internas e seria 57 Ibid, p. 2. GENTILI, A., op. cit., 2004, p. 105. Expõe o autor: “Estou, porém, do lado de Jean Bodin para condenar os meios violentos contra os súditos que abraçaram outra religião sempre que, bem entendido, não resulte dano ao Estado com a multiplicidade dos cultos”. 58 40 regulada por princípios supremos, devido a uma questão de ordem natural. É o que denomina de “direito das gentes”. Sobre sua definição, expõe Gentili: A melhor definição do direito das gentes é aquela que ocorre em Xenofonte. Diz que são leis universais não escritas nem dispostas pelos homens porque nem todos puderam se reunir nem falar a mesma língua, mas sim por Deus.59 No que tange ao direito das gentes, Gentili traz importantes considerações sobre o direito de guerra. Em análises iniciais, define guerra como “a justa contenda de armas públicas”. Aponta para o fato de que a guerra é feita pelos soberanos e pode, inclusive, ser justa para ambos os lados. No debate sobre as causas da guerra, vale ressaltar seu posicionamento contrário à guerra por motivos religiosos. O autor aponta para a contradição de querer obrigar alguém a algo que é voluntário, pois se a religião é do ânimo e da vontade, jamais será desacompanhada da liberdade, o que torna o uso da força, neste caso, coisa de louco. Afirma Gentili: “Que haja tolerância em todos”60. E mais: Na verdade, se a religião é de tal natureza a não tolerar que ninguém lhe seja agregado por meios violentos e de novo gênero e que não cabe mais aquele tipo de pregação que pretende inculcar a fé por meio de castigos, segue-se que a violência bélica no fato da religião está mesmo fora de lugar. (...) Aquilo que é impossível obter com a força, querer obter com a força é coisa de louco. Aquilo que é estabelecido como faculdade não pode ser convertido em necessidade.61 Alberico Gentili cita ainda Francisco de Vitória, também contrário à guerra por motivos religiosos: O douto Victoria afirma, na passagem em que repreende seus espanhóis por terem movido guerra por esta causa aos índios, que todos, sem exceção alguma, estão convencidos dessa verdade que não se pode fazer guerra por causa religiosa.62 59 Ibid, p. 58. Ibid, p. 110. 61 Ibid, p. 95-97. 62 Ibid, p. 97. 60 41 No que concerne ainda à guerra, Gentili considera-a justa sempre que se basear numa defesa necessária, útil ou honesta63. Por necessária, entende-se a que é feita quando de outro modo não haveria como manter a vida, senão fazendo a guerra. Causa útil de mover a guerra é o direito de vingar agressões sofridas, porque quem não se vinga de agressão atrai outra sobre si. E, honesta, é aquela que é feita por direito comum e em favor dos outros. Também admite a guerra por causas naturais (quando se quer adquirir algo que é dado por natureza mas negado pelos homens, como quando alguém impede a passagem ou a entrada nos portos) e humanas (nos casos em que pela violação de um direito humano chega-se às armas). Deve-se observar que a análise sobre a guerra justa envolve também uma série de considerações e respeito a alguns direitos que denomina, “direitos da humanidade”, tais como, o direito dos prisioneiros, dos reféns, dos suplicantes. Como exemplo, expõe Gentili sobre os comandantes inimigos feitos prisioneiros: Cumpre analisar agora o direito que o vencedor tem para com as pessoas dos inimigos presos e sobretudo para com os comandantes dos inimigos. Regra de direito comum é esta: a severidade deve despir-se de seu rigor para que não se perpetre chacina de muitos. Preceito humano, santo, cristão.64 Além disso, Gentili faz ainda diversos apontamentos sobre o respeito às crianças e mulheres, sobre a condição dos agricultores, mercadores, forasteiros e similares. Por outro lado, ainda admite a escravidão em alguns casos, não a julgando contrária ao direito das gentes65. E, embora faça muitas observações a respeito da 63 Ibid, p. 148-205 Ibid, p. 476. 65 Ibid, p. 488-489. Expõe Gentili: “...não hesito em afirmar que é justo direito a escravidão. Na verdade, sua instituição é do direito das gentes. (...) O direito de natureza não estabeleceu que os homens não pudessem tornar-se escravos, embora tenha feito os homens livres, e assim entre as leis dos povos pôde existir essa da escravidão”. 64 42 guerra, almeja a paz, como ele mesmo confirma em um trecho do livro: “Certamente o fim da guerra é a paz, à qual todos devem aspirar”66. Muitas foram as contribuições de Gentili, entre as quais pode-se destacar a inserção de limites ao exercício do poder estatal por meio de uma minuciosa análise sobre o direito-justiça internacional. Escreve Gentili: “Conclui-se que se os príncipes não são homens de natureza diversa dos outros, não se deve conceder a eles de fazer em tudo, tudo quanto lhes aprouver”67. Diego Panizza analisa a contribuição dos escritos de Alberico Gentili para a sociedade internacional moderna: A maior originalidade da filosofia da guerra de Gentili consiste, como já citado, no transpor para o plano do direito natural as idéias sobre a guerra, próprias da tradição humanista, tradição recebida na sua variante maquiaveliana. O primeiro aspecto de tal originalidade consiste na operação de conjugar dois planos de discurso distintos, ou seja, inserir assuntos e princípios teóricopolíticos em um discurso sobre o direito-justiça internacional. Isso comporta um sistema de linguagem fundamentalmente diferente e ao mesmo tempo uma visão da ordem internacional mais complexa, que emerge de um intricado trabalho de tradução e avaliação entre as razões da política e as razões de uma ordem superior de justiça internacional.68 Como se observa, as idéias maquiavelianas, que legitimavam o poder baseado no compromisso com as denominadas razões de Estado (ordem e segurança) estavam sendo questionadas. Era preciso impor limites. Era necessário pensar em uma comunidade internacional que não estivesse baseada simplesmente no uso da força. Era essencial desenvolver princípios, nesse momento derivados do direito natural, que pudessem se estabelecer como paradigmas de uma ordem superior de justiça internacional. Desenvolve a noção de que era o Direito que deveria regular as relações dos membros da comunidade internacional. Era a 66 Ibid, p. 435. Ibid, p. 143. 68 Ibid, introdução feita por Diego Panizza, p.39. 67 43 constatação da necessidade de compreender o indivíduo como sujeito de direito das gentes. Eis a contribuição de Alberico Gentili. 1.2.1.3) Hugo Grotius Hugo Grotius (1583-1645) foi um jurista holandês que exerceu forte influência sobre o pensamento iluminista no século XVII. Menino prodígio, começou a compor versos aos oito anos e com onze entrou para a Universidade de Leyden para estudar Direito. Em 1599 passou a trabalhar como jurista em Haia. Publicou anonimamente “Mare Liberum” em 1606, onde defendia a internacionalidade das águas oceânicas. Em 1613 foi promovido a Governador da cidade de Rotterdam. Anos depois, após um inesperado golpe do Estado calvinista, foi preso e condenado à prisão perpétua culpado de traição. Conseguiu fugir para Amsterdam e de lá para Paris. Escreveu muitas obras até morrer de exaustão num naufrágio, perto da Alemanha69. Uma obra importante na construção do direito internacional moderno foi a “De iure belli ac pacis”, traduzida como “O direito da guerra e da paz”, de 1625. Nela aparece o conceito de direito natural e de guerra justa. Sobre o primeiro conceito, afirma Grotius que o direito natural é ditado pela razão e faz com que os homens possam saber se suas atitudes são boas ou más. Expõe Grotius: O direito natural nos é ditado pela reta razão que nos leva a conhecer que uma ação, dependendo se é ou não conforme à natureza racional, é afetada por deformidade moral ou por necessidade moral e que, em decorrência, Deus, o autor da natureza, a proíbe ou a ordena.70 Grotius propõe ainda duas maneiras de análise para saber se algo é o direito natural ou não: 69 70 Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Hugo_Grotius> Acesso em 26 out. 2006, 15:32. GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz. Ijuí: Editora Unijuí, 2004, vol. I, p. 79. 44 Costuma-se provar de duas maneiras que algo é de direito natural: a priori e a posteriori. Prova-se a priori demonstrando a conveniência ou a inconveniência necessária de uma coisa com a natureza racional e social. Prova-se a posteriori concluindo, se não com uma certeza infalível, ao menos com bastante probabilidade, que uma coisa é de direito natural porque é tida como tal em todas as nações ou entre as que são mais civilizadas.71 Ao fundamentar grande parte de suas argumentações no direito natural, Grotius contribui para uma nova visão sobre a sociedade internacional, que deveria ser ligada pela noção de que os Estados e seus governantes têm leis que se aplicam a eles. Rompe com o ideal maquiaveliano de poder absoluto do soberano, onde os fins justificam os meios. As leis morais deveriam ser aplicadas tanto ao indivíduo quanto ao Estado. Afirma Grotius: “Se os soberanos mandam algo contrário ao direito natural ou aos mandamentos de Deus, não se deve executar suas ordens”72. Expõe Cançado Trindade sobre o pensamento grociano: Há, pois, que ter sempre presente o verdadeiro legado da tradição grociana do direito internacional. A comunidade internacional não pode pretender basear-se na voluntas de cada Estado individualmente. Ante a necessidade histórica de regular as relações dos Estados emergentes, sustentava Grotius que as relações internacionais estão sujeitas às normas jurídicas, e não à ‘razão de Estado’, a qual é incompatível com a própria existência da comunidade internacional: esta última não pode prescindir do Direito. O ser humano e o seu bem estar ocupam posição central no sistema das relações internacionais.73 Grotius ainda traz outras duas reflexões importantes: a de que o direito natural é imutável e a de que o direito de natureza não é contrário à guerra. Admite algumas exceções ao fato de que a guerra contra os detentores do poder não é permitida. Segundo Grotius, o direito de guerra contra os detentores do poder pode ocorrer em várias hipóteses, assim resumidas74: 71 Ibid, p. 82 Ibid, p. 233. 73 CANÇADO TRINDADE, A. A., In: ANNONI, D.(org.), op. cit., 2002, p. 3. 74 GROTIUS, H., op. cit., 2004, p. 260-263. Tais hipóteses são desenvolvidas detalhadamente pelo autor na obra citada. 72 45 a) contra o governante de um povo livre Æ se os príncipes que são subordinados ao povo, seja porque receberam desde o inicio o poder em tais condições, seja porque esse foi o resultado de uma convenção posterior; se esses príncipes chegam a violar as leis e tornar-se culpados perante o Estado,não só se pode resistir a eles pela força, mas, sendo necessário, puni-los com morte; b) contra um rei que abdicou do poder Æ se um rei abdicou do poder ou o abandonou de modo manifesto, tudo o que é permitido contra um privado o é também, a partir desse momento, contra ele; c) contra um rei que aliena seu Estado, mas somente para impedir a alienação Æ segundo Barclay, se um rei aliena seu reino ou o submete a outro, deve ser destituído do poder; d) contra um rei que se declara abertamente inimigo de todo o seu povo Æ a vontade de governar e a de destruir não podem seguir juntas; por isso, o rei que se declara inimigo da totalidade de seu povo abdica por isso mesmo de seu poder; e) contra um rei que perdeu seu reino em virtude de cláusula comissória Æ qdo um reino cai em comisso, por causa da felonia com o senhor que é um feudatário ou em virtude de uma cláusula aposta ao ato que deferia a soberania e que dispunha sobre os próprios atos do rei, os súditos estão então desligados dos laços de obediência; nesse caso, o rei retorna à condição de pessoa privada; f) contra um rei que só tem parte da soberania, pela parte que não possui Æ se o rei só tem uma parte da autoridade soberana e a outra parte pertence ao povo ou a um senado, pode-se resistir legitimamente ao rei se ele quiser usurpar a parte que não lhe pertence; g) se é prevista a liberdade de resistência em certos casos Æ ainda que semelhante convenção não possa ser considerada como uma reserva de uma porção da soberania, constitui ao menos uma reserva de uma espécie de liberdade natural, subtraída aos efeitos do poder real. A guerra justa pode ainda ocorrer por um motivo de interesse ou por um princípio de justiça. São exemplos de guerra justa propostos por Grotius75: a) a que ocorre por uma afronta recebida Æ Agostinho escreve: “A iniquidade da parte contrária produz guerras justas”. b) Elas provêm da defesa, da exação do que é nosso ou do que nos é devido ou ainda da penaÆ a maioria dos autores assinala três causas legítimas às guerras: a defesa, a recuperação do que nos pertence e a punição. A menos que se dê ao termo recuperar um significado mais amplo, omite-se neste enumeração a busca do que nos é devido, que também deve ser considerada. c) A guerra é permitida para defender a vida Æ Deve-se notar que esse direito de se defender provém, imediatamente e, em primeiro lugar, da natureza que confia a cada um de nós o cuidado de nós mesmos, e não da injustiça ou do crime daquele que nos expõe ao perigo. Mesmo que não fosse de caráter criminoso, como por exemplo, se alguém fizesse a guerra de boa-fé, essas circunstâncias não anulariam o direito de se defender. d) A guerra é permitida somente contra o agressor Æ Discute-se a questão de saber se se pode trespassar ou esmagar pessoas inofensivas que, encontrando-se em nosso caminho, atrapalham nossa defesa ou impedem a fuga, sem a qual não poderíamos evitar a morte. (...) 75 Ibid, p. 281-292. Tais hipóteses são desenvolvidas detalhadamente pelo autor na obra citada. 46 Aquele que é atacado deveria preferir, mesmo no instante do ataque, agir de modo a intimidar ou enfraquecer seu agressor do que lhe provocar a morte. e) A guerra é permitida num perigo presente e certo, não num pressuposto perigo Æ Aqui se requer um perigo presente, como que compreendido num ponto. Se alguém te ameaça com uma violência que não é presente, mas se foi convencido a tramar alguma coisa contra ti ou de ter armado laços contra ti, se quis te envenenar, dirigir contra ti uma falsa acusação... não nego que seja possível matá-lo de modo legítimo, se esse perigo não puder ser evitado de outra maneira ou mesmo se não se tem muita certeza de poder escapar ileso. f) A guerra é permitida para a defesa dos membros Æ Que dizer do perigo de mutilação de um membro? Acho que, se é impossível evitá-lo de outra forma, é permitido matar aquele que ameaça com este perigo. g) A guerra é permitida sobretudo para a defesa do pudor Æ Não há quase discussão sobre a questão de saber se a mesma coisa é permitida para a defesa do pudor, porquanto não somente a opinião comum, mas também a lei divina, igualam o pudor à vida. Percebe-se, então, que Grotius impõe limites à declaração de guerra, considerando-a justa somente em casos específicos. Suas idéias contribuirão para a percepção da sociedade internacional não apenas baseada no uso da força, mas em direitos naturais. Além disso, tece também importantes comentários sobre coisas que julga pertencer aos homens em comum, tais como, o mar e os territórios não ocupados. Como já dito, Grotius defende a internacionalidade das águas oceânicas e argumenta com base na razão moral e na razão natural: O mar, considerado em sua totalidade ou em suas partes principais, não é suscetível de apropriação. Este princípio prova-se, em primeiro lugar, por uma razão moral: a extensão do mar é, com efeito, tal, que basta a todos os povos e para qualquer uso: para extrair água, para a pesca, a navegação. Há também uma razão natural que se opõe a que o mar considerado, como vimos, seja tomado como propriedade pessoal por alguém; é que a ocupação só tem lugar em matéria de coisas limitadas. Quanto às coisas líquidas que, por si próprias, não são suscetíveis de limites, diz Aristóteles que a água não é circunscrita por limites, elas não podem ser objeto de ocupação, a menos que estejam contidas em outra coisa, como por exemplo os lagos e os pântanos que são suscetíveis de serem ocupados; assim também os rios, porquanto encerrados entre margens. O mar porém, não é contido pela terra; é igual ou maior que ela.76 E ainda: 76 Ibid, p. 315-317. 47 Nos lugares em que o direito das gentes esteve em vigor, sem que tenha sido ab-rogado por um consenso geral, uma porção de mar, por mais exígua que seja, e ainda encravada por margens em sua maior parte, não poderá se tornar propriedade de nenhum povo.(...) Pode-se adquirir a soberania por ocupação sobre uma parte do mar, sem direito de propriedade. Não creio que o jus gentium (direito das gentes), do qual falamos, se oponha a isso.77 Vale ressaltar que esse posicionamento de Grotius insere-se numa época de conflitos em relação ao comércio marítimo, onde a Inglaterra, opositora das idéias de Grotius, defendia a soberania sobre as águas ao redor das ilhas Britânicas. Outra importante contribuição de Grotius refere-se ao direito das embaixadas, introduzido pelo direito das gentes. Proíbe a violência contra os embaixadores, protegendo inclusive seus bens, e concede ainda proteção aos seus familiares. Expõe Grotius: Há duas coisas que vemos em toda a parte se relacionar ao direito das gentes, a propósito dos embaixadores. Em primeiro lugar, que sejam admitidos, depois que não se use de violência alguma contra eles.(...) As pessoas do séquido e as bagagens dos embaixadores são também sagradas, a seu modo. (...) A opinião melhor fundada é que os bens móveis do embaixador e aqueles que por conseguinte são considerados como ligados à sua pessoa não podem ser tomados a título de penhor ou para o pagamento de uma dívida, nem por ordem da justiça, nem como querem alguns pela mão do rei, pois toda coação deve ser afastada do embaixador, tanto com relação às coisas que lhe são necessárias, quanto com relação à sua pessoa, a fim de que a segurança seja completa para ele.78 Todas essas considerações atestam o fato de que Grotius impõe limites à atuação estatal, reconhece direitos inerentes à pessoa humana por uma questão de natureza e ainda estabelece uma série de normas que devem ser observadas nas relações entre Estados. Após essas análises constata-se que, Francisco de Vitória, Alberico Gentili e Hugo Grotius pretendem desenvolver normas que, inspiradas principalmente no direito natural, possam conduzir as relações entre os Estados, identificando também 77 78 Ibid, p. 347-352. Ibid, p. 730-743. 48 direitos relativos à pessoa humana que sirvam de limites a essa atuação. Deve-se observar, por fim, que, como são derivadas em grande parte do direito natural, essas considerações aspiram a uma certa universalidade79. Todos os autores mencionados são considerados precursores na idéia do indivíduo como sujeito do direito das gentes. No entanto, a idéia de soberania estatal absoluta consolidará uma ordem em que o Estado se personificará como único sujeito de direito internacional e a sociedade internacional se estabelecerá como uma relação entre Estados. 1.2.2) A concretização da sociedade internacional moderna: a Paz de Vestfália (1648) A Paz de Vestfália, que pôs fim a Guerra dos Trinta Anos, foi um marco importante no fortalecimento da sociedade internacional moderna, essencialmente marcada por uma relação entre Estados soberanos. As três primeiras décadas do século XVII foram marcadas por uma série de conflitos religiosos e políticos ocorridos principalmente na Alemanha, em que rivalidades entre católicos e protestantes foram gradualmente tomando proporções de guerra européia. De início, as tropas protestantes tiveram algum sucesso, fazendo com que a rebelião se alastrasse por várias partes do domínio do Império. Tempos depois, a facção católica tirou partido de discordância no seio da União Evangélica e implementou uma ofensiva. Em 1625, Cristiano IV, rei da Dinamarca e Noruega 79 Ibid, p. 87. Por exemplo, expõe Grotius: “De fato, um efeito universal exige uma causa universal e a causa de semelhante opinião não pode ser outra que o próprio senso que chamamos de senso comum”. Grotius cita ainda uma frase de Hesíodo, que diz: “não é uma opinião inteiramente vã aquela que muitos povos consagram”. 49 renovou a guerra contra os católicos, como líder de uma coligação contra os Habsburgos organizada pelos neerlandeses80. Em 1635, a França declara guerra à Espanha, o outro grande domínio Habsburgo na Europa, além da Áustria e regiões dependentes na Europa Central. Em 1636 as invasões espanholas em território francês foram repelidas e a posição dos Habsburgos na Alemanha ficou ainda mais comprometida pela derrota infligida em 1638.81 O conflito, que tinha por alicerce as questões religiosas, transformou-se paulatinamente numa luta de fortalecimento dos Estados Modernos e de busca de controle da Europa pelo Sacro Império Romano-Germânico. Era uma luta entre católicos e protestantes, mas, além e acima disso, era um confronto em que de um lado estava a tentativa de expandir o domínio do Império e dos Habsburgos e, do outro lado, a defesa do protestantismo e a luta pelo fortalecimento dos Estados soberanos centralizados. Isso explica a posição da França no conflito que, apesar de católica, lutou ao lado dos protestantes. Expõe Gilmar Bedin sobre o período: Na verdade, a França, não obstante os conflitos religiosos envolvidos, percebeu que o que estava ocorrendo, de fato, era um jogo de afirmação dos Estados Modernos e de busca da supremacia na Europa pelo Sacro Império Romano-Germânico. Por isso, a França, apesar de ser um país católico, apoiou rapidamente a Suécia e os Estados imperiais protestantes, como uma forma de neutralizar as pretensões do Imperador.82 Depois de sucessivas derrotas pelo lado do Império, representantes de ambos os lados deram início às negociações de paz em Münster e Osnabrück, na Alemanha, sem muito sucesso. Os confrontos prosseguiram na Alemanha, no Luxemburgo, nos Países Baixos, na Itália e na Espanha, ainda em 1947. 80 Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Paz_de_Vestf%C3%A1lia> Acesso em 28 out. 2006, 16:10. 81 Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Paz_de_Vestf%C3%A1lia> Acesso em 28 out. 2006, 16:15. 82 BEDIN, G., op. cit., 2001, p. 170-171. 50 No fim do conflito, o Império saiu derrotado e as liberdades políticas e religiosas reformularam a estrutura da Europa. A França, aliada da Suécia e de outros territórios e líderes protestantes, saiu vitoriosa e se afirmou como potência européia do período. Dava-se a passagem de uma fase que fora centrada no poder da Igreja e na influência do papa para uma nova fase em que os Estados Modernos ocupavam o lugar central. Mais uma vez, afirma Gilmar Bedin: Foi com a Paz de Vestfália que se consolidou o Estado moderno como potência soberana e politicamente independente, afirmando-se como o núcleo duro da sociedade internacional do mundo moderno, ou seja, de um mundo em que o Estado moderno configura-se como o ator fundamental, senão único, de um novo e duro jogo político: jogo de relações internacionais centrados na luta pelo poder.83 A Paz de Vestfália constituiu-se, assim, na assinatura de diversos tratados que colocaram fim à Guerra dos Trinta Anos, proclamando o princípio da liberdade religiosa e da soberania dos Estados. Tratava-se de um acordo baseado no respeito ao equilíbrio dos poderes entre os Estados europeus. A Paz de Vestfália é frequentemente apontada como o marco da diplomacia moderna, pois deu início ao sistema moderno do Estado-Nação, sendo a primeira vez em que se reconheceu a soberania de cada um dos Estados envolvidos. Estava consolidada, então, a sociedade internacional moderna. 1.3) As duas grandes guerras mundiais e o início de uma nova fase do direito internacional 1.3.1) A corrida imperialista e a Primeira Guerra Mundial Os países imperialistas dominaram, exploraram e agrediram os povos de quase todo o planeta. Porém, a maior parte dos capitalistas e da população dos países imperialistas acreditavam que suas ações eram justas e até benéficas à humanidade em nome da ideologia do progresso, isto é, tinham 83 Ibid, p. 174. 51 três critérios para explicá-la: o etnocentrismo, baseado na pseudo-idéia de que existiam povos superiores a outros (europeus superiores a asiáticos e africanos), da mesma forma o racismo e o darwinismo social que interpretava a teoria da evolução a sua maneira errônea, afirmando a hegemonia de alguns sobre outros pela seleção natural.84 O imperialismo foi um movimento em que diversos países, lutando por matérias-primas, por mercados e áreas de investimentos, promoveram o chamado neocolonialismo85 nas regiões subdesenvolvidas do mundo, tais como, África e Ásia. Da década de 1890 até o ano de 1914, grande parte da Ásia, da África, das Américas, da Austrália e Nova Zelândia já estavam ocupadas pelas grandes potências. No entanto, a dominação não se deu de modo pacífico. Agrega-se a isso o fato de que, no final do século XIX, principalmente após a Conferência de Berlim (1885), o mundo foi impulsionado pela chamada “corrida armamentista”. Nesse período, conhecido por "Paz Armada", várias nações instituíram o serviço militar obrigatório e os exércitos passaram a ter maior influência na vida política. Inúmeros conflitos marcaram o final do século XIX e início do século XX. A crença na superioridade européia encontrou resistência em diversas partes do mundo, como argumentam Adriana Facina e Ricardo Castro: A partilha do mundo em colônias, proteorados e áreas de influência realizada pelos países europeus, porém, nem sempre foi recebida de modo passivo pelos povos, cujos territórios foram objeto da cobiça. A história da expansão imperialista é também a história da resistência a essa expansão. Os países colonialistas europeus dominaram diferentes povos, culturas, etnias e estabeleceram sua hegemonia política e cultural sobre eles, desqualificandoos e procurando impor-lhes seus valores, com base na crença na supremacia do ‘homem branco’ europeu. Entretanto, os povos dominados ofereceram resistência às conquistas e realizaram inúmeras revoltas contra o domínio que se estabelecia.86 84 Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Imperialismo> Acesso em 29 out. 2006, 17:47. O termo “neocolonialismo” é usado para distinguir o movimento do “velho colonialismo” de povoamento e exploração da Idade Moderna. 86 FACINA, Adriana; CASTRO, Ricardo Figueiredo de. As resistências dos povos à partilha do mundo. In: REIS, Filho; FERREIRA, Jorge; ZENHA, Celeste (orgs.) O Século XX: o tempo das certezas. Da formação do capitalismo à Primeira Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 213-214. 85 52 Além da resistência dos países subdesenvolvidos à dominação ocidental, a corrida imperialista gerou também inúmeros conflitos entre os países europeus, que lutavam entre si em busca de domínio em territórios africanos e asiáticos. O Imperialismo ou Neocolonialismo foi, portanto, uma política de expansão e domínio territorial, cultural e econômico de uma nação sobre outra, o que desencadeou rivalidades e concretizou o principal motivo da Primeira Guerra Mundial. Nesse processo, algumas potências se destacam, entre elas, Inglaterra, França, Rússia e Alemanha. A Inglaterra já havia iniciado seu processo de industrialização desde os fins do século XVIII, com a mecanização dos sistemas de produção. O pioneirismo inglês estabeleceu-se devido a vários fatores, entre os quais podemos destacar o fato de a Inglaterra possuir grandes reservas de carvão mineral em seu subsolo (a principal fonte de energia para movimentar as máquinas e as locomotivas à vapor) e grandes reservas de minério de ferro (a principal matéria-prima utilizada neste período). Os produtos passaram a ser produzidos mais rapidamente, barateando o preço e estimulando o consumo. Sua posição geográfica privilegiada colaborou também para o desenvolvimento do comércio ultramarino. No entanto, no decorrer do século XIX, muitos outros países também investiram pesado na industrialização, fazendo com que o início do século XX fosse um período marcado por disputas entre grandes potências industrializadas. Exemplo disso foi a Alemanha, que investiu fortemente em tecnologia avançada e na consolidação de grandes conglomerados, além de incentivos à educação técnica e científica. Expõe Márcia Motta: 53 Para responder à forte concorrência britânica, o Estado alemão estimulou a formação de cartéis, favorecendo a generalização de grandes conglomerados industriais capazes de concorrer nos mercados nacional e internacional. Além disso, desde cedo, o Estado percebeu que sua desvantagem econômica poderia ser superada através da educação. Assim, ao patrocinar e estimular um sistema de educação técnica e científica direcionada à industrialização avançada, o Estado formou em poucos anos uma nova geração de homens científica e tecnicamente qualificados...87 O planejamento alemão fez com que em pouco tempo a Alemanha ingressasse num forte processo de industrialização e já despontasse como potência no início do século XX. A França, embora não tivesse toda a força da Alemanha e Inglaterra, também aparecia, em fins do século XIX, com um certo prestígio internacional, isso devido ao fato de ter investido na indústria em larga escala e ter consolidado o mercado interno88. Ainda tinha a Rússia, cuja força estava mais no número de habitantes do que no desenvolvimento industrial. Era um Estado militarizado e autoritário. Possuía um certo avanço tecnológico, embora quase 80% de sua população ainda vivesse no campo89. Deve-se observar que o final do século XIX e início do século XX foi uma época marcada por ascensão de potências, por sentimentos nacionalistas aflorados, por ímpetos de dominação, por competições de mercados, por buscas de novas “colônias” e por corrida armamentista. Era a partilha do mundo. Um marco importante desse período foi também a derrota da França na guerra franco-prussiana, perdendo Alsácia e Lorena para a Alemanha. E, com a intenção de manter a paz e as fronteiras alemãs, Bismarck forjou alianças 87 MOTTA, Márcia Maria Menendes. A Primeira Grande Guerra. In: REIS, Filho; FERREIRA, Jorge; ZENHA, Celeste (orgs.) O Século XX: o tempo das certezas. Da formação do capitalismo à Primeira Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 234. 88 Ibid, p. 235. 89 Ibid, p. 235. 54 complicadas. Na década de 1880, criou a Tríplice Aliança com a Austria-Hungria e Itália. O crescente poderio militar da Alemanha assustava a Europa. Isso criou uma aproximação entre Inglaterra e França e, em seguida, a Rússia. As três também formaram alianças, era a Tríplice Entente. A Europa estava dividida. O estopim para eclosão da Primeira Guerra Mundial foi o assassinato do arqueduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono austríaco, em Sarajevo (Bósnia). Sentindo-se ameaçada, a Austria usou do assassinato como pretexto para esmagar a Sérvia. A Rússia saiu em seu apoio. Em pouco tempo, o sistema de alianças transformaria um conflito regional em guerra mundial. Vale também ressaltar que, a decisão Alemã de atacar navios em torno da Grã-Bretanha, em 1917, para privá-la de suprimentos, fez com que os EUA, principal fornecedor da Inglaterra, temendo perder o mercado europeu, também entrasse na guerra. Em 1918, os ataques franceses e ingleses marcariam a derrota alemã e o fim do conflito. Em 1919, a Alemanha assinou o Tratado de Versalhes que determinava, entre outra coisas, a devolução de Alsácia e Lorena aos franceses, a criação da Liga das Nações e o pagamento de uma indenização aos países que invadira. A Primeira Guerra Mundial deixou um forte rastro de destruição e desrespeito à pessoa humana, razão pela qual, surgiram, com o fim do conflito, algumas organizações, de caráter internacional, que se dedicaram à propagação da paz e da segurança internacionais. Era o início de uma proposta de valorização e internacionalização dos direitos humanos. O Direito Humanitário, a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho podem ser considerados os primórdios desse processo. O primeiro, destinado a proteger militares numa situação vulnerável, postos fora de combate 55 (feridos, doentes, náufragos, prisioneiros) e também populações civis, trouxe contribuições importantes ao regulamentar o emprego da violência no âmbito internacional. A questão sobre a guerra e a paz, bem como a necessidade de estabelecer limites ao combate internacional tornou-se a preocupação do Direito Humanitário. Segundo Celso Lafer: Este direito trata de um tema clássico de Direito Internacional Público – a paz e a guerra. Baseia-se numa ampliação do jus in bello, voltada para o tratamento na guerra de combatentes e de sua diferenciação em relação a não-combatentes, e faz parte da regulamentação jurídica do emprego da violência no plano internacional, suscitado pelos horrores da batalha de Solferino, que levou à criação da Cruz Vermelha.90 A Liga das Nações, criada após a Primeira Guerra Mundial, também reforçou esse ideal ao objetivar a promoção da cooperação, da paz e da segurança internacional, apontando para a noção de flexibilização da soberania estatal. Vale ressaltar que tal proposta foi frustrada e não impediu a eclosão da segunda grande guerra. Dispunha o preâmbulo da Convenção da Liga das Nações: As partes contratantes, no sentido de promover a cooperação internacional e alcançar a paz e a segurança internacionais, com a aceitação da obrigação de não recorrer à guerra, com o propósito de estabelecer relações amistosas entre as nações, pela manutenção da justiça e com extremo respeito para com todas as obrigações decorrentes dos tratados, no que tange à relação entre povos organizados uns com os outros, concordam em firmar este Convênio da Liga das Nações. Ao lado do Direito Humanitário e da Liga das Nações, a Organização Internacional do Trabalho contribuiu para o desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos ao propor a regulamentação da condição dos trabalhadores no âmbito mundial, promovendo parâmetros globais mínimos para as condições de trabalho e conseqüente bem-estar dos trabalhadores. 90 ALVES, José Augusto Lindgren. Os Direitos Humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva, 2003, prefácio de Celso Lafer. 56 Assim, os três institutos apontados impõem-se como um marco no processo de internacionalização dos direitos humanos, rompendo com o conceito tradicional que concebia o sistema internacional basicamente como um diálogo entre Estados, sendo este o único sujeito de Direito Internacional. No entanto, tais tentativas fracassaram com a eclosão, em 1939, da Segunda Guerra Mundial. 1.3.2) A Segunda Guerra Mundial e a ruptura com os direitos humanos A eclosão da Segunda Guerra Mundial foi consequência de uma série de fatores que se acumularam desde o fim da Primeira Guerra Mundial. As exigências do Tratado de Versalhes contribuíram para o desenvolvimento de um forte nacionalismo alemão, que culminaria na política nazista. Somados a isso, tem-se a fragilidade da Liga das Nações e os transtornos da crise de 1929. A insurgência de regimes totalitários e a busca de conquistas territoriais tornaram o conflito mundial inevitável. Dois momentos são importantes como marcos iniciais: a invasão da China pelo Japão, em 1937, e a invasão da Polônia pela Alemanha em 1939. A Segunda Guerra colocava em lados opostos dois grupos: o dos Aliados, cuja as principais potências eram a China, a França, a Grã-Bretanha, a União Soviética e os Estados Unidos, e os que constituíam as forças do Eixo, cujas principais potências eram a Alemanha, a Itália e o Japão. O Brasil se integrou aos Aliados em 1943. Nenhum conflito sacrificou tantas vidas quanto este. Desde o início em 1939 até o lançamento das duas bombas atômicas (“Little Boy” e “Fat Man”) em Hiroshima e Nagasaki, no Japão, que causaram cerca de 300.000 mortos instantaneamente, em 1945, milhões e milhões de vidas foram ceifadas. 57 Deve-se observar, como ponto relevante da discussão sobre a ruptura com os direitos humanos, a política nazista implementada por Hitler que, almejando a purificação da raça ariana, colaborou para o holocausto mais terrível de toda a história da humanidade. O ódio nazista alcançava uma lista sem fim: refugiados políticos, deficientes, homossexuais, ciganos etc. Mas, ninguém sofreu tanta perseguição como os judeus. Numa luta constante de purificação da raça ariana, os judeus tiveram seus direitos totalmente violados e foram exterminados aos milhões. Algumas leis e decretos estabelecidos no decorrer da guerra demonstram a total violação dos direitos humanos desse período: Ficam proibidos os casamentos entre judeus e alemães ou pessoas de sangue alemão. Os enlaces já contratados, contrariamente a esta disposição, são nulos, mesmo nos casos em que se devem celebrar no estrangeiro. (...) As relações sexuais entre judeus e alemães ou pessoas de sangue alemão são proibidas.91 É proibido aos judeus embandeirar com as cores do Reich seus estabelecimentos.92 É proibido ao judeu a partir de 7 anos de idade aparecer publicamente sem a estrela judaica.A estrela judaica consiste em uma estrela de seis pontas do tamanho da palma da mão, em tecido amarelo e pesponto preto, com a inscrição ‘judeu’ em preto. Deve ser usada de forma bem visível, do lado esquerdo do peito, firmemente costurada na roupa.93 O sadismo nazista ainda contribuiu para a realização de várias experiências médicas em cobaias humanas. De acordo com os relatos, a relação de atrocidades incluía fazer enxertos de ossos, injetar doses mortais de bacilos de icterícia e tifo, dar balas envenenadas, praticar esterilização, retirar pele dos prisioneiros para fazer cúpulas de abajur.94 O discurso de Hitler é desumano: 91 Lei para a proteção do sangue e da honra alemãs, 15 de setembro de 1935. Lei da Cidadania do Reich, 15 de setembro de 1935. 93 Parágrafo 1º do Decreto Policial de 1º de setembro de 1941, sobre a identificação dos judeus na Alemanha. 94 EXPERIÊNCIAS médicas. II Guerra Mundial – 60 anos. Coleção Almanaque Abril, Volume 2, São Paulo, 2005, p.38-39. 92 58 Se eu envio a fina flor do povo alemão para o inferno da guerra sem sentir piedade pelo derramamento do precioso sangue alemão, sem dúvida tenho o direito de suprimir milhões de seres de uma raça inferior que prolifera como piolhos.95 Deve-se observar que o totalitarismo, implementado durante a Segunda Guerra Mundial, exige fidelidade total e submissão total. E, um regime dessa magnitude só é bem-sucedido se consegue suprimir do ser humano suas qualidades essenciais, por meio de um sistema que consiga construir a noção de que seres humanos são descartáveis. A destruição da individualidade e da espontaneidade como expressões da conduta humana constatadas nos campos de concentração nazistas reforçam o ideal totalitário. Segundo Hannah Arendt: Os campos de concentração e de extermínio dos regimes totalitários servem como laboratórios onde se demonstra a crença fundamental do totalitarismo de que tudo é possível. (...) Os campos destinam-se não apenas a exterminar pessoas e degradar seres humanos, mas também servem à chocante experiência da eliminação, em condições cientificamente controladas, da própria espontaneidade como expressão da conduta humana, e da transformação da personalidade humana numa simples coisa, em algo que nem mesmo os animais são...96 Os horrores cometidos nos campos reiteram a afirmação de que tratou-se de uma época de total ruptura com os direitos humanos, de plena desvalorização da pessoa humana. A Segunda Guerra havia transformado seres humanos em supérfluos. Expõe mais uma vez Hannah Arendt: Os homens, na medida em que são mais que simples reações animais e realização de funções, são inteiramente supérfluos para os regimes totalitários. O totalitarismo não procura o domínio despótico dos homens, mas sim um sistema em que os homens sejam supérfluos. O poder total só pode ser conseguido e conservado num mundo de reflexos condicionados, de marionetes sem o mais leve traço de espontaneidade.97 95 EXTERMÍNIO em massa. II Guerra Mundial – 60 anos. Coleção Almanaque Abril, Volume 2, São Paulo, 2005, p.35. 96 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 1989, p. 488-489. 97 Ibid, p. 508. 59 René Rémond, fazendo um balanço das conseqüências da Segunda Guerra Mundial, no que tange às perdas humanas, afirmou: Não sabemos, por exemplo, com certeza, a quanto montam as perdas da União Soviética: 17, 20 milhões? Em certo sentido, isso pouco importa. O que conta e deve estar presente ao espírito é que um décimo, mais ou menos, da população russa pereceu entre 1941 e 1945. Se adicionarmos as perdas civis produzidas pelos bombardeios, pelas execuções, pela deportação, pela fome e pela perseguição racial às baixas militares, a Polônia perdeu, aproximadamente, um quarto de sua população, obra de 6 a 7 milhões de habitantes. Na Iugoslávia, é também por milhões que se enumeram as vítimas da guerra. Ao todo, uns 50 ou 60 milhões de seres vivos desapareceram durante a guerra de 1939-1945.98 Quanto vale a vida humana? A soberania estatal pode justificar atos atentatórios à dignidade humana? O princípio da não-intervenção é absoluto? Existem direitos universais? O mundo ansiava por respostas. No Pós-Guerra os indivíduos tornam-se foco da atenção internacional e o Direito Internacional dos Direitos Humanos se fortalece. O sistema internacional deixa de ser apenas um diálogo entre Estados e a pessoa humana ergue-se como sujeito de direito internacional. 98 RÉMOND, René. O século XX: de 1914 aos nossos dias. São Paulo: Editora Cultrix, 1993, p.128. 60 CAPÍTULO II – A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E O DEBATE ENTRE UNIVERSALISMO E RELATIVISMO CULTURAL NOS DOCUMENTOS INTERNACIONAIS 2.1) A sociedade internacional contemporânea do pós-guerra e a pessoa humana como sujeito de direito internacional Com o fim da 2ª Guerra Mundial, novos paradigmas são estabelecidos no cenário internacional. Ergue-se certo consenso em torno da proteção e valorização da vida, da garantia e promoção da dignidade da pessoa humana e da efetividade dos direitos humanos, reflexos de uma sociedade internacional que ainda guardava na lembrança as atrocidades cometidas nos campos de concentração da Alemanha nazista. Como afirma Flávia Piovesan: O legado do nazismo foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja, a condição de sujeito de direitos, à pertinência a determinada raça – a raça pura ariana. No dizer de Igacy Sachs, o século XX foi marcado por duas guerras mundiais e pelo horror absoluto do genocídio concebido como projeto político e industrial. No momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que cruelmente se abole o valor da pessoa humana, torna-se necessária a reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável.(...) Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar a sua reconstrução.99 99 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. Max Limonad, 2002, pp.131-132. São Paulo: 61 É, portanto, no cenário do pós-guerra, que se fortifica a visão de que a pessoa humana possui direitos inerentes à sua existência que devem ser protegidos e a convicção de que a soberania estatal deve ser flexibilizada em prol dos direitos humanos. A criação e solidificação de organizações internacionais e o fortalecimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos consolidaram o surgimento de um novo tempo e da certeza de que a sociedade internacional moderna, que estabelecia o sistema internacional como um diálogo, basicamente, estabelecido entre os Estados, havia ficado para trás. Novos atores marcam o início da sociedade internacional contemporânea. Um importante marco do pós-guerra nesse processo foi a instauração de um Tribunal Militar Internacional para julgar os criminosos da segunda guerra mundial. O Tribunal de Nuremberg (1945-1946), fixado pelo Acordo de Londres, foi instituído com a competência de julgar os crimes contra a paz, os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade, sendo de fundamental importância na construção de uma ordem internacional baseada no respeito à dignidade humana. A condenação criminal dos indivíduos fundamentou-se, basicamente, na violação de costumes internacionais. Quando o julgamento começou, uma lista sem fim de documentos, testemunhas, depoimentos e confissões traziam a tona as monstruosidades do nazismo. Entre os líderes nazistas acusados estavam: o marechal Herman Göring, comandante da Luftwaffe, Joaquim von Ribbentrop, ministro do Exterior do Reich, Alfred Rosenberg, ideólogo do nacional-socialismo hitlerista, Hans Frank, o carrasco da Polônia, Wilheim Frick, ministro do Interior, Albert Speer, ministro das Armas e 62 Munições, e Rudolf Hess, representante de Hitler no Partido Nazista e um de seus amigos mais íntimos100. No dia 1º de outubro de 1946, o presidente da Corte, Geoffrey Lawrence, iniciou a leitura das sentenças. Ao todo, doze dos acusados foram condenados à morte por enforcamento; três a prisão perpétua; quatro a penas que variam entre dez e vinte anos; e três são inocentados. Vale o registro de que o marechal Herman Göring, um dos condenados ao enforcamento, conseguiu suicidar-se, na madrugada anterior, ingerindo uma cápsula de cianureto. No entanto, o Tribunal foi alvo de muitas críticas, dentre elas: a) ter sido um tribunal criado após os fatos, ferindo o princípio do juiz natural; b) ter o tribunal afrontado o princípio da legalidade do direito penal, uma vez que os muitos dos atos punidos pelo Tribunal de Nuremberg não eram considerados crimes quando foram cometidos; c) ser um tribunal em que os vencedores julgavam os vencidos, o que comprometia a imparcialidade do julgamento. A incerteza quanto as regras estabelecidas no julgamento dos crimes ainda perdura até hoje, como se observa na reportagem abaixo: Enquanto muitos viram no julgamento a esperança do mundo, o marco de uma nova era – de fato, o Tribunall de Nuremberg representou uma contribuição importante para a evolução do direito penal internacional e ajudou na criação da Organização das Nações Unidas – , vários juízes, juristas, políticos dos Estados Unidos, da Inglaterra, da França e de outros países levantaram incertezas quanto a sua moralidade e a suas regras. A dúvida ainda permanece.101 Assim, apesar dos notórios “defeitos”, o Tribunal de Nuremberg teve grandes méritos no sentido de avanço para o movimento de internacionalização dos direitos humanos, consolidando a idéia de uma necessária flexibilização da soberania estatal 100 ACERTO de contas. II Guerra Mundial – 60 anos. Coleção Almanaque Abril, Volume 3, São Paulo, 2005, p.121. 101 Ibid, p.123. 63 e de fortalecimento da noção de dignidade humana. Flávia Piovesan expõe sobre o significado do Tribunal de Nuremberg: O significado do Tribunal de Nuremberg para o processo de internacionalização dos direitos humanos é duplo: não apenas consolida a idéia da necessária limitação da soberania nacional, como também reconhece que os indivíduos têm direitos protegidos pelo Direito Internacional.102 Sendo assim, atualmente, de modo geral, há certo consenso de que todo ser humano, independente da cor, raça, sexo, religião ou nacionalidade, possui um valor próprio, decorrente de atributos intrínsecos à sua própria existência. E, embora a noção do ser humano como fim em si mesmo, desenvolvida por Immanuel Kant (1724-1804), primeiro filósofo a teorizar este valor de forma absoluta, já exista há alguns séculos, o processo de garantia dos direitos inerentes à dignidade humana no plano internacional é, em grande parte, fruto das reflexões ocorridas no pós-guerra. Vale ressaltar que o termo dignidade, conquanto amplo, possui duas vertentes fundamentais, constituindo-se, nas palavras de Ingo Sarlet103, ao mesmo tempo, limite e tarefa do Estado. Sobre o primeiro aspecto – dignidade como limite – a dignidade seria qualidade inata à pessoa humana, um valor intrínseco e, portanto, algo que deve ser respeitado e protegido. Sendo atributo próprio do ser humano, constitui verdadeiro limite a atividade dos poderes públicos, pois, se ela deixar de existir, não haverá mais limite a ser respeitado. Sobre o segundo aspecto – dignidade como tarefa – expõe o autor que a dignidade reclama que o Estado se mobilize no sentido de preservar e promover a dignidade através de condutas ativas. Trata-se da dimensão cultural da dignidade, fruto de diversos momentos históricos e do amplo comprometimento do Estado com a preservação da vida, a promoção da 102 103 PIOVESAN, F., op. cit., 2002, p. 135. SARLET, Ingo. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. 64 liberdade, a produção da igualdade e de condições mínimas de uma existência digna. Este seria o elemento mutável da dignidade. As considerações sobre os direitos do homem, a análise da dignidade da pessoa humana e a criação de organizações internacionais com finalidade de garantir a paz e buscar a efetivação dos direitos humanos marcaram, portanto, o desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos. No cenário do pósguerra, a pessoa humana passa a ser protagonista, constituindo-se em sujeito de direito internacional, ao lado dos Estados, das organizações internacionais, da Santa Sé, da Cruz Vermelha104 etc. Afirma Lindgren Alves: A emergência dos direitos humanos nas relações internacionais após a Segunda Guerra Mundial é interpretada por teóricos e militantes da causa como uma verdadeira revolução, que teria trazido o indivíduo ao primeiro plano do direito internacional e o cidadão a um domínio antes reservado exclusivamente aos Estados.105 As organizações internacionais foram criadas pelos Estados tendo em vista a necessidade de solucionar problemas comuns e angariar esforços conjuntos na promoção da paz e segurança internacionais, bem como promover a proteção da pessoa humana em âmbito internacional. Nesse sentido, a sociedade internacional contemporânea, construída a partir do fim da segunda guerra mundial, tem se constituído sobre o pilar dos direitos humanos. A lógica que envolveu a criação e fortalecimento das diversas organizações internacionais de proteção dos direitos humanos foi a intenção de, por meio da cooperação entre diferentes Estados, estabelecer princípios básicos que, com validade universal, pudessem contribuir para a harmonia internacional, flexibilizando a soberania e limitando o poder estatal. Não se deve olvidar que o Estado havia sido 104 A Cruz Vermelha é uma entidade internacional sem fins lucrativos, com sede em Genebra (Suíça), que visa a defender e amparar as vítimas de guerras e catástrofes naturais. 105 ALVES, J. A. L., op. cit., 2003, p. 20. 65 o principal violador dos direitos humanos durante a guerra. Com o fim do conflito, a pessoa humana passa, então, a ser o centro da atenção internacional. A criação da Organização das Nações Unidas contribuiu muito para esse processo de internacionalização dos direitos humanos. A ONU foi fundada oficialmente em 24 de Outubro de 1945 em São Francisco, Califórnia, por 51 países106, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. A primeira Assembléia Geral celebrou-se a 10 de Janeiro de 1946. A Carta das Nações Unidas de 1945 deixa claro o objetivo de buscar uma cooperação internacional para a solução de diversos problemas, promovendo e estimulando o respeito aos direitos humanos. Dispõe o art. 1º: Art.1º: Os propósitos das Nações Unidas são: (...) 2. Desenvolver relações entre as nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, e tomar medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal; 3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião. 106 Foram membros fundadores da ONU: África do Sul (7 de novembro de 1945), Arábia Saudita (24 de outubro de 1945), Argentina (24 de outubro de 1945), Austrália (1º de novembro de 1945), Belarus (24 de outubro de 1945), Bélgica (27 de dezembro de 1945), Bolívia (14 de novembro de 1945), Brasil (24 de outubro de 1945), Canadá (9 de novembro de 1945), Chile (24 de outubro de 1945), China (24 de outubro de 1945), Colômbia (5 de novembro de 1945), Costa Rica (2 de novembro de 1945), Cuba (24 de outubro de 1945), Dinamarca (24 de outubro de 1945), Egito (24 de outubro de 1945), El Salvador (24 de outubro de 1945), Equador (21 de dezembro de 1945), Estados Unidos (24 de outubro de 1945), Etiópia (13 de novembro de 1945), Federação Russa (24 de outubro de 1945), Filipinas (24 de outubro de 1945), França (24 de outubro de 1945), Grécia (25 de outubro de 1945), Guatemala (21 de novembro de 1945), Haiti (24 de outubro de 1945), Holanda – Países Baixos (10 de dezembro de 1945), Honduras (17 de dezembro de 1945), Índia (30 de outubro de 1945), Irã (24 de outubro de 1945), Iraque (21 de dezembro de 1945), Líbano (24 de outubro de 1945), Libéria (2 de novembro de 1945), Luxemburgo (24 de outubro de 1945), México (7 de novembro de 1945), Nicarágua (24 de outubro de 1945), Noruega (27 de novembro de 1945), Nova Zelândia (24 de outubro de 1945), Panamá (13 de novembro de 1945), Paraguai (24 de outubro de 1945), Peru (31 de outubro de 1945), Polônia (24 de outubro de 1945), Reino Unido (24 de outubro de 1945), República Dominicana (24 de outubro de 1945), Síria (24 de outubro de 1945), Turquia (24 de outubro de 1945), Ucrânia (24 de outubro de 1945), Uruguai (18 de dezembro de 1945), Venezuela (15 de novembro de 1945). Disponível em: <http://www.unfpa.org.br/membros/> Acesso em 30 out. 2006, 16:45. 66 Definitivamente, o sistema internacional deixa de ser apenas um diálogo entre Estados, sendo a relação de um Estado com os seus nacionais uma questão de interesse internacional. No entanto, esse cenário de cooperação demonstrado a partir da criação da ONU, não eliminava a possibilidade do ressurgimento de um novo grande conflito, isso porque o mundo do pós-guerra ainda era um lugar de posicionamentos políticoeconômicos divergentes. O início da Guerra Fria dividiu o mundo em duas grandes frentes, tendo de um lado os Estados Unidos e, do outro, a ex-URSS. Durante esse período, é importante ressaltar a criação, em 1949, da organização internacional de colaboração militar, a OTAN, Organização do Tratado do Atlântico Norte. Tinha por objetivo constituir uma frente oposta ao bloco comunista. São membros fundadores da OTAN: Bélgica, Canadá, Dinamarca, França, Islândia, Itália, Luxemburgo, Países Baixos, Noruega, Portugal, Reino Unido, EUA. Como resposta a essa iniciativa, foi estabelecida uma aliança militar formada em 14 de Maio de 1955 pelos países socialistas do Leste Europeu e pela União Soviética: o Pacto de Varsóvia. Esse pacto estabelecia o compromisso entre os países de ajuda mútua no caso de agressão militar a um dos países membros (União Soviética, Alemanha Oriental, Bulgária, Hungria, Polônia, Tchecoslováquia e Romênia). No entanto, a queda dos governos socialistas, o fim da Guerra Fria e a crise na URSS levaram a extinção do Pacto em 31 de Março de 1991. Com relação à OTAN, o fim da guerra fria fez com que a organização se dedicasse a uma nova tarefa: tornar-se o eixo de toda política de segurança da Europa e da América do Norte. 67 Importante ressaltar para este estudo que a derrocada dos regimes comunistas do Leste Europeu e o conseqüente fim da Guerra Fria contribuíram para o estabelecimento de uma nova ordem internacional. Mesmo com dificuldades a serem enfrentadas, o sistema internacional caminhava mais veloz para a revalorização das Nações Unidas como instrumentos para solução de conflitos e para a proteção dos direitos humanos. Era tempo de pensar no geral, no todo, na estabilidade internacional. Direitos humanos afirmar-se-iam como tema global. Argumenta Lindgren Alves: Eliminada a divisão simplificadora do mundo em dois grandes blocos estratégicos, em que os problemas e aspirações locais submergiam no contexto das rivalidades das duas superpotências, as realidades e conflitos nacionais tornaram-se muito mais transparentes. Foi possível, assim, verificar com maior clareza o estado deplorável dos direitos humanos em vastas massas territoriais e o grau de ameaça que isso significa à estabilidade internacional.107 É claro que, todo esse processo que levou a afirmação dos direitos humanos como tema essencial da agenda global enfrentou problemas. As peculiaridades relativas à universalidade dos direitos humanos, desde a adoção da Declaração Universal em 1948 até hoje serão melhor abordadas no item seguinte. Por ora, importante é constatar que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, há uma valorização dos direitos inerentes ao ser humano. Há uma preocupação internacional com a proteção da vida e uma busca de limitação do poder estatal em favorecimento da pessoa humana. Portanto, a sociedade internacional contemporânea, emergida do pós-guerra, traz consigo novos paradigmas. Toda a discussão atual sobre a universalidade dos direitos humanos só é possível porque a pessoa humana passou a ocupar um lugar central no sistema internacional. Antes, quando o direito internacional resumia-se a estabelecer uma 107 ALVES, J. A. L., op. cit., 2003, p. 3. 68 relação entre Estados soberanos, tal problemática não se fazia tão presente. A inserção da pessoa humana como sujeito de direito internacional e a conseqüente valorização dos direitos humanos é que vão proporcionar o ambiente favorável à discussão do alcance das normas de direitos humanos. É, portanto, na sociedade internacional contemporânea que o debate se estabelece, embora alguns fundadores do direito internacional já apontassem no sentido de conceder à pessoa humana um papel central no sistema internacional desde os tempos modernos. Mas, é justamente no momento que o sistema internacional deixa de ser apenas um diálogo entre Estados e uma série de documentos são elaborados com a finalidade de afirmar direitos referentes à pessoa humana com validade universal que a problemática aflora. Num mundo tão plural, como estabelecer padrões universais? 2.2) A proposta universalista dos documentos surgidos no pós-guerra Foi com o fim da Segunda Guerra Mundial, como já visto anteriormente, que os direitos humanos apontaram-se como paradigma e referencial da ordem internacional. Muitos documentos internacionais protetivos da vida foram elaborados no período pós-guerra. Muitos foram os direitos garantidos em âmbito mundial e a dignidade humana emergiu como valor inestimável. E, a partir disso, uma série de questões envolvendo o alcance das normas de direitos humanos, recém-elaboradas, começaram a surgir. Até que ponto essas normas seriam mesmo universais? O marco inicial dessa discussão remonta à Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 10 de dezembro de 1948, que consolida a idéia de uma ética universal e, combinando o valor da liberdade com o valor da igualdade, enumerando tanto direitos civis e políticos (art.3º a 21) como direitos sociais, 69 econômicos e culturais (art.22 a 28), proclama também a indivisibilidade dos direitos humanos. A questão sobre a indivisibilidade e a universalidade dos direitos humanos emerge como tema global. Sobre o primeiro ponto, Cançado Trindade, fiel defensor da indivisibilidade dos direitos humanos, questiona: De que vale o direito à vida sem o provimento de condições mínimas de uma existência digna, se não de sobrevivência (alimentação, moradia, vestuário)? De que vale o direito à liberdade de locomoção sem o direito à moradia adequada? De que o direito à liberdade de expressão sem o acesso à instrução e educação básica? De que valem os direitos políticos sem o direito ao trabalho? De que vale o direito ao trabalho sem um salário justo, capaz de atender às necessidades humanas básicas? De que vale o direito à liberdade de associação sem o direito à saúde? De que vale o direito à igualdade perante a lei sem as garantias do devido processo legal? E os exemplos se multiplicam. Daí a importância da visão holística e integral dos direitos humanos, tomados todos conjuntamente.108 Ainda argumentando sobre a questão, o referido autor critica a falsa idéia geracional dos direitos humanos, demonstrando ser imprescindível uma análise que parta da noção de interligação entre os direitos: O fenômeno que testemunhamos em nossos dias, em meu entendimento, não é o de uma fantasiosa e indemonstrável sucessão ´geracional´ de direitos (que poderia inclusive ser invocada para tentar justificar restrições indevidas ao exercício de alguns deles, como já ocorreu na prática), mas antes o da expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos consagrados, todos essencialmente complementares e em constante interação.109 A partir daí, demonstra-se evidente o caráter indivisível dos direitos humanos. Afasta-se, portanto, a idéia equivocada de que os direitos humanos se sucedem no tempo, criando uma espécie de geração de direitos. Na verdade a idéia é de 108 LEÃO, Renato Zeberdini Ribeiro. A universalidade dos direitos humanos e o direito à vida: comentários à luz dos ensinamentos do professor Antônio Augusto Cançado Trindade. In: LEÃO, Renato Zeberdini Ribeiro (coord.). Os Rumos do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Ensaios em homenagem ao professor Antônio Augusto Cançado Trindade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p.122. 109 Apud. ALVES, J. A. L., op. cit., 2003, p. XXXI, apresentação feita por Cançado Trindade. 70 expansão, cumulação, bem como de complementaridade e interdependência dos direitos humanos110. No mesmo sentido argumenta Flávia Piovesan: (...) compartilha-se do entendimento de que uma geração de direitos não substitui a outra, mas com ela interage. Isto é, afasta-se a equivocada idéia da sucessão geracional de direitos, na medida em que se acolhe a idéia de expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos, todos essencialmente complementares e em constante dinâmica de interação.111 Assim, é impossível falar em fruição efetiva das liberdades sem que as necessidades básicas dos cidadãos sejam supridas, por exemplo. Como estabeleceu a Resolução n.32/130 da Assembléia Geral das Nações Unidas, “todos os direitos humanos, qualquer que seja o tipo a que pertencem, se inter-relacionam necessariamente entre si, e são indivisíveis e interdependentes”. No entanto, o grande embate posto na ordem internacional refere-se justamente ao outro ponto crucial apresentado na problemática dos direitos humanos: a sua universalidade. O ponto de partida dessas análises, como já exposto, remonta à Declaração Universal de Direitos do Homem, de 1948, considerada como um grande passo para o processo de internacionalização dos direitos humanos. Nesse momento, vale ressaltar algumas considerações sobre a Declaração de 1948. Em primeiro lugar, cabe o registro de que o referido documento foi redigido sob o impacto das monstruosidades cometidas durante a Segunda Guerra. Era necessário impor limites à atuação do Estado e proclamar os direitos humanos como a mais alta aspiração a ser alcançada. Assim dispõe parte do preâmbulo112: 110 Cf. SARLET, I., op. cit., 2000, p.46. O autor Ingo Sarlet, ao estudar a eficácia dos direitos fundamentais, adota a expressão ‘dimensão dos direitos fundamentais’, justamente em oposição à idéia de geração de direitos proposta por Bobbio, que levaria a falsa impressão de que os direitos fundamentais se sucedem no tempo; assim, o autor prefere falar em dimensão dos direitos fundamentais devido ao seu caráter cumulativo, de complementaridade, e não de alternância. 111 PIOVESAN, F., op. cit., 2002, p.149-150. 112 RANGEL, Vicente Marotta. Direito e Relações Internacionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 645. 71 Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos do homem resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum; Deve-se também observar, em segundo lugar, a força jurídica do documento. Por se tratar de uma declaração, não possui força obrigatória, sendo apenas uma recomendação, uma orientação. Nesta condição, costuma-se sustentar que o documento não tem força vinculante. Originalmente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem era apenas a primeira etapa para a adoção de pactos internacionais sobre a questão. Tal concepção sofre diversas críticas, uma vez que a compreensão atual é de que a vigência dos direitos humanos independe de sua declaração em constituições, leis ou tratados internacionais, exatamente porque se está diante de direitos inerentes à condição humana e de exigências de respeito à dignidade humana. De acordo com Cançado Trindade: A tese segundo a qual as declarações sobre direitos humanos têm o status de ‘interpretações autênticas’ tem sido bastante discutida na doutrina; no entanto, no caso da Declaração Universal, mesmo os mais críticos (a ela atribuindo caráter puramente recomendatório) reconhecem seu considerável impacto não apenas em instrumentos sobre direitos humanos e numerosas outras resoluções das Nações Unidas, como também em tratados multilaterais e bilaterais, constituições e legislações nacionais e decisões judiciais.113 Em terceiro lugar, é curioso constatar que a Declaração Universal de 1948 afirma a democracia como único regime político compatível com o pleno respeito aos direitos humanos. O regime democrático não é concebido como uma opção política entre muitas outras, mas como a única possível para a organização do Estado 113 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, volume I, p. 67. 72 comprometido com a plena fruição dos direitos humanos. Assim estabelece o artigo XXI e artigo XXIX114: Artigo XXI - Todo homem tem o direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. (...) A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto. (grifo meu) Artigo XXIX – No exercício de seus direitos e liberdades, todo homem estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. (grifo meu) Considerações sobre a percepção de direitos humanos em regimes não democráticos serão desenvolvidos no próximo capítulo. Por ora, cabe a constatação da influência dos valores ocidentais no momento da elaboração do documento. Em quarto lugar, e mais essencial para este estudo, é que a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, como o próprio nome sugere, objetiva delinear valores básicos universais, e estabelece já em seu preâmbulo essa idéia115 : Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz do mundo; (...) Considerando que os Estados-membros se comprometeram a promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades fundamentais do homem e a observância desses direitos e liberdades; (grifo meu) E, na introdução da Declaração, a Assembléia Geral “proclama a presente Declaração Universal dos Direitos do Homem como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações”. Perceptível contemplar a proposta universalista 114 115 RANGEL, V., op. cit., 2000, p. 649-652. Ibid, p. 645. 73 do documento. Algumas transcrições dos artigos da Declaração também confirmam o exposto116: Artigo I - : Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade. (grifo meu) Artigo II - Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. (grifo meu) Artigo IV – Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas. (grifo meu) Artigo VI – Todo homem tem direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei. (grifo meu) Artigo VII – Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. (grifo meu) A adoção de expressões como “todas as pessoas”, “toda pessoa”, “ninguém”, “todo homem”, “todos” aparece em todos os artigos e denotam o sentido universal a que se propõe a Declaração dos Direitos do Homem de 1948. No entanto, não se deve olvidar que nem todos os 58 membros das Nações Unidas, à época, partilhavam por inteiro as convicções expressas no documento. Embora tivesse sido aprovado por unanimidade, dois países encontravam-se ausentes na ocasião e oito países abstiveram-se de votar117. A proclamação de dois pactos de direitos humanos das Nações Unidas ocorreria apenas dezoito anos depois, em 1966. São eles: o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Ambos reafirmaram os propósitos estabelecidos em 1948. Os dois 116 Ibid, p. 645-647. Países que se abstiveram de votar: Arábia Saudita, África do Sul, União Soviética, Ucrânia, Rússia Branca, Tchecoslováquia, Polônia e Iugoslávia. 117 74 documentos entraram em vigor em 1976, após o 35º Estado ter depositado seu instrumento de ratificação118. Os respectivos pactos tiveram o objetivo de tornar juridicamente vinculantes seus dispositivos, determinando a responsabilização internacional dos Estados-Partes pela violação dos direitos enumerados. Os Pactos, em seu Preâmbulo, reiteraram a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos, princípios já consagrados pela Declaração Universal. Mais uma vez afirmou-se que os direitos humanos decorrem da dignidade humana, inerente à pessoa humana. Destacou-se também a interdependência entre os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais. É o que se extrai de parte do trecho do preâmbulo destacado: Considerando que, em conformidade com os princípios proclamados na Carta das Nações Unidas, o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo; reconhecendo que esses direitos decorrem da dignidade inerente à pessoa humana; reconhecendo que, em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o ideal do ser humano livre, liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado a menos que se criem condições que permitam a cada um gozar de seus direitos econômicos, sociais e culturais, assim como de seus direitos civis e políticos...119 Importante destacar, no entanto, as divergências surgidas com relação à questão da mulher. Muitos países árabes e islâmicos (Arábia Saudita, Paquistão e Indonésia, por exemplo) rejeitavam a redação que colocava em igualdade, no que concerne ao matrimônio, homens e mulheres. A esse respeito, posicionou-se o representante da Polônia na ocasião: 118 O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais entrou em vigor em 03.01.1976, após a Jamaica (35º Estado) ter depositado seu instrumento de ratificação. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos entrou em vigor em 23.03.1976, após a TchecoEslováquia (35º Estado) ter depositado seu instrumento de ratificação. 119 GUERRA, Sidney. Tratados e Convenções Internacionais. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2006, p. 194. 75 (...) estamos frente a um problema de difícil solução, por um lado, a necessidade de ter em consideração a diversidade das tradições e culturas acerca do matrimônio nos diferentes países, e por outro lado, uma questão eminentemente humanitária, a de consagrar a igualdade dos direitos da mulher (com respeito ao homem) no matrimônio.120 Também é importante considerar que o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos enumeram direitos que não constavam da Declaração Universal, reconhecendo, assim, a sua importância. O direito à autodeterminação (art. 1º), o direito de não ser preso por descumprimento de obrigação contratual (art. 11), e o direito das minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas (art. 27) são alguns exemplos. Assim dispõe o artigo 27: Nos Estados em que haja minorias éticas, religiosas ou lingüísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua.121 Por se tratarem de direitos civis e políticos, os direitos abordados neste Pacto teriam aplicação imediata, sendo os Estados-Partes responsáveis por garanti-los. Dispõe o artigo 2º: Os Estados-Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar e a garantir a todos os indivíduos que se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra condição.122 Diferentemente, os direitos enumerados no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais seriam implementados progressivamente. Dispõe o artigo 2º.1: 120 Apud. QUINTANA, Fernando. O desafio do novo milênio: universalismo e/ou particularismo ético? In: GUERRA, Sidney (coord.). Direitos Humanos: uma abordagem interdisciplinar. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003, p. 46. 121 RANGEL, V., op. cit., 2000, p. 692. 122 Ibid, p. 682. 76 Cada Estado-Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas.123 Pela leitura do artigo pode-se constatar que em relação à implementação desses direitos, o pensamento ocidental e liberal prevaleceu, uma vez que enquanto os direitos humanos civis e políticos mereciam aplicabilidade imediata, os direitos humanos econômicos, sociais e culturais só alcançariam esta condição, progressivamente, ou seja, em longo prazo. Outro marco importante no processo de internacionalização dos direitos humanos e afirmação de sua universalidade foi a I Conferência Mundial de Direitos Humanos, em 1968 em Teerã (Irã), com a participação de 84 Estados, além de representantes de organismos internacionais e organizações não-governamentais. A Proclamação de Teerã, de 1968, objetivou examinar os progressos alcançados nos vinte anos transcorridos desde a aprovação da Declaração Universal de Direitos Humanos e preparar um programa para o futuro, abordando importantes questões, como afirma Cançado Trindade: Não obstante, cuidou a Conferência Mundial de Teerã de, ademais de instar os Estados a que aderissem aos dois Pactos e a outros instrumentos internacionais de direitos humanos de modo a assegurar vigência ao princípio da ‘universalidade dos direitos humanos’ (resolução XXII), propor a adoção de ‘regras-modelo de procedimentos bem definidas’ (resolução X) de modo a assegurar a necessária coordenação e eficiência dos órgãos de supervisão dos tratados de direitos humanos das Nações Unidas.124 Foram, então, pontos importantes na Conferência de Teerã: a afirmação do respeito aos direitos humanos para todos (caráter universal), a indivisibilidade dos 123 124 Ibid, p. 669. CANÇADO TRINDADE, A. A., op. cit., 2003, volume I, p. 95. 77 direitos humanos e o combate à discriminação da mulher em diversas partes do mundo. Eis alguns artigos que confirmam o exposto: 1. É indispensável que a comunidade internacional cumpra sua obrigação solene de fomentar e incentivar o respeito aos direitos humanos e as liberdades fundamentais para todos, sem distinção nenhuma por motivos de raça, cor, sexo, idioma ou opiniões políticas ou de qualquer outra espécie; (grifo meu) 2. A Declaração Universal de Direitos Humanos enuncia uma concepção comum a todos os povos de direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana e a declara obrigatória para a comunidade internacional; (grifo meu) 13. Como os direitos humanos e as liberdades fundamentais são indivisíveis, a realização dos direitos civis e políticos sem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais resulta impossível. A realização de um progresso duradouro na aplicação dos direitos humanos depende de boas e eficientes políticas internacionais de desenvolvimento econômico e social; (grifo meu) 15. A discriminação da qual a mulher ainda segue sendo vítima em distintas regiões do mundo deve ser eliminada. O feito de que a mulher não goze dos mesmos direitos que o homem é contrário à Carta das Nações Unidas e às disposições da Declaração Universal de Direitos Humanos. A aplicação cabal da Declaração sobre a eliminação da discriminação contra a mulher é uma necessidade para o progresso da humanidade; (grifo meu)125 A Conferência de Teerã teve, então, grande mérito no sentido de confirmar a tese da universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos. Também afirma assim João Ricardo Dornelles: O objetivo da Conferência de Teerã foi, assim, a reavaliação sobre o tema dos direitos humanos e a sua internacionalização, resultando no fortalecimento da noção de universalidade dos direitos humanos, considerando-os indivisíveis. Assim, a indivisibilidade dos direitos e a sua universalidade passam a ser características que fundamentam ações globais na busca de soluções para problemas globais.126 125 Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/Onu/Confere_cupula/texto/texto_2.html> Acesso em 30 out. 2006, 22:10. 126 DORNELLES, João Ricardo. A internacionalização dos direitos humanos. Disponível em: < http://64.233.161.104/search?q=cache:HXVMZqg9bFwJ:www.fdc.br/Arquivos/Mestrado/Revistas/Revi sta04e05/Docente/11.pdf+DORNELLES+A+internacionaliza%C3%A7%C3%A3o+dos+direitos+human os&hl=pt-BR&gl=br&ct=clnk&cd=1> Acesso em 30 out. 2006, 22:40. 78 No entanto, Lindgren Alves aponta alguns problemas decorrentes da Proclamação de Teerã, em 1968. Segundo o autor, “o artigo 13 da Proclamação conferiu à idéia da indivisibilidade um caráter de condicionalidade para os direitos civis e políticos que poderia servir como luva a regimes não-democráticos de todos os tipos”127. Argumenta ainda Lindgren Alves: Ainda que a indivisibilidade de todos os direitos humanos estivesse implícita na Declaração Universal de 1948, a pouca atenção que recebiam os direitos econômicos e sociais e as resistências doutrinárias com que costumavam ser encarados por alguns países ocidentais justificavam esforços para reiterá-la mais claramente.(...) A bandeira da Nova Ordem Econômica Internacional propugnada pelos países em desenvolvimento, com apoio dos países socialistas, aproveitou a oportunidade propiciada pela Conferência de Teerã para assinalar a indivisibilidade dos direitos humanos de maneira enfática.(...) Ainda que logicamente correta, a redação do artigo 13 demonstrou-se tão perniciosa que, pelo menos desde meados dos anos 80, os esforços internacionais mais sérios em prol dos direitos humanos procuraram corrigi-la, afirmando, ao contrário, que a indivisibilidade dos direitos humanos não pode servir de escusa para a denegação dos direitos civis e políticos. Conseqüentemente, a Proclamação de Teerã passou a ser quase sempre omitida da relação de documentos internacionais relevantes, e a Conferência de 1968, propositalmente "esquecida".128 O que se torna essencial, contudo, é perceber que todas as propostas dos documentos surgidos a partir da criação da ONU apontam para a indivisibilidade e universalidade dos direitos humanos. No entanto, muitas críticas a esse posicionamento também se acumularam ao longo do tempo. Tantos debates levaram a necessidade de um encontro internacional para a discussão do tema. As críticas dirigidas à possível universalidade dos direitos humanos, consagrada desde a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, argumentavam no sentido de que essa universalidade estava muito mais 127 ALVES, J. A. Lindgren. A atualidade retrospectiva da Conferência de Viena sobre Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/viena/lindgren_Viena.html> Acesso em 01 nov. 2006, 16:28. 128 ALVES, J. A. Lindgren. A atualidade retrospectiva da Conferência de Viena sobre Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/viena/lindgren_Viena.html> Acesso em 01 nov. 2006, 16:45. 79 relacionada a uma imposição dos valores ocidentais do que, propriamente, a uma convicção comum de direitos humanos capaz de abranger todos os povos e nações. Nesse sentido cabe o questionamento: A diversidade cultural impõe-se como limite à percepção de uma moral universal? Afinal, os direitos humanos são universais ou são culturalmente relativos? Essa foi uma das perguntas que a Conferência de Viena, em 1993, se propôs a responder. 2.3) A Conferência de Viena em 1993: o triunfo do universalismo dos direitos humanos Embora afirmação da universalidade dos direitos humanos tivesse se apresentado em diversos documentos surgidos no pós-guerra, a polêmica sobre o alcance das normas referentes aos direitos humanos ainda estava longe de estar pacificada. Foi na Conferência de Viena, em 1993, que o tema ressurgiu em potencialidade. Num contexto histórico marcado por pobreza, miséria, desemprego, exacerbação de nacionalismos, insuficiência dos modelos neoliberais para a redução da desigualdade e o crescimento de ações terroristas, a década de 90 iniciava-se com grandes choques culturais, ideológicos, políticos. Sobre esse período em que a Conferência de Viena foi organizada, expõe Lindgren Alves: De fato, no processo preparatório para a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, entre setembro de 1991 e maio de 1993, as civilizações pareciam crescentemente inclinadas a chocar-se. O Ocidente desenvolvido se mostrava cada dia mais exigente nas propostas de novos mecanismos de controle voltados para a proteção dos direitos civis e políticos postulados na tradição liberal, secular e individualista, enquanto o Oriente assumia posturas cada dia 80 mais defensivas das respectivas culturas, com ênfase nas obrigações individuais e direitos coletivos.129 Foi necessário muito debate para se alcançar um consenso com relação aos direitos humanos. A Conferência de Viena congregou, segundo estimativas, representantes de 171 países, mais de 800 ONGS e mais de 10.000 pessoas. Sem dúvidas, foi a consagração de um amplo debate relativo aos direitos humanos e suas aplicações. O embate que permeou toda a Conferência estabelecia diferentes perspectivas sobre o alcance das normas de direitos humanos. Algumas delegações expressaram-se favoráveis ao relativismo cultural e, muitas outras, apoiaram o universalismo dos direitos humanos. Muitos argumentos relativistas serão melhor abordados no capítulo seguinte, partindo das concepções filosóficas de Michael Walzer. No entanto, faz-se necessário compreender, nesse momento, algumas de suas construções argumentativas. Para os defensores do relativismo, o pluralismo cultural torna impossível a construção de uma moral universal. Assim, a noção de direito estaria vinculada à autodeterminação dos homens, inseridos numa realidade cultural própria. Importa o local, o particular e os valores morais legitimados em determinada comunidade. Nesta ótica, cada cultura possui seu próprio discurso acerca dos direitos humanos, altamente influenciados pelos valores éticos e morais compartilhados naquela realidade local. Segundo esta concepção, o respeito às diferenças torna-se essencial no mundo contemporâneo e, por conseguinte, impede a formação de uma visão universal sobre os direitos humanos. 129 ALVES, Lindgren. A atualidade retrospectiva da Conferência de Viena sobre Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/viena/lindgren_Viena.html> Acesso em 01 nov. 2006, 17:01. 81 No extremo, o relativismo cultural concebe a cultura como a única fonte de validade de um direito ou regra moral. Para os relativistas, a pretensão de universalidade presente nos documentos internacionais demonstra apenas a proposta imperialista do mundo ocidental que pretende universalizar suas próprias crenças. Assim, não há uma moral universal uma vez que os valores morais variam de lugar para lugar, sendo imprescindível que a análise sobre os direitos humanos seja inserida numa realidade cultural. Segundo os adeptos dessa tese, as particularidades históricas, culturais e religiosas de um povo não podem ser suprimidas simplesmente porque não se enquadra no modelo de direitos humanos de determinada cultura, diga-se, a ocidental. Nas lições de R.J.Vincent: O que a doutrina do relativismo cultural pretende? Primeiramente, ela sustenta que as regras sobre a moral variam de lugar para lugar. Em segundo lugar, ela afirma que a forma de compreensão dessa diversidade é colocar-se no contexto cultural em que ela se apresenta. E, em terceiro lugar, ela observa que as reivindicações morais derivam de um contexto cultural, que em si mesmo é a fonte de sua validade. (...) Há uma pluralidade de culturas no mundo e estas culturas produzem seus próprios valores.130 Assim, percebe-se que o ponto crucial do relativismo cultural é a proposta de uma análise do ser humano a partir do contexto da comunidade em que ele está inserido. O debate travado no plenário entre a Delegação da China e de Portugal, por ocasião da Conferência de Viena, demonstra a divergência. Expôs assim a Delegação Chinesa: O conceito de direitos humanos é produto do desenvolvimento histórico. Encontra-se intimamente ligado a condições sociais, políticas e econômicas específicas, e à história, cultura e valores específicos, de um determinado país. Diferentes estágios de desenvolvimento histórico contam com diferentes requisitos de direitos humanos. Países com distintos estágios de desenvolvimento ou com distintas tradições históricas e backgrounds culturais também têm um entendimento e uma prática distintos de direitos humanos.131 130 131 Apud. PIOVESAN, F., op. cit., 2002, p.158. CANÇADO TRINDADE, A. A., op. cit., 2003, volume I, p. 277. 82 Em resposta à argumentação chinesa, Portugal advoga, no plenário, a tese da indivisibilidade e universalidade dos direitos humanos, apontando para o fato de que defender a universalidade não significa anular a diversidade cultural, mas impedir que diferenças atrozes entre os seres humanos sejam legitimadas com base na cultura. Expõe Portugal, por ocasião da Conferência de Viena: Uma outra conseqüência desta concepção é o princípio da universalidade. Importa relembrar que, qualquer que seja o contexto geográfico, étnico, histórico ou econômico-social em que cada um de nós se insere, a cada homem assiste um conjunto inderrogável de direitos fundamentais. Não podemos admitir que, consoante o nascimento, o sexo, a raça, a religião, se estabeleçam diferenças em termos de dignidade dos cidadãos. (...) É obvio que este princípio de universalidade é compatível com a diversidade cultural, religiosa, ideológica e que a própria variedade de crenças, de idéias e de opiniões dos homens é uma riqueza a defender e têm um valor próprio que importa respeito. Mas argumentar com esta diversidade para limitar os direitos individuais, como infelizmente se registra aqui e além, não é permissível, nem em termos de lógica, nem em termos de moral.132 A Delegação de Cingapura e a Delegação de Brunei manifestaram-se, juntamente com a Delegação da China, partidários do relativismo cultural, uma vez que a noção de direitos humanos variava de cultura a cultura, sendo fruto de experiências históricas de cada povo. Em concordância com o posicionamento de Portugal, a Delegação da República Dominicana lamentou que, depois de passados tantos anos da Declaração Universal, o tema sobre a universalidade dos direitos humanos ainda fosse motivo de divergências. Expôs então: (...) inaceitável que, a quase meio século da aprovação da Declaração Universal de Direitos Humanos, ainda tenahmos que propugnar pelo caráter universal de tais direitos, ou, ainda mais, que nos vejamos obrigados a definir o conceito de universalidade e o próprio alcance dessa universalidade; que devamos ratificar, no seio desta Conferência, que nem as particularidades geográficas, econômicas, sociais, políticas, religiosas ou culturais possam jamais servir de pretexto para o desconhecimento dos direitos humanos...133 132 133 Ibid, p. 279-280. Ibid, p. 281 83 Também a Delegação do Irã, concebendo os direitos humanos como divinos por natureza, apoiaram a tese da universalidade, consagrando os direitos humanos como inerentes aos seres humanos, expondo: Human rights are no doubt universal. They are inherent in human beings endowed in them by the sole Creator. As such, they cannot be subject to cultural relativism. However, drawing from de richness and experience of all cultures, and particulary those based on divine religions, (…) would only logically serve to enrich human rights concepts, and enable them to address and satisfy all aspects of a human person, multi-dimensional as he is.134 A crítica de que os direitos humanos seriam, na verdade, direitos tipicamente ocidentais, foram rebatidas por argumentações que colocavam a idéia de que a noção de direitos humanos é formada por um conjunto de valores que englobam diferentes culturas e civilizações, não sendo patrimônio exclusivo de uma nação. Assim expressou a Delegação da Líbia: (...) várias culturas e civilizações em todo o mundo têm contribuído à criação e ao desenvolvimento desse legado desde a aurora da história. Não é propriedade de ninguém em particular. Os direitos humanos não são nem orientais, nem ocidentais.135 Até mesmo países islâmicos fundamentalistas manifestaram-se favoráveis à universalidade dos direitos humanos, embora com certo teor de relativismo. Explicou, por exemplo, a Delegação da Arábia Saudita: (...) força divina é o que protege os direitos humanos entre os fiéis (...). Ademais, os direitos humanos no Islã não foram ordenados para o benefício de uma nação à exclusão de outra, mas foram ordenados para toda a humanidade (...). Enquanto os princípios e objetivos em que se baseiam os direitos humanos são de natureza universal, sua aplicação requer consideração da diversidade das sociedades, tomando em conta seus vários backgrounds históricos, culturais e religiosos e seus sistemas jurídicos.136 134 Ibid, p. 283. Ibid, p. 284. 136 Ibid, p. 284-285. 135 84 A Delegação do Japão também reforçou o caráter universal dos direitos humanos, expressando a opinião de que os países, independente do nível de desenvolvimento, deveriam promover os direitos humanos. Assim argumentou: os direitos humanos são valores universais comuns a toda a humanidade (...). É dever de todos os Estados, qualquer que seja sua tradição cultural, independentemente também de seu sistema político ou econômico, proteger e promover estes valores. (...) Os direitos humanos não deveriam jamais ser sacrificados ao desenvolvimento. Ao contrário, o desenvolvimento deveria servir para proteger e promover os direitos – econômicos, sociais, culturais, civis e políticos.137 Dentre os países latino-americanos também houve certo consenso com relação à universalidade dos direitos humanos. Expôs, por exemplo, a Delegação do Uruguai: (...) mesmo na ausência de adesão expressa por parte de um Estado às convenções em vigor, não poderá este desconhecer os direitos humanos fundamentais na medida em que constituem direito consuetudinário internacional.138 Importante destacar também o papel das ONGs na Conferência de Viena. Antes da dita Conferência, de 10 a 12 de junho, mais de dois mil representantes de um total de cerca de 800 ONGs registradas de todo o mundo, sob o lema "Todos os Direitos Humanos para Todos” reuniram-se em Viena e promoveram vários eventos, palestras, espetáculos, debates e exposições sobre o tema dos direitos humanos, envolvendo pessoas de todas as partes, jornalistas, juristas e estudiosos. O objetivo era formular uma série de recomendações, orientações, sugestões para serem apresentadas na Conferência de Viena. Diversos pontos foram abordados, entre eles a questão da universalidade dos direitos humanos. Lindgren Alves cita as principais recomendações apresentadas pelas ONGs: 137 138 Ibid, p. 287. Ibid, p. 287. 85 As recomendações das ONGs, apresentadas coletivamente, abrangiam desde a rejeição aos particularismos culturais como justificativa para a inobservância de direitos até a abolição do veto dos membros permanentes do Conselho de Segurança. Elas inter alia reafirmavam o direito ao desenvolvimento; defendiam o estabelecimento de um sistema de petições sobre violações de direitos econômicos e sociais; assinalavam a necessidade de compatibilização entre os programas de ajuste estrutural definidos pelos organismos financeiros e o respeito aos direitos humanos; propunham a ratificação dos instrumentos jurídicos internacionais sobre a matéria como requisito à participação de qualquer Estado nas Nações Unidas; sugeriam a redução de despesas militares e a reorientação dos recursos poupados nesse setor para a área social; propunham aumento nas alocações orçamentárias da ONU para as atividades de direitos humanos; instavam à adoção de novos métodos e mecanismos de proteção, entre os quais a criação do cargo de Alto Comissário para os Direitos Humanos e o estabelecimento de um tribunal penal internacional para julgar os responsáveis por violações maciças desses direitos e do Direito Internacional Humanitário.139 Pôde-se contemplar também na Conferência de Viena, em 1993, o engajamento de personalidades do Prêmio Nobel da Paz, de Órgãos de Supervisão Internacionais, de Agências Especializadas das Nações Unidas (OIT, UNESCO, OMS, FAO, etc.) e de Organismos Financeiros Internacionais (BIRD, FMI). A Conferência de Viena, de 1993, mobilizou o mundo para a relevância da discussão em torno dos direitos humanos. Após muitos debates, a tese da universalidade dos direitos humanos consagrou-se como pilar indispensável de qualquer análise que pudesse envolver a temática dos direitos humanos a partir de então. Como resultado dos trabalhos da Conferência em Viena, foi elaborada a Declaração e Programa de Ação de Viena de 1993, dividida em duas partes operativas, que correspondem, respectivamente, à Declaração e ao Programa de Ação. Já em seu preâmbulo, a Declaração eleva o ser humano como sujeito central dos direitos humanos, analisa a dignidade como atributo inerente à condição humana e reafirma o compromisso com os valores da Declaração Universal dos 139 ALVES, Lindgren. A atualidade retrospectiva da Conferência de Viena sobre Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/viena/lindgren_Viena.html> Acesso em 01 nov. 2006, 22:10. 86 Direitos do Homem, com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e com o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais: Reconhecendo e afirmando que todos os direitos humanos têm origem na dignidade e valor inerente à pessoa humana, e que esta é o sujeito central dos direitos humanos e liberdades fundamentais, razão pela qual deve ser a principal beneficiária desses direitos e liberdades e participar ativamente de sua realização, (...) Ressaltando que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que constitui uma meta comum para todos os povos e todas as nações, é fonte de inspiração e tem sido a base utilizada pelas Nações Unidas na definição das normas previstas nos instrumentos internacionais de direitos humanos existentes, particularmente no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais...140 E, logo no início da Declaração, o triunfo da tese universalista: A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma o compromisso solene de todos os Estados de promover o respeito universal e a observância e proteção de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais a todas as pessoas, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, outros instrumentos relacionados aos direitos humanos e o direito internacional. A natureza universal desses direitos e liberdades está fora de questão.141 (grifo meu) Na segunda parte operativa do documento, no Programa de Ação, ficou estabelecido que se deveria empreender esforços para que, por meio do diálogo, os Estados que ainda não tivessem ratificado os tratados de direitos humanos, pudessem fazê-lo. Expõe o ponto 4: A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos recomenda vivamente que se empreenda um esforço coordenado, no sentido de estimular e facilitar a ratificação e adesão ou sucessão dos tratados e protocolos internacionais de direitos humanos adotados no âmbito do sistema das Nações Unidas, visando a torná-los universalmente aceitos. Em regime de consultas com os órgãos estabelecidos em virtude desses tratados, o Secretário Geral deve considerar a possibilidade de iniciar um diálogo com Estados que não aderiram aos ditos tratados de direitos humanos, visando a identificar obstáculos e meios para superá-los. 140 Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/viena/declaracao_viena.htm> Acesso em 03 nov. 2006, 13:16. 141 Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/viena/declaracao_viena.htm> Acesso em 03 nov. 2006, 13:20. 87 Cançado Trindade, escrevendo sobre o dilema do particularismo X universalismo, relembrou o sentimento de esperança que o envolveu por ocasião da Conferência de Viena: A partir de então, a suposta contraposição de pretensos ‘particularismos’ à universalidade dos direitos humanos haveria de mostrar-se com toda clareza como uma falácia. Era esta, de todos modos, a esperança que nutríamos ao final da II Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993), de que guardamos viva memória. Sendo os direitos humanos inerentes ao ser humano, anteriores e superiores ao Estado e a toda outra forma de organização política, é a própria unidade do gênero humano que dá testemunho eloqüente de sua universalidade.142 Como se percebe, a sociedade internacional contemporânea atribui ao ser humano um valor inestimável. E é justamente a percepção de que os direitos humanos são inerentes à condição humana, de que decorrem do atributo da dignidade, que faz com que, todos os homens, nos mais variados lugares, com as mais diversas culturas, consigam encontrar um ponto em comum para defenderem, juntos, a universalidade dos direitos humanos. Mais uma vez, Cançado Trindade: Se cada pessoa reconhecesse os demais como seus semelhantes, já não haveria lugar para discórdia; a partir do dia em que cada um tratasse os próximos como iguais, com o respeito que ensinam todos os credos, já não haveria como pretender contrapor ‘particularismos’ à universalidade dos direitos humanos.143 A tese da universalidade, exposta na Declaração e Programa de Ação de Viena, convoca, portanto, ao diálogo. Existe o reconhecimento da diferença e, também, a certeza de que é essencial unir esforços em prol do que seja comum. A defesa dos direitos humanos, nesse sentido, deve ser um dever de toda a comunidade internacional. Dispõe o item 5 do referido documento: Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e eqüitativa, em pé de igualdade e com a 142 143 CANÇADO TRINDADE, A. A., op. cit., 2003, volume III, p. 337. Ibid, p. 337. 88 mesma ênfase. Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forme seus sistemas políticos, econômicos e culturais.144 A Conferência de Viena, de 1993, teve o grande mérito de confirmar a tese da universalidade dos direitos humanos e, com isso, constatar a afirmação do ser humano ante ao Estado. No mundo contemporâneo, não é mais possível admitir a lógica inerente à formação dos Estados Modernos, que permitia legitimar atitudes violadoras de direitos em prol da consolidação e manutenção do Estado. Definitivamente, é o Estado que existe em função da pessoa humana e não o contrário. Analisa Renato Leão: A universalidade dos direitos humanos é antes de tudo um produto da afirmação do ser humano ante o Estado. Os seres humanos são responsáveis pela criação de todos os entes que possibilitam a existência neste planeta; inclusive a construção e a solidificação do próprio Estado.145 Nesse sentido, a consolidação da pessoa humana como sujeito de direito internacional e a reiteração da universalidade dos direitos humanos contribuíram para a confirmação da máxima kantiana de que o homem é um fim em si mesmo. A sociedade internacional contemporânea afirmou, em Viena, uma grande valorização do ser humano por meio de uma análise global e harmônica dos direitos humanos. Não se tratou, como já se viu, de uma Conferência com pouca representatividade e alcance. Em Viena, o mundo se convergiu para a problemática dos direitos humanos. Estavam lá europeus, norte-americanos, asiáticos, latinoamericanos, enfim, representantes de diversos lugares. Mas não parou por aí, 144 Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/viena/declaracao_viena.htm> Acesso em 03 nov. 2006, 14:57. 145 LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro. A universalidade dos direitos humanos e o direito à vida: comentários à luz dos ensinamentos do professor Antônio Augusto Cançado Trindade. In: LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro (coord.). Os rumos do direito internacional dos direitos humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p.111. 89 também se reuniram diferentes credos e religiões. As culturas foram manifestas e defendidas nos plenários. E, por fim, a consciência de que é possível dialogar, de que existe algo em comum que une a todos. Afinal, por mais diferentes que sejam, todas as culturas revelam conhecimento da dignidade humana. Por mais contrapostos que sejam os interesses, todos se reconhecem como pertencentes ao gênero humano. E, foi com base no que se percebeu de idêntico, de comum, que se conseguiu o fortalecimento dos direitos humanos e a reiteração de sua universalidade. Prova cabal de que o discurso da universalidade não pretende eliminar culturas, mas antes, dialogar com elas, interagir. No entanto, atualmente, treze anos após a realização da Conferência de Viena, em diferentes campos do conhecimento (Filosofia, Antropologia, Sociologia, Direito...) alguns ainda se questionam sobre o alcance das normas de direitos humanos. As incompatibilidades reiteradas desde o fim do século e início do novo milênio parecem se impor como obstáculos a qualquer coisa que se pretenda universal. Crescem em toda parte a intolerância, os xenofobismos, os fundamentalismos, os conflitos armados. Como proteger direitos humanos num mundo cada vez mais desigual e intolerante? No próximo capítulo desenvolver-se-á uma análise sobre os principais argumentos relativistas e as críticas dirigidas à proposta universalista. Analisar todas essas questões será essencial para compreender o sentido de universalidade que se pretende defender no novo milênio. 90 CAPÍTULO III – DA SUPERAÇÃO DOS ARGUMENTOS RELATIVISTAS: O UNIVERSALISMO DOS DIREITOS HUMANOS COMO PARADIGMA DO NOVO MILÊNIO 3.1) Contribuições filosóficas em prol do relativismo: noções gerais do pensamento de Michael Walzer No debate filosófico contemporâneo a respeito do universalismo e do relativismo cultural dos direitos humanos, Michael Walzer emerge como grande nome no desenvolvimento da teoria comprometida, em grande parte, com os particularismos. Sua preocupação é o local, o particular, a comunidade. Walzer tentará organizar uma teoria da justiça que parta da análise do real, desconstruindo, assim, a proposta anterior de John Rawls146, que apresentou um modelo procedimentalista para defender um ponto de vista universal. Pontuar algumas questões centrais de seus argumentos contribuirá para a compreensão dos argumentos relativistas e para uma melhor reflexão sobre o alcance das normas de direitos humanos neste novo milênio. 146 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Carlos Pinto Correia. Lisboa: Editorial Presença, 1997. John Rawls elabora uma teoria da justiça partindo de um ponto de vista imparcial elaborado no que denomina de “posição original”, onde ,cobertos pelo “véu da ignorância”, as partes representantes do acordo chegam ao consenso sobre os dois princípios básicos de justiça, com validade universal. 91 a) Michael Walzer Michael Walzer é um filósofo político comprometido com os particularismos. É professor de Ciências Sociais do Institute for Advanced Study, Princeton, New Jersey. Dentre suas diversas obras, destacam-se duas: “Spheres of Justice” e “Thick and Thin: Moral Argument at Home and Abroad”. O objetivo principal de Walzer é construir uma teoria da justiça a partir da observação do real e não por meio de um grande distanciamento do mundo social onde vive, como fazem os universalistas. Segundo o autor, nenhum valor pode ser pensado fora da comunidade. É justamente por isso que Walzer não se preocupa tanto com o estudo do indivíduo que vive numa determinada comunidade, mas com o estudo da própria comunidade. Para tanto, é preciso aproximar-se do local. Argumenta Walzer: Mi planteamiento es radicalmente particularista. No me jacto de haber logrado um gran distanciamiento del mundo social donde vivo. Una manera de iniciar la empresa filosófica – la manera original, tal vez – consiste en salir de la gruta, abandonar la ciudad, subir a las montañas y formarse um punto de vista objetivo y universal (el cual nunca puede formarse para personas comunes). Luego se describe el terreno de la vida cotidiana desde lejos, de modo que pierda sus contornos particulares y adquiera una forma general. Pero yo me propongo quedarme en la gruta, en la ciudad, en el suelo.147 Para se propor qualquer teoria que tenha aspiração universal, necessário pensar no indivíduo, e para tanto, distanciá-lo ao máximo da realidade cultural que está inserido. Essa, definitivamente, não é a proposta de Walzer, por isso esclarece que ficará na gruta, na cidade, no solo. Nesse sentido, o pluralismo, característica das sociedades contemporâneas, é compreendido na constatação de uma diversidade de identidades sociais, étnicas, 147 WALZER, Michael. Las esferas de la justicia. Una defensa del pluralismo y la igualdad. México: Fondo de Cultura Económica, 1997, p. 12 92 culturais e religiosas. O mundo é plural porque abrange uma série de comunidades que compartilham valores distintos. Pensar direitos humanos, nessa perspectiva, é identificar as concepções compartilhadas dos bens sociais em cada comunidade. Não há como fugir do relativismo cultural. Esclarece Walzer: Ciertamente los individuos poseen derechos no sólo acerca de la vida y de la libertad, pero éstos no son resultado de nuestra común humanidad; son resultado de una concepción compartida de los bienes sociales: su carácter es local y particular.148 Logo, para além das diferenças, não há nada em comum que possa ser compartilhado pela espécie humana149. Assim, defender pluralismo é observar os seres humanos como seres datados, que vivem num determinado lugar e numa determinada época. Não se pode imaginar nenhum sujeito fora de seu contexto. O que legitima o valor de um bem é o reconhecimento, a identificação, ou seja, o bem só tem valor pelo significado que tem na comunidade. E, a partir de então, a distribuição de justiça tem que se basear no valor que cada sociedade concede ao bem. Afinal, “la justicia es una construcción humana, y es dudoso que pueda ser realizada de una solo manera”150. Afirma ainda que: (...) los princípios de la justicia son en si mismos plurales en su forma; que bienes sociales distintos deberian ser distribuídos por razones distintas, en arreglo a diferentes procedimientos y por distintos agentes; y que todas estas diferencias derivan de la compreensión de los bienes sociales mismos, lo cual es producto inevitable del particularismo histórico y cultural.151 Partindo do contexto cultural, Walzer analisa, então, a distribuição dos bens por meio de três princípios distributivos: o livre intercâmbio, o mérito e a 148 Ibid, p. 13. Walzer irá flexibilizar a idéia de relativismo extremado proposto na obra “Sphferes of Justice” com a publicação de “Thick and Thin”, em que admitirá a possibilidade de alguns valores como universais. 150 WALZER, M., op. cit., 1997, p. 19. 151 Ibid, p. 19. 149 93 necessidade152. Nas sociedades contemporâneas existe uma quantidade imensa de bens sociais. Alguns, no entanto, não são passíveis de distribuição, no sentido de que devem ser assegurados a todos. São bens que o dinheiro não pode comprar, como por exemplo, decisão judicial, proteção policial, pessoas e etc. Expõe Walzer: “el dinero ha sido el medio más común. Pero la vieja máxima de que hay cosas que el dinero no puede comprar, es no solo normativa sino también facticamente verdadera”153. Nesse sentido, a diferença entre os homens numa sociedade é natural, não sendo em si mesma injusta. O problema, assim, não reside na diferença, na existência de ricos e pobres, por exemplo, mas, na dominação exercida de um sobre o outro. Impedir o domínio por meio da apropriação de um bem social é o que deve ser evitado. Explica Walzer: Lo que genera la política igualitaria no es el hecho de que haya ricos y pobres, sino la posibilidad de que el rico ‘exprima al pobre’, de que le imponga la pobreza, de que determine su comportamiento sumiso. De la misma manera, no es la existencia de aristócratas y personas comunes, o de funcionarios y ciudadanos ordinarios (y, por supuesto, tampoco la existencia de diferentes razas y sexos) lo que origina las demandas populares de abolición de las diferencias sociales y políticas, sino lo que los aristócratas hacen con las personas comunes, lo que los funcionarios hacen a los ciudadanos ordinarios: lo que individuos com poder hacen a otros sin él. (...) El objetivo del igualitarismo político es una sociedad libre de dominación. (...) No es la esperanza de la eliminación de las diferencias: no hay razón para que todos tengamos la misma cantidad de las mismas cosas.154 152 Ibid, p. 34-38, passim. O autor aponta três critérios de distribuição dos bens: “El intercambio libre es palmariamente abierto; no garantiza ningún resultado distributivo en particular. (...) Al menos en teoría, el intercambio libre crea un mercado en que todos los bienes son convertibles en todos los otros bienes a través del medio neutral del dinero. (...) Al igual que el intercambio libre, el merecimiento parece ser abierto y diverso. (...) El merecimiento no posee el carácter urgente de la necesidad y no implica tener (poseer y consumir) de la misma manera. (...) Finalmente, el criterio de la necesidad. ‘A cada quien de acuerdo con sus necesidades’ generalmente pasa por ser la mitad distributiva de la famosa máxima de Marx: hemos de distribuir la riqueza de la comunidad de modo que las necesidades de sus miembros sean satisfechas”. 153 Ibid, p. 17. 154 Ibid, p. 11. 94 Então, a injustiça aparece na sociedade quando um bem social sirva ou possa servir como meio de dominação. Entende-se melhor com o significado de monopólio e predomínio. Walzer reconhece que o bem monopolizado no capitalismo é o dinheiro. Um grupo menor, portanto, monopoliza o dinheiro. Ele não é contrário ao capitalismo ou ao monopólio do dinheiro, como um bem em si. O que o ordenamento deve evitar é que, nesse caso, o monopólio vire predomínio. Isso se daria, por exemplo, se os setores que monopolizam o dinheiro começassem a violar as esferas de justiça através da compra de outros bens. O dinheiro não pode, portanto, predominar sobre o significado dos outros bens. O essencial é que cada bem seja distribuído de acordo com o significado que possui na comunidade, dentro do que denomina de “esfera”. Segundo Walzer, então, cada bem social (educação, lazer, poder político, dinheiro...) deverá ser distribuído na sociedade levando em consideração o significado que possui, de acordo com sua “esfera autônoma”. Cada esfera é dotada de um critério de distribuição que dá acesso aquele determinado bem. É por isso que afirma que nenhum bem social X deve ser distribuído a alguém que possui outro bem social Y, simplesmente porque possui Y, sem levar em consideração o significado de X155. Quando o contrário ocorre, existe uma invasão das esferas, o que é condenado por Walzer. A partir de então, Walzer analisa sociedades diferentes, que distribuem o mesmo bem de maneira diferente e observa que não há critério para medir qual é o processo distributivo mais justo. É questão de cultura. Para Walzer, é plenamente possível que uma forte distribuição desigual de bens possa ser justa, bastando 155 Ibid, p. 34. Walzer explica: “Cada intercambio es una revelación de significado social. Así, por definición, ninguna X caerá en manos de quienes posean una Y, simplemente porque poseen Y sin referencia a lo que X realmente significa para algún otro miembro de la sociedad. El mercado es realmente plural en sus operaciones y en sus resultados, infinitamente sensitivo a los significados que los individuos aparejan a los bienes”. 95 constatar que tal diferenciação seja compartilhada por aquela determinada sociedade. Na Índia, por exemplo, tem-se um processo distributivo baseado no sistema de castas, que é um dos mais desiguais do planeta. No entanto, não existem dúvidas de que o elemento religioso, que provoca a distribuição desigual dos bens, por seu caráter unificador dos valores daquela comunidade, legitima a própria desigualdade. Nesse sentido, essa seria, para Walzer, uma sociedade justa, já que a justiça é relativa aos significados sociais. O problema que se pode identificar na Índia não é o fato de que a distribuição desigual dos bens se legitime, sendo, portanto, justa, mas, o fato de que o elemento religioso serve de critério de acesso para todas, ou quase todas as esferas relativa aos bens. No caso do sistema de castas indiano, então, quase não se pode perceber autonomia das esferas, uma vez que o critério de distribuição dos bens é enrijecido dentro do elemento religioso. É o próprio Walzer que identifica o problema: ¿Es posible imaginar una sociedad donde todos los bienes sean jerárquicamente concebidos? Tal vez el sistema de castas de la antigua Índia haya tenido esta forma (aunque tal suposición es muy amplia, por lo que sería prudente dudar de su verdad, ya que, para empezar, el poder político parece haber escapado siempre a las leyes de la casta). Nosotros entendemos a las castas como grupos rigidamente segregados, y al sistema de castas como una ‘sociedad plural’, como un mundo de fronteras. Pero el sistema es constituido por una extraordinaria integración de significados. Prestigio, riqueza, conocimiento, cargo, ocupación, alimentación, vestido e incluso el bien social de la conversación: todos están sujetos a la disciplina lo mismo intelectual que física de las jerarquías. (...) Sin embargo, las distribuiciones aquí y ahora son parte de un solo sistema, en gran medida nunca desafiado, en el que la pureza predomina sobre otros bienes – y el nacimiento y la sangre predominan sobre la pureza –. Los significados sociales se traslapan y adquieren cohesión.156 A justiça distributiva, por meio da igualdade complexa, pretende a manutenção das esferas de justiça. O problema é que este modelo só se adequa 156 Ibid, p. 39-40. 96 àquelas comunidades em que a própria autonomia das esferas seja um valor compartilhado. E isso é difícil de ocorrer na realidade. O importante é compreender que discutir justiça em Walzer é discutir distribuição de bens sociais, que só podem ser distribuídos de acordo com o significado que possuem em cada sociedade. Para exemplificar, Walzer apresenta duas sociedades diferentes, que distribuem o mesmo bem, no caso a “educação”, de forma distinta: a comunidade asteca e a comunidade judaica medieval. No sistema educacional dos astecas, havia dois tipos de escola. Uma delas chamava-se “casa dos jovens” e era freqüentada pela grande massa de meninos pobres. Lá, eles aprendiam os ofícios do cotidiano como, por exemplo, artes, artesanato e observâncias religiosas normais. Outro tipo bem diferente de educação era ministrado aos meninos da elite, que freqüentavam as escolas próximas a mosteiros e templos. Lá, eles aprendiam todos os conhecimentos da época e do país, tais como, ler, escrever, cronologia, poesia, retórica etc157. Na comunidade asteca, então, o bem “educação” era distribuído de forma diferente. No entanto, Walzer, demonstra que, em outras comunidades, como as judaicas medievais, os meninos, ricos ou pobres, tinham acesso ao conhecimento religioso da mesma forma. Os que não tinham condições de custear os seus estudos eram bancados pela comunidade. Logo, o bem “educação” era distribuído igualmente. Explica Walzer: Pero en todas las comunidades judías se prestaba mucha atención a la educación: las cuotas escolares para los niños pobres eran pagadas en común; además, existían subsídios públicos de mayor o menor cuantía, así como apoyo caritativo suplementario, para escuelas religiosas y academias. (...) Las comunidades judías, sin embargo, sí se proponían incluir a todos los hombres, y encaraban el problema de organizar un sistema educativo que compreendiera a todas las clases sociales.158 157 158 Ibid, p. 211. Ibid, p. 84-88. 97 O que Walzer pretende é constatar que não há critério para medir qual é o processo distributivo mais justo, se o da comunidade asteca ou se o da comunidade judaica. O que legitima a distribuição de um bem é o valor que ele possui em cada sociedade. Enfim, a proposta relativista identifica a pessoa humana no seio cultural a que pertence, uma vez que será o diálogo social da comunidade o essencial instrumento de identificação dos direitos. Michel Walzer tece, então, diversas críticas ao individualismo isolacionista identificado nas propostas universalistas, reforçando a importância da análise do homem com os demais membros da comunidade onde vive, dando primazia à autonomia pública. Sua preocupação é a diferença, o particular, o local. Nesse sentido, liberdade, igualdade e justiça são temas comuns à humanidade, mas não possuem substância suficiente para darem um caráter universal a elas. Como bem analisa Gisele Cittadino, Walzer considera que a idéia de justiça seja universal, mas que as suas formas de realização estão vinculadas à autodeterminação dos homens que configuram mundos morais particulares. Ao comentar a obra de Walzer, expõe a autora: Walzer revela o seu compromisso com a idéia de autodeterminação. Se o Estado adota uma postura neutra em face das diferenças culturais ou se, ao contrário, protege e estimula uma cultura particular, o faz como conseqüência da deliberação de uma comunidade política que atua autonomamente orientada pelos valores que compartilha.159 Segundo esta visão, o pluralismo contemporâneo impede, assim, a possibilidade da construção de uma ética universal. É nesse sentido que a autora afirma que a Constituição, segundo os comunitaristas, tais como Walzer e Taylor, 159 CITTADINO, Giselle. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p.197. 98 revela um projeto, traduzindo os valores compartilhados de uma determinada sociedade. Explica novamente Cittadino: Nesta perspectiva, a Constituição – com seu sistema de direitos – significa, na verdade, uma matriz, um projeto social integrado por um conjunto de práticas comuns que determinam a identidade dos indivíduos autônomos que, por sua vez, têm obrigação ‘de restaurar ou de sustentar a sociedade na qual esta identidade é possível’. A Constituição enquanto projeto, revela, neste sentido, um sentimento compartilhado, uma identidade e uma história comuns, um compromisso com certos ideais.160 No entanto, essa posição relativista, numa postura extremista, pode legitimar atos violadores dos direitos humanos. A partir dessa concepção, é possível justificar atos atentatórios à dignidade humana com base no argumento do relativismo cultural161. Ana Paula de Barcellos aponta esse perigo no pensamento de Walzer, identificando algumas críticas direcionadas ao autor: Os críticos apontaram a possibilidade de a teoria de Walzer abrigar, doutrinariamente, regimes violadores de direitos básicos do homem. Isso porque, uma vez que o ideário e as práticas desses movimentos estivessem de acordo com os valores compartilhados pela sociedade local, estariam eles legitimados pela concepção da igualdade complexa. Levando o raciocínio ao extremo, uma variedade de atrocidades (ex.: violência contra mulheres, minorias étnicas e religiosas, desprezo pelos necessitados etc.) poderia ser cometida se encontrasse fundamento nos valores da comunidade.162 Após as críticas que sofreu, Walzer modificou um pouco seu entendimento, não sendo tão extremista, escrevendo “Thick and Thin: Moral Argument at Home and Abroad”, onde defende certo tipo de universalismo. Expõe Walzer: I want to endorse the politics of difference and, at the same time, to describe and defend a certain sort of universalism. This won´t be a universalism that requires democratic government in all times and places, but it opens the way for democracy wherever there are enough prospective and willing citizens. 160 Ibid, p. 162. Na ocasião do ataque da OTAN a Iugoslávia, pronunciou-se o secretário-geral da ONU: “Em nenhum país, o governo tem o direito de se esconder atrás da soberania nacional para violar os direitos humanos e as liberdades fundamentais”. 162 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.136. 161 99 More important, perhaps, it prohibits the brutal repression of both minority and majority groups in democratic and non-democratic states.163 Walzer passa a admitir, então, a existência de um conjunto de valores mínimos, que seriam compartilhados por toda a humanidade. Nessa perspectiva, escravidão, genocídio e o tratamento cruel não poderiam ser aceitos como legítimos em nenhuma comunidade. Ao comentar sobre a tolerância, o faz de maneira contextualizada e não com argumentações procedimentalistas, tais como a de Rawls ou Habermas. Analisa sobre esse ponto, Marcelo Ciotola: O que Walzer pretende é realizar uma descrição da tolerância e da coexistência histórica e contextualizada. Ao afirmar, contudo, que o ‘melhor arranjo político é relativo à história e cultura do povo cujas vidas ele irá arranjar’, Walzer não está defendendo um relativismo sem restrições, como pareceria à primeira vista, afinal, nenhum arranjo será uma opção moral caso não ofereça uma versão de coexistência pacífica e sustente os direitos humanos básicos.164 Enfim, mesmo tendo mitigado, de certa forma, a proposta relativista extrema de quando escreveu “Spheres of Justice”, Walzer permanece comprometido com o particular, com a defesa dos direitos humanos a partir da perspectiva do significado que cada bem possui na comunidade. Assim, suas contribuições teóricas são de grande valia para a argumentação do relativismo cultural dos direitos humanos. 3.2) As atuais críticas da proposta relativista à universalidade dos direitos humanos Embora desde a Declaração e Programa de Ação de Viena, em 1993, tenha se afirmado a tese da universalidade dos direitos humanos, ainda hoje, diversas 163 Apud. BARCELLOS, Ana Paula de. O mínimo existencial e algumas fundamentações: John Rawls, Michael Walzer e Robert Alexy. In: TORRES, Ricardo Lobo (org.). Legitimação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 37. 164 CIOTOLA, Marcelo. A tolerância em Michael Walzer. In: TORRES, Ricardo Lobo. Legitimação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 373. 100 argumentações são construídas em favor do relativismo cultural dos direitos humanos. Tais objeções partem sempre do ponto de vista particular, da comunidade, da cultura local. Demonstrar alguns argumentos que, segundo os adeptos do relativismo, impossibilitam uma visão universal dos direitos humanos torna-se importante para o desenvolvimento deste capítulo. Posteriormente, cada uma dessas idéias serão desconstruídas, reafirmando o universalismo dos direitos humanos como pilar fundamental para a construção de uma sociedade internacional justa e solidária, capaz de conjugar a proteção do ser humano no âmbito global com os valores de tolerância e respeito das particularidades. Desse modo, as críticas dirigidas à concepção universalista podem ser assim resumidas: a) a noção de “direitos” inerentes aos direitos humanos contrapõem-se a noção de “deveres” proclamada por muitos povos; b) o conceito de direitos humanos é fundado numa visão antropocêntrica do mundo, que não é compartilhada por todas as culturas; c) a visão universal de direitos humanos nada mais é do que uma visão ocidental que se pretende geral, traduzindo, portanto, certa forma de imperialismo; d) o universalismo analisa um homem descontextualizado, sendo que o homem se define por seus particularismos (língua, cultura, costumes, valores...); 101 e) a falta de adesão formal por parte de muitos Estados dos tratados de direitos humanos e/ou a falta de políticas comprometidas com tais direitos são indicativos da impossibilidade de universalismo; f) a proteção de direitos humanos acaba sendo muito mais um discurso utilizado como elemento da política de relações exteriores do que, efetivamente, algo que esteja desvinculado de interesses políticos e econômicos particulares. g) é preciso um grande desenvolvimento econômico para efetivamente proteger e implementar direitos humanos, e essa realidade não se atesta em muitos países “subdesenvolvidos”, o que faz fracassar o discurso universal dos direitos humanos frente às disparidades e impossibilidades econômicas. Então, em primeiro lugar, aponta-se a favor do relativismo o fato de que toda a tradição dos direitos humanos pauta-se na idéia primordial de “direito” enquanto outros povos, como aqueles submetidos à tradição islâmica, possuem forte concepção de “deveres”. O Corão, por exemplo, estabelece quatro parâmetros distintos para a convivência, que englobam, direitos, responsabilidades, relacionamentos e papéis. Por exemplo, valorizar o papel de pais, implica em perceber seus direitos, mas também, suas responsabilidades advindas desse relacionamento. Trata-se de uma maneira dinâmica de sempre conjugar esses valores165. A tradição ocidental contemplou de forma prioritária a noção de direitos, afastando-se das demais. Nesse sentido, a evolução de uma “cultura de direitos”, tal como tem se afirmado atualmente, acaba por legitimar uma série de atos que 165 MUZAFFAR, Chandra. Islã e Direitos Humanos. In: BALDI, César Augusto (org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 315. 102 prejudicam a própria humanidade. O perigo de não se impor limites e de priorizar o direito em detrimento do dever custou caro ao Ocidente. Chandra Muzaffar aponta para o problema: É pela preponderância do parâmetro citado em relação aos outros que uma ‘cultura dos direitos’ difundiu-se no Ocidente, com conseqüências desastrosas para a humanidade. Pode-se dizer que a incapacidade de compreender que a responsabilidade deve, por vezes, preceder o direito foi uma das causas por detrás da crise ambiental no Ocidente.166 Assim, quando se olha para a degradação ambiental ocorrida nos últimos anos, é fácil perceber que a noção do direito de explorar a natureza, de promover desenvolvimento, de satisfazer interesses, de gerar riquezas deixou de lado o compromisso com o dever de preservação, com a idéia de responsabilidades. Agora, corre-se atrás do prejuízo e, muitas vezes, sem muito sucesso. Então, nessa perspectiva, a própria terminologia da Declaração Universal de “Direitos” Humanos queda-se esvaziada de sentido e só revelam, mais uma vez, que a construção dos direitos humanos une-se a uma visão ocidental. Uma outra crítica que se pode fazer à proposta de universalidade dos direitos humanos é a constatação do fato de que o conceito de direitos humanos é fundado numa visão antropocêntrica do mundo, que não é compartilhada por todas as culturas. A visão corânica do ser humano, por exemplo, parte do pressuposto de que o homem é representante de Deus (Khalifah Allah) na terra. E o relacionamento do homem com Deus, por meio dos valores espirituais da verdade, da justiça e da compaixão, são essenciais na compreensão do próprio fundamento da existência humana. Explica Chandra Muzaffar: (...) a posição do ser humano como representante de Deus, os valores espirituais que devem guiar sua vida e o significado e o propósito espirituais 166 Ibid, p. 320-321. 103 de sua existência na terra proporcionam a razão de ser para o estabelecimento de um vínculo de irmandade com o resto da família humana. Isso, e apenas isso, constitui a essência da unidade no islã, uma unidade fundamentada na fé, fé em Deus, o Deus único de toda a família humana, de todo o universo.167 No entanto, observa-se que, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o ser humano individual tem aparecido como único verdadeiro detentor de direitos. Cria-se a noção de que todo direito, para que seja legítimo, deve servir ao indivíduo. A supervalorização do indivíduo, colocando-o como “medida de todas as coisas” juntamente com o desgaste dos valores espirituais, acaba por desenvolver, muitas vezes, um egoísmo e ganância exacerbados, pautados pela crença de liberdade irrestrita e do homem como a maior autoridade espiritual existente. Esclarece, mais uma vez, Chandra Muzaffar: O desgaste dos valores espirituais e morais absolutos, que surge da libertação ilusória do homem de uma autoridade espiritual superior, é uma das causas do caos e da confusão predominantes no domínio moral na sociedade ocidental contemporânea. O interesse do indivíduo em si próprio e em seu prazer tornou-se principal critério para a determinação de padrões éticos. Ao fazer com que os direitos sirvam ao indivíduo, ao situá-lo no centro do universo, a doutrina ocidental dos direitos humanos reforçou o ego do homem.168 O fato é que, se a doutrina ocidental dos direitos humanos não se preocupa com as questões metafísicas relacionadas ao sentido da vida como, por exemplo, “quem é o ser humano” ou “por que está aqui”, a visão corânica não compreende qualquer noção do ser humano, seus direitos e responsabilidades, sem analisá-las. Isso porque a tradição dos direitos humanos, tipicamente ocidental, pauta-se numa visão antropocêntrica de mundo, enquanto outras culturas, como a islâmica, partem de uma visão teológica. Portanto, de um lado, tem-se a valorização do indivíduo e 167 168 Ibid, p. 319. Ibid, p. 320-321. 104 sua liberdade individual como parâmetro de muitos padrões éticos. De outro lado, a valorização do coletivo e de duas responsabilidades diante de Deus (Allah). Uma terceira crítica, em grande parte, conseqüência das duas análises acima, é de que a visão dos direitos humanos está intimamente ligada aos valores ocidentais. Portanto, defender o universalismo é apoiar a idéia de que a crença estabelecida numa determinada cultura, diga-se, a ocidental, deve se tornar geral. Afirmar direitos locais como universais traduz uma forma de imperialismo do ocidente, que tenta universalizar suas próprias crenças. Isso também se prova na elaboração dos documentos internacionais, tendo em vista que a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 foi elaborada por países do Ocidente e sem representatividade global (uma vez que contou com apenas 51 países e, ainda, com oito abstenções). André Ramos, ao expor os argumentos relativistas, acrescenta: Os estudos de Pollis e Schwab, dois dos mais agudos críticos do universalismo, explicitam tal crítica ao demonstrar que (...) as potências ocidentais possuíam colônias e diversos territórios dominados, em especial na Ásia e África, que não participaram da formulação da Declaração. Assim, concluem os autores citados, a universalização dos direitos humanos é expressão disfarçada do imperialismo cultural eurocêntrico.169 Somado a isso, pode-se perceber que muitas práticas culturais ao redor do mundo são incompatíveis com os direitos humanos proclamados, o que demonstra o viés cultural ocidental predominante. Exemplos disso são o fato de que, em muitas culturas, são legítimos, por exemplo, os casamentos arranjados, a desigualdade de sexos e a clitorectomia, valores que não se coadunam com a proposta dos documentos internacionais vigentes. O choque cultural torna-se inevitável. Questiona André Ramos: “Como reconhecer a universalidade dos direitos da mulher, por 169 RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 185. 105 exemplo, em face de práticas culturais que vêem no casamento, por exemplo, não um acordo entre dois indivíduos, mas sim uma aliança entre famílias?” 170 Em quarto lugar, critica-se o fato de que o universalismo analisa um homem descontextualizado, sendo que o homem se define por seus particularismos (língua, cultura, costumes, valores...). São, portanto, as diversidades locais que identificam e caracterizam o indivíduo. O homem vive num determinado lugar, num contexto, numa época e compartilha valores que são preciosos naquela comunidade em que está inserido. A construção dos direitos humanos, segundo a proposta relativista, então, deve levar em consideração as particularidades, pois é preciso que o homem se reconheça, se identifique com os valores defendidos e isso não será possível abstraindo o homem do seu contexto cultural. Não existem valores universais, mas diversas concepções possíveis do que seja bom ou verdadeiro, intimamente ligado às particularidades de cada povo. Exemplo dessa visão foi o caso da menina Tashi, que decidiu submeter-se tardiamente à circuncisão genital, para afirmar-se como menina olinka (embora depois viesse a rever as antigas crenças e precisasse de tratamento psicológico). A mãe de Tashi a havia poupado da mutilação após a morte de sua irmã devido a uma hemorragia inesgotável durante o ritual. A antropóloga Débora Diniz expõe sobre o caso Tashi: A mutilação genital é, seguramente, a mais importante inscrição da tradição feita no corpo das mulheres. Para Tashi, ter optado pela mutilação genital, mesmo que tardiamente, a fez sentir-se uma mulher Olinka, condição que lhe era negada até aquele momento. (...) Essa obrigatoriedade da cicatriz como condição da feminilidade Olinka fez com que, no período anterior à circuncisão, Tashi fosse uma espécie de simulacro de mulher, talvez uma estrangeira com o dom da proximidade, mas não uma autêntica mulher olinka.171 170 Ibid, p. 190. DINIZ, Débora. Antropologia e os limites dos direitos humanos: o dilema moral de Tashi. Disponível em : <http://www.anis.org.br/serie/artigos/sa06(diniz)antropodireitos.pdf> Acesso em 15 nov. 2006, 15:53. 171 106 Embora esse fato tivesse tido diversas repercussões negativas posteriormente para Tashi, que acaba por condenar a prática da mutilação, o importante no momento é constatar como uma prática cultural não realizada pode ferir a própria identidade de uma pessoa, que não se sente pertencida ao grupo. Em quinto lugar, atesta-se que a falta de adesão formal por parte de muitos Estados dos tratados internacionais de direitos humanos e/ou a falta de políticas comprometidas com tais direitos são indicativos da impossibilidade de universalismo. Afinal, se os direitos humanos são universais, por que os seus tratados não são rapidamente ratificados por todos os países? E pior, se a defesa dos direitos humanos deve ser uma prioridade internacional, por que os direitos humanos são tão violados pelos países que julgam defendê-los? Em sexto lugar, afirma a proposta relativista que, na realidade, a proteção de direitos humanos acaba sendo muito mais um discurso utilizado como elemento da política de relações exteriores do que, efetivamente, algo que esteja desvinculado de interesses políticos e econômicos particulares. André Ramos, ao esboçar a crítica relativista à proposta universalista, comenta sobre a questão: Vários autores desconfiam de uso do discurso de proteção de direitos humanos como um elemento da política de relações exteriores de numerosos Estados, em especial dos Estados ocidentais, que se mostram incoerentes em vários casos, omitindo-se na defesa de direitos humanos na exata medida de seus interesses políticos e econômicos. Como exemplo, as relações exteriores dos Estados Unidos mostrariam que a universalidade dos direitos humanos, de acordo com essa visão, é instrumento de uso específico para o atingimento de fins econômicos e políticos, sendo descartável quando inconveniente. O caso sempre citado é o constante embargo norte-americano a Cuba, justificado por violações maciças de direitos humanos por parte do governo comunista local, e as relações amistosas dos Estados Unidos com a China comunista, sem contar o apoio explícito norte-americano a contumazes violadores de direitos humanos.172 172 RAMOS, A., op. cit., 2005, p. 186-187. 107 Boaventura de Souza Santos também atesta o problema que confronta prática e discurso no que se refere aos direitos humanos: Se observarmos a história dos direitos humanos no período imediatamente a seguir à Segunda Grande Guerra, não é difícil concluir que as políticas de direitos humanos estiveram em geral a serviço dos interesses econômicos e geopolíticos dos Estados capitalistas hegemônicos. Um discurso generoso e sedutor sobre direitos humanos coexistiu com atrocidades indescritíveis, que foram avaliadas com revoltante duplicidade de critérios. Escrevendo em 1981 sobre a manipulação temática dos direitos humanos nos Estados Unidos pelos meios de comunicação social, Richard Falk identifica uma ‘política de invisibilidade’ e uma ‘política de supervisibilidade’. Como exemplos da política de invisibilidade menciona Falk a ocultação total pela mídia das notícias sobre o trágico genocídio do povo Maubere em Timor Leste (que ceifou mais de 300 mil vidas) (...). A verdade é que o mesmo pode dizer-se dos países da União Européia, sendo o exemplo mais gritante justamente o silêncio mantido sobre o genocídio do povo Maubere, escondido dos europeus durante uma década, assim facilitando o contínuo e próspero comércio com a Indonésia.173 E o que dizer do ataque americano ao Iraque? Como proclamar direitos humanos numa hora e, na outra, ignorá-los? Afinal, direitos humanos são valores inalienáveis ou mero discurso que fortalece interesses geopolíticos? Por fim, deve-se analisar a questão do desenvolvimento econômico do país como pressuposto para implementação dos direitos humanos. Segundo esta perspectiva, os direitos humanos, principalmente no que tangem aos direitos sociais, são constantemente violados por ‘escassez de recursos’, o que faz com que a proteção de tais direitos só seja implementada quando favorável pela situação econômica do país, o que esvazia a própria importância dos direitos em questão. Agregando a condição de riqueza para proteção desses direitos, a teoria relativista atesta irrealizável seu caráter universal, principalmente tendo em vista as condições precárias de muitos países latino-americanos, por exemplo. Esses são os principais argumentos apresentados pela teoria relativista contrários à afirmação da universalidade dos direitos humanos. No entanto, essas 173 SOUSA SANTOS, Boaventura. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In: SOUSA SANTOS, Boaventura (org.). Reconhecer para libertar. Os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 440. 108 análises também se revelam contraditórias em alguns aspectos e, até certo ponto, falsas, como se demonstrará no último ponto do capítulo. Importante, nesse momento, compreender, então, qual o sentido que os direitos humanos possuem na sociedade atual e como essa sociedade, marcada pelas transformações do novo milênio, se apresenta, se relaciona com a diversidade cultural. 3.3) A sociedade atual e a necessidade do diálogo intercultural Antes de demonstrar a universalidade dos direitos humanos como pilar fundamental para o novo milênio, faz-se necessário tecer algumas considerações sobre a cultura e suas transformações na sociedade atual. Mas, afinal, como a cultura se apresenta no mundo globalizado? Que mudanças sofreu? Como promover o diálogo intercultural? 3.3.1) A globalização e a diversidade cultural Sem dúvida, o grande sinal pertinente à modernização parece ser a comunicação, a proliferação e generalização dos meios impressos e eletrônicos de comunicação, articulados em teias multimídias alcançando todo o mundo, estabelecendo uma globalidade das idéias, padrões e valores sócioculturais inimaginários.174 O processo de globalização tem causado importantes transformações ao redor do mundo. A revolução tecnológica que vem se desenvolvendo nos últimos anos tem sido um fator fundamental na construção dessa nova era. Por meio da 174 GUERRA, Sidney. O direito à privacidade na internet. Uma discussão da esfera privada no mundo globalizado. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2004, p. 90. 109 internet, por exemplo, é possível navegar por uma imensidão de costumes e contextos culturais. Isso pode aproximar pessoas e/ou grupos que estejam em pólos opostos do globo, como também pode acirrar diferenças. Revolução tecnológica, redução do espaço-tempo, fusão de identidades e confronto de culturas são apenas algumas conseqüências desse processo. Imprescindível, portanto, nesse novo tempo, a capacidade de dialogar, de se fazer entender e de entender o outro. Num mundo que desconhece fronteiras, necessário se faz promover o diálogo intercultural e os caminhos da tolerância e respeito. Assim, no cenário atual, surge uma série de novos símbolos, novas identidades se formam a cada momento. Pensar em realidades culturais intocáveis e isentas de influências torna-se tarefa cada vez mais árdua. Essa aproximação que a globalização proporciona, faz com que, em muitos casos, as próprias identidades culturais se mesclem e se transformem. Acrescenta Edgar Montiel: Os produtos de revolução digital, com seu potencial para transmitir informações desde uma multiplicidade de centros de tempo real, fazem com que qualquer indivíduo que tenha à mão o controle remoto de um televisor ou o mouse de um computador possa transitar por um mundo de costumes, valores, mentalidades, crenças, gostos, comidas, canções, narrações ou modas das regiões mais distantes do mundo. Em virtude dessa exposição constante a novos símbolos, se estabelecem novos vínculos identificatórios, os perfis culturais mudam, mudando seus referentes tradicionais, costumes e visões originárias, para ir se organizando em função de códigos simbólicos que provêm de repertórios culturais muito diversos, que têm sua origem nos diferentes formatos eletrônicos. Desse modo, as identidades tendem a diluirse e surgem novas formas de identificação, poliglotas, multiétnicas, migrantes, com elementos de diversas culturas.175 Também é importante salientar as mútuas influências do espaço global e local. Por vezes, diferentes maneiras de ver o mundo se misturam, se interpenetram e modificam a realidade local. Por outras, o que era uma prática local se expande e toma proporções globais. Esse processo pode promover uma ruptura com relação às 175 MONTIEL, Edgar. A nova ordem simbólica: a diversidade cultural na era da globalização. In: SIDEKUM, Antônio. Alteridade e Multiculturalismo. Rio Grande do Sul: Ijuí, 2003, p. 19-20. 110 raízes nacionais, fazendo com que alguém se identifique muito mais com o que está distante do que com o que está próximo. Explica Liszt Vieira: Uma cultura mundial penetra os setores heterogêneos dos países, separandoos de suas raízes nacionais. A mundialização da cultura significa ao mesmo tempo diferenciação, descentramento, e padronização e segmentação (Ortiz, 1994), tanto no plano global como no local, que, como vimos, se fundem no conceito de ‘glocal’. (...) A cultura mundializada se internaliza dentro de nós. O espaço local ‘desencaixado’ aproxima o que é distante e afasta o que é próximo, isto é, o local é influenciado pelo global, ao mesmo tempo que o influencia. 176 Outro ponto importante, que não pode ser desprezado, é a constatação do alto grau de influência que os países dominantes do cenário econômico internacional possuem, fazendo com que muitos dos seus valores se imponham ao restante do mundo. Até mesmo a repulsa a determinadas imposições de padrões externos modifica o contexto local, contribuindo, por exemplo, para o fortalecimento dos fundamentalismos. Portanto, o choque de civilizações também é uma conseqüência desse processo. Em 2001, a queda do World Trade Center, nos EUA, tornou incontestável a urgência do diálogo intercultural. Acrescenta Edgar Montiel: Diante dos lamentáveis acontecimentos sucedidos em setembro de 2001, que tantas indignações e interrogações levantaram, de imediato, foi nas culturas onde se buscaram as respostas, as chaves para se entender o ocorrido. Os estudos culturais e a geopolítica das culturas subitamente mostram sua pertinência, colocando em evidência o empenho da Unesco em promover o diálogo intercultural, o fomento do pluralismo e da tolerância. Dever-se-ia indagar em relação a tudo isso se aqui não se trata, como se diz com insistência, de um choque de civilizações, ou melhor, como nos parece, de um conflito de indiferenças, de culturas que jamais dialogaram ou, ao menos, não o suficiente para se entenderem, e que agora, visivelmente, graças às tecnologias da comunicação, co-habitam num mesmo tempo e espaço.177 Logo após os atentados de 11 de setembro de 2001, a Unesco promoveu uma Conferência, que culminou na Declaração Universal da Unesco sobre a Diversidade 176 177 VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000, p. 100. MONTIEL, E., In: SIDEKUM, A., op. cit, 2003, p. 16. 111 Cultural178, reafirmando a convicção de que o diálogo intercultural é o meio mais adequado para promoção da paz, da tolerância e do respeito ao outro. Constatou que a cultura se encontra no centro dos debates contemporâneos sobre a identidade e consagrou a diversidade cultural como patrimônio comum da humanidade. Dispõe o artigo 1º da Declaração: Artigo 1 – A diversidade cultural, patrimônio comum da humanidade A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em beneficio das gerações presentes e futuras. Cientes dos benefícios e malefícios de um mundo em constante transformação, o fato é que não se pode pensar em diversidade cultural sem a devida inserção do tema da globalização. Diversas culturas estão constantemente sendo influenciadas e influenciando. É preciso, portanto, compreender essa dinâmica da globalização para perceber suas transformações nas realidades culturais. Isso também mereceu destaque na Conferencia da Unesco, que em seu preâmbulo afirma a possibilidade de um diálogo entre as diferentes culturas: Considerando que o processo de globalização, facilitado pela rápida evolução das novas tecnologias da informação e da comunicação, apesar de constituir um desafio para a diversidade cultural, cria condições de um diálogo renovado entre as culturas e as civilizações... E, na relação intrínseca entre diversidade cultural e direitos humanos, reafirmou-se a necessidade de proteção às diferentes identidades culturais. No entanto, a diversidade cultural não poderia ser invocada para legitimar atos de violação aos direitos humanos. Dispõe o art. 4º da Declaração: 178 Inteiro teor da Declaração Universal da Unesco sobre Diversidade Cultural em anexo. 112 Artigo 4 – Os direitos humanos, garantias da diversidade cultural A defesa da diversidade cultural é um imperativo ético, inseparável do respeito à dignidade humana. Ela implica o compromisso de respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em particular os direitos das pessoas que pertencem a minorias e os dos povos autóctones. Ninguém pode invocar a diversidade cultural para violar os direitos humanos garantidos pelo direito internacional, nem para limitar seu alcance. A partir de então, mais uma vez, reforça-se que a perspectiva de universalidade dos direitos humanos deve inserir-se num contexto de respeito às diversidades culturais, sendo o diálogo intercultural o ponto central para a construção de uma sociedade mais aberta, criativa, tolerante e solidária. 3.3.2) As contribuições de Boaventura de Sousa Santos: a hermenêutica diatópica O sociólogo Boaventura de Sousa Santos tem desenvolvido importantes análises sobre o paradigma atual dos direitos humanos, que contribuirão para a reflexão final, que se pretende expor, sobre o tipo de universalismo que se espera no novo milênio. Não se busca um universalismo que seja camuflado por um imperialismo ocidental, mas um universalismo que seja fruto de um diálogo intercultural. Boaventura inicia seu estudo analisando o que entende por globalizações e os seus diversos modos de produção, que podem ser caracterizados por quatro tipos distintos: a) o localismo globalizado; b) o globalismo localizado; c) o cosmopolitismo; d) o patrimônio comum da humanidade.179 O primeiro modo de produção da globalização, o localismo globalizado, consiste na globalização de determinado fenômeno local, como por exemplo, a 179 SOUSA SANTOS, B., op. cit., 2003, p. 435-437. 113 transformação da língua inglesa em língua franca, a globalização do fast food americano etc. O segundo modo, o globalismo localizado, consiste no impacto específico de práticas e imperativos transnacionais nas condições locais, como por exemplo, o desmatamento e destruição de recursos naturais para pagamento da dívida externa. O terceiro, o cosmopolitismo, pode ser identificado pelas diversas iniciativas, movimentos e organizações que partilham a luta entre grupos explorados e oprimidos pela globalização hegemônica, como por exemplo, as lutas pelos direitos da mulher, pelos direitos dos povos indígenas etc. Por fim, o quarto modo de produção da globalização, seria o que o autor denomina de patrimônio comum da humanidade, que trataria de temas que só fazem sentido em relação ao globo na sua totalidade, como por exemplo, os temas ambientais sobre a proteção da camada de ozônio, a preservação da Antártida etc. A transformação paradigmática da concepção de direitos humanos que o autor busca pretende deslocar o discurso dos direitos humanos de um localismo globalizado para uma visão cosmopolita, o que somente se dará por meio de um diálogo intercultural. Alerta Boaventura de Sousa Santos: Enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos tenderão a operar como localismo globalizado e, portanto, como uma forma de globalização hegemônica. Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização contra-hegemônica, os direitos humanos têm de ser reconceitualizados como multiculturais.180 O método proposto pelo autor para essa transformação e reconceitualização dos direitos humanos é o da hermenêutica diatópica e consiste na constatação de que não se deve analisar uma cultura a partir do topos de outra. Os diálogos interculturais são, então, essenciais para confirmar as incompletudes das culturas 180 Ibid, p. 438. 114 existentes e para caminhar em busca de concepções multiculturais de direitos humanos. Expõe Boaventura: O objetivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude – um objetivo inatingível – mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua por intermédio de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé em uma cultura e outro em outra. Nisto reside o seu caráter diatópico.181 Para tanto, o autor analisa cinco premissas: a) a superação do debate entre universalismo e relativismo cultural; b) a constatação de que embora todas as culturas possuam concepções de dignidade humana, nem todas elas a concebem em termos de direitos humanos; c) a percepção de que todas as culturas são incompletas e problemáticas nas suas concepções de dignidade humana; d) diversos círculos de reciprocidade são propostos nas diferentes concepções de dignidade humana; e) todas as culturas tendem a distribuir as pessoas e os grupos sociais entre dois princípios competitivos de vínculo hierárquico: o princípio da igualdade e o princípio da diferença182. Com relação à superação da tensão entre universalismo e relativismo cultural, Boaventura adverte para os problemas que podem surgir com a adoção de posições extremadas tanto de um posicionamento quanto do outro. As posições radicais impedem o diálogo. O universalismo pode revelar uma imposição da cultura dominante e o relativismo extremo pode tornar inquestionáveis quaisquer condutas culturais. Para o autor, conceitos polares são prejudiciais para uma concepção emancipatória de direitos humanos. O fato também de existirem diversas concepções de dignidade humana, não impedem a possibilidade de encontrar preocupações e aspirações semelhantes em diferentes culturas. Outro ponto de vital importância para Boaventura é o aumento 181 182 Ibid, 444. Ibid, 441-442. 115 da percepção da incompletude cultural, essencial para a transformação e reconceitualização dos direitos humanos. Expõe Boaventura: A incompletude provém da própria existência de uma pluralidade de culturas, pois se cada cultura fosse tão completa quanto se julga, existiria apenas uma só cultura. A idéia de completude está na origem de um excesso de sentido de que parecem sofrer todas as culturas e é por isso que a incompletude é mais facilmente perceptível do exterior, a partir da perspectiva de outra cultura. Aumentar a consciência de incompletude cultural é uma das tarefas prévias para a construção de uma concepção multicultural de direitos humanos.183 O exemplo proposto pelo autor para a demonstração do método da hermenêutica diatópica analisa três culturas distintas, por meio do seu respectivo topos: o topos dos direitos humanos na cultura ocidental, o topos do dharma na cultura hindu e o topos da umma na cultura islâmica. Após algumas análises das principais tensões entre as diferentes culturas, tornam-se mais claras as incompletudes mútuas184 e, com isso, tem-se o primeiro grande passo para uma concepção multicultural. Explica Boaventura mais uma vez: A hermenêutica diatópica mostra-nos que a fraqueza fundamental da cultura ocidental consiste em estabelecer dicotomias demasiado rígidas entre o indivíduo e a sociedade, tornando-se assim vulnerável ao individualismo possessivo, ao narcisismo, à alienação e à anomia. De igual modo, a fraqueza fundamental das culturas hindu e islâmica deve-se ao fato de nenhuma delas reconhecer que o sofrimento humano tem uma dimensão individual irredutível, 183 Ibid, 442. Ibid, p. 447. Explica Boaventura: “Vistos a partir do topos do dharma, os direitos humanos são incompletos na medida em que não estabelecem a ligação entre a parte (o indivíduo) e o todo (o cosmos) ou, dito de forma mais radical, na medida em que são centrados no que é meramente derivado, os direitos, em vez de centrados no imperativo primordial, o dever dos indivíduos de encontrarem o seu lugar na ordem geral da sociedade e de todo o cosmos. (...) Por outro lado, e inversamente, visto a partir do topos dos direitos humanos, o dharma é incompleto, dado o seu viés fortemente não-dialético a favor da harmonia, ocultando assim injustiças e negligenciando totalmente o valor do conflito como caminho para uma harmonia mais rica. Além disso, o dharma não está preocupado com os princípios da ordem democrática, com a liberdade e a autonomia, e negligencia o fato de, sem direitos primordiais, o indivíduo ser uma entidade demasiado frágil para evitar ser subjugado por aquilo que o transcende. Além disso, o dharma tende a esquecer que o sofrimento humano possui uma dimensão individual irredutível: não são as sociedades que sofrem, mas os indivíduos. (...) Vista a partir do topos da umma, a incompletude dos direitos humanos individuais reside no fato de, com base neles, ser impossível fundar os laços e as solidariedades coletivas sem as quais nenhuma sociedade pode sobreviver e prosperar. (...) Por outro lado, a partir do topos dos direitos humanos individuais é fácil concluir que a umma sublinha demasiadamente os deveres em detrimento dos direitos e por isso tende a perdoar desigualdades que seriam de outro modo inadmissíveis, como a desigualdade entre homens e mulheres ou entre muçulmanos e nãomuçulmanos”. 184 116 que só pode ser adequadamente considerada em uma sociedade não hierarquicamente organizada.185 O diálogo intercultural e a constatação de incompletudes promovem a consciência auto-reflexiva e contribuem para reinterpretação dos valores. É nesse sentido que explica que “o objetivo central da hermenêutica diatópica é precisamente fomentar auto-reflexividade a respeito da incompletude cultural”.186 Adverte ainda Boaventura que as culturas possuem grande variedade interna, devendo ser preferida a versão que vai mais longe no reconhecimento do outro. Também admite a possibilidade de uma pausa nesse diálogo intercultural, quando determinada cultura se sentir enfraquecida, evitando, assim, que haja dominação, subordinação cultural. Por fim, o autor aponta o fato de que o multiculturalismo “pressupõe que o princípio da igualdade seja utilizado de par com o princípio do reconhecimento da diferença”. Escreve, então, Boaventura: “A hermenêutica diatópica pressupõe a aceitação do seguinte imperativo transcultural: temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”.187 Assim, a transformação dos direitos humanos em um projeto cosmopolita depende do diálogo intercultural promovido pela hermenêutica diatópica. Seria utópico acreditar nisso? Responde Boaventura: “Certamente é, tão utópico quanto o respeito universal pela dignidade humana. E nem por isso este último deixa de ser uma exigência ética séria”.188 185 Ibid, p. 447. Ibid, p. 455. 187 Ibid, p. 458. 188 Ibid, p. 458. 186 117 3.4) A universalidade dos direitos humanos como paradigma do novo milênio A partir dessas noções gerais sobre a cultura, seus limites e possibilidades, é imprescindível reafirmar o caráter universal dos direitos humanos. Conjugar respeito às particularidades com a afirmação de universalidade dos direitos humanos, promovendo amplamente o diálogo intercultural, é o desafio que se perpetua para este novo milênio. Em busca desse equilíbrio, acredita-se que a percepção moderna dos direitos humanos deve levar em consideração o fato paradoxal de serem os seres humanos relativamente universais. Nem num extremo, nem no outro, a concepção atual de direitos humanos deve pretender esse diálogo entre as diferentes culturas, identificando direitos que se expressem universalmente. O desafio da percepção atual dos direitos humanos, portanto, traduz-se na necessidade de se encontrar a essência comum dos seres humanos através da dialética essencial do universal e do particular, do idêntico e do diferente. Na análise de Fernando Quintana189, o que se espera é justamente esse universalismo concreto em que o “eu” vê o “outro” como um igual, mas, entretanto, reconhece que possa ser 189 QUINTANA, F., In: GUERRA, Sidney (coord.), op. cit., 2003, p. 63-116, passim. O autor analisa as quatro propostas estudadas por S.P.Rouanet e as relações existentes entre o “eu” e o “alter”. São elas: a) o universalismo abstrato; b) o particularismo repressivo; c) o universalismo concreto e d) o particularismo crítico. O primeiro seria identificado como uma posição extremista do universalismo. “Nessa postura, o outro é anulado porque o eu o percebe como um idêntico, um igual. O universalismo abstrato parte daquele postulado da existência de uma natureza humana, racional, idêntica e imutável e, portanto, portadora de uma moral ou ética (os direitos humanos naturais) válidas e aplicáveis em todo tempo e lugar. O segundo modelo, o particularismo repressivo, pode estar dado na afirmação radical do chamado direito à autodeterminação dos povos, isto é, o princípio da soberania frente ao direito de ingerência ou de intervenção humanitária. O terceiro modelo, o universalismo concreto, apresenta certas afinidades tanto com o universalismo, como também, com o particularismo. Esta postura interculturalista aceitaria a premissa de que o homem faz parte ao mesmo tempo de dois mundos: a cidade cosmopolita (a sociedade mundial) e a polis (a sociedade de origem). Forma-se uma concepção universal, mas aberta, tolerante. E, por último, o modelo do particularismo crítico. Esse tipo, do qual resulta uma postura multiculturalista, compartilha, como solução intermédia, aspectos do particularismo, na medida em que o ego e o alter são considerados intrinsecamente distintos. Ocorre que, desta vez, é o outro que afirma sua diferença ou identidade frente ao primeiro, e não o eu que a constitui, ao suprimir o outro por considerá-lo ontologicamente inferior”. 118 diferente. Segundo o autor, essa é a postura interculturalista, que promove o diálogo, a complementaridade e é capaz de pensar a unidade na pluralidade de suas formas particulares. Várias são, portanto, as razões que se apresentam para a defesa da universalidade dos direitos humanos, como passa a se expor. Em primeiro lugar é preciso compreender que o fato de ter se estabelecido no discurso dos direitos humanos uma “cultura de direitos”, e não de “deveres”, não impossibilita uma aproximação entre as visões, isso porque tais concepções não são rigidamente fechadas, mas interpenetram-se. A proteção e implementação dos direitos humanos também envolve uma série de reflexões sobre deveres, responsabilidades com a comunidade, compromissos com as gerações presentes e futuras190. E, o diálogo intercultural com os diversos povos que pautam suas relações na noção de “dever” enriquecerá a temática. Mas, não se pode esquecer que declarar direitos é de extrema importância, uma vez que, sem eles, o indivíduo se torna muito mais vulnerável à dominação e ao sofrimento. Explica Boaventura ao expor alguns problemas do dharma: Além disso, o dharma não está preocupado com os princípios da ordem democrática, com a liberdade e a autonomia, e negligencia o fato de, sem direitos primordiais, o indivíduo ser uma entidade demasiado frágil para evitar ser subjugado por aquilo que o transcende. Além disso, o dharma tende a esquecer que o sofrimento humano possui uma dimensão individual irredutível: não são as sociedades que sofrem, mas os indivíduos.191 A evolução dos direitos humanos tem contribuído para o crescimento, fortalecimento e afirmação do homem como sujeito de direito internacional. 190 Tendo como parâmetro a questão ambiental, é notória a mudança. Se, num dado momento, o direito sobre o meio ambiente exerceu-se de modo desregulado e, até mesmo, sem limites e noção de responsabilidades, atualmente, não é essa a visão que se difunde. Todo o debate em torno do “desenvolvimento sustentável”, por exemplo, agrega ao direito um forte compromisso de responsabilidade. 191 SOUSA SANTOS, B., op. cit., 2003, p. 447. 119 Reconhecer que o ser humano possui direitos primordiais que não devem ser negados por nenhuma força, poder ou organização impede que a pessoa possa ser facilmente desrespeitada, oprimida, subjugada. Em segundo lugar, vale ressaltar que a temática dos direitos humanos não pretende impossibilitar ou substituir convicções políticas, ideológicas ou religiosas. Mas a afirmação do caráter universal dos direitos humanos pretende estabelecer um parâmetro mínimo para as relações sociais. Explica André Ramos: Cabe também salientar que a teoria geral dos direitos humanos não pretende ser uma cosmovisão ou abranger todas as facetas da vida social. Os direitos humanos não oferecem ritos ou símbolos: são conceitos jurídico-normativos, que estabelecem o ethos de liberdade no regramento da vida em sociedade, não competindo nem servindo como substitutos às convicções religiosas.192 No entanto, o fundamentalismo prejudica o debate, na medida em que não admite influências externas e críticas seculares. A Europa viveu momentos de tensão quando da ruptura religiosa em séculos anteriores. Isso trouxe conseqüências em diversos setores, como a política inclusive. A construção dos direitos humanos, nesse sentido, aparece como um caminho em que seja possível transitar diferentes percepções, inclusive religiosas, desde que, no seio de cada uma delas, haja espaço para o dissenso, para a crítica. Num mundo cada vez mais global, o debate torna-se essencial. Comenta Habermas: O cerne da controvérsia não pode ser descrito como disputa pela relevância que as diversas culturas concessivamente atribuem à respectiva religião. A concepção dos direitos humanos é a resposta a um problema diante do qual outras culturas se encontram de forma semelhante à que, na respectiva época, a Europa se encontrava, ao ter que superar as conseqüências políticas da cisão confessional. O conflito das culturas é travado hoje, de qualquer modo, no contexto de uma sociedade global,na qual, à base de normas de convivência, bem ou mal, os atores coletivos precisam entrar em entendimento, independentemente das suas diferentes tradições culturais. É que, na situação atual do mundo, o isolamento autárquico contra influências externas já não constitui opção possível. No mais, o pluralismo cosmopolita desabrocha também no interior das sociedades ainda fortemente marcadas pelas tradições. Até mesmo em sociedades que comparativamente são 192 RAMOS, A., op. cit., 2005, p. 192. 120 culturalmente homogêneas, torna-se cada vez mais inevitável uma transformação reflexiva de tradições dogmáticas predominantes que se apresentam com pretensões à exclusividade.193 Em terceiro lugar é preciso combater a argumentação de que o caráter universal dos direitos humanos seria uma forma de imperialismo do ocidente que tentaria universalizar suas próprias crenças. O fato dos direitos humanos terem nascido no ocidente é um mero dado histórico. Comenta Giuseppe Tosi: Afirmar, portanto, que os direitos humanos são uma ‘ideologia’ que surgiu num determinado momento histórico, vinculada aos interesses de uma determinada classe social na sua luta contra o Antigo Regime, não significa negar que eles possam vir a ter uma validade que supere aquelas determinações históricas e alcance um valor mais permanente e universal. De fato, apesar de ter surgido no Ocidente, a doutrina dos direitos humanos está se espalhando a nível planetário. Isto pode ser medido não somente pela assinatura dos documentos internacionais por parte de quase todos os governos do Mundo, mas igualmente pelo surgimento de um movimento não governamental de promoção dos direitos humanos que constitui quase que uma ‘sociedade civil’ organizada em escala mundial, desde bairro até as Nações Unidas.194 Atualmente, a temática dos direitos humanos é voltada para a busca do diálogo intercultural. Se a Declaração de 1948 expressou uma visão ocidental, a de Viena em 1993, por exemplo, foi fruto de um intenso debate, colocando nos plenários diversas perspectivas sobre o alcance das normas de direitos humanos, culminando, já no cair da noite, com a confirmação da tese da universalidade dos direitos humanos. O jurista Cançado Trindade desabafou no fim da Conferência, que se estendeu até 25 de junho de 1993, sobre o embate entre as proposições universalistas e relativistas: Foi necessário aguardar até a noite (20:45 hs.) do dia 23 de junho para respirar aliviados com a aprovação do primeiro parágrafo e a afirmação 193 HABERMAS, Jürgen. Sobre a legitimação pelos direitos humanos. In: MERLE, Jean-Christophe. Direito & Legitimidade. São Paulo: Landy Editora, 2003, p. 81-82. 194 TOSI, Giuseppe. Direitos Humanos: reflexões iniciais. In: TOSI, Giuseppe (org.). Direitos Humanos: história, teoria e prática. João Pessoa: Editora Universitária, 2005, p. 37. 121 categórica do universalismo dos direitos humanos não sem resistências do Comitê de Redação (...) e das Delegações partidárias do relativismo.195 E mais, a construção dos direitos humanos também influenciou e modificou tradições ocidentais, o que comprova seu caráter universal. Observa novamente André Ramos: Em solo europeu, por exemplo, o reconhecimento de determinados direitos humanos obrigou a Igreja Católica (tradição cristã ocidental) a rever suas posições tradicionais em relação à liberdade religiosa, à relação EstadoIgreja, e, nos dias atuais, tem levado a reflexões sobre os direitos reprodutivos e planejamento familiar.196 Não se busca, portanto, um universalismo monopolizador, que seja o reflexo de um imperialismo cultural, mas um universalismo que respeite as particularidades e se baseie na interação, na troca, fazendo do diálogo intercultural o processo pelo qual se avançará ainda mais na proteção e efetividade dos direitos humanos. É claro que ainda não se chegou à plenitude. É preciso avançar e dialogar mais. No entanto, as grandes vitórias na luta em favor da pessoa humana, do reconhecimento dos direitos humanos, não podem ser desprezadas. É preciso que a proteção e efetividade dos direitos humanos alcancem a todos, por isso a defesa da universalidade. Além disso, em quarto lugar, o argumento relativista, muitas vezes, serve para encobrir e legitimar atos atentatórios aos direitos humanos e à dignidade da pessoa humana, o que é inadmissível. Assim, defender que quaisquer práticas seriam legítimas desde que compartilhadas por uma comunidade pode ser, e na maioria das vezes é, um discurso extremamente autoritário, capaz de encobrir desigualdades, reprimir a liberdade e legitimar a dominação. A jornalista norueguesa, Asne Seierstad, autora de O Livreiro de Cabul, que viveu três meses com uma família 195 196 Apud. QUINTANA, F., In: GUERRA, Sidney (coord.), op. cit., 2003, p. 48. RAMOS, A., op. cit., 2005, p. 193. 122 afegã, conta sobre os abusos cometidos contra as mulheres e, ao ser questionada sobre o relativismo cultural responde: Veja – Qual sua opinião sobre o relativismo cultural, a idéia de que toda cultura tem o direito de manter seus costumes, por mais errados que eles pareçam a quem os vê de fora? Seierstad – (...) O relativismo cultural justifica costumes inaceitáveis das sociedades islâmicas. Há muito abuso em uma família em que o poder e o destino das mulheres ficam concentrados nas mãos de um único homem. As agressões psicológicas são inevitáveis e os castigos físicos, freqüentes. Não se pode dizer que as mulheres muçulmanas não sofram só porque a submissão feminina faz parte da sua cultura. Um tapa dói do mesmo jeito em uma mulher afegã, norueguesa ou brasileira. (...) A crítica faz com que as sociedades evoluam. Os muçulmanos também nos julgam. Dizem que somos imorais e impuros. E se tiverem razão em algum ponto? O mundo precisa de debates. Tentar impedir alguém de dar opinião é muito perigoso.197 Acrescenta-se ainda que, por vezes, tem-se uma visão muito romântica do relativismo cultural, como se todas as culturas trouxessem em si uma homogeneidade tal que qualquer espécie de crítica externa fosse uma afronta brutal aos costumes compartilhados harmonicamente por todos, o que não é verdade. Não se pode olvidar que, muitas vezes, a crítica a determinados valores partem de dentro do próprio grupo, de pessoas ligadas à mesma tradição cultural, situação que por si só já desmistifica essa possível totalidade de harmonia e consenso. No entanto, muitas dessas visões são reprimidas, subjugadas pelo valor do coletivo. A antropóloga Rita Laura Segato, da Universidade de Brasília, também expõe sobre a falácia dessa visão simplificadora do relativismo, que acaba por ignorar divergências dentro de um mesmo contexto cultural: (...) Outra possibilidade, que sugeri em alguns textos, consiste em revisar a maneira como nós antropólogos entendemos a noção de relativismo. De fato, recorremos freqüentemente ao relativismo de forma um tanto simplificadora, focalizando as visões de mundo de cada povo como uma totalidade. Com isso, muitas vezes não vemos ou minimizamos as parcialidades com pontos de vista diferenciados e os variados grupos de interesse que fraturam a unidade dos povos que estudamos. Não levamos em consideração as relatividades internas que introduzem fissuras no suposto consenso 197 AS MULHERES-objeto. Revista Veja, páginas amarelas, São Paulo, 13 de setembro de 2006, p.15. 123 monolítico de valores que, por vezes, erroneamente atribuímos às culturas. Por menor que seja a aldeia, sempre haverá nela dissenso e grupos com interesses que se chocam. É a partir daí que os direitos humanos fazem eco às aspirações de um desses grupos.198 Exemplo elucidativo dessa questão são os versos cantados por muitas mulheres afegãs antes de suicidarem-se. Os poemas são transmitidos oralmente de umas para as outras e representam o protesto pela situação em que vivem as mulheres afegãs. A jornalista Asne Seierstad expôs a questão em seu livro: Durante séculos, as mulheres afegãs têm suportado a injustiça cometida contra elas. Mas em canções e poemas as próprias mulheres são seu testemunho. São canções para ninguém ouvir, e até o eco permanece nas montanhas ou no deserto. Elas protestam ‘se suicidando ou cantando’, escreveu o poeta afegão Sayed Bahoudin Majrouh num livro de poemas das próprias mulheres pashtun. Falam de amores proibidos, do ser amado como outro homem, nunca o marido, e do ódio ao marido, frequentemente muito mais velho do que elas.199 Eis alguns dos versos que demonstram a revolta de muitas mulheres afegãs, “gritos” de uma vida de desapontamentos: Pessoas cruéis vêem um velhinho a caminho da minha cama E ainda me perguntam por que choro e arranco os cabelos Meu Deus! De novo me mandastes a noite escura E de novo tremo da cabeça aos pés por ter que subir na cama que odeio.200 Essas são vozes que, em sua maioria, se internalizam; são pessoas que sofrem caladas por medo do que o “pensar diferente” pode trazer em termos de represália. No entanto, inúmeros são também os relatos de mulheres que se submeteram às mutilações e aos castigos e hoje lutam em prol dos direitos humanos. Exemplo 198 REGATO, Rita Laura. Antropologia e direitos humanos: alteridade e ética no movimento de expansão dos direitos universais. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010493132006000100008&script=sci_arttext&tlng=en> Acesso em 15 nov. 2006, 16:30. 199 SEIERSTAD, Asne. O Livreiro de Cabul. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006, p. 55. 200 Ibid, p. 56. 124 disso é Ayaan201, que aos cinco anos sofreu excisão do clitóris e aos vinte e dois fugiu de um casamento arranjado com o primo do pai. Ao comentar sobre suas experiências, deixa claro sua revolta por um sistema intolerante, que a negou o direito de escolher seu próprio destino: No Islã, moças sem hímen intacto são consideradas ‘objetos usados’. Muitas jovens, ao perder a virgindade, vêm para a Europa submeter-se a cirurgias reparatórias. (...) Aos cinco anos, fui submetida à clitorectomia, uma prática encorajada pelos clérigos islâmicos. Essa é a maneira extrema de garantir virgindade antes do casamento. Na falta de uma mulher disponível, a minha excisão foi feita por um homem. Relatórios da ONU revelam que 98% das meninas na Somália são submetidas à excisão do clitóris. Os outros 2% são a margem de erro. (...) Ao contrário da Bíblia e do Talmude, livros sagrados dos monoteísmos abraâmicos semelhantes ao islamismo, qualquer exegese do Corão é inadmissível. Os muçulmanos devem crer cegamente. Eu aprendi a decorar o Corão desde a infância, posso recitar suras inteiras. Algumas delas servem para justificar a violência, liberar a consciência dos seus autores e também dos observadores passivos. (...) Quando o papa se posiciona contra o uso de contraceptivos, católicos do mundo inteiro contestam sem sofrer represálias. A cantora Madonna desperta antipatia em puritanos com a canção Like a Prayer, mas sua cabeça não está a prêmio. (...) Esse espaço de tolerância não existe no mapa do Islã, mesmo que muito almejado em silêncio.202 Assim, compreender essas divergências existentes dentro de um mesmo contexto cultural são essenciais para a percepção da importância de se declarar direitos e proteger a pessoa das diferentes formas de dominação a que estão submetidas. Em quinto lugar, é preciso compreender que a afirmação do Direito Internacional dos Direitos Humanos é fruto, basicamente, da segunda metade do século XX. Desde o fim da segunda grande guerra que o mundo tem voltado os olhos para o combate ao sofrimento, à dominação, ao totalitarismo e, conseqüentemente, lutado em prol da valorização da vida e proteção da pessoa humana. Mas, ainda há muito para se desenvolver na temática dos direitos humanos. O fato de existir, por parte de alguns Estados, pouca dedicação na 201 Ayaan é roteirista de “Submissão – Parte I”, o curta-metragem que trata sobre a repressão sofrida pelas mulheres no Islã. 202 O ISLà é fascista. Revista Veja, páginas amarelas, São Paulo, 22 de junho de 2005, p. 11-15. 125 implementação de políticas voltadas para a proteção dos direitos humanos, não diminui a relevância dos direitos consagrados. Afinal, o Estado sempre foi um dos maiores violadores de direitos humanos. Para combater isso, as cortes internacionais desenvolvem importantes papéis na defesa da pessoa humana. Defender a universalidade dos direitos humanos e lutar pela adesão formal, por parte dos Estados, dos direitos consagrados internacionalmente, são objetivos que devem ser perseguidos na sociedade internacional atual. Em sexto lugar, quanto à crítica de que a proteção de direitos humanos acaba sendo muito mais um discurso utilizado como elemento da política de relações exteriores do que, efetivamente, algo que esteja desvinculado de interesses políticos e econômicos particulares, atesta-se para o seguinte fato: os Estados são, ao mesmo tempo, produtores e destinatários de toda norma internacional. Essa é uma característica da própria sociedade internacional. Inevitável que, em alguns casos, os Estados interpretem várias normas internacionais em benefício próprio. No entanto, tem-se empreendido esforços para limitar essa manipulação. Aí, mais uma vez, aparece o trabalho das cortes internacionais. André Ramos exemplifica: Aliás, diga-se que é justamente no domínio dos direitos humanos que estão sendo desenvolvidos mecanismos coletivos de apuração de violações de direitos humanos, quase judiciais ou judiciais, o que representa um inegável progresso rumo ao banimento da seletividade e do doublé standart atacado pela objeção ora em comento. No caso específico da teoria da margem de apreciação nacional, há vários casos (...) nos quais a Corte Européia não acatou a alegação do Estado e consagrou a universalidade dos direitos humanos.203 Em sétimo lugar é preciso combater a argumentação de que a efetividade dos direitos humanos está condicionada, inevitavelmente, ao desenvolvimento econômico, como se fosse possível estabelecer uma relação intrínseca entre 203 RAMOS, A., op. cit., 2005, p. 196. 126 riqueza-proteção dos direitos humanos. André Ramos novamente demonstra a falha dessa argumentação: Esse argumento é falho por se basear na relação riqueza-proteção de direitos humanos, que é desmentida pela realidade. Aliás, o Brasil, com uma das maiores economias industriais do mundo, é amostra evidente que o aumento da riqueza não leva a maior proteção de direitos humanos. Muito pelo contrário: a lógica da postergação da proteção de direitos humanos e em especial dos direitos sociais faz com que o desenvolvimento econômico beneficie poucos, em geral àqueles que circundam a elite política dominante.204 Então, torna-se extremamente perigoso postergar a efetividade dos direitos humanos com base numa suposta razão de Estado. Não se pretende, é obvio, negar o custo dos direitos, mas apenas demonstrar o quanto a ênfase na governabilidade pode prejudicar o respeito aos direitos humanos. Um ponto importante relacionado a essa temática diz respeito aos direitos sociais. Ainda é preciso avançar muito com relação à efetividade dos direitos sociais, principalmente à sua fruição em países extremamente pobres, como é o caso da maioria dos países no continente africano. Defender a universalidade dos direitos humanos também envolve comprometimento, por parte da sociedade internacional, com a miséria constatada em diversas regiões do globo. O problema da África, por exemplo, é um problema de todos. Para o avanço na construção dos direitos humanos, necessário esse sentimento de solidariedade, de engajamento, de coparticipação. No entanto, o esforço em promover direitos sociais não pode ser usado como justificativa para violação de outros direitos humanos. Explica Habermas: Os governos de Singapura, Malásia, Taiwan e China costumam justificar as suas violações contra o Direito ao contraditório, à ampla defesa e à isonomia e contra os direitos individuais e políticos fundamentais, denunciados pelo Ocidente, por meio de uma precedência dos direitos sociais fundamentais. Pelo ‘direito a um desenvolvimento econômico’ – compreendido, ao que 204 Ibid, p. 197. 127 parece, de forma coletiva –, consideram-se autorizados a postergar a efetivação de direitos liberais à liberdade e à participação política pelo tempo necessário, até que o país tenha alcançado o estado de desenvolvimento econômico que permita satisfazer de maneira uniforme as necessidades materiais básicas da população. (...) Isso, no entanto, não justifica um modelo autoritário de desenvolvimento, de acordo com o qual a liberdade do indivíduo é subordinada ao ‘bem-estar da comunidade’, compreendida e definida como paternalista. Em verdade, esses governos nem estão defendendo os direitos individuais, mas sim um assistencialismo paternalista que deverá permitir-lhes restringir os direitos...205 Por fim, em oitavo lugar, o argumento relativista desconsidera da noção de cultura, o projeto de humanização. Se há algo que une todas as pessoas ao redor do mundo é justamente o fato de que todos são seres humanos. Então, um projeto cultural que constantemente esteja diminuindo essa condição de “humanos” deve ser repensado. Quanto mais determinada prática cultural aproximar o ser humano da condição de objeto ou de irracional, menos legítima enquanto verdadeira “cultura” tal prática será. Sem contar que, muitas manifestações cobertas pelo manto da “cultura”, na verdade exprimem a velha dicotomia entre dominantes e dominados. É com base nisso que a escravidão, por exemplo, não pode ser concebida como prática cultural legítima, nem tampouco a tortura. Acrescenta Luzinara Scarpe: (...) o entusiasmo pelo diferente pelo simples fato de sê-lo, não traduz nem tampouco eleva o nível de humanidade daquela ‘cultura’.206 Explica ainda Carlos Rodrigues Brandão sobre o tema: (...) a cultura, que é natureza transformada e significada pelo homem, deve ser produzida de modo a garantir a um nível cada vez mais integral a realização do ser humano no mundo. (...) Portanto, pensar a cultura importa conceber sua ética (...), o seu projeto de humanização.207 A partir dessas breves observações, demonstra-se imprescindível reafirmar a exigência da garantia plena e universal dos direitos humanos, tal como proclamado 205 HABERMAS, J., In: MERLE, J., op. cit., 2003, p. 78. MORGAN, Luzinara Scarpe. A regeneração da cultura e sua relação com a dimensão éticohermenêutica dos direitos humanos. In: GUERRA, Sidney (coord.). Temas Emergentes de Direitos Humanos. Campos dos Goytacazes: Editora Faculdade de Direito de Campos, 2006, p. 237-238. 207 Apud. Ibid, p. 239. 206 128 na Declaração de Viena (1993). Transpor as barreiras culturais e ideológicas em prol da universalidade dos direitos humanos torna-se objetivo comum, principalmente nos tempos atuais, época que tem sido marcada por intensos conflitos e gritos de intolerância. A universalidade dos direitos humanos ergue-se, portanto, como paradigma fundamental do Direito Internacional dos Direitos Humanos neste novo milênio, proclamando a defesa da vida e argumentando contra as diversas formas de dominação camufladas em diferentes tradições culturais, proporcionando a busca global de uma sociedade mais justa e solidária. 129 CONCLUSÃO O processo de formação e consolidação dos Estados Nacionais Modernos contribuiu para a construção de uma sociedade internacional, baseada na relação estabelecida entre os diversos Estados que surgiram a partir do século XIV. Muitos fatores influenciaram no desmantelamento da estrutura feudal, entre os quais destacaram-se: o dinamismo do comércio, a tendência de despovoamento dos campos, a urbanização das cidades, o esgotamento dos solos, as técnicas precárias de cultivo, a superexploração feudal e as inúmeras pestes e doenças ocorridas no período. Desse modo, foram marcas da formação dos Estados Modernos: a centralização política e administrativa, a formação de uma burocracia, a organização de um exército nacional, a unificação monetária, a codificação do direito, a instituição da diplomacia, a imposição da justiça real, entre outras. Embora o sistema internacional ainda tenha se estabelecido de modo tênue nesse período, foi a partir da consolidação dos Estados Modernos que foram colocadas as bases para a instituição de uma sociedade internacional, somente solidificada alguns séculos depois. Nicolau Maquiavel, Jean Bodin e Thomas Hobbes desenvolveram importantes concepções teóricas relativas ao Estado. O primeiro, considerado o pai da ciência política, construiu uma série de considerações sobre a conquista e manutenção do 130 poder. Partindo de uma concepção negativa de natureza humana, Maquiavel concebeu a garantia da ordem e da segurança como as grandes razões de Estado nesse período. A Jean Bodin coube a tarefa de, pela primeira vez, construir-se um conceito de soberania. Defensor da teoria do direito divino dos reis, Bodin não reconhecia nenhum poder terreno superior ao do rei. Suas percepções foram fundamentais para a legitimação teórica do domínio estatal e da concepção moderna de Estado. Por fim, Thomas Hobbes, a partir da noção de contrato, formulou importantes considerações sobre a natureza humana e a soberania estatal. A formação dos Estados Modernos foi, portanto, marcada pela necessidade de garantir a estabilidade, por isso os soberanos figuravam-se como atores centrais. Foi nesse período que alguns doutrinadores como Francisco de Vitória, Alberico Gentili e Hugo Grotius formularam diversas concepções que já apontavam no sentido de conceder à pessoa humana um papel central no direito das gentes. Todos os três autores analisados dedicaram-se ao estudo das relações estabelecidas entre os Estados, seus limites e possibilidades, sendo considerados fundadores do direito internacional moderno. Dentre as principais idéias do período, destacaram-se a defesa da internacionalidade das águas oceânicas, os limites impostos no direito de guerra, a proeminência do direito natural e, principalmente, a percepção do indivíduo como sujeito de direito das gentes, capaz de limitar a própria atuação estatal. No entanto, a idéia de soberania estatal absoluta consolidou uma ordem em que o Estado se personificou como único sujeito de direito internacional e a sociedade internacional se estabeleceu como uma relação entre Estados. Foi somente com o fim da Segunda Guerra Mundial e com o conseqüente desenvolvimento do direito internacional dos direitos humanos que a pessoa humana passou a figurar como protagonista no cenário internacional. O pós-guerra ergueu-se 131 com um forte consenso em torno da proteção e valorização da vida, da garantia e promoção da dignidade da pessoa humana e da efetividade dos direitos humanos, reflexos de uma sociedade internacional que ainda guardava na lembrança as atrocidades cometidas nos campos de concentração da Alemanha nazista. Assim, foi no pós-guerra que se fortificou a visão de que a pessoa humana possui direitos inerentes à sua existência que devem ser protegidos e a convicção de que a soberania estatal deve ser flexibilizada em prol dos direitos humanos. Na sociedade internacional contemporânea, a pessoa humana é protagonista. O processo de internacionalização dos direitos humanos iniciado no pósguerra foi marcado por uma série de documentos internacionais protetivos da pessoa humana frente ao Estado. Foi notória a aspiração universal dos documentos internacionais de direitos humanos elaborados nesse período. Palavras e expressões como “todos”, “todas as pessoas”, “ninguém”, “todo homem”, “toda pessoa” apontaram para a percepção universalista desses documentos. A partir de então, diversos defensores do relativismo cultural começaram a indagar sobre o real alcance das normas de direitos humanos até então elaboradas. As críticas dirigidas à concepção universalista podem ser assim resumidas: a) a noção de “direitos” inerentes aos direitos humanos contrapõem-se a noção de “deveres” proclamada por muitos povos; b) o conceito de direitos humanos é fundado numa visão antropocêntrica do mundo, que não é compartilhada por todas as culturas; c) a visão universal de direitos humanos nada mais é do que uma visão ocidental que se pretende geral, traduzindo, portanto, certa forma de imperialismo; d) o universalismo analisa um homem descontextualizado, sendo que o homem se define por seus particularismos (língua, cultura, costumes, valores...); e) a falta de adesão formal por parte de muitos Estados dos tratados de direitos humanos e/ou a 132 falta de políticas comprometidas com tais direitos são indicativos da impossibilidade de universalismo; f) a proteção de direitos humanos acaba sendo muito mais um discurso utilizado como elemento da política de relações exteriores do que, efetivamente, algo que esteja desvinculado de interesses políticos e econômicos particulares. g) é preciso um grande desenvolvimento econômico para efetivamente proteger e implementar direitos humanos, e essa realidade não se atesta em muitos países “subdesenvolvidos”, o que faz fracassar o discurso universal dos direitos humanos frente às disparidades e impossibilidades econômicas. Portanto, tais argumentações impediriam a defesa da universalidade dos direitos humanos nos tempos atuais, uma vez que o pluralismo cultural levantaria-se como uma barreira a qualquer coisa que se pretendesse universal. No entanto, tais percepções padecem de graves falhas. Não se deve olvidar que a sociedade internacional contemporânea tem sofrido importantes mudanças decorrentes do avanço no processo de globalização. A sociedade atual se organiza em redes, os espaços diminuem, as culturas se interpenetram e se modificam. No mundo contemporâneo conectado, longe é um lugar que não existe. Necessário se faz, portanto, uma reconstrução da própria noção de cultura e de particularismos, tendo em vista que a cada dia, torna-se cada vez mais difícil compreender uma sociedade a partir de um ponto de vista isolado. Num século que já se iniciou com o horror dos ataques terroristas e da guerra, imprescindível reafirmar valores universais protetivos da pessoa humana que sirvam de parâmetros mínimos para as relações sociais. Não se trata da defesa de uma imposição da perspectiva ocidental sobre o resto do mundo, mas da crença das vantagens que o diálogo intercultural pode proporcionar à efetividade dos direitos humanos. O que não se deve admitir é a possibilidade de, com base no argumento 133 do relativismo cultural, permitir que direitos humanos sejam violados e a dominação seja legitimada. Nesse sentido, defende-se o universalismo dos direitos humanos como uma importante conquista da sociedade internacional contemporânea e um pilar fundamental no desenvolvimento do direito internacional dos direitos humanos neste novo milênio. 134 REFERÊNCIAS ACCIOLY, Hildebrando; G. E. do Nascimento e Silva. Manual de Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2000. ALVES, José Augusto Lindgren. 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ANEXOS ANEXO I CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS Preâmbulo NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra,que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla. E PARA TAIS FINS, praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, e a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição dos métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum, a empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos os povos. RESOLVEMOS CONJUGAR NOSSOS ESFORÇOS PARA A CONSECUÇÃO DESSES OBJETIVOS. Em vista disso, nossos respectivos Governos, por intermédio de representantes reunidos na cidade de São Francisco, depois de exibirem seus plenos poderes, que foram achados em boa e devida forma, concordaram com a presente Carta das Nações Unidas e estabelecem, por meio dela, uma organização internacional que será conhecida pelo nome de Nações Unidas. CAPÍTULO I PROPÓSITOS E PRINCÍPIOS ARTIGO 1 - Os propósitos das Nações unidas são: 1. Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz; 2. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal; 3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e 4. Ser um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetivos comuns. ARTIGO 2 - A Organização e seus Membros, para a realização dos propósitos mencionados no Artigo 1, agirão de acordo com os seguintes Princípios: 1. A Organização é baseada no princípio da igualdade de todos os seus Membros. 2. Todos os Membros, a fim de assegurarem para todos em geral os direitos e vantagens resultantes de sua qualidade de Membros, deverão cumprir de boa fé as obrigações por eles assumidas de acordo com a presente Carta. 3. Todos os Membros deverão resolver suas controvérsias internacionais por meios pacíficos, de modo que não sejam ameaçadas a paz, a segurança e a justiça internacionais. 4. Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas. 5. Todos os Membros darão às Nações toda assistência em qualquer ação a que elas recorrerem de acordo com a presente Carta e se absterão de dar auxílio a qual Estado contra o qual as Nações Unidas agirem de modo preventivo ou coercitivo. 6. A Organização fará com que os Estados que não são Membros das Nações Unidas ajam de acordo com esses Princípios em tudo quanto for necessário à manutenção da paz e da segurança internacionais. 7. Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constantes do Capitulo VII. CAPÍTULO II DOS MEMBROS ARTIGO 3 - Os Membros originais das Nações Unidas serão os Estados que, tendo participado da Conferência das Nações Unidas sobre a Organização Internacional, realizada em São Francisco, ou, tendo assinado previamente a Declaração das Nações Unidas, de 1 de janeiro de 1942, assinarem a presente Carta, e a ratificarem, de acordo com o Artigo 110. ARTIGO 4 - 1. A admissão como Membro das Nações Unidas fica aberta a todos os Estados amantes da paz que aceitarem as obrigações contidas na presente Carta e que, a juízo da Organização, estiverem aptos e dispostos a cumprir tais obrigações. 2. A admissão de qualquer desses Estados como Membros das Nações Unidas será efetuada por decisão da Assembléia Geral, mediante recomendação do Conselho de Segurança. ARTIGO 5 - O Membro das Nações Unidas, contra o qual for levada a efeito ação preventiva ou coercitiva por parte do Conselho de Segurança, poderá ser suspenso do exercício dos direitos e privilégios de Membro pela Assembléia Geral, mediante recomendação do Conselho de Segurança. O exercício desses direitos e privilégios poderá ser restabelecido pelo conselho de Segurança. ARTIGO 6 - O Membro das Nações Unidas que houver violado persistentemente os Princípios contidos na presente Carta, poderá ser expulso da Organização pela Assembléia Geral mediante recomendação do Conselho de Segurança. CAPÍTULO III ÓRGÃOS ARTIGO 7 - 1. Ficam estabelecidos como órgãos principais das Nações Unidas: uma Assembléia Geral, um Conselho de Segurança, um Conselho Econômico e Social, um conselho de Tutela, uma Corte Internacional de Justiça e um Secretariado. 2. Serão estabelecidos, de acordo com a presente Carta, os órgãos subsidiários considerados de necessidade. ARTIGO 8 - As Nações Unidas não farão restrições quanto à elegibilidade de homens e mulheres destinados a participar em qualquer caráter e em condições de igualdade em seus órgãos principais e subsidiários. CAPÍTULO IV ASSEMBLÉIA GERAL COMPOSIÇÃO ARTIGO 9 - 1. A Assembléia Geral será constituída por todos os Membros das Nações Unidas. 2. Cada Membro não deverá ter mais de cinco representantes na Assembléia Geral. FUNÇÕES E ATRIBUIÇÕES ARTIGO 10 - A Assembléia Geral poderá discutir quaisquer questões ou assuntos que estiverem dentro das finalidades da presente Carta ou que se relacionarem com as atribuições e funções de qualquer dos órgãos nela previstos e, com exceção do estipulado no Artigo 12, poderá fazer recomendações aos Membros das Nações Unidas ou ao Conselho de Segurança ou a este e àqueles, conjuntamente, com referência a qualquer daquelas questões ou assuntos. ARTIGO 11 - 1. A Assembléia Geral poderá considerar os princípios gerais de cooperação na manutenção da paz e da segurança internacionais, inclusive os princípios que disponham sobre o desarmamento e a regulamentação dos armamentos, e poderá fazer recomendações relativas a tais princípios aos Membros ou ao Conselho de Segurança, ou a este e àqueles conjuntamente. 2. A Assembléia Geral poderá discutir quaisquer questões relativas à manutenção da paz e da segurança internacionais, que a ela forem submetidas por qualquer Membro das Nações Unidas, ou pelo Conselho de Segurança, ou por um Estado que não seja Membro das Nações unidas, de acordo com o Artigo 35, parágrafo 2, e, com exceção do que fica estipulado no Artigo 12, poderá fazer recomendações relativas a quaisquer destas questões ao Estado ou Estados interessados, ou ao Conselho de Segurança ou a ambos. Qualquer destas questões, para cuja solução for necessária uma ação, será submetida ao Conselho de Segurança pela Assembléia Geral, antes ou depois da discussão. 3. A Assembléia Geral poderá solicitar a atenção do Conselho de Segurança para situações que possam constituir ameaça à paz e à segurança internacionais. . As atribuições da Assembléia Geral enumeradas neste Artigo não limitarão a finalidade geral do Artigo 10. ARTIGO 12 - 1. Enquanto o Conselho de Segurança estiver exercendo, em relação a qualquer controvérsia ou situação, as funções que lhe são atribuídas na presente Carta, a Assembléia Geral não fará nenhuma recomendação a respeito dessa controvérsia ou situação, a menos que o Conselho de Segurança a solicite. 2. O Secretário-Geral, com o consentimento do Conselho de Segurança, comunicará à Assembléia Geral, em cada sessão, quaisquer assuntos relativos à manutenção da paz e da segurança internacionais que estiverem sendo tratados pelo Conselho de Segurança, e da mesma maneira dará conhecimento de tais assuntos à Assembléia Geral, ou aos Membros das Nações Unidas se a Assembléia Geral não estiver em sessão, logo que o Conselho de Segurança terminar o exame dos referidos assuntos. ARTIGO 13 - 1. A Assembléia Geral iniciará estudos e fará recomendações, destinados a: a) promover cooperação internacional no terreno político e incentivar o desenvolvimento progressivo do direito internacional e a sua codificação; b) promover cooperação internacional nos terrenos econômico, social, cultural, educacional e sanitário e favorecer o pleno gozo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, por parte de todos os povos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião. 2. As demais responsabilidades, funções e atribuições da Assembléia Geral, em relação aos assuntos mencionados no parágrafo 1(b) acima, estão enumeradas nos Capítulos IX e X. ARTIGO 14 - A Assembléia Geral, sujeita aos dispositivos do Artigo 12, poderá recomendar medidas para a solução pacífica de qualquer situação, qualquer que seja sua origem, que lhe pareça prejudicial ao bem-estar geral ou às relações amistosas entre as nações, inclusive em situações que resultem da violação dos dispositivos da presente Carta que estabelecem os Propósitos e Princípios das Nações Unidas. ARTIGO 15 - 1. A Assembléia Geral receberá e examinará os relatórios anuais e especiais do Conselho de Segurança. Esses relatórios incluirão uma relação das medidas que o Conselho de Segurança tenha adotado ou aplicado a fim de manter a paz e a segurança internacionais. 2. A Assembléia Geral receberá e examinará os relatórios dos outros órgãos das Nações Unidas. ARTIGO 16 - A Assembléia Geral desempenhará, com relação ao sistema internacional de tutela, as funções a ela atribuídas nos Capítulos XII e XIII, inclusive a aprovação de acordos de tutela referentes às zonas não designadas como estratégias. ARTIGO 17 - 1. A Assembléia Geral considerará e aprovará o orçamento da organização. 2. As despesas da Organização serão custeadas pelos Membros, segundo cotas fixadas pela Assembléia Geral. 3. A Assembléia Geral considerará e aprovará quaisquer ajustes financeiros e orçamentários com as entidades especializadas, a que se refere o Artigo 57 e examinará os orçamentos administrativos de tais instituições especializadas com o fim de lhes fazer recomendações. VOTAÇÃO ARTIGO 18 - 1. Cada Membro da Assembléia Geral terá um voto. 2. As decisões da Assembléia Geral, em questões importantes, serão tomadas por maioria de dois terços dos Membros presentes e votantes. Essas questões compreenderão: recomendações relativas à manutenção da paz e da segurança internacionais; à eleição dos Membros não permanentes do Conselho de Segurança; à eleição dos Membros do Conselho Econômico e Social; à eleição dos Membros dos Conselho de Tutela, de acordo como parágrafo 1 (c) do Artigo 86; à admissão de novos Membros das Nações Unidas; à suspensão dos direitos e privilégios de Membros; à expulsão dos Membros; questões referentes o funcionamento do sistema de tutela e questões orçamentárias. 3. As decisões sobre outras questões, inclusive a determinação de categoria adicionais de assuntos a serem debatidos por uma maioria dos membros presentes e que votem. ARTIGO 19 - O Membro das Nações Unidas que estiver em atraso no pagamento de sua contribuição financeira à Organização não terá voto na Assembléia Geral, se o total de suas contribuições atrasadas igualar ou exceder a soma das contribuições correspondentes aos dois anos anteriores completos. A Assembléia Geral poderá entretanto, permitir que o referido Membro vote, se ficar provado que a falta de pagamento é devida a condições independentes de sua vontade. PROCESSO ARTIGO 20 - A Assembléia Geral reunir-se-á em sessões anuais regulares e em sessões especiais exigidas pelas circunstâncias. As sessões especiais serão convocadas pelo Secretário-Geral, a pedido do Conselho de Segurança ou da maioria dos Membros das Nações Unidas. ARTIGO 21 - A Assembléia Geral adotará suas regras de processo e elegerá seu presidente para cada sessão. ARTIGO 22 - A Assembléia Geral poderá estabelecer os órgãos subsidiários que julgar necessários ao desempenho de suas funções. CAPITULO V CONSELHO DE SEGURANÇA COMPOSIÇÃO ARTIGO 23 - 1. O Conselho de Segurança será composto de quinze Membros das Nações Unidas. A República da China, a França, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o Reino Unido da GrãBretanha e Irlanda do norte e os Estados unidos da América serão membros permanentes do Conselho de Segurança. A Assembléia Geral elegerá dez outros Membros das Nações Unidas para Membros não permanentes do Conselho de Segurança, tendo especialmente em vista, em primeiro lugar, a contribuição dos Membros das Nações Unidas para a manutenção da paz e da segurança internacionais e para osoutros propósitos da Organização e também a distribuição geográfica equitativa. 2. Os membros não permanentes do Conselho de Segurança serão eleitos por um período de dois anos. Na primeira eleição dos Membros não permanentes do Conselho de Segurança, que se celebre depois de haver-se aumentado de onze para quinze o número de membros do Conselho de Segurança, dois dos quatro membros novos serão eleitos por um período de um ano. Nenhum membro que termine seu mandato poderá ser reeleito para o período imediato. 3. Cada Membro do Conselho de Segurança terá um representante. FUNÇÕES E ATRIBUIÇÕES ARTIGO 24 - 1. A fim de assegurar pronta e eficaz ação por parte das Nações Unidas, seus Membros conferem ao Conselho de Segurança a principal responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacionais e concordam em que no cumprimento dos deveres impostos por essa responsabilidade o Conselho de Segurança aja em nome deles. 2. No cumprimento desses deveres, o Conselho de Segurança agirá de acordo com os Propósitos e Princípios das Nações Unidas. As atribuições específicas do Conselho de Segurança para o cumprimento desses deveres estão enumeradas nos Capítulos VI, VII, VIII e XII. 3. O Conselho de Segurança submeterá relatórios anuais e, quando necessário, especiais à Assembléia Geral para sua consideração. ARTIGO 25 - Os Membros das Nações Unidas concordam em aceitar e executar as decisões do Conselho de Segurança, de acordo com a presente Carta. ARTIGO 26 - A fim de promover o estabelecimento e a manutenção da paz e da segurança internacionais, desviando para armamentos o menos possível dos recursos humanos e econômicos do mundo, o Conselho de Segurança terá o encargo de formular, com a assistência da Comissão de Estado-Maior, a que se refere o Artigo 47, os planos a serem submetidos aos Membros das Nações Unidas, para o estabelecimento de um sistema de regulamentação dos armamentos. VOTAÇÃO ARTIGO 27 - 1. Cada membro do Conselho de Segurança terá um voto. 2. As decisões do conselho de Segurança, em questões processuais, serão tomadas pelo voto afirmativo de nove Membros. 3. As decisões do Conselho de Segurança, em todos os outros assuntos, serão tomadas pelo voto afirmativo de nove membros, inclusive os votos afirmativos de todos os membros permanentes, ficando estabelecido que, nas decisões previstas no Capítulo VI e no parágrafo 3 do Artigo 52, aquele que for parte em uma controvérsia se absterá de votar. PROCESSO ARTIGO 28 - 1. O Conselho de Segurança será organizado de maneira que possa funcionar continuamente. Cada membro do Conselho de Segurança será, para tal fim, em todos os momentos, representado na sede da Organização. 2. O Conselho de Segurança terá reuniões periódicas, nas quais cada um de seus membros poderá, se assim o desejar, ser representado por um membro do governo ou por outro representante especialmente designado. 3. O Conselho de Segurança poderá reunir-se em outros lugares, fora da sede da Organização, e que, a seu juízo, possam facilitar o seu trabalho. ARTIGO 29 - O Conselho de Segurança poderá estabelecer órgãos subsidiários que julgar necessários para o desempenho de suas funções. ARTIGO 30 - O Conselho de Segurança adotará seu próprio regulamento interno, que incluirá o método de escolha de seu Presidente. ARTIGO 31 - Qualquer membro das Nações Unidas, que não for membro do Conselho de Segurança, ou qualquer Estado que não for Membro das Nações Unidas será convidado, desde que seja parte em uma controvérsia submetida ao Conselho de Segurança a participar, sem voto, na discussão dessa controvérsia. O Conselho de Segurança determinará as condições que lhe parecerem justas para a participação de um Estado que não for Membro das Nações Unidas. ARTIGO 32 - Qualquer Membro das Nações Unidas que não for Membro do Conselho de Segurança, ou qualquer Estado que não for Membro das Nações Unidas será convidado,desde que seja parte em uma controvérsia submetida ao Conselho de Segurança,a participar, sem voto, na discussão dessa controvérsia. O Conselho de Segurança determinará as condições que lhe parecerem justas para a participação de um Estado que não for Membro das Nações Unidas. CAPÍTULO VI SOLUÇÃO PACÍFICA DE CONTROVÉRSIAS ARTIGO 33 - 1. As partes em uma controvérsia, que possa vir a constituir uma ameaça à paz e à segurança internacionais, procurarão, antes de tudo, chegar a uma solução por negociação, inquérito, mediação, conciliação, arbitragem, solução judicial, recurso a entidades ou acordos regionais, ou a qualquer outro meio pacífico à sua escolha. 2. O Conselho de Segurança convidará, quando julgar necessário, as referidas partes a resolver, por tais meios, suas controvérsias. ARTIGO 34 - O Conselho de Segurança poderá investigar sobre qualquer controvérsia ou situação suscetível de provocar atritos entre as Nações ou dar origem a uma controvérsia, a fim de determinar se a continuação de tal controvérsia ou situação pode constituir ameaça à manutenção da paz e da segurança internacionais. ARTIGO 35 - 1. Qualquer Membro das Nações Unidas poderá solicitar a atenção do Conselho de Segurança ou da Assembléia Geral para qualquer controvérsia, ou qualquer situação, da natureza das que se acham previstas no Artigo 34. 2. Um Estado que não for Membro das Nações Unidas poderá solicitar a atenção do Conselho de Segurança ou da Assembléia Geral para qualquer controvérsia em que seja parte, uma vez que aceite, previamente, em relação a essa controvérsia, as obrigações de solução pacífica previstas na presente Carta. 3. Os atos da Assembléia Geral, a respeito dos assuntos submetidos à sua atenção, de acordo com este Artigo, serão sujeitos aos dispositivos dos Artigos 11 e 12. ARTIGO 36 - 1. O conselho de Segurança poderá, em qualquer fase de uma controvérsia da natureza a que se refere o Artigo 33, ou de uma situação de natureza semelhante, recomendar procedimentos ou métodos de solução apropriados. 2. O Conselho de Segurança deverá tomar em consideração quaisquer procedimentos para a solução de uma controvérsia que já tenham sido adotados pelas partes. 3. Ao fazer recomendações, de acordo com este Artigo, o Conselho de Segurança deverá tomar em consideração que as controvérsias de caráter jurídico devem, em regra geral, ser submetidas pelas partes à Corte Internacional de Justiça, de acordo com os dispositivos do Estatuto da Corte. ARTIGO 37 - 1. No caso em que as partes em controvérsia da natureza a que se refere o Artigo 33 não conseguirem resolve-la pelos meios indicados no mesmo Artigo, deverão submete-la ao Conselho de Segurança. . O Conselho de Segurança, caso julgue que a continuação dessa controvérsia poderá realmente constituir uma ameaça à manutenção da paz e da segurança internacionais, decidirá sobre a conveniência de agir de acordo com o Artigo 36 ou recomendar as condições que lhe parecerem apropriadas à sua solução. ARTIGO 38 - Sem prejuízo dos dispositivos dos Artigos 33 a 37, o Conselho de Segurança poderá, se todas as partes em uma controvérsia assim o solicitarem, fazer recomendações às partes, tendo em vista uma solução pacífica da controvérsia. CAPÍTULO VII AÇÃO RELATIVA A AMEAÇAS À PAZ, RUPTURA DA PAZ E ATOS DE AGRESSÃO ARTIGO 39 - O Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão, e fará recomendações ou decidirá que medidas deverão ser tomadas de acordo com os Artigos 41 e 42, a fim de manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. ARTIGO 40 - A fim de evitar que a situação se agrave, o Conselho de Segurança poderá, antes de fazer as recomendações ou decidir a respeito das medidas previstas no Artigo 39, convidar as partes interessadas a que aceitem as medidas provisórias que lhe pareçam necessárias ou aconselháveis. Tais medidas provisórias não prejudicarão os direitos ou pretensões , nem a situação das partes interessadas. O Conselho de Segurança tomará devida nota do não cumprimento dessas medidas. ARTIGO 41 - O Conselho de Segurança decidirá sobre as medidas que, sem envolver o emprego de forças armadas, deverão ser tomadas para tornar efetivas suas decisões e poderá convidar os Membros das Nações Unidas a aplicarem tais medidas. Estas poderão incluir a interrupção completa ou parcial das relações econômicas, dos meios de comunicação ferroviários, marítimos, aéreos , postais, telegráficos, radiofônicos, ou de outra qualquer espécie e o rompimento das relações diplomáticas. ARTIGO 42 - No caso de o Conselho de Segurança considerar que as medidas previstas no Artigo 41 seriam ou demonstraram que são inadequadas, poderá levar e efeito, por meio de forças aéreas, navais ou terrestres, a ação que julgar necessária para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. Tal ação poderá compreender demonstrações, bloqueios e outras operações, por parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos Membros das Nações Unidas. ARTIGO 43 - 1. Todos os Membros das Nações Unidas, a fim de contribuir para a manutenção da paz e da segurança internacionais, se comprometem a proporcionar ao Conselho de Segurança, a seu pedido e de conformidade com o acordo ou acordos especiais, forças armadas, assistência e facilidades, inclusive direitos de passagem, necessários à manutenção da paz e da segurança internacionais. 2. Tal acordo ou tais acordos determinarão o número e tipo das forças, seu grau de preparação e sua localização geral, bem como a natureza das facilidades e da assistência a serem proporcionadas. 3. O acordo ou acordos serão negociados o mais cedo possível, por iniciativa do Conselho de Segurança. Serão concluídos entre o Conselho de Segurança e Membros da Organização ou entre o Conselho de Segurança e grupos de Membros e submetidos à ratificação, pelos Estados signatários, de conformidade com seus respectivos processos constitucionais. ARTIGO 44 - Quando o Conselho de Segurança decidir o emprego de força, deverá, antes de solicitar a um Membro nele não representado o fornecimento de forças armadas em cumprimento das obrigações assumidas em virtude do Artigo 43, convidar o referido Membro, se este assim o desejar, a participar das decisões do Conselho de Segurança relativas ao emprego de contigentes das forças armadas do dito Membro. ARTIGO 45 - A fim de habilitar as Nações Unidas a tomarem medidas militares urgentes, os Membros das Nações Unidas deverão manter, imediatamente utilizáveis, contigentes das forças aéreas nacionais para a execução combinada de uma ação coercitiva internacional. A potência e o grau de preparação desses contingentes, como os planos de ação combinada, serão determinados pelo Conselho de Segurança com a assistência da Comissão de Estado-Maior, dentro dos limites estabelecidos no acordo ou acordos especiais a que se refere o Artigo 43. ARTIGO 46 - O Conselho de Segurança, com a assistência da Comissão de Estado-maior, fará planos para a aplicação das forças armadas. ARTIGO 47 - 1. Será estabelecia uma Comissão de Estado-Maior destinada a orientar e assistir o Conselho de Segurança, em todas as questões relativas às exigências militares do mesmo Conselho, para manutenção da paz e da segurança internacionais, utilização e comando das forças colocadas à sua disposição, regulamentação de armamentos e possível desarmamento. 2. A Comissão de Estado-Maior será composta dos Chefes de Estado-Maior dos Membros Permanentes do Conselho de Segurança ou de seus representantes. Todo Membro das Nações Unidas que não estiver permanentemente representado na Comissão será por esta convidado a tomar parte nos seus trabalhos, sempre que a sua participação for necessária ao eficiente cumprimento das responsabilidades da Comissão. 3. A Comissão de Estado-Maior será responsável, sob a autoridade do Conselho de Segurança, pela direção estratégica de todas as forças armadas postas à disposição do dito Conselho. As questões relativas ao comando dessas forças serão resolvidas ulteriormente. 4. A Comissão de Estado-Maior, com autorização do Conselho de Segurança e depois de consultar os organismos regionais adequados, poderá estabelecer subcomissões regionais. ARTIGO 48 - 1. A ação necessária ao cumprimento das decisões do Conselho de Segurança para manutenção da paz e da segurança internacionais será levada a efeito por todos os Membros das Nações Unidas ou por alguns deles, conforme seja determinado pelo Conselho de Segurança. 2. Essas decisões serão executas pelos Membros das Nações Unidas diretamente e, por seu intermédio, nos organismos internacionais apropriados de que façam parte. ARTIGO 49 - Os Membros das Nações Unidas prestar-se-ão assistência mútua para a execução das medidas determinadas pelo Conselho de Segurança. ARTIGO 50 - No caso de serem tomadas medidas preventivas ou coercitivas contra um Estado pelo Conselho de Segurança, qualquer outro Estado, Membro ou não das Nações unidas, que se sinta em presença de problemas especiais de natureza econômica, resultantes da execução daquelas medidas, terá o direito de consultar o Conselho de Segurança a respeito da solução de tais problemas. ARTIGO 51 - Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos Membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais. CAPÍTULO VIII ACORDOS REGIONAIS ARTIGO 52 - 1. Nada na presente Carta impede a existência de acordos ou de entidades regionais, destinadas a tratar dos assuntos relativos à manutenção da paz e da segurança internacionais que forem suscetíveis de uma ação regional, desde que tais acordos ou entidades regionais e suas atividades sejam compatíveis com os Propósitos e Princípios das Nações Unidas. 2. Os Membros das Nações Unidas, que forem parte em tais acordos ou que constituírem tais entidades, empregarão todo os esforços para chegar a uma solução pacífica das controvérsias locais por meio desses acordos e entidades regionais, antes de as submeter ao Conselho de Segurança. 3. O Conselho de Segurança estimulará o desenvolvimento da solução pacífica de controvérsias locais mediante os referidos acordos ou entidades regionais, por iniciativa dos Estados interessados ou a instância do próprio conselho de Segurança. 4. Este Artigo não prejudica, de modo algum, a aplicação dos Artigos 34 e 35. ARTIGO 53 - 1. O conselho de Segurança utilizará, quando for o caso, tais acordos e entidades regionais para uma ação coercitiva sob a sua própria autoridade. Nenhuma ação coercitiva será, no entanto, levada a efeito de conformidade com acordos ou entidades regionais sem autorização do Conselho de Segurança, com exceção das medidas contra um Estado inimigo como está definido no parágrafo 2 deste Artigo, que forem determinadas em consequência do Artigo 107 ou em acordos regionais destinados a impedir a renovação de uma política agressiva por parte de qualquer desses Estados, até o momento em que a Organização possa, a pedido dos Governos interessados, ser incumbida de impedir toda nova agressão por parte de tal Estado. 2. O termo Estado inimigo, usado no parágrafo 1 deste Artigo, aplica-se a qualquer Estado que, durante a Segunda Guerra Mundial, foi inimigo de qualquer signatário da presente Carta. ARTIGO 54 - O Conselho de Segurança será sempre informado de toda ação empreendida ou projetada de conformidade com os acordos ou entidades regionais para manutenção da paz e da segurança internacionais. CAPÍTULO IX COOPERAÇÃO INTERNACIONAL ECONÔMICA E SOCIAL ARTIGO 55 - Com o fim de criar condições de estabilidade e bem estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão: a) níveis mais altos de vida, trabalho efetivo e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social; b) a solução dos problemas internacionais econômicos, sociais, sanitários e conexos; a cooperação internacional, de caráter cultural e educacional; e c) o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião. ARTIGO 56 - Para a realização dos propósitos enumerados no Artigo 55, todos os Membros da Organização se comprometem a agir em cooperação com esta, em conjunto ou separadamente. ARTIGO 57 - 1. As várias entidades especializadas, criadas por acordos intergovernamentais e com amplas responsabilidades internacionais, definidas em seus instrumentos básicos, nos campos econômico, social, cultural, educacional, saitário e conexos, serão vinculadas às Nações Unidas, de conformidade com as disposições do Artigo 63. 2. Tais entidades assim vinculadas às Nações Unidas serão designadas, daqui por diante, como entidades especializadas. ARTIGO 58 - A Organização fará recomendação para coordenação dos programas e atividades das entidades especializadas. ARTIGO 59 - A Organização, quando julgar conveniente, iniciará negociações entre os Estados interessados para a criação de novas entidades especializadas que forem necessárias ao cumprimento dos propósitos enumerados no Artigo 55. ARTIGO 60 - A Assembléia Geral e, sob sua autoridade, o Conselho Econômico e Social, que dispões, para esse efeito, da competência que lhe é atribuída no Capítulo X, são incumbidos de exercer as funções da Organização estipuladas no presente Capítulo. CAPÍTULO X CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL COMPOSIÇÃO ARTIGO 61 - 1. O Conselho Econômico e Social será composto de cinquenta e quatro Membros das Nações Unidas eleitos pela Assembléia Geral. 2 De acordo com os dispositivos do parágrafo 3, dezoito Membros do Conselho Econômico e Social serão eleitos cada ano para um período de três anos, podendo, ao terminar esse prazo, ser reeleitos para o período seguinte. 3. Na primeira eleição a realizar-se depois de elevado de vinte e sete para cinquenta e quatro o número de Membros do Conselho Econômico e Social, além dos Membros que forem eleitos para substituir os nove Membros, cujo mandato expira no fim desse ano, serão eleitos outros vinte e sete Membros. O mandato de nove destes vinte e sete Membros suplementares assim eleitos expirará no fim de um ano e o de nove outros no fim de dois anos, de acordo com o que for determinado pela Assembléia Geral. 4. Cada Membro do Conselho Econômico e social terá nele um representante. FUNÇÕES E ATRIBUIÇÕES ARTIGO 62 - 1. O Conselho Econômico e Social fará ou iniciará estudose relatórios a respeito de assuntos internacionais de caráter econômico, social, cultural, educacional, sanitário e conexos e poderá fazer recomendações a respeito de tais assuntos à Assembléia Geral, aos Membros das Nações Unidas e às entidades especializadas interessadas. 2. Poderá, igualmente, fazer recomendações destinadas a promover o respeito e a observância dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos. 3. Poderá preparar projetos de convenções a serem submetidos à Assembléia Geral, sobre assuntos de sua competência. 4. Poderá convocar, de acordo com as regras estipuladas pelas Nações Unidas, conferências internacionais sobre assuntos de sua competência. ARTIGO 63 - 1. O conselho Econômico e Social poderá estabelecer acordos com qualquer das entidades a que se refere o Artigo 57, a fim de determinar as condições em que a entidade interessada será vinculada às Nações Unidas. Tais acordos serão submetidos à aprovação da Assembléia Geral. 2. Poderá coordenar as atividades das entidades especializadas, por meio de consultas e recomendações às mesmas e de recomendações à Assembléia Geral e aos Membros das Nações Unidas. ARTIGO 64 - 1. O Conselho Econômico e Social poderá tomar as medidasadequadas a fim de obter relatórios regulares das entidades especializadas. Poderá entrar em entendimentos com os Membros das Nações Unidas e com as entidades especializadas, a fim de obter relatórios sobre as medidas tomadas para cumprimento de suas próprias recomendações e das que forem feitas pelas Assembléia Geral sobre assuntos da competência do Conselho. 2. Poderá comunicar à Assembléia Geral suas observações a respeito desses relatórios. ARTIGO 65 - O Conselho Econômico e Social poderá fornecer informações ao Conselho de Segurança e, a pedido deste, prestar-lhe assistência. ARTIGO 66 - 1. O Conselho Econômico e Social desempenhará as funçõesque forem de sua competência em relação ao cumprimento das recomendações da Assembléia Geral. 2. Poderá mediante aprovação da Assembléia Geral, prestar os serviços que lhe forem solicitados pelos Membros das Nações unidas e pelas entidades especializadas. 3. Desempenhará as demais funções específicas em outras partes da presente Carta ou as que forem atribuídas pela Assembléia Geral. VOTAÇÃO ARTIGO 67 - 1. Cada Membro do Conselho Econômico e Social terá um voto. 2. As decisões do Conselho Econômico e Social serão tomadas por maioria dos membros presentes e votantes. PROCESSO ARTIGO 68 - O Conselho Econômico e Social criará comissões para os assuntos econômicos e sociais e a proteção dos direitos humanos assim como outras comissões que forem necessárias para o desempenho de suas funções. ARTIGO 69 - O Conselho Econômico e Social poderá convidar qualquer Membro das Nações Unidas a tomar parte, sem voto, em suas deliberações sobre qualquer assunto que interesse particularmente a esse Membro. ARTIGO 70 - O Conselho Econômico e Social poderá entrar em entendimentos para que representantes das entidades especializadas tomem parte, sem voto, em suas deliberações e nas das comissões por ele criadas, e para que os seus próprios representantes tomem parte nas deliberações das entidades especializadas. ARTIGO 71 - O Conselho Econômico e Social poderá entrar nos entendimentos convenientes para a consulta com organizações não governamentais, encarregadas de questões que estiverem dentro da sua própria competência. Tais entendimentos poderão ser feitos com organizações internacionais e, quando for o caso, com organizações nacionais, depois de efetuadas consultas com o Membro das Nações Unidas no caso. ARTIGO 72 - 1. O Conselho Econômico e Social adotará seu próprio regulamento, que incluirá o método de escolha de seu Presidente. 2. O Conselho Econômico e Social reunir-se-á quando for necessário, de acordo com o seu regulamento, o qual deverá incluir disposições referentes à convocação de reuniões a pedido da maioria dos Membros. CAPÍTULO XI DECLARAÇÃO RELATIVA A TERRITÓRIOS SEM GOVERNO PRÓPRIO ARTIGO 73 - Os Membros das Nações Unidas, que assumiram ou assumam responsabilidades pela administração de territórios cujos povos não tenham atingido a plena capacidade de se governarem a si mesmos, reconhecem o princípio de que os interesses dos habitantes desses territórios são da mais alta importância, e aceitam, como missão sagrada, a obrigação de promover no mais alto grau, dentro do sistema de paz e segurança internacionais estabelecido na presente Carta, o bem-estar dos habitantes desses territórios e, para tal fim, se obrigam a: a) assegurar, com o devido respeito à cultura dos povos interessados, o seu progresso político, econômico, social e educacional, o seu tratamento equitativo e a sua proteção contra todo abuso; b) desenvolver sua capacidade de governo próprio, tomar devida nota das aspirações políticas dos povos e auxiliá-los no desenvolvimento progressivo de suas instituições políticas livres, de acordo com as circunstâncias peculiares a cada território e seus habitantes e os diferentes graus de seu adiantamento; c)consolidar a paz e a segurança internacionais; d)promover medidas construtivas de desenvolvimento, estimular pesquisas, cooperar uns com os outros e, quando for o caso, com entidades internacionais especializadas, com vistas à realização prática dos propósitos de ordem social, econômica ou científica enumerados neste Artigo; e e)transmitir regularmente ao Secretário-Geral, para fins de informação, sujeitas às reservas impostas por considerações de segurança e de ordem constitucional, informações estatísticas ou de outro caráter técnico, relativas às condições econômicas, sociais e educacionais dos territórios pelos quais são respectivamente responsáveis e que não estejam compreendidos entre aqueles a que se referem os Capítulos XII e XIII da Carta. ARTIGO 74 - Os Membros das Nações Unidas concordam também em que a sua política com relação aos territórios a que se aplica o presente Capítulo deve ser baseada, do mesmo modo que a política seguida nos respectivos territórios metropolitanos, no princípio geral de boa vizinhança, tendo na devida conta os interesses e o bem-estar do resto do mundo no que se refere às questões sociais, econômicas e comerciais. CAPÍTULO XII SISTEMA INTERNACIONAL DE TUTELA ARTIGO 75 - As nações Unidas estabelecerão sob sua autoridade um sistema internacional de tutela para a administração e fiscalização dos territórios que possam ser colocados sob tal sistema em consequência de futuros acordos individuais. Esses territórios serão, daqui em diante, mencionados como territórios tutelados. ARTIGO 76 - Os objetivos básicos do sistema de tutela, de acordo com os Propósitos das Nações Unidas enumerados no Artigo 1 da presente Carta serão: a) favorecer a paz e a segurança internacionais; b) fomentar o progresso político, econômico, social e educacional dos habitantes dos territórios tutelados e o seu desenvolvimento progressivo para alcançar governo próprio ou independência, como mais convenha às circunstâncias particulares de cada território e de seus habitantes e aos desejos livremente expressos dos povos interessados e como for previsto nos termos de cada acordo de tutela; c) estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo língua ou religião e favorecer o reconhecimento da interdependência de todos os povos; e d) assegurar igualdade de tratamento nos domínios social, econômico e comercial para todos os Membros das nações Unidas e seus nacionais e, para estes últimos, igual tratamento na administração da justiça, sem prejuízo dos objetivos acima expostos e sob reserva das disposições do Artigo 80. ARTIGO 77 - 1. O sistema de tutela será aplicado aos territórios das categorias seguintes, que venham a ser colocados sob tal sistema por meio de acordos de tutela: a)territórios atualmente sob mandato; b)territórios que possam ser separados de Estados inimigos em conseqüência da Segunda Guerra Mundial; e c)territórios voluntariamente colocados sob tal sistema por Estados responsáveis pela sua administração. 2. Será objeto de acordo ulterior a determinação dos territórios das categorias acima mencionadas a serem colocados sob o sistema de tutela e das condições em que o serão. ARTIGO 78 - O sistema de tutela não será aplicado a territórios que se tenham tornado Membros das Nações Unidas, cujas relações mútuas deverão basear-se no respeito ao princípio da igualdade soberana. ARTIGO 79 - As condições de tutela em que cada território será colocado sob este sistema, bem como qualquer alteração ou emenda, serão determinadas por acordo entre os Estados diretamente interessados, inclusive a potência mandatária no caso de território sob mandato de um Membro das Nações Unidas e serão aprovadas de conformidade com as disposições dos Artigos 83 e 85. ARTIGO 80 - 1. Salvo o que for estabelecido em acordos individuais de tutela, feitos de conformidade com os Artigos 77, 79 e 81, pelos quais se coloque cada território sob este sistema e até que tais acordos tenham sido concluídos, nada neste Capítulo será interpretado como alteração de qualquer espécie nos direitos de qualquer Estado ou povo ou dos termos dos atos internacionais vigentes em que os Membros das Nações Unidas forem partes. 2. O parágrafo 1 deste Artigo não será interpretado como motivo para demora ou adiamento da negociação e conclusão de acordos destinados a colocar territórios dentro do sistema de tutela, conforme as disposições do Artigo 77. ARTIGO 81 - O acordo de tutela deverá, em cada caso, incluir as condições sob as quais o território tutelado será administrado e designar a autoridade que exercerá essa administração. Tal autoridade, daqui por diante chamada a autoridade administradora, poderá ser um ou mais Estados ou a própria Organização. ARTIGO 82 - Poderão designar-se, em qualquer acordo de tutela, uma ou várias zonas estratégicas, que compreendam parte ou a totalidade do território tutelado a que o mesmo se aplique, sem prejuízo de qualquer acordo ou acordos especiais feitos de conformidade com o Artigo 43. ARTIGO 83 - 1. Todas as funções atribuídas às Nações Unidas relativamente às zonas estratégicas, inclusive a aprovação das condições dos acordos de tutela, assim como de sua alteração ou emendas, serão exercidas pelo Conselho de Segurança. 2. Os objetivos básicos enumerados no Artigo 76 serão aplicáveis aos habitantes de cada zona estratégica. 3. O Conselho de Segurança, ressalvadas as disposições dos acordos de tutela e sem prejuízo das exigências de segurança, poderá valer-se da assistência do Conselho de Tutela para desempenhar as funções que cabem às Nações Unidas pelo sistema de tutela, relativamente a matérias políticas, econômicas, sociais ou educacionais dentro das zonas estratégicas. ARTIGO 84 - A autoridade administradora terá o dever de assegurar que o território tutelado preste sua colaboração à manutenção da paz e da segurança internacionais. para tal fim, a autoridade administradora poderá fazer uso de forças voluntárias, de facilidades e da ajuda do território tutelado para o desempenho das obrigações por ele assumidas a este respeito perante o Conselho de Segurança, assim como para a defesa local e para a manutenção da lei e da ordem dentro do território tutelado. ARTIGO 85 - 1. As funções das Nações Unidas relativas a acordos de tutela para todas as zonas não designadas como estratégias, inclusive a aprovação das condições dos acordos de tutela e de sua alteração ou emenda , serão exercidas pela Assembléia Geral. 2. O Conselho de Tutela, que funcionará sob a autoridade da Assembléia Geral, auxiliará esta no desempenho dessas atribuições. CAPÍTULO XIII CONSELHO DE TUTELA COMPOSIÇÃO ARTIGO 86 - 1. O Conselho de Tutela será composto dos seguintes Membros das Nações Unidas: a) os Membros que administrem territórios tutelados; b) aqueles dentre os Membros mencionados nominalmente no Artigo 23, que não estiverem administrando territórios tutelados; e c) quantos outros Membros eleitos por um período de três anos, pela Assembléia Geral, sejam necessários para assegurar que o número total de Membros do Conselho de Tutela fique igualmente dividido entre os Membros das Nações Unidas que administrem territórios tutelados e aqueles que o não fazem. 2. Cada Membro do Conselho de Tutela designará uma pessoa especialmente qualificada para representá-lo perante o Conselho. FUNÇÕES E ATRIBUIÇÕES ARTIGO 87 - A Assembléia Geral e, sob a sua autoridade, o Conselho de Tutela, no desempenho de suas funções, poderão: a) examinar os relatórios que lhes tenham sido submetidos pela autoridade administradora; b) Aceitar petições e examiná-las, em consulta com a autoridade administradora; c) providenciar sobre visitas periódicas aos territórios tutelados em épocas ficadas de acordo com a autoridade administradora; e d) tomar estas e outras medidas de conformidade com os termos dos acordos de tutela. ARTIGO 88 - O Conselho de Tutela formulará um questionário sobre o adiantamento político, econômico, social e educacional dos habitantes de cada território tutelado e a autoridade administradora de cada um destes territórios, dentro da competência da Assembléia Geral, fará um relatório anual à Assembléia, baseado no referido questionário. VOTAÇÃO ARTIGO 89 - 1. Cada Membro do Conselho de Tutela terá um voto. 2. As decisões do Conselho de Tutela serão tomadas poruma maioria dos membros presentes e votantes. PROCESSO ARTIGO 90 - 1. O Conselho de Tutela adotará seu próprio regulamento que incluirá o método de escolha de seu Presidente. 2. O Conselho de Tutela reunir-se-á quando for necessário, de acordo com o seu regulamento, que incluirá uma disposição referente à convocação de reuniões a pedido da maioria dos seus membros. ARTIGO 91 - O Conselho de Tutela valer-se-á, quando for necessário,da colaboração do Conselho Econômico e Social e das entidades especializadas, a respeito das matérias em que estas e aquele sejam respectivamente interessados. CAPÍTULO XIV CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA ARTIGO 92 - A Corte Internacional de Justiça será o principal órgão judiciário das Nações Unidas. Funcionará de acordo com o Estatuto anexo, que é baseado no Estatuto da Corte Permanente de Justiça Internacional e faz parte integrante da presente Carta. ARTIGO 93 - 1. Todos os Membros das Nações Unidas são ipso facto partes do Estatuto da Corte Internacional de Justiça.2. Um Estado que não for Membro das Nações Unidas poderá tornar-se parte no Estatuto da Corte Internacional de Justiça, em condições que serão determinadas, em cada caso, pela Assembléia Geral, mediante recomendação do Conselho de Segurança. ARTIGO 94 - 1. Cada Membro das Nações Unidas se compromete a conformarse com a decisão da Corte Internacional de Justiça em qualquer caso em que for parte. 2. Se uma das partes num caso deixar de cumprir as obrigações que lhe incumbem em virtude de sentença proferida pela Corte, a outra terá direito de recorrer ao Conselho de Segurança que poderá, se julgar necessário, fazer recomendações ou decidir sobre medidas a serem tomadas para o cumprimento da sentença. ARTIGO 95 - Nada na presente Carta impedirá os Membros das Nações Unidas de confiarem a solução de suas divergências a outros tribunais, em virtude de acordos já vigentes ou que possam ser concluídos no futuro. ARTIGO 96 - 1. A Assembléia Geral ou o Conselho de Segurança poderá solicitar parecer consultivo da Corte Internacional de Justiça, sobre qualquer questão de ordem jurídica. 2. Outros órgãos das Nações Unidas e entidades especializadas, que forem em qualquer época devidamente autorizados pela Assembléia Geral, poderão também solicitar pareceres consultivos da Corte sobre questões jurídicas surgidas dentro da esfera de suas atividades. CAPÍTULO XV O SECRETARIADO ARTIGO 97 - O Secretariado será composto de um Secretário-Geral e do pessoal exigido pela Organização. o Secretário-Geral será indicado pela Assembléia Geral mediante a recomendação do Conselho de Segurança. Será o principal funcionário administrativo da Organização. ARTIGO 98 - O Secretário-Geral atuará neste caráter em todas as reuniões da Assembléia Geral, do Conselho de Segurança, do Conselho Econômico e Social e do Conselho de Tutela e desempenhará outras funções que lhe forem atribuídas por estes órgãos. O Secretário-Geral fará um relatório anual à Assembléia Geral sobre os trabalhos da Organização. ARTIGO 99 - O Secretário-Geral poderá chamar a atenção do Conselho de Segurança para qualquer assunto que em sua opinião possa ameaçar a manutenção da paz e da segurança internacionais. ARTIGO 100 - 1. No desempenho de seus deveres, o Secretário-Geral e o pessoal do Secretariado não solicitarão nem receberão instruções de qualquer governo ou de qualquer autoridade estranha à organização. Abster-se-ão de qualquer ação que seja incompatível com a sua posição de funcionários internacionais responsáveis somente perante a Organização. 2. Cada Membro das Nações Unidas se compromete a respeitar o caráter exclusivamente internacional das atribuições do Secretário-Geral e do pessoal do Secretariado e não procurará exercer qualquer influência sobre eles, no desempenho de suas funções. ARTIGO 101 - 1. O pessoal do Secretariado será nomeado pelo Secretário Geral, de acordo com regras estabelecidas pela Assembléia Geral. 2. Será também nomeado, em caráter permanente, o pessoal adequado para o Conselho Econômico e Social, o conselho de Tutela e, quando for necessário, para outros órgãos das Nações Unidas. Esses funcionários farão parte do Secretariado. 3. A consideração principal que prevalecerá na escolha do pessoal e na determinação das condições de serviço será a da necessidade de assegurar o mais alto grau de eficiência, competência e integridade. Deverá ser levada na devida conta a importância de ser a escolha do pessoal feita dentro do mais amplo critério geográfico possível. CAPÍTULO XVI DISPOSIÇÕES DIVERSAS ARTIGO 102 - 1. Todo tratado e todo acordo internacional, concluídos por qualquer Membro das Nações Unidas depois da entrada em vigor da presente Carta, deverão, dentro do mais breve prazo possível, ser registrados e publicados pelo Secretariado. 2. Nenhuma parte em qualquer tratado ou acordo internacional que não tenha sido registrado de conformidade com as disposições do parágrafo 1 deste Artigo poderá invocar tal tratado ou acordo perante qualquer órgão das Nações Unidas. ARTIGO 103 - No caso de conflito entre as obrigações dos Membros das Nações Unidas, em virtude da presente Carta e as obrigações resultantes de qualquer outro acordo internacional, prevalecerão as obrigações assumidas em virtude da presente Carta. ARTIGO 104 - A Organização gozará, no território de cada um de seus Membros, da capacidade jurídica necessária ao exercício de suas funções e à realização de seus propósitos. ARTIGO 105 - 1. A Organização gozará, no território de cada um de seus Membros, dos privilégios e imunidades necessários à realização de seus propósitos. 2. Os representantes dos Membros das Nações Unidas e os funcionários da Organização gozarão, igualmente, dos privilégios e imunidades necessários ao exercício independente de sus funções relacionadas com a Organização. 3. A Assembléia Geral poderá fazer recomendações com o fim de determinar os pormenores da aplicação dos parágrafos 1 e 2 deste Artigo ou poderá propor aos Membros das Nações Unidas convenções nesse sentido. CAPÍTULO XVII DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS SOBRE SEGURANÇA ARTIGO 106 - Antes da entrada em vigor dos acordos especiais a que se refere o Artigo 43, que, a juízo do Conselho de Segurança, o habilitem ao exercício de suas funções previstas no Artigo 42, as partes na Declaração das Quatro Nações, assinada em Moscou, a 30 de outubro de 1943, e a França, deverão, de acordo com as disposições do parágrafo 5 daquela Declaração, consultar-se entre si e, sempre que a ocasião o exija, com outros Membros das Nações Unidas a fim de ser levada a efeito, em nome da Organização, qualquer ação conjunta que se torne necessária à manutenção da paz e da segurança internacionais. ARTIGO 107 - Nada na presente Carta invalidará ou impedirá qualquer ação que, em relação a um Estado inimigo de qualquer dos signatários da presente Carta durante a Segunda Guerra Mundial, for levada a efeito ou autorizada em consequência da dita guerra, pelos governos responsáveis por tal ação. CAPÍTULO XVIII EMENDAS ARTIGO 108 - As emendas à presente Carta entrarão em vigor para todos os Membros das Nações Unidas, quando forem adotadas pelos votos de dois terços dos membros da Assembléia Geral e ratificada de acordo com os seus respectivos métodos constitucionais por dois terços dos Membros das Nações Unidas, inclusive todos os membros permanentes do Conselho de Segurança. ARTIGO 109 - 1. Uma Conferência Geral dos Membros das Nações Unidas, destinada a rever a presente Carta, poderá reunir-se em data e lugar a serem fixados pelo voto de dois terços dos membros da Assembléia Geral e de nove membros quaisquer do Conselho de Segurança. Cada Membro das Nações Unidas terá voto nessa Conferência. 2. Qualquer modificação à presente Carta, que for recomendada por dois terços dos votos da Conferência, terá efeito depois de ratificada, de acordo com os respectivos métodos constitucionais, por dois terços dos Membros das Nações Unidas, inclusive todos os membros permanentes do Conselho de Segurança. 3. Se essa Conferência não for celebrada antes da décima sessão anual da Assembléia Geral que se seguir à entrada em vigor da presente Carta, a proposta de sua convocação deverá figurar na agenda da referida sessão da Assembléia Geral, e a Conferência será realizada, se assim for decidido por maioria de votos dos membros da Assembléia Geral, e pelo voto de sete membros quaisquer do Conselho de Segurança. CAPÍTULO XIX RATIFICAÇÃO E ASSINATURA ARTIGO 110 - 1. A presente Carta deverá ser ratificada pelos Estados signatários, de acordo com os respectivos métodos constitucionais. 2. As ratificações serão depositadas junto ao Governo dos Estados Unidos da América, que notificará de cada depósito todos os Estados signatários, assim como o Secretário-Geral da Organização depois que este for escolhido. 3. A presente Carta entrará em vigor depois do depósito de ratificações pela República da China, França, união das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Reino Unido da Grã Bretanha e Irlanda do Norte e Estados Unidos da América e ela maioria dos outros Estados signatários. O Governo dos Estados Unidos da América organizará, em seguida, um protocolo das ratificações depositadas, o qual será comunicado, por meio de cópias, aos Estados signatários. 4. Os Estados signatários da presente Carta, que a ratificarem depois de sua entrada em vigor tornar-se-ão membros fundadores das Nações Unidas, na data do depósito de suas respectivas ratificações. ARTIGO 111 - A presente Carta, cujos textos em chinês, francês, russo, inglês, e espanhol fazem igualmente fé, ficará depositada nos arquivos do Governo dos Estados Unidos da América. Cópias da mesma, devidamente autenticadas, serão transmitidas por este último Governo aos dos outros Estados signatários. EM FÉ DO QUE, os representantes dos Governos das Nações Unidas assinaram a presente Carta. FEITA na cidade de São Francisco, aos vinte e seis dias do mês de junho de mil novecentos e quarenta e cinco. ANEXO II Declaração Universal dos Direitos Humanos Preâmbulo Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo; Considerando que o desconhecimento e o desprezo dos direitos do Homen conduziram a actos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração do Homem; Considerando que é essencial a proteção dos direitos do Homem através de um regime de direito, para que o Homem não seja compelido, em supremo recurso, à revolta contra a tirania e a opressão; Considerando que é essencial encorajar o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações; Considerando que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se declaram resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla; Considerando que os Estados membros se comprometeram a promover, em cooperação com a Organização das Nações Unidas, o respeito universal e efectivo dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais; Considerando que uma concepção comum destes direitos e liberdades é da mais alta importância para dar plena satisfação a tal compromisso: A Assembléia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, a fim de que todos os indivíduos e todos os orgãos da sociedade, tendo-a constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por promover, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação universais e efectivos tanto entre as populações dos próprios Estados membros como entre as dos territórios colocados sob a sua jurisdição. Artigo 1° Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. Artigo 2° Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma limitação de soberania. Artigo 3° Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Artigo 4° Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos. Artigo 5° Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Artigo 6° Todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento, em todos os lugares, da sua personalidade jurídica. Artigo 7° Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual protecção da lei. Todos têm direito a protecção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. Artigo 8° Toda a pessoa direito a recurso efectivo para as jurisdições nacionais competentes contra os actos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei. Artigo 9° Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado. Artigo 10° Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida. Artigo 11° 1. Toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas. 2. Ninguém será condenado por acções ou omissões que, no momento da sua prática, não constituíam acto delituoso à face do direito interno ou internacional. Do mesmo modo, não será infligida pena mais grave do que a que era aplicável no momento em que o acto delituoso foi cometido. Artigo 12° Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei. Artigo 13° 1. Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior de um Estado. 2. Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país. Artigo 14° 1. Toda a pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar e de beneficiar de asilo em outros países. 2. Este direito não pode, porém, ser invocado no caso de processo realmente existente por crime de direito comum ou por actividades contrárias aos fins e aos princípios das Nações Unidas. Artigo 15° 1. Todo o indivíduo tem direito a ter uma nacionalidade. 2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade. Artigo 16° 1. A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou religião. Durante o casamento e na altura da sua dissolução, ambos têm direitos iguais. 2. O casamento não pode ser celebrado sem o livre e pleno consentimento dos futuros esposos. 3. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção desta e do Estado. Artigo 17° 1. Toda a pessoa, individual ou colectiva, tem direito à propriedade. 2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade. Artigo 18° Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos. Artigo 19° Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e idéias por qualquer meio de expressão. Artigo 20° 1. Toda a pessoa tem direito à liberdade de reunião e de associação pacíficas. 2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação. Artigo 21° 1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direcção dos negócios, públicos do seu país, quer directamente, quer por intermédio de representantes livremente escolhidos. 2. Toda a pessoa tem direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do seu país. 3. A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos: e deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto. Artigo 22° Toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social; e pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis, graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de harmonia com a organização e os recursos de cada país. Artigo 23° 1. Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o desemprego. 2. Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual. 3. Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de protecção social. 4. Toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se filiar em sindicatos para defesa dos seus interesses. Artigo 24° Toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres, especialmente, a uma limitação razoável da duração do trabalho e as férias periódicas pagas. Artigo 25° 1. Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade. 2. A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozam da mesma protecção social. Artigo 26° 1. Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional dever ser generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar aberto a todos em plena igualdade, em função do seu mérito. 2. A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das actividades das Nações Unidas para a manutenção da paz. 3. Aos pais pertence a prioridade do direito de escholher o género de educação a dar aos filhos. Artigo 27° 1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam. 2. Todos têm direito à protecção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria. Artigo 28° Toda a pessoa tem direito a que reine, no plano social e no plano internacional, uma ordem capaz de tornar plenamente efectivos os direitos e as liberdades enunciadas na presente Declaração. Artigo 29° 1. O indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade. 2. No exercício deste direito e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática. 3. Em caso algum estes direitos e liberdades poderão ser exercidos contrariamente e aos fins e aos princípios das Nações Unidas. Artigo 30° Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada de maneira a envolver para qualquer Estado, agrupamento ou indivíduo o direito de se entregar a alguma actividade ou de praticar algum acto destinado a destruir os direitos e liberdades aqui enunciados. ANEXO III PACTO INTERNACIONAL DOS DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS Preâmbulo Os estados-partes no presente Pacto, Considerando que, em conformidade com os princípios proclamados na Carta das Nações Unidas, o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, Reconhecendo que esses direitos decorrem da dignidade inerente à pessoa humana, Reconhecendo que, em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o ideal do ser humano livre, no gozo das liberdades civis e políticas e liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado, a menos que se criem as condições que permitam a cada um gozar de seus direitos civis e políticos, assim como de seus direitos econômicos, sociais e culturais, Considerando que a Carta das Nações Unidas impõe aos estados a obrigação de promover o respeito universal e efetivo dos direitos e das liberdades da pessoa humana, Compreendendo que o indivíduo, por ter deveres para com seus semelhantes e para com a coletividade a que pertence, tem a obrigação de lutar pela promoção e observância dos direitos reconhecidos no presente Pacto, acordam o seguinte: PARTE I Art. 1o -1.Todos os povos têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural. 2. Para a consecução de seus objetivos, todos os povos podem dispor livremente de suas riquezas e de seus recursos naturais, sem prejuízo das obrigações decorrentes da cooperação econômica internacional, baseada no princípio do proveito mútuo e do Direito Internacional. Em caso algum poderá um povo ser privado de seus próprios meios de subsistência. 3. Os estados-partes no presente Pacto, inclusive aqueles que tenham a responsabilidade de administrar territórios não autônomos e territórios sob tutela, deverão promover o exercício do direito à auto-determinação e respeitar esse direito, em conformidade com as disposições da Carta das Nações Unidas. PARTE II Art. 2o - 1.Os estados-partes no presente Pacto comprometem-se a garantir a todos os indivíduos que se encontrem em seu território e que estejam sujeitos à sua jurisdição os direitos reconhecidos no atual Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação. 2. Na ausência de medidas legislativas ou de outra natureza destinadas a tornar efetivos os direitos reconhecidos no presente Pacto, os estados-partes comprometem-se a tomar as providências neces- sárias, com vistas a adotá-las, levando em consideração seus respectivos procedimentos constitucionais e as disposições do presente Pacto. 3. Os estados-partes comprometem-se a: a) garantir que toda pessoa, cujos direitos e liberdades reconhecidos no presente Pacto hajam sido violados, possa dispor de um recurso efetivo, mesmo que a violência tenha sido perpetrada por pessoas que agiam no exercício de funções oficiais; b) garantir que toda pessoa que interpuser tal recurso terá seu direito determinado pela competente autoridade judicial, administrativa ou legislativa ou por qualquer outra autoridade competente prevista no ordenamento jurídico do Estado em questão e a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; c) garantir o cumprimento, pelas autoridades competentes, de qualquer decisão que julgar procedente tal recurso. Art. 3o - Os estados-partes no presente Pacto comprometem-se a assegurar a homens e mulheres igualdade no gozo de todos os direitos civis e políticos enunciados no presente Pacto. Art. 4o - 1. Quando situações excepcionais ameacem a existência da nação e sejam proclamadas oficialmente, os estados-partes no presente Pacto podem adotar, na estrita medida em que a situação o exigir, medidas que derroguem as obrigações decorrentes desse Pacto, desde que tais medidas não sejam incompatíveis com as demais obrigações que lhes sejam impostas pelo Direito internacional e não acarretem discriminação alguma apenas por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião ou origem social. 2. A disposição precedente não autoriza qualquer derrogação dos arts. 6o, 7o, 8o (§§ 1o e 2o), 11, 15, 16 e 18. 3. Os estados-partes no presente Pacto que fizerem uso do direito de derrogação devem comunicar imediatamente aos outros estados-partes no presente Pacto, por intermédio do Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, as disposições que tenham derrogado, bem como os motivos de tal derrogação. Os estados-partes deverão fazer uma nova comunicação, igualmente por intermédio do Secretário-Geral das Nações Unidas, na data em que terminar tal suspensão. 1. Nenhuma disposição do presente Pacto poderá ser interpretada no sentido de reconhecer a um estado, grupo ou indivíduo qualquer direito de dedicar-se a quaisquer atividades ou de praticar quaisquer atos que tenham por objetivo destruir os direitos ou liberdades reconhecidos no presente Pacto ou impor-lhes limitações mais amplas do que aquelas nele previstas. 2. Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer estado-parte no presente Pacto em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau. PARTE III 1. O direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido pela lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida. 2. Nos países em que a pena de morte não tenha sido abolida, esta poderá ser imposta apenas nos casos de crimes mais graves, em conformidade com a legislação vigente na época em que o crime foi cometido e que não esteja em conflito com as disposições do presente Pacto, nem com a Convenção sobre a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. Poder-se-á aplicar essa pena apenas em decorrência de uma sentença transitada em julgado e proferida por tribunal competente. 3. Quando a privação da vida constituir crime de genocídio, entende-se que nenhuma disposição desse artigo autorizará qualquer estado-parte no presente Pacto a eximir-se, de modo algum, do cumprimento de qualquer das obrigações que tenha assumido, em virtude das disposições da Convenção sobre a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. 4. Qualquer condenado à morte terá o direito de pedir indulto ou comutação da pena. A anistia, o indulto ou a comutação da pena poderão ser concedidos em todos os casos. 5. Uma pena de morte não poderá ser imposta em casos de crimes cometidos por pessoas menores de 18 anos, nem aplicada a mulheres em caso de gravidez. 6. Não se poderá invocar disposição alguma do artigo para retardar ou impedir a abolição da pena de morte por um estado-parte no presente Pacto. Art. 7o - Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou de-gradantes. Será proibido, sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médicas ou científicas. Art. 8o - 1. Ninguém poderá ser submetido à escravidão; a escravidão e o tráfico de escravos, em todas as suas formas, ficam proibidos. 2. Ninguém poderá ser submetido à servidão. 3. a) ninguém poderá ser obrigado a executar trabalhos forçados ou obrigatórios; b) a alínea "a" do presente parágrafo não poderá ser interpretada no sentido de proibir, nos países em que certos crimes sejam punidos com prisão e trabalho forçados, o cumprimento de uma pena de trabalhos forçados, imposta por um tribunal competente; c) para os efeitos do presente parágrafo, não serão considerados trabalhos forçados ou obrigatórios: qualquer trabalho ou serviço, não previsto na alínea "b", normalmente exigido de um indivíduo que tenha sido encarcerado em cumprimento de decisão judicial ou que, tendo sido objeto de tal decisão, ache-se em liberdade condicional; qualquer serviço de caráter militar e, nos países em que se admite a isenção por motivo de consciência, qualquer serviço nacional que a lei venha a exigir daqueles que se oponham ao serviço militar por motivo de consciência; qualquer serviço exigido em casos de emergência ou de calamidade que ameacem o bem-estar da comunidade; qualquer trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas normais. Art. 9o - 1.Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais. Ninguém poderá ser preso ou encarcerado arbitrariamente. Ninguém poderá ser privado de sua liberdade, salvo pelos motivos previstos em lei e em conformidade com os procedimentos nela estabelecidos. 2. Qualquer pessoa, ao ser presa, deverá ser informada das razões da prisão e notificada, sem demora, das acusações formuladas contra ela. 3. Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência e a todos os atos do processo, se necessário for, para a execução da sentença. 4. Qualquer pessoa que seja privada de sua liberdade, por prisão ou encarceramento, terá o direito de recorrer a um tribunal para que este decida sobre a legalidade de seu encarceramento e ordene a soltura, caso a prisão tenha sido ilegal. 5. Qualquer pessoa vítima de prisão ou encarceramento ilegal terá direito à reparação. Art. 10 - 1. Toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana. 2. a) As pessoas processadas deverão ser separadas, salvo em circunstâncias excepcionais, das pessoas condenadas e receber tratamento distinto, condizente com sua condição de pessoas não condenadas. b) As pessoas jovens processadas deverão ser separadas das adultas e julgadas o mais rápido possível. 3. O regime penitenciário consistirá em um tratamento cujo objetivo principal seja a reforma e reabilitação moral dos prisioneiros. Os delinqüentes juvenis deverão ser separados dos adultos e receber tratamento condizente com sua idade e condição jurídica. Art. 11 - Ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual. Art. 12 - 1. Toda pessoa que se encontre legalmente no território de um estado terá o direito de nele livremente circular e escolher sua residência. 2. Toda pessoa terá o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive de seu próprio país. 3. Os direitos supracitados não poderão constituir objeto de restrições, a menos que estejam previstas em lei e no intuito de proteger a segurança nacional e a ordem, saúde ou moral públicas, bem como os direitos e liberdades das demais pessoas, e que sejam compatíveis com os outros direitos reconhecidos no presente Pacto. 4. Ninguém poderá ser privado arbitrariamente do direito de entrar em seu próprio país. Art. 13 - Um estrangeiro que se encontre legalmente no território de um estado-parte no presente Pacto só po-derá dele ser expulso em decorrência de decisão adotada em conformidade com a lei e, a menos que razões imperativas de segurança nacional a isso se oponham, terá a possibilidade de expor as razões que militem contra a sua expulsão e de ter seu caso reexaminado pelas autoridades competentes ou por uma ou várias pessoas especialmente designadas pelas referidas autoridades, e de fazer-se representar com este objetivo. Art. 14 - 1. Todas as pessoas são iguais perante os Tribunais e as Cortes de Justiça. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com as devidas garantias por um Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil. A imprensa e o público poderão ser excluídos de parte ou da totalidade de um julgamento, quer por motivo de moral pública, ordem pública ou de segurança nacional em uma sociedade democrática, quer quando o interesse da vida privada das partes o exija, quer na medida em que isto seja estritamente necessário na opinião da justiça, em circunstâncias específicas, nas quais a publicidade venha a prejudicar os interesses da justiça; entretanto, qualquer sentença proferida em matéria penal ou civil deverá tomar- se pública, a menos que o interesse de menores exija procedimento oposto ou o processo diga respeito a controvérsias matrimoniais ou à tutela de menores. 2. Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. 3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: a) a ser informada, sem demora, em uma língua que compreenda e de forma minuciosa, da natureza e dos motivos da acusação contra ela formulada; b) a dispor do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa e a comunicar-se com defensor de sua escolha; c) a ser julgada sem dilações indevidas; d) a estar presente no julgamento e a defender-se pessoalmente ou por intermédio de defensor de sua escolha; a ser informada, caso não tenha defensor, do direito que lhe assiste de tê-lo, e sempre que o interesse da justiça assim exija, a ter um defensor designado ex officio gratuitamente, se não tiver meios para remunerá-lo; e) a interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e a obter comparecimento e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições de que dispõem as de acusação; f) a ser assistida gratuitamente por um intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua empregada durante o julgamento; g) a não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada. 4. O processo aplicável aos jovens que não sejam maiores nos termos da legislação penal levará em conta a idade dos mesmos e a importância de promover sua reintegração social. 5. Toda pessoa declarada culpada por um delito terá o direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei. 6. Se uma sentença a condenatória passada em julgado for posteriormente anulada ou quando um indulto for concedido, pela ocorrência ou descoberta de fatos novos que provem cabalmente a existência de erro judicial, a pessoa que sofreu a pena decorrente dessa condenação deverá ser indenizada, de acordo com a lei, a menos que fique provado que se lhe pode imputar, total ou parcialmente, a não-revelação do fato desconhecido em tempo útil. 7. Ninguém poderá ser processado ou punido por um delito pelo qual já foi absolvido ou condenado por sentença passada em julgado, em conformidade com a lei e com os procedimentos penais de cada país. Art. 15 - 1. Ninguém poderá ser condenado por atos ou omissões que não constituam delito de acordo com o direito nacional ou internacional, no momento em que foram cometidos. Tampouco poder-se-á impor pena mais grave do que a aplicável no momento da ocorrência do delito. Se, depois de perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o delinqüente deverá dela beneficiar-se. 2. Nenhuma disposição do presente Pacto impedirá o julgamento ou a condenação de qualquer indivíduo por atos ou omissões que, no momento em que foram cometidos, eram considerados delituosos de acordo com os princípios gerais de direito reconhecidos pela comunidade das nações. Art. 16 - Toda pessoa terá o direito, em qualquer lugar, ao reconhecimento de sua personalidade jurídica. Art. 17 - 1. Ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra e reputação. 2. Toda pessoa terá direito à proteção da lei contra essas ingerências ou ofensas. Art. 18 - 1. Toda pessoa terá direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino. 2. Ninguém poderá ser submetido a medidas coercitivas que possam restringir sua liberdade de ter ou de adotar uma religião ou crença de sua escolha. 3. A liberdade de manifestar a própria religião ou crença estará sujeita apenas às limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas. 4. Os estados-partes no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais - e, quando for o caso, dos tutores legais - de assegurar aos filhos a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. Art. 19 - 1. Ninguém poderá ser molestado por suas opiniões. 2. Toda pessoa terá o direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, de forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha. 3. O exercício de direito previsto no § 2o do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Consequentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para: a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas. Art. 20 - 1. Será proibida por lei qualquer propaganda em favor da guerra. 2. Será proibida por lei qualquer apologia ao ódio nacional, racial ou religioso, que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou à violência. Art. 21 - O direito de reunião pacífica será reconhecido. O exercício desse direito estará sujeito apenas às res-trições previstas em lei e que se façam necessárias, em uma sociedade democrática, ao interesse da segurança nacional, da segurança ou ordem públicas, ou para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas. Art. 22 - 1. Toda pessoa terá o direito de associar-se livremente a outras, inclusive o direito de constituir sindicatos e de a eles filiar-se, para proteção de seus interesses. 2. O exercício desse direito estará sujeito apenas às restrições previstas em lei e que se façam necessárias, em uma sociedade democrática, ao interesse da segurança nacional, da segurança e da ordem públicas, ou para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas. O presente artigo não impedirá que se submeta a restrições legais o exercício desses direitos por membros das forças armadas e da polícia. 3. Nenhuma das disposições do presente artigo permitirá que os estados-partes, na Convenção de 1948, da Organização Internacional do Trabalho, relativa à liberdade sindical e à proteção do direito sindical, venham a adotar medidas legislativas que restrinjam - ou a aplicar a lei de maneira a restringir - as garantias previstas na referida Convenção. Art. 23 - 1. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e terá o direito de ser protegida pela sociedade e pelo estado. 2. Será reconhecido o direito do homem e da mulher de, em idade núbil, contrair casamento e constituir família. 3. Casamento algum será celebrado sem o consentimento livre e pleno dos futuros esposos. 4. Os estados-partes no presente Pacto deverão adotar as medidas apropriadas para assegurar a igualdade de direitos e responsabilidades dos esposos quanto ao casamento, durante o mesmo e por ocasião de sua dissolução. Em caso de dissolução, deverão adotar-se as disposições que assegurem a proteção necessária para os filhos. Art. 24 - 1. Toda criança terá direito, sem discriminação alguma por motivo de cor, sexo, língua, religião, origem nacional ou social, situação econômica ou nascimento, às medidas de proteção que a sua condição de menor requer por parte de sua família, da sociedade e do Estado. 2. Toda criança deverá ser registrada imediatamente após seu nascimento e deverá receber um nome. 3. Toda criança terá o direito de adquirir uma nacionalidade. Art. 25 - Todo cidadão terá o direito e a possibilidade, sem qualquer das formas de discriminação mencionadas no art. 2o e sem restrições infundadas: a) de participar da condução dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente escolhidos; b) de votar e ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a manifestação da vontade dos eleitores; c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país. Art. 26 - Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da lei. A este respeito, a lei deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação. Art. 27 - Nos estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua. PARTE IV Art. 28 - 1. Constituir-se-á um Comitê de Direitos Humanos (doravante: denominado "Comitê" no presente Pacto). O Comitê será composto de dezoito membros e desempenhará as funções descritas adiante. 2. O Comitê será integrado por nacionais dos estados-partes no presente Pacto, os quais deverão ser pessoas de elevada reputação moral e reconhecida competência em matéria de direitos humanos, levando-se em consideração a utilidade da participação de algumas pessoas com experiência jurídica. 3. Os membros do Comitê serão eleitos e exercerão suas funções a título pessoal. Art. 29 - 1. Os membros do Comitê serão eleitos em votação secreta dentre uma lista de pessoas que preencham os requisitos previstos no art. 28 e indicadas, com esse objetivo, pelos estados-partes no presente Pacto. 2. Cada estado-parte no presente Pacto poderá indicar duas pessoas. Essas pessoas deverão ser nacionais do estado que as indicou. 3. A mesma pessoa poderá ser indicada mais de uma vez. Art. 30 -1. A primeira eleição realizar-se-á no máximo seis meses após a data da entrada em vigor do presente Pacto. 2. Ao menos quatro meses antes da data de cada eleição do Comitê, e desde que não seja uma eleição para preencher uma vaga declarada nos termos do Art. 34, o Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas convidará, por escrito, os Estados-partes no presente Pacto a indicar, no prazo de três meses, os candidatos a membro do Comitê. 3. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas organizará uma lista por ordem alfabética de todos os candidatos assim designados, mencionando os estados-partes que os tiverem indicado e a comunicará aos estados-partes no presente Pacto, no máximo um mês antes da data de cada eleição. 4. Os membros do Comitê serão eleitos em reuniões dos estados-partes convocadas pelo SecretárioGeral da Organização das Nações Unidas na sede da Organização. Nessas reuniões, em que o quorum será estabelecido por dois terços dos estados-partes no presente Pacto serão eleitos membros do Comitê os candidatos que obtiverem o maior número de votos e a maioria absoluta dos votos dos representantes dos estados-partes presentes e votantes. Art. 31 - 1. O Comitê não poderá ter mais de um nacional de um mesmo estado. 2. Nas eleições do Comitê, levar-se-ão em consideração uma distribuição geográfica eqüitativa e uma representação das diversas formas da civilização, bem como dos principais sistemas jurídicos. Art. 32 - 1. Os membros do Comitê serão eleitos para um mandato de quatro anos. Poderão, caso suas candidaturas sejam apresentadas novamente, ser reeleitos. Entretanto, o mandato de nove dos membros eleitos na primeira eleição expirará ao final de dois anos; imediatamente após a primeira eleição, o presidente da reunião a que se refere o § 4o do art. 30 indicará, por sorteio, os nomes desses nove membros. 2. Ao expirar o mandato dos membros, as eleições se realizarão de acordo com o disposto nos artigos precedentes desta parte do presente Pacto. Art. 33 - 1. Se, na opinião dos demais membros, um membro do Comitê deixar de desempenhar suas funções por motivos distintos de uma ausência temporária, o Presidente comunicará tal fato ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, que declarará vago o lugar, desde a data da morte ou daquela em que a renúncia passe a produzir efeitos. Art. 34 - 1. Quando um cargo for declarado vago nos termos do art. 33 e o mandato do membro a ser substituído não expirar no prazo de seis meses a contar da data em que tenha sido declarada a vaga, o Secretário-Geral das Nações Unidas comunicará tal fato aos estados-partes no presente Pacto, que poderão, no prazo de dois meses, indicar candidatos, em conformidade com o art. 29, para preencher a vaga. 2. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas organizará uma lista por ordem alfabética dos candidatos assim designados e a comunicará aos estados-partes no presente Pacto. A eleição destinada a preencher tal vaga será realizada nos termos das disposições pertinentes desta parte do presente Pacto. 3. Qualquer membro do Comitê eleito para preencher a vaga em conformidade com o art. 33 fará parte do Comitê durante o restante do mandato do membro que deixar vago o lugar do Comitê, nos termos do referido artigo. Art. 35 - Os membros do Comitê receberão, com a aprovação da Assembléia Geral das Nações Unidas, honorários provenientes de recursos da Organização das Nações Unidas, nas condições fixadas, considerando-se a importância das funções do Comitê, pela Assembléia Geral. Art. 36 - O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas colocará à disposição do Comitê o pessoal e os serviços necessários ao desempenho eficaz das funções que lhe são atribuídas em virtude do presente Pacto. Art. 37 - 1. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas convocará os Membros do Comitê para a primeira reunião, a realizar-se na sede da Organização. 2. Após a primeira reunião, o Comitê deverá reunir-se em todas as ocasiões previstas em suas regras de procedimento. 3. As reuniões do Comitê serão realizadas normalmente na sede da Organização das Nações Unidas ou no Escritório das Nações Unidas em Genebra. Art. 38 - Todo membro do Comitê deverá, antes de iniciar suas funções, assumir, em sessão pública, o compromisso solene de que desempenhará suas funções imparcial e conscientemente. Art. 39 - 1. O Comitê elegerá sua Mesa para um período de dois anos. Os membros da Mesa poderão ser reeleitos. 2. O próprio Comitê estabelecerá suas regras de procedimento; estas, contudo, deverão conter, entre outras, as seguintes disposições: a) o quorum será de doze membros; b) as decisões do Comitê serão tomadas por maioria dos votos dos membros presentes. Art. 40 - 1. Os estados-partes no presente Pacto comprometem-se a submeter relatórios sobre as medidas por eles adotadas para tomar efetivos os direitos reconhecidos no presente Pacto e sobre o progresso alcançado no gozo desses direitos: a) dentro do prazo de um ano, a contar do início da vigência do presente Pacto nos estados-partes interessados; b) a partir de então, sempre que o Comitê vier a solicitar. 2. Todos os relatórios serão submetidos ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, que os encaminhará, para exame, ao Comitê. Os relatórios deverão sublinhar, caso existam, os fatores e as dificuldades que prejudiquem a implementação do presente Pacto. 3. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas poderá, após consulta ao Comitê, encaminhar às agências especializadas cópias das partes dos relatórios que digam respeito à sua esfera de competência. 4. O Comitê estudará os relatórios apresentados pelos estados-partes no presente Pacto e transmitirá a eles seu próprio relatório, bem como os comentários gerais que julgar oportunos. O Comitê poderá, igualmente, transmitir ao Conselho Econômico e Social os referidos comentários, bem como cópias dos relatórios que houver recebido dos estados-partes no Pacto. 5. Os estados-partes no presente Pacto poderão submeter ao Comitê as observações que desejarem formular relativamente aos comentários feitos nos termos do § 4o do presente artigo. Art. 41 - 1. Com base neste artigo, todo estado-parte no presente Pacto poderá declarar, a qualquer momento, que reconhece a competência do Comitê para receber e examinar as comunicações em que um estado-parte alegue que outro estado-parte não vem cumprindo as obrigações que lhe impõe o presente Pacto. As referidas comunicações só serão recebidas e examinadas nos termos desse artigo, no caso de serem apresentadas por um estado-parte que houver feito uma declaração em que reconheça, com relação a si próprio, a competência do Comitê. O Comitê não receberá comunicação alguma relativa a um estado-parte que não houver feito uma declaração dessa natureza. As comunicações recebidas em virtude do deste artigo estarão sujeitas ao procedimento que segue: a) Se um estado-parte no presente Pacto considerar que outro estado-parte não vem cumprindo as disposições do Pacto poderá, mediante comunicação escrita, levar a questão ao conhecimento desse estado-parte. Dentro do prazo de três meses, a contar da data do recebimento da comunicação, o estado destinatário fornecerá ao estado que enviou a comunicação explicações e quaisquer outras declarações por es crito que esclareçam a questão, as quais deverão fazer referência, até onde seja possível e pertinente, aos procedimentos nacionais e aos recursos jurídicos adotados em trâmite ou disponíveis sobre a questão; b) Se dentro do prazo de seis meses, a contar da data do recebimento da comunicação original pelo estado destinatário, a questão não estiver dirimida satisfatoriamente para ambos os estados-partes interessados, tanto um como o outro terão o direito de submetê-la ao Comitê, mediante notificação endereçada ao Comitê ou ao outro estado interessado; c) O Comitê tratará de todas as questões que se lhe submetam em virtude do presente artigo, somente após ter-se assegurado de que todos os recursos internos disponíveis tenham sido utilizados e esgotados, em conformidade com os princípios do Direito Internacional geralmente reconhecidos. Não se aplicará essa regra quando a aplicação dos mencionados recursos prolongar-se injustificadamente; d) O Comitê realizará reuniões confidenciais quando estiver examinando as comunicações previstas no presente artigo; e) Sem prejuízo das disposições da alínea "c", o Comitê colocará seus bons ofícios à disposição dos estados-partes interessados, no intuito de alcançar uma solução amistosa para a questão, baseada no respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos no presente Pacto; f) Em todas as questões que se lhe submetam em virtude do presente artigo, o Comitê poderá solicitar aos estados-partes interessados, a que se faz referência na alínea "b", que lhe forneçam quaisquer informações pertinentes; g) os estados-partes interessados, a que se faz referência na alínea "b", terão o direito de fazer-se representar, quando as questões forem examinadas no Comitê, e de apresentar suas observações verbalmente e/ou por escrito; h) O Comitê, dentro dos doze meses seguintes à data do recebimento da notificação mencionada na alínea "b", apresentará relatório em que: i. se houver sido alcançada uma solução nos termos da alínea "e", o Comitê restringir-se-á, em seu relatório, a uma breve exposição dos fatos e da solução alcançada; ii. se não houver sido alcançada solução alguma nos termos da alínea "e", o Comitê restringir-se-á, em seu relatório, a uma breve exposição dos fatos; serão anexados ao relatório o texto das observações escritas e das atas das observações orais apresentadas pelos estados-partes interessados. Para cada questão, o relatório será encaminhado aos estados-partes interessados. 2. As disposições do presente artigo entrarão em vigor a partir do momento em que dez estadospartes, no presente Pacto houverem feito as declarações mencionadas no § 19 deste artigo. As referidas declarações serão depositadas pelos estados-partes junto ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, que enviará cópia das mesmas aos demais estados-partes. Toda declaração poderá ser retirada, a qualquer momento, mediante notificação endereçada ao SecretárioGeral. Far-se-á essa retirada sem prejuízo do exame de quaisquer questões que constituam objeto de uma comunicação já transmitida nos termos deste artigo; em virtude do presente artigo, não se receberá qualquer nova comunicação de um estado-parte, quando o Secretário-Geral houver recebido a notificação sobre a retirada da declaração, a menos que o estado-parte interessado haja feito uma nova declaração. Art. 42 - 1. a) Se uma questão submetida ao Comitê, nos termos do art. 41, não estiver dirimida satisfatoriamente para os estados-partes interessados, o Comitê poderá, com o consentimento prévio dos estados-partes interessados, constituir uma Comissão de Conciliação ad hoc (doravante denominada - Comissão"). A Comissão colocará seus bons ofícios à disposição dos estados-partes interessados, no intuito de se alcançar uma solução amistosa para a questão baseada no respeito ao presente Pacto. b) A Comissão será composta por cinco membros designados com o consentimento dos estadospartes interessados. Se os estados-partes interessados não chegarem a um acordo a respeito da totalidade ou de parte da composição da Comissão dentro do prazo de três meses, os membros da Comissão em relação aos quais não se chegou a um acordo serão eleitos pelo Comitê, entre os seus próprios membros, em votação secreta e por maioria de dois terços dos membros do Comitê. 2. Os membros da Comissão exercerão suas funções a título pessoal. Não poderão ser nacionais dos estados interessados, nem do estado que não seja parte no presente Pacto, nem de um estado-parte que não tenha feito a declaração prevista pelo art. 41. 3. A própria Comissão elegerá seu Presidente e estabelecerá suas regras de procedimento. 4. As reuniões da Comissão serão realizadas normalmente na sede da Organização das Nações Unidas ou no Escritório das Nações Unidas em Genebra. Entretanto, poderão realizar-se em qualquer outro lugar apropriado que a Comissão determinar, após a consulta ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas e aos estados-partes interessados. 5. O Secretariado referido no art. 36 também prestará serviços às comissões designadas em virtude do presente artigo. 6. As informações obtidas e coligadas pelo Comitê serão colocadas à disposição da Comissão, a qual poderá solicitar aos estados-partes interessados que lhe forneçam qualquer outra informação pertinente. 7. Após haver estudado a questão sob todos os seus aspectos, mas, em qualquer caso, no prazo de não mais que doze meses após dela ter tomado conhecimento, a Comissão apresentará um relatório ao Presidente do Comitê, que o encaminhará aos estados-partes interessados: a) se a Comissão não puder terminar o exame da questão, restringir-se-á, em seu relatório, a uma breve exposição sobre o estágio em que se encontra o exame da questão; b) se houver sido alcançada uma solução amistosa para a questão, baseada no respeito dos direitos humanos reconhecidos no presente Pacto, a Comissão restringir-se-á, em seu relatório, a uma breve exposição dos fatos e da solução alcançada; c) se não houver sido alcançada solução nos termos da alínea "b", a Comissão incluirá no relatório suas conclusões sobre os fatos relativos à questão debatida entre os estados-partes interessados, assim como sua opinião sobre a possibilidade de solução amistosa para a questão; o relatório incluirá as observações escritas e as atas das observações orais feitas pelos estados-partes interessados; d) se o relatório da Comissão for apresentado nos termos da alínea "c", os estados-partes interessados comunicarão, no prazo de três meses a contar da data do recebimento do relatório, ao Presidente do Comitê, se aceitam ou não os termos do relatório da Comissão. 8. As disposições do presente artigo não prejudicarão as atribuições do Comitê previstas no art. 41. 9. Todas as despesas dos membros da Comissão serão repartidas eqüitativamente entre os estadospartes interessados, com base em estimativas a serem estabelecidas pelo Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas. 10. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas poderá, caso seja necessário, pagar as des-pesas dos membros da Comissão antes que sejam reembolsadas pelos estados-partes interessados, em conformidade com o § 9o do presente artigo. Art. 43 - Os membros do Comitê e os membros da Comissão de Conciliação ad hoc que forem designados nos termos do art. 42, terão direito às facilidades, privilégios e imunidades que se concedem aos peritos no desempenho de missões para a Organização das Nações Unidas, em conformidade com as seções pertinentes da Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas. Art. 44 - As disposições relativas à implementação do presente Pacto aplicar-se-ão sem prejuízo dos proce-dimentos instituídos em matéria de direitos humanos pelos - ou em virtude dos mesmos instrumentos constitutivos e pelas Convenções da Organização das Nações Unidas e das agências especializadas, e não impedirão que os estados-partes venham a recorrer a outros procedimentos para a solução das controvérsias, em conformidade com os acordos internacionais gerais ou especiais vigentes entre eles. Art. 45 - O Comitê submeterá à Assembléia Geral, por intermédio do Conselho Econômico e Social, um relatório sobre suas atividades. PARTE V Art. 46 - Nenhuma disposição do presente Pacto poderá ser interpretada em detrimento das disposições da Carta das Nações Unidas ou das constituições das agências especializadas, as quais definem as responsabilidades respectivas dos diversos órgãos da Organização das Nações Unidas e das agências especializadas relativamente às matérias tratadas no presente Pacto. Art. 47 - Nenhuma disposição do presente Pacto poderá ser interpretada em detrimento do direito inerente a todos os povos de desfrutar e utilizar plena e livremente suas riquezas e seus recursos naturais. PARTE VI Art. 48 - 1. O presente Pacto está aberto à assinatura de todos os estados-membros da Organização das Nações Unidas ou membros de qualquer de suas agências especializadas, de todo estado-parte no Estatuto da Corte Internacional de Justiça, bem como de qualquer outro Estado convidado pela Assembléia-Geral das Nações Unidas a tomar-se parte no presente Pacto. 2. O presente Pacto está sujeito à ratificação. Os instrumentos de ratificação serão depositados junto ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas. 3. O presente Pacto está aberto à adesão de qualquer dos estados mencionados no § 1o do presente artigo. 4. Far-se-á a adesão mediante depósito do instrumento de adesão junto ao Secretário-Geral das Nações Unidas. 5. O Secretário-Geral das Organização das Nações Unidas informará todos os estados que hajam assinado o presente Pacto, ou a ele aderido, do depósito de cada instrumento de ratificação ou adesão. Art. 49 - 1. O presente Pacto entrará em vigor três meses após a data do depósito, junto ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, do trigésimo quinto instrumento de ratificação ou adesão. 2. Para os estados que vierem a ratificar o presente Pacto ou a ele aderir após o depósito do trigésimo quinto instrumento de ratificação ou adesão, o presente Pacto entrará em vigor três meses após a data do depósito, pelo estado em questão, de seu instrumento de ratificação ou adesão. Art. 50 - Aplicar-se-ão as disposições do presente Pacto, sem qualquer limitação ou exceção, a todas as unidades constitutivas dos estados federativos. Art. 51 - 1. Qualquer estado-parte no presente Pacto poderá propor emendas e depositá-las junto ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas. O Secretário-Geral comunicará todas as propostas de emendas aos estados-partes no presente Pacto, pedindo-lhes que o notifiquem se desejam que se convoque uma conferência dos estados-partes destinada a examinar as propostas e submetê-las à votação. Se pelo menos um terço dos estados-partes se manifestar a favor da referida convocação, o Secretário-Geral convocará a conferência sob os auspícios da Organização das Nações Unidas. Qualquer emenda adotada pela maioria dos estados-partes presentes e votantes na conferência será submetida à aprovação da Assembléia Geral das Nações Unidas. 2. Tais emendas entrarão em vigor quando aprovadas pela Assembléia Geral das Nações Unidas e aceitas, em conformidade com seus respectivos procedimentos constitucionais, por uma maioria de dois terços dos estados-partes no presente Pacto. 3. Ao entrarem em vigor, tais emendas serão obrigatórias para os estados-partes que as aceitaram, ao passo que os demais estados-partes permanecem obrigados pelas disposições do presente Pacto e pelas emendas anteriores por eles aceitas. Art. 52 - Independentemente das notificações previstas no § 5o do art. 48, o Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas comunicará a todos os estados mencionados no §1o do referido artigo: a) As assinaturas, ratificações e adesões recebidas em conformidade com o art. 48; b) A data da entrada em vigor do Pacto, nos termos do art. 49, e a data de entrada em vigor de quaisquer emendas, nos termos do art. 51. Art. 53 - 1. O presente Pacto, cujos textos em chinês, espanhol, francês, inglês e russo são igualmente autênticos, será depositado nos arquivos da Organização das Nações Unidas. 2. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas encaminhará cópias autenticadas do presente Pacto a todos os estados mencionados no art. 48. ANEXO IV PACTO INTERNACIONAL DOS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS PREÂMBULO Os estados-partes no presente Pacto, Considerando que, em conformidade com os princípios proclamados na Carta das Nações Unidas, o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, Reconhecendo que esses direitos decorrem da dignidade inerente à pessoa humana, Reconhecendo que, em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o ideal do ser humano livre, liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado a menos que se criem condições que permitam a cada um gozar de seus direitos econômicos, sociais e culturais, assim como de seus direitos civis e políticos, Considerando que a Carta das Nações Unidas impõe aos estados a obrigação de promover o respeito universal e efetivo dos direitos e das liberdades da pessoa humana, Compreendendo que o indivíduo, por ter deveres para com seus semelhantes e para com a coletividade a que pertence, tem a obrigação de lutar pela promoção e observância dos direitos reconhecidos no presente Pacto, acordam o seguinte: PARTE I Art. 1o - 1. Todos os povos têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural. 2. Para a consecução de seus objetivos, todos os povos podem dispor livremente de suas riquezas e de seus recursos naturais, sem prejuízo das obrigações decorrentes da cooperação econômica internacional, baseada no princípio do proveito mútuo e do Direito Internacional. Em caso algum poderá um povo ser privado de seus próprios meios de subsistência. 3. Os estados-partes no presente Pacto, inclusive aqueles que tenham a responsabilidade de administrar territórios não autônomos e territórios sob tutela, deverão promover o exercício do direito à autodeterminação e respeitar esse direito, em conformidade com as disposições da Carta das Nações Unidas. PARTE II Art. 2o - 1. Cada estado-parte no presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas. 2. Os estados-partes no presente Pacto comprometem-se a garantir que os direitos nele enunciados se exercerão sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação. 3. O países em desenvolvimento, levando devidamente em consideração os direitos humanos e a situação econômica nacional, poderão determinar em que medida garantirão os direitos econômicos reco-nhecidos no presente Pacto àqueles que não sejam seus nacionais. Art. 3o - Os estados-partes no presente Pacto comprometem-se a assegurar a homens e mulheres igualdade no gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais enumerados no presente Pacto. Art. 4o - Os estados-partes no presente Pacto reconhecem que, no exercício dos direitos assegurados em con-formidade com o presente Pacto pelo estado, este poderá submeter tais direitos unicamente às limitações estabelecidas em lei, somente na medida compatível com a natureza desses direitos e exclusivamente com o objetivo de favorecer o bem-estar geral em uma sociedade democrática. Art. 5o - 1. Nenhuma das disposições do presente Pacto poderá ser interpretada no sentido de reconhecer a um estado, grupo ou indivíduo qualquer direito de dedicar-se a quaisquer atividades ou de praticar quaisquer atos que tenham por objetivo destruir os direitos ou liberdades reconhecidos no presente Pacto ou impor-lhes limitações mais amplas do que aquelas nele previstas. 2. Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer país em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob o pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau. PARTE III Art. 6o - 1. Os estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de ter a possibilidade de ganhar a vida mediante um trabalho livremente escolhido ou aceito e tomarão medidas apropriadas para salvaguardar esse direito. 2. As medidas que cada estado-parte no presente Pacto tomará, a fim de assegurar o pleno exercício desse direito, deverão incluir a orientação e a formação técnica e profissional, a elaboração de programas, normas técnicas apropriadas para assegurar um desenvolvimento econômico, social e cultural constante e o pleno emprego produtivo em condições que salvaguardem aos indivíduos o gozo das liberdades políticas e econômicas fundamentais. Art. 7o - Os estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis, que assegurem especialmente: a) Uma remuneração que proporcione, no mínimo, a todos os trabalhadores: i) um salário eqüitativo e uma remuneração igual por um trabalho de igual valor, sem qualquer distinção; em particular, as mulheres deverão ter a garantia de condições de trabalho não inferiores às dos homens e perceber a mesma remuneração que eles, por trabalho igual; ii) uma existência decente para eles e suas famílias, em conformidade com as disposições do presente Pacto; b) Condições de trabalho seguras e higiênicas; A igual oportunidade para todos de serem promovidos, em seu trabalho, à categoria superior que lhes corresponda, sem outras considerações que as de tempo, de trabalho e de capacidade; d) O descanso, o lazer, a limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas, assim como a remuneração dos feriados. Art. 8o - 1. Os estados-partes no presente Pacto comprometem-se a garantir: a) O direito de toda pessoa de fundar com outras sindicatos e de filiar-se ao sindicato de sua escolha, sujeitando-se unicamente aos estatutos da organização interessada, com o objetivo de promover e de proteger seus interesses econômicos e sociais. O exercício desse direito só poderá ser objeto das restrições previstas em lei e que sejam necessárias, em uma sociedade democrática, ao interesse da segurança nacional ou da ordem pública ou para proteger os direitos e as liberdades alheias; b) O direito dos sindicatos de formar federações ou confederações nacionais, e o direito destas de formar organizações sindicais internacionais ou de filiar-se às mesmas; c) O direito dos sindicatos de exercer livremente suas atividades, sem quaisquer limitações além daquelas previstas em lei e que sejam necessárias, em uma sociedade democrática, ao interesse da segurança nacional ou da ordem pública ou para proteger os direitos e as liberdades das demais pessoas; d) O direito de greve, exercido em conformidade com as leis de cada país. 2. O presente artigo não impedirá que se submeta a restrições legais o exercício desses direitos pelos membros das forças armadas, da polícia ou da administração pública. 3. Nenhuma das disposições do presente artigo permitirá que os Estados-partes na Convenção de 1948 da Organização Internacional do Trabalho, relativa à liberdade sindical e à proteção do direito sindical, venham a adotar medidas legislativas que restrinjam - ou a aplicar a lei de maneira a restringir - as garantias previstas na referida Convenção. Art. 9o - Os estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à previdência social, inclusive ao seguro social. Art. 10 - Os estados-partes no presente Pacto reconhecem que: 1. Deve-se conceder à família, que é o núcleo natural e fundamental da sociedade, a mais ampla proteção e assistência possíveis, especialmente para a sua constituição e enquanto ela for responsável pela criação e educação dos filhos. O matrimônio deve ser contraído com o livre consentimento dos futuros cônjuges. 2. Deve-se conceder proteção especial às mães por um período de tempo razoável antes e depois do parto. Durante esse período, deve-se conceder às mães, que trabalham, licença remunerada ou licença acompanhada de benefícios previdenciários adequados. 3. Deve-se adotar medidas especiais de proteção e assistência em prol de todas as crianças e adolescentes, sem distinção alguma por motivo de filiação ou qualquer outra condição. Deve-se proteger as crianças e adolescentes contra a exploração econômica e social. O emprego de crianças e adolescentes, em trabalho que lhes seja nocivo à moral e à saúde, ou que lhes faça correr perigo de vida, ou ainda que lhes venha prejudicar o desenvolvimento normal, será punido por lei. Os estados devem, também, estabelecer limites de idade, sob os quais fique proibido e punido por lei o emprego assalariado da mão-de-obra infantil. Art. 11 - 1. Os estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados-partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento. 2. Os estados-partes no presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de toda pessoa de estar protegida contra a fome, adotarão, individualmente e mediante cooperação internacional, as medidas, inclusive programas concretos, que se façam necessários para: a) Melhorar os métodos de produção, conservação e distribuição de gêneros alimentícios pela plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo aperfeiçoamento ou reforma dos regimes agrários, de maneira que se assegurem a exploração e a utilização mais eficazes dos recursos naturais. b) Assegurar uma repartição eqüitativa dos recursos alimentícios mundiais em relação às necessidades, levando-se em conta os problemas tanto dos países importadores quanto dos exportadores de gêneros alimentícios. Art. 12 - 1. Os estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental. 2. As medidas que os estados-partes no presente Pacto deverão adotar, com o fim de assegurar o pleno exercício desse direito, incluirão as medidas que se façam necessárias para assegurar: a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o desenvolvimento são das crianças. b) A melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente. c) A prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas doenças. d) A criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade. Art. 13 - 1. Os estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. 2. Os estados-partes no presente Pacto reconhecem que, com o objetivo de assegurar o pleno exercício desse direito: a) A educação primária deverá ser obrigatória e acessível gratuitamente a todos. b) A educação secundária em suas diferentes formas, inclusive a educação secundária técnica e profis-sional, deverá ser generalizada e tornar-se acessível a todos, por todos os meios apropriados e, principalmente, pela implementação progressiva do ensino gratuito. c) A educação de nível superior deverá igualmente tornar-se acessível a todos, com base na capacidade de cada um, por todos os meios apropriados e, principalmente, pela implementação progressiva do ensino gratuito. d) Dever-se-á fomentar e intensificar, na medida do possível, a educação de base para aquelas pessoas que não receberam educação primária ou não concluíram o ciclo completo de educação primária. e) Será preciso prosseguir ativamente o desenvolvimento de uma rede escolar em todos os níveis de ensino, implementar-se um sistema adequado de bolsas de estudo e melhorar continuamente as condições materiais do corpo docente. 3. Os estados-partes no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais - e, quando for o caso, dos tutores legais - de escolher para seus filhos escolas distintas daquelas criadas pelas autoridades públicas, sempre que atendam aos padrões mínimos de ensino prescritos ou aprovados pelo estado, e de fazer com que seus filhos venham a receber educação religiosa ou moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. 4. Nenhuma das disposições do presente artigo poderá ser interpretada no sentido de restringir a liberdade de indivíduos e de entidades de criar e dirigir instituições de ensino, desde que respeitados os princípios enunciados no § 1o do presente artigo e que essas instituições observem os padrões mínimos prescritos pelo estado. Art. 14 - Todo estado-parte no presente Pacto que, no momento em que se tornar parte, ainda não tenha garan-tido em seu próprio território ou território sob a sua jurisdição a obrigatoriedade ou a gratuidade da educação primária, compromete-se a elaborar e a adotar, dentro de um prazo de dois anos, um plano de ação detalhado, destinado à implementação progressiva, dentro de um mínimo razoável de anos estabelecido no próprio plano, do princípio da educação primária obrigatória e gratuita para todos. Art. 15 - 1. Os estados-partes no presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito de: a) Participar da vida cultural; b) Desfrutar o progresso científico e suas aplicações; c) Beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a produção científica, literária ou artística de que seja autor. 2. As medidas que os estados-partes no presente Pacto deverão adotar com a finalidade de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão aquelas necessárias à conservação, ao desenvolvimento e à difusão da ciência e da cultura. 3. Os estados-partes no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade indispensável à pesquisa científica e à atividade criadora. 4. Os estados-partes no presente Pacto reconhecem os benefícios que derivam do fomento e do desenvolvimento da cooperação e das relações internacionais no domínio da ciência e da cultura. PARTE IV Art. 16 - 1. Os estados-partes no presente Pacto comprometem-se a apresentar, de acordo com as disposições da presente parte do Pacto, relatórios sobre as medidas que tenham adotado e sobre o progresso realizado, com o objetivo de assegurar a observância dos direitos reconhecidos no Pacto. 2. a) Todos os relatórios deverão ser encaminhados ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, o qual enviará cópias deles ao Conselho Econômico e Social, para exame de acordo com as disposições do presente Pacto. b) O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas encaminhará também às agências especializadas cópias dos relatórios - ou de todas as partes pertinentes dos mesmos - enviados pelos estados-partes no presente Pacto que sejam igualmente membros das referidas agências especializadas, na medida em que os relatórios, ou parte deles, guardem relação com questões que sejam da competência de tais agências, nos termos de seus respectivos instrumentos constitutivos. Art. 17 - 1. Os estados-partes no presente Pacto apresentarão seus relatórios por etapas, segundo um programa a ser estabelecido pelo Conselho Econômico e Social, no prazo de um ano a contar da data da entrada em vigor do presente Pacto, após consulta aos estados-partes e às agências especializadas interessadas. 2. Os relatórios poderão indicar os fatores e as dificuldades que prejudiquem o pleno cumprimento das obrigações previstas no presente Pacto. 3. Caso as informações pertinentes já tenham sido encaminhadas à Organização das Nações Unidas ou a uma agência especializada por um Estado-parte, não será necessário reproduzir as referidas informações, sendo suficiente uma referência precisa às mesmas. Art. 18 - Em virtude das responsabilidades que lhes são conferidas; pela Carta das Nações Unidas, no domínio dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, o Conselho Econômico e Social poderá concluir acordos com as agências especializadas sobre a apresentação, por estas, de relatórios relativos aos progressos realizados quanto ao cumprimento das disposições do presente Pacto que correspondam ao seu campo de atividades. Os relatórios poderão incluir dados sobre as decisões e recomendações, referentes ao cumprimento das disposições do presente Pacto, adotadas pelos órgãos competentes das agências especializadas. Art. 19 - O Conselho Econômico e Social poderá encaminhar à Comissão de Direitos Humanos, para fins de estudo e de recomendação de ordem geral, ou para informação, caso julgue apropriado, os relatórios concernentes aos direitos humanos que apresentarem os estados, nos termos dos arts. 16 e 17, e aqueles concernentes aos direitos humanos que apresentarem as agências especializadas, nos termos do art. 18. Art. 20 - Os estados-partes neste Pacto e as agências especializadas interessadas poderão encaminhar ao Con-selho Econômico e Social comentários sobre qualquer recomendação de ordem geral, feita em virtude do art. 19, ou sobre qualquer referência a uma recomendação de ordem geral que venha a constar de relatório da Comissão de Direitos Humanos ou de qualquer documento mencionado no referido relatório. Art. 21 - O Conselho Econômico e Social poderá apresentar ocasionalmente à Assembléia Geral relatórios que contenham recomendações de caráter geral, bem como resumo das informações recebidas dos estados-partes no presente Pacto e das agências especializadas, sobre as medidas adotadas e o progresso realizado com a finalidade de assegurar a observância geral dos direitos reconhecidos no presente Pacto. Art. 22 - O Conselho Econômico e Social poderá levar ao conhecimento de outros órgãos da Organização das Nações Unidas, de seus órgãos subsidiários e das agências especializadas interessadas, às quais incumba a prestação de assistência técnica, quaisquer questões suscitadas nos relatórios mencionados nesta parte do presente Pacto, que possam ajudar essas entidades a pronunciar-se, cada uma dentro de sua esfera de competência, sobre a conveniência de medidas internacionais que possam contribuir para a implementação efetiva e progressiva do presente Pacto. Art. 23 - Os estados-partes no presente Pacto concordam em que as medidas de ordem internacional, destinadas a tornar efetivos os direitos reconhecidos no referido Pacto, incluem, sobretudo, a conclusão de convenções, a adoção de recomendações, a prestação de assistência técnica e a organização, em conjunto com os governos interessados, e no intuito de efetuar consultas e realizar estudos, de reuniões regionais e de reuniões técnicas. Art. 24 - Nenhuma das disposições do presente Pacto poderá ser interpretada em detrimento das disposições da Carta das Nações Unidas ou das constituições das agências especializadas, as quais definem as responsabilidades respectivas dos diversos órgãos da Organização das Nações Unidas e agências especializadas, relativamente às matérias tratadas no presente Pacto. Art. 25 - Nenhuma das disposições do presente Pacto poderá ser interpretada em detrimento do direito inerente a todos os povos de desfrutar e utilizar plena e livremente suas riquezas e seus recursos naturais. PARTE V Art. 26 - 1. O presente Pacto está aberto à assinatura de todos os estados-membros da Organização das Nações Unidas ou membros de qualquer de suas agências especializadas, de todo estado-parte no Estatuto da Corte Internacional de Justiça, bem como de qualquer outro estado convidado pela Assembléia Geral das Nações Unidas a tomar-se parte no presente Pacto. 2. O presente Pacto está sujeito à ratificação. Os instrumentos de ratificação serão depositados junto ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas. 3. O presente Pacto está aberto à adesão de qualquer dos estados mencionados no § 1o do presente artigo. 4. Far-se-á a adesão mediante depósito do instrumento de adesão junto ao Secretário-Geral das Nações Unidas. 5. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas informará a todos os estados que hajam assinado o presente Pacto, ou a ele aderido, do depósito de cada instrumento de ratificação ou adesão. Art. 27 - 1. O presente Pacto entrará em vigor três meses após a data do depósito, junto ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, do trigésimo quinto instrumento de ratificação ou adesão. 2. Para os estados que vierem a ratificar o presente Pacto ou a ele aderir após o depósito do trigésimo quinto instrumento de ratificação ou adesão, o presente Pacto entrará em vigor três meses após a data do depósito, pelo estado em questão, de seu instrumento de ratificação ou adesão. Art. 28 - Aplicar-se-ão as disposições do presente Pacto, sem qualquer limitação ou exceção, a todas as unidades constitutivas dos estados federativos. Art. 29 - 1. Qualquer estado-parte no presente Pacto poderá propor emendas e depositá-las junto ao Secretário- Geral da Organização das Nações Unidas. O Secretário-Geral comunicará todas as propostas de emendas aos estados-partes no presente Pacto, pedindo-lhes que o notifiquem se desejarem que se convoque uma conferência dos estados-partes, destinada a examinar as propostas e submetê-las a votação. Se pelo menos um terço dos estados-partes se manifestar a favor da referida convocação, o Secretário-Geral convocará a conferência sob os auspícios da Organização das Nações Unidas. Qualquer emenda adotada pela maioria dos estados-partes presentes e votantes na conferência será submetida à aprovação da Assembléia Geral das Nações Unidas. 2. Tais emendas entrarão em vigor quando aprovadas pela Assembléia Geral das Nações Unidas e aceitas, em conformidade com seus respectivos procedimentos constitucionais, por uma maioria de dois terços dos estados-partes no presente Pacto. 3. Ao entrarem em vigor, tais emendas serão obrigatórias para os estados-partes que as aceitaram, ao passo que os demais estados-partes permanecem obrigados pelas disposições do presente Pacto e pelas emendas anteriores por eles aceitas. Art. 30 - Independentemente das notificações previstas no § 5o do art. 26, o Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas comunicará a todos os estados mencionados no § 1o do referido artigo: a) As assinaturas, ratificações e adesões recebidas em conformidade com o art. 26; b) A data da entrada em vigor do Pacto, nos termos do art. 27, e a data de entrada em vigor de quaisquer emendas, nos termos do art. 29. Art. 31 - 1. O presente Pacto, cujos textos em chinês, espanhol, francês, inglês e russo são igualmente autênticos, será depositado nos arquivos da Organização das Nações Unidas. 2. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas encaminhará cópias autenticadas do presente Pacto a todos os estados mencionados no art. 26. ANEXO V DECLARAÇÃO E PROGRAMA DE AÇÃO DE VIENA (1993) A. Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, Considerando que a promoção e proteção dos direitos humanos são questões prioritárias para a comunidade internacional e que a Conferência oferece uma oportunidade singular para uma análise abrangente do sistema internacional dos direitos humanos e dos mecanismos de proteção dos direitos humanos, para fortalecer e promover uma maior observância desses direitos de forma justa e equilibrada, Reconhecendo e afirmando que todos os direitos humanos têm origem na dignidade e valor inerente à pessoa humana, e que esta é o sujeito central dos direitos humanos e liberdades fundamentais, razão pela qual deve ser a principal beneficiária desses direitos e liberdades e participar ativamente de sua realização, Reafirmando sua adesão aos propósitos e princípios enunciados na Carta das Nações Unidas e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, Reafirmando o compromisso assumido no âmbito do artigo 56 da Carta das Nações Unidas de tomar medidas conjuntas e separadas, enfatizando adequadamente o desenvolvimento de uma cooperação internacional eficaz, visando à realização dos propósitos estabelecidos no artigo 55, incluindo o respeito universal e observância dos direitos humanos e liberdades fundamentais de todas as pessoas, Enfatizando as responsabilidades de todos os Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, de desenvolver e estimular o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais de todas as pessoas sem distinção de raça, sexo, idioma ou religião, Lembrando o Preâmbulo da Carta das Nações Unidas, particularmente a determinação de reafirmar a fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e valor da pessoa humana e nos direitos iguais de homens e mulheres de nações grandes e pequenas, Lembrando também a determinação contida no Preâmbulo da Carta das Nações Unidas de preservar as gerações futuras do flagelo da guerra, de estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações emanadas de tratados e outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, de promover o progresso social e o melhor padrão de vida dentro de um conceito mais amplo de liberdade, de praticar a tolerância e a boa vizinhança e de empregar mecanismos internacionais para promover avanços econômicos e sociais em benefício de todos os povos, Ressaltando que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que constitui uma meta comum para todos os povos e todas as nações, é fonte de inspiração e tem sido a base utilizada pelas Nações Unidas na definição das normas previstas nos instrumentos internacionais de direitos humanos existentes, particularmente no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Considerando as importantes mudanças em curso no cenário internacional e as aspirações de todos os povos por uma ordem internacional baseada nos princípios consagrados na Carta das Nações Unidas, incluindo a promoção dos direitos humanos e liberdades fundamentais de todas as pessoas e o respeito pelo princípio dos direitos iguais e autodeterminação dos povos em condições de paz, democracia, justiça, igualdade, Estados de Direito, pluralismo, desenvolvimento, melhores padrões de vida e solidariedade, Profundamente preocupada com as diversas formas de discriminação e violência às quais as mulheres continuam expostas em todo o mundo, Reconhecendo que as atividades das Nações Unidas na esfera dos direitos humanos devem ser racionalizadas e melhoradas, visando a fortalecer o mecanismo das Nações Unidas nessa esfera e promover os objetivos de respeito universal e observância das normas internacionais dos direitos humanos, Tendo levado em consideração as Declarações aprovadas nas três Reuniões Regionais realizadas em Túnis, San José e Bangkok e as contribuições dos Governos, bem como as sugestões apresentadas por organizações intergovernamentais e não-governamentais e os estudos desenvolvidos por peritos independentes durante o processo preparatório da Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, Acolhendo o Ano Internacional dos Povos Indígenas de 1993 como uma reafirmação do compromisso da comunidade internacional de garantir-lhes todos os direitos humanos e liberdades fundamentais e respeitar suas culturas e identidades, Reconhecendo também que a comunidade internacional deve conceber formas e meios para eliminar os obstáculos existentes e superar desafios à plena realização de todos os direitos humanos e para evitar que continuem ocorrendo casos de violações de direitos humanos em todo o mundo, Imbuída do espírito de nossa era e da realidade de nosso tempo, que exigem de todos os povos do mundo e todos os Estados Membros das Nações Unidas empreendam com redobrado esforço a tarefa de promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, de modo a garantir a realização plena e universal desses direitos, Determinada a tomar novas medidas em relação ao compromisso da comunidade internacional de promover avanços substanciais na área dos direitos humanos mediante esforços renovados e continuados de cooperação e solidariedade internacionais, Adota solenemente a Declaração e o Programa de Ação de Viena I 1. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma o compromisso solene de todos os Estados de promover o respeito universal e a observância e proteção de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais de todas as pessoas, em conformidade com Carta das Nações Unidas, outros instrumentos relacionados aos direitos humanos e o direito internacional. A natureza universal desses direitos e liberdades está fora de questão. Nesse contexto, o fortalecimento da cooperação internacional na área dos direitos humanos é essencial à plena realização dos propósitos das Nações Unidas. Os direitos humanos e as liberdades fundamentais são direitos naturais de todos os seres humanos; sua proteção e promoção são responsabilidades primordiais dos Governos. 2. Todos os povos têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam livremente sua condição política e promovem livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural. Levando em consideração a situação particular dos povos submetidos à dominação colonial ou outras formas de dominação estrangeira, a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reconhece o direito dos povos de tomar medidas legítimas, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, para garantir seu direito inalienável à autodeterminação. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos considera que a negação do direito à autodeterminação constitui uma violação dos direitos humanos e enfatiza a importância da efetiva realização desse direito. De acordo com a Declaração sobre os Princípios do Direito Internacional Relativos à Relações Amistosas e à Cooperação entre Estados em conformidade com a Carta das Nações Unidas, nada do que foi exposto acima será entendido como uma autorização ou estímulo à qualquer ação que possa desmembrar ou prejudicar, total ou parcialmente, a integridade territorial ou unidade política de Estados soberanos e independentes que se conduzam de acordo com o princípio de igualdade de direitos e autodeterminação dos povos e que possuam assim Governo representativo do povo como um todo, pertencente ao território sem qualquer tipo de distinção. 3. Devem ser adotadas medidas internacionais eficazes para garantir e monitorar a aplicação de normas de direitos humanos a povos submetidos a ocupação estrangeira, bem como medidas jurídicas eficazes contra a violação de seus direitos humanos, de acordo com as normas dos direitos humanos e o direito internacional, particularmente a Convenção de Genebra sobre Proteção de Civis em Tempo de Guerra, de 14 de agosto de 1949, e outras normas aplicáveis do direito humanitário. 4. A promoção e proteção de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais devem ser consideradas como um objetivo prioritário da Nações Unidas, em conformidade com seus propósitos e princípios, particularmente o propósito da cooperação internacional. No contexto desses propósitos e princípios, a promoção e proteção de todos os direitos humanos constituem uma preocupação legítima da comunidade internacional. Os órgãos e agências especializados relacionados com os direitos humanos devem, portanto, reforçar a coordenação de suas atividades com base na aplicação coerente e objetiva dos instrumentos internacionais de direitos humanos. 5. Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais. 6. Os esforços do sistema das Nações Unidas para garantir o respeito universal e a observância de todos direitos humanos e liberdades fundamentais de todas as pessoas contribuem para a estabilidade e bem-estar necessários à existência de relações pacíficas e amistosas entre as nações e para melhorar as condições de paz e segurança e o desenvolvimento social e econômico, em conformidade com a Carta das Nações Unidas. 7. O processo de promoção e proteção dos direitos humanos deve ser desenvolvido em conformidade com os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas e o direito internacional. 8. A democracia, o desenvolvimento e o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais são conceitos interdependentes que se reforçam mutuamente. A democracia se baseia na vontade livremente expressa pelo povo de determinar seus próprios sistemas políticos, econômicos, sociais e culturais e em sua plena participação em todos os aspectos de suas vidas. Nesse contexto, a promoção e proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais, em níveis nacional e internacional, devem ser universais e incondicionais. A comunidade internacional deve apoiar o fortalecimento e a promoção de democracia e o desenvolvimento e respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais no mundo inteiro. 9. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma que os países menos desenvolvidos que optaram pelo processo de democratização e reformas econômicas, muitos dos quais situam-se na África, devem ter o apoio da comunidade internacional em sua transição para a democracia e o desenvolvimento econômico. 10. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma o direito ao desenvolvimento, previsto na Declaração sobre Direito ao Desenvolvimento, como um direito universal e inalienável e parte integral dos direitos humanos fundamentais. Como afirma a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, a pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento. Embora o desenvolvimento facilite a realização de todos os direitos humanos, a falta de desenvolvimento não poderá ser invocada como justificativa para se limitar os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Os Estados devem cooperar uns com os outros para garantir o desenvolvimento e eliminar obstáculos ao mesmo. A comunidade internacional deve promover uma cooperação internacional eficaz visando à realização do direito ao desenvolvimento e à eliminação de obstáculos ao desenvolvimento. O progresso duradouro necessário à realização do direito ao desenvolvimento exige políticas eficazes de desenvolvimento em nível nacional, bem como relações econômicas eqüitativas e um ambiente econômico favorável em nível internacional. 11. O direito ao desenvolvimento deve ser realizado de modo a satisfazer eqüitativamente as necessidades ambientais e de desenvolvimento de gerações presentes e futuras. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reconhece que a prática de descarregar ilicitamente substâncias e resíduos tóxicos e perigosos constitui uma grave ameaça em potencial aos direitos de todos à vida e à saúde. Consequentemente, a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos apela a todos os Estados para que adotem e implementem vigorosamente as convenções existentes sobre o descarregamento de produtos e resíduos tóxicos e perigosos e para que cooperem na prevenção do descarregamento ilícito. Todas as pessoas têm o direito de desfrutar dos benefícios do progresso científico e de suas aplicações. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos observa que determinados avanços, principalmente na área das ciências biomédicas e biológicas, podem ter conseqüências potencialmente adversas para a integridade, dignidade e os direitos humanos do indivíduo e solicita a cooperação internacional para que se garanta pleno respeito aos direitos humanos e à dignidade nessa área de interesse universal. 12. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos apela à comunidade internacional no sentido de que a mesma empreenda todos os esforços necessários para ajudar a aliviar a carga da dívida externa dos países em desenvolvimento, visando complementar os esforços dos Governos desses países para garantir plenamente os direitos econômicos, sociais e culturais de seus povos. 13. Os Estados e as organizações internacionais, em regime de cooperação com as organizações não-governamentais, devem criar condições favoráveis nos níveis nacional, regional e internacional para garantir o pleno e efetivo exercício dos direitos humanos. Os Estados devem eliminar todas as violações de direitos humanos e suas causas, bem como os obstáculos à realização desses direitos. 14. A existência de situações generalizadas de extrema pobreza inibe o pleno e efetivo exercício dos direitos humanos; a comunidade internacional deve continuar atribuindo alta prioridade a medidas destinadas a aliviar e finalmente eliminar situações dessa natureza. 15. O respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais, sem distinções de qualquer espécie, é uma norma fundamental do direito internacional na área dos direitos humanos. A eliminação rápida e abrangente de todas as formas de racismo e discriminação racial, de xenofobia e de intolerância associadas a esses comportamentos deve ser uma tarefa prioritária para a comunidade internacional. Os Governos devem tomar medidas eficazes para preveni-las e combate-las. ANEXO VI DECLARAÇÃO UNIVERSAL SOBRE A DIVERSIDADE CULTURAL (2001) A Conferência Geral, Reafirmando seu compromisso com a plena realização dos direitos humanos e das liberdades fundamentais proclamadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos e em outros instrumentos universalmente reconhecidos, como os dois Pactos Internacionais de 1966 relativos respectivamente, aos direitos civis e políticos e aos direitos econômicos, sociais e culturais, Recordando que o Preâmbulo da Constituição da UNESCO afirma “(...) que a ampla difusão da cultura e da educação da humanidade para a justiça, a liberdade e a paz são indispensáveis para a dignidade do homem e constituem um dever sagrado que todas as nações devem cumprir com um espírito de responsabilidade e de ajuda mútua”, Recordando também seu Artigo primeiro, que designa à UNESCO, entre outros objetivos, o de recomendar “os acordos internacionais que se façam necessários para facilitar a livre circulação das idéias por meio da palavra e da imagem”, Referindo-se às disposições relativas à diversidade cultural e ao exercício dos direitos culturais que figuram nos instrumentos internacionais promulgados pela UNESCO[1], Reafirmando que a cultura deve ser considerada como o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças[2], Constatando que a cultura se encontra no centro dos debates contemporâneos sobre a identidade, a coesão social e o desenvolvimento de uma economia fundada no saber, Afirmando que o respeito à diversidade das culturas, à tolerância, ao diálogo e à cooperação, em um clima de confiança e de entendimento mútuos, estão entre as melhores garantias da paz e da segurança internacionais, Aspirando a uma maior solidariedade fundada no reconhecimento da diversidade cultural, na consciência da unidade do gênero humano e no desenvolvimento dos intercâmbios culturais, Considerando que o processo de globalização, facilitado pela rápida evolução das novas tecnologias da informação e da comunicação, apesar de constituir um desafio para a diversidade cultural, cria condições de um diálogo renovado entre as culturas e as civilizações, Consciente do mandato específico confiado à UNESCO, no seio do sistema das Nações Unidas, de assegurar a preservação e a promoção da fecunda diversidade das culturas, Proclama os seguintes princípios e adota a presente Declaração: IDENTIDADE, DIVERSIDADE E PLURALISMO Artigo 1 – A diversidade cultural, patrimônio comum da humanidade A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em beneficio das gerações presentes e futuras. Artigo 2 – Da diversidade cultural ao pluralismo cultural Em nossas sociedades cada vez mais diversificadas, torna-se indispensável garantir uma interação harmoniosa entre pessoas e grupos com identidades culturais a um só tempo plurais, variadas e dinâmicas, assim como sua vontade de conviver. As políticas que favoreçam a inclusão e a participação de todos os cidadãos garantem a coesão social, a vitalidade da sociedade civil e a paz. Definido desta maneira, o pluralismo cultural constitui a resposta política à realidade da diversidade cultural. Inseparável de um contexto democrático, o pluralismo cultural é propício aos intercâmbios culturais e ao desenvolvimento das capacidades criadoras que alimentam a vida pública. Artigo 3 – A diversidade cultural, fator de desenvolvimento A diversidade cultural amplia as possibilidades de escolha que se oferecem a todos; é uma das fontes do desenvolvimento, entendido não somente em termos de crescimento econômico, mas também como meio de acesso a uma existência intelectual, afetiva, moral e espiritual satisfatória. DIVERSIDADE CULTURAL E DIREITOS HUMANOS Artigo 4 – Os direitos humanos, garantias da diversidade cultural A defesa da diversidade cultural é um imperativo ético, inseparável do respeito à dignidade humana. Ela implica o compromisso de respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em particular os direitos das pessoas que pertencem a minorias e os dos povos autóctones. Ninguém pode invocar a diversidade cultural para violar os direitos humanos garantidos pelo direito internacional, nem para limitar seu alcance. Artigo 5 – Os direitos culturais, marco propício da diversidade cultural Os direitos culturais são parte integrante dos direitos humanos, que são universais, indissociáveis e interdependentes. O desenvolvimento de uma diversidade criativa exige a plena realização dos direitos culturais, tal como os define o Artigo 27 da Declaração Universal de Direitos Humanos e os artigos 13 e 15 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Toda pessoa deve, assim, poder expressar-se, criar e difundir suas obras na língua que deseje e, em partícular, na sua língua materna; toda pessoa tem direito a uma educação e uma formação de qualidade que respeite plenamente sua identidade cultural; toda pessoa deve poder participar na vida cultural que escolha e exercer suas próprias práticas culturais, dentro dos limites que impõe o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. Artigo 6 – Rumo a uma diversidade cultural accessível a todos Enquanto se garanta a livre circulação das idéias mediante a palavra e a imagem, deve-se cuidar para que todas as culturas possam se expressar e se fazer conhecidas. A liberdade de expressão, o pluralismo dos meios de comunicação, o multilingüismo, a igualdade de acesso às expressões artísticas, ao conhecimento científico e tecnológico – inclusive em formato digital - e a possibilidade, para todas as culturas, de estar presentes nos meios de expressão e de difusão, são garantias da diversidade cultural. DIVERSIDADE CULTURAL E CRIATIVIDADE Artigo 7 – O patrimônio cultural, fonte da criatividade Toda criação tem suas origens nas tradições culturais, porém se desenvolve plenamente em contato com outras. Essa é a razão pela qual o patrimônio, em todas suas formas, deve ser preservado, valorizado e transmitido às gerações futuras como testemunho da experiência e das aspirações humanas, a fim de nutrir a criatividade em toda sua diversidade e estabelecer um verdadeiro diálogo entre as culturas. Artigo 8 – Os bens e serviços culturais, mercadorias distintas das demais Frente às mudanças econômicas e tecnológicas atuais, que abrem vastas perspectivas para a criação e a inovação, deve-se prestar uma particular atenção à diversidade da oferta criativa, ao justo reconhecimento dos direitos dos autores e artistas, assim como ao caráter específico dos bens e serviços culturais que, na medida em que são portadores de identidade, de valores e sentido, não devem ser considerados como mercadorias ou bens de consumo como os demais. Artigo 9 – As políticas culturais, catalisadoras da criatividade As políticas culturais, enquanto assegurem a livre circulação das idéias e das obras, devem criar condições propícias para a produção e a difusão de bens e serviços culturais diversificados, por meio de indústrias culturais que disponham de meios para desenvolver-se nos planos local e mundial. Cada Estado deve, respeitando suas obrigações internacionais, definir sua política cultural e aplicá-la, utilizando-se dos meios de ação que julgue mais adequados, seja na forma de apoios concretos ou de marcos reguladores apropriados. DIVERSIDADE CULTURAL E SOLIDARIEDADE INTERNACIONAL Artigo 10 – Reforçar as capacidades de criação e de difusão em escala mundial Ante os desequilíbrios atualmente produzidos no fluxo e no intercâmbio de bens culturais em escala mundial, é necessário reforçar a cooperação e a solidariedade internacionais destinadas a permitir que todos os países, em particular os países em desenvolvimento e os países em transição, estabeleçam indústrias culturais viáveis e competitivas nos planos nacional e internacional. Artigo 11 – Estabelecer parcerias entre o setor público, o setor privado e a sociedade civil As forças do mercado, por si sós, não podem garantir a preservação e promoção da diversidade cultural, condição de um desenvolvimento humano sustentável. Desse ponto de vista, convém fortalecer a função primordial das políticas públicas, em parceria com o setor privado e a sociedade civil. Artigo 12 – A função da UNESCO A UNESCO, por virtude de seu mandato e de suas funções, tem a responsabilidade de: a) promover a incorporação dos princípios enunciados na presente Declaração nas estratégias de desenvolvimento elaboradas no seio das diversas entidades intergovernamentais; b) servir de instância de referência e de articulação entre os Estados, os organismos internacionais governamentais e não-governamentais, a sociedade civil e o setor privado para a elaboração conjunta de conceitos, objetivos e políticas em favor da diversidade cultural; c) dar seguimento a suas atividades normativas, de sensibilização e de desenvolvimento de capacidades nos âmbitos relacionados com a presente Declaração dentro de suas esferas de competência; d) facilitar a aplicação do Plano de Ação, cujas linhas gerais se encontram apensas à presente Declaração. ANEXO VII Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos Índice: I II III IV V VI VII VIII IX X XI XII XIII XIV XV XVI XVII XVIII XIX XX XXI XXII XXIII Direito à Vida Direito à Liberdade Direito à Igualdade e Proibição de Discriminação Ilícita Direito à Justiça Direito a um Julgamento Justo Direito à Proteção contra o Abuso de Poder Direito à Proteção contra a Tortura Direito à Proteção da Honra e da Reputação Direito ao Asilo Direito das Minorias Direito e Obrigação de Participação na Condução e Direção da Coisa Pública Direito à Liberdade de Crença, Pensamento e Expressão Direito à Liberdade de Religião Direito à Livre Associação A Ordem Econômica e os Direitos dela decorrentes Direito à Proteção da Propriedade Condição e Dignidade dos Trabalhadores Direito à Seguridade Social Direito de Constituir Família e Assuntos Correlatos Direitos das Mulheres Casadas Direito à Educação Direito à Privacidade Direito à Liberdade de Movimento e de Moradia Esta é uma declaração para a humanidade, uma orientação e instrução para aqueles que temem a Deus. (Alcorão Sagrado, Al-Imran 3:138) (Alcorão Sagrado, Al-Imran 3:138) Prefácio: Há quatorze séculos atrás, o Islam concedeu à humanidade um código ideal de direitos humanos. Esses direitos têm por objetivo conferir honra e dignidade à humanidade, eliminando a exploração, a opressão e a injustiça. Os direitos humanos no Islam estão firmemente enraizados na crença de que Deus, e somente Ele, é o Legislador e a Fonte de todos os direitos humanos. Em razão de sua origem divina, nenhum governante, governo, assembléia ou autoridade pode reduzir ou violar, sob qualquer hipótese, os direitos humanos conferidos por Deus, assim como não podem ser cedidos. Os direitos humanos no Islam são parte integrante de toda a ordem islâmica e se impõem sobre todos os governantes e órgãos da sociedade muçulmana, com o objetivo de implementar, na letra e no espírito, dentro da estrutura daquela ordem. Infelizmente os direitos humanos estão sendo esmagados impunemente em muitos países do mundo, inclusive em alguns países muçulmanos. Tais violações são objeto de grande preocupação e estão despertando cada vez mais a consciência das pessoas em todo o mundo. Espero sinceramente que esta Declaração dos Direitos Humanos seja um poderoso estímulo aos muçulmanos para que se mantenham firmes e defendam decidida e corajosamente os direitos conferidos a todos por Deus. Esta Declaração dos Direitos Humanos é o segundo documento fundamental proclamado pelo Conselho Islâmico para marcar o início do 15° século da Era Islâmica, sendo o primeiro a Declaração Islâmica Universal, proclamada na Conferência Internacional sobre o Profeta Muhammad (que a Paz e a Bênção de Deus estejam sobre ele), e sua Mensagem, ocorrida em Londres, no período de 12 a 15 de abril de 1980. A Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos baseia-se no Alcorão e na Sunnah e foi compilada por eminentes estudiosos, juristas e representantes muçulmanos dos movimentos e pensamento islâmicos. Que Deus os recompense por seus esforços e que nos guie na senda reta. Paris, 21 dhul qaidah, 1401- Salem Azzam 19 de setembro de 1981 – Secretaria Geral "Ó humanos, em verdade, Nós vos criamos de macho e fêmea e vos dividimos em povos e tribos para reconhecerdes uns aos outros. Sabei que o mais honrado, dentre vós, ante Deus,é o mais temente.Sabei que Deus é Sapientíssimo e está bem inteirado." (Alcorão Sagrado, Al Hujjurat 49:13) (Alcorão Sagrado, Al Hujjurat 49:13) Introdução: CONSIDERANDO que a antiga aspiração humana por uma ordem mundial mais justa, onde as pessoas possam viver, crescer e prosperar num ambiente livre do medo, da opressão, da exploração e da privação, ainda não foi alcançada; CONSIDERANDO que a Divina Misericórdia para com a humanidade, revelada na concessão de uma subsistência econômica superabundante, está sendo desperdiçada ou injustamente negada aos habitantes da terra; CONSIDERANDO que Allah (Deus) deu à humanidade, através de Suas revelações no Sagrado Alcorão e na Sunnah de Seu Abençoado Profeta Muhammad, uma estrutura moral e legal permanente para estabelecer e regulamentar as instituições e relações humanas; CONSIDERANDO que os direitos humanos decretados pela Lei Divina objetivam conferir dignidade e honra à humanidade e que foram elaborados para eliminar a opressão e a injustiça; CONSIDERANDO que em razão de sua fonte e sanção Divinas tais direitos não podem ser diminuídos, abolidos ou desrespeitados pelas autoridades, assembléias e outras instituições, nem podem ser cedidos ou alienados; Por conseguinte, nós, como muçulmanos, que acreditamos: a. b. c. d. em Deus, o Misericordioso e Clemente, o Criador, o Sustentador, o Soberano, o Único Guia da humanidade e a Fonte de todas as leis; na vice-gerência (khilafah) do homem, que foi criado para satisfazer a Vontade de Deus na terra; na sabedoria da orientação Divina trazida por Seus Profetas, cuja missão atingiu seu ápice na mensagem Divina final, que foi transmitida pelo Profeta Muhammad (que a Paz e a Benção de Deus estejam sobre ele), a toda a humanidade; que a razão por si só, sem a luz da revelação de Deus não pode ser um guia certo nas questões do ser humano nem pode fornecer o alimento espiritual para a alma humana e, e. f. g. 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. sabendo que os ensinamentos do Islam representam a quintessência da orientação Divina em sua forma mais perfeita e acabada, sentimo-nos na obrigação de lembrar ao ser humano de sua condição e dignidade elevadas outorgadas a ele por Deus; que a mensagem do Islam é para toda a humanidade; que de acordo com os termos do nosso primeiro pacto com Deus, nossos deveres e obrigações têm prioridade sobre nossos direitos, e que cada um de nós está obrigado a divulgar os ensinamentos do Islam pela palavra, atos e, na verdade, por todos os meios nobres, e torná-los efetivos não só em nossa vida em particular, mas também na sociedade a que pertencemos; em nossa obrigação em estabelecer uma ordem islâmica: onde todos os seres humanos sejam iguais e que ninguém goze de privilégios ou sofra prejuízo ou discriminação em razão de raça, cor, sexo, origem ou língua; onde todos os seres humanos nasçam livres; onde a escravidão e o trabalho forçado sejam abolidos; onde as condições sejam estabelecidas de tal forma que a instituição da família seja preservada, protegida e honrada como a base de toda a vida social; onde os governantes e governados sejam submissos e iguais perante a Lei; onde a obediência seja prestada somente àqueles mandamentos que estejam em consonância com a Lei; onde todo o poder mundano seja considerado como uma obrigação sagrada a ser exercido dentro dos limites prescritos pela Lei e nos termos aprovados por ela e com o devido respeito às prioridades fixadas nela; onde todas os recursos econômicos sejam tratados como bênçãos divinas outorgadas à humanidade, para usufruto de todos, de acordo com as normas e os valores estabelecidos no Alcorão e na Sunnah; onde todas as questões públicas sejam determinadas e conduzidas, e a autoridade para administrá-las seja exercida após consulta mútua (shura) entre os fiéis qualificados para contribuir na decisão, a qual deverá estar em conformidade com a Lei e o bem público; onde todos cumpram suas obrigações na medida de sua capacidade e que sejam responsáveis por seus atos pro rata; onde, na eventualidade da infringência a seus direitos, todos tenham asseguradas as medidas corretivas adequadas, de acordo com a Lei; onde ninguém seja privado dos direitos assegurados pela Lei, exceto por sua autoridade e nos casos previstos por ela; onde todo o indivíduo tenha o direito de promover ação legal contra aquele que comete um crime contra a sociedade, como um todo, ou contra qualquer de seus membros; onde todo empenho seja feito para a. b. assegurar que a humanidade se liberte de qualquer tipo de exploração, injustiça e opressão; garantir a todos seguridade, dignidade e liberdade nos termos estabelecidos e pelos meios aprovados, e dentro dos limites previstos em lei. Assim, como servos de Deus e como membros da Fraternidade Universal do Islam, no início do século XV da Era Islâmica, afirmamos nosso compromisso de defender os seguintes direitos invioláveis e inalienáveis, que consideramos ordenados pelo Islam: I – Direito à Vida a. b. A vida humana é sagrada e inviolável e todo esforço deverá ser feito para protegê-la. Em especial, ninguém será exposto a danos ou à morte, a não ser sob a autoridade da Lei. Assim como durante a vida, também depois da morte a santidade do corpo da pessoa será inviolável. É obrigação dos fiéis providenciar para que o corpo do morto seja tratado com a devida solenidade. II – Direito à Liberdade a. b. O homem nasce livre. Seu direito à liberdade não deve ser violado, exceto sob a autoridade da Lei, após o devido processo. Todo o indivíduo e todos os povos têm o direito inalienável à liberdade em todas as suas formas, física, cultural, econômica e política – e terá o direito de lutar por todos os meios disponíveis contra qualquer infringência a este direito ou a anulação dele; e todo indivíduo ou povo oprimido tem o direito legítimo de apoiar outros indivíduos e/ou povos nesta luta. III – Direito à Igualdade e Proibição Contra a Discriminação Ilícita a. b. c. Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito a oportunidades iguais e proteção da Lei. Todas as pessoas têm direito a salário igual para trabalho igual. A ninguém será negada a oportunidade de trabalhar ou será discriminado de qualquer forma, ou exposto a risco físico maior, em razão de crença religiosa, cor, raça, origem, sexo ou língua. IV – Direito à Justiça a. b. c. d. e. Toda a pessoa tem o direito de ser tratada de acordo com a Lei e somente na conformidade dela. Toda a pessoa tem não só o direito mas também a obrigação de protestar contra a injustiça, de recorrer a soluções prevista em Lei, com relação a qualquer dano pessoal ou perda injustificada; para a auto-defesa contra quaisquer ataques contra ela e para obter apreciação perante um tribunal jurídico independente em qualquer disputa com as autoridades públicas ou outra pessoa qualquer. É direito e obrigação de todos defender os direitos de qualquer pessoa e da comunidade em geral (hisbah) Ninguém será discriminado por buscar defender seus direitos públicos e privados. É direito e obrigação de todo muçulmano recusar-se a obedecer a qualquer ordem que seja contrária à Lei, não importa de onde ela venha. V – Direito a Julgamento Justo a. b. c. d. e. Ninguém será considerado culpado de ofensa e sujeito à punição, exceto após a prova de sua culpa perante um tribunal jurídico independente. Ninguém será considerado culpado, senão após um julgamento justo e depois que tenha sido dada ampla oportunidade de defesa. A punição será estabelecida de acordo com a Lei, na medida da gravidade da ofensa e levadas em conta as circunstâncias sob as quais ela aconteceu. Nenhum ato será considerado crime, a menos que esteja estipulado como tal, nos termos da Lei. Todo indivíduo é responsável por seus atos. A responsabilidade por um crime não pode ser estendida a outros membros da família ou grupo, que, de outra maneira, não estejam direta ou indiretamente envolvidos no cometimento do crime em questão. VI – Direito de Proteção Contra o Abuso de Poder Toda a pessoa tem o direito de proteção contra embaraços promovidos pelas instituições oficiais. Ela não é responsável por prestar contas de si, exceto quando para fazer a defesa de acusações que pesam contra ela ou onde ela se ache em uma situação em que a suspeita de seu envolvimento em um crime seja razoavelmente levantada. VII – Direito a Proteção Contra a Tortura Ninguém será submetido à tortura de corpo e de mente, ou aviltado, ou ameaçado de dano contra si ou contra qualquer parente ou ente querido, ou será forçado a confessar o cometimento de um crime ou forçado a consentir com um ato que seja prejudicial a seus interesses. VIII – Direito à Proteção da Honra e da Reputação Toda a pessoa tem o direito de proteger sua honra e reputação contra calúnias, ataques sem fundamento ou tentativas deliberadas de difamação e chantagem. IX – Direito de Asilo a. b. Toda pessoa perseguida ou oprimida tem o direito de buscar refúgio e asilo. Este direito é garantido a todo ser humano, independente de raça, religião, cor ou sexo. Al Masjid Al Haram (A Casa Sagrada de Allah) em Makkah é um santuário para todos os muçulmanos. X- Direitos das Minorias a. O princípio alcorânico "não há compulsão na religião" deve governar os direitos religiosos das b. minorias não muçulmanas. Em um país muçulmano, as minorias religiosas, no que se refere às suas questões civis e pessoais, terão o direito de escolher serem regidas pela Lei Islâmica ou por suas próprias leis. XI - Direito e Obrigação de Participação na Condução e Direção da Coisa Pública a. b. Sujeito à lei, todo indivíduo na comunidade (Ummah) tem o direito de assumir um cargo público. O processo de consulta livre (Shura) é a base da relação administrativa entre o governo e o seu povo. De acordo com esse princípio, as pessoas também têm o direito de escolher e exonerar seus governantes. XII – Direito de Liberdade de Crença, Pensamento e Expressão a. b. c. d. e. Toda a pessoa tem o direito de expressar seus pensamentos e crenças desde que permaneça dentro dos limites estabelecidos pela Lei. Ninguém, no entanto, terá autorização para disseminar a discórdia ou circular notícias que afrontem a decência pública ou entregarse à calúnia ou lançar a difamação sobre outras pessoas. A busca do conhecimento e da verdade não só é um direito de todo muçulmano como também uma obrigação. É direito e dever de todo muçulmano protestar e lutar (dentro dos limites estabelecidos em Lei) contra a opressão, ainda que implique em desafiar a mais alta autoridade do estado. Não haverá qualquer obstáculo para a propagação de informação, desde que não prejudique a segurança da sociedade ou do estado e que esteja dentro dos limites impostos pela Lei. Ninguém será desprezado ou ridicularizado em razão de suas crenças religiosas ou sofrerá qualquer hostilidade pública; todos os muçulmanos são obrigados a respeitar os sentimentos religiosos das pessoas . XIII – Direito à Liberdade de Religião Toda a pessoa tem o direito à liberdade de consciência e de culto, de acordo com suas crenças religiosas. XIV – Direito de Livre Associação a. b. Toda a pessoa tem o direito de participar individual ou coletivamente da vida política, social e religiosa de sua comunidade e de criar instituições e escritórios com a finalidade de permitir o que é direito (ma’roof) e impedir o que é errado (munkar). Toda a pessoa tem o direito de lutar pelo estabelecimento de instituições onde o gozo desses direitos seja possível. Coletivamente, a comunidade é obrigada a criar tais condições com o fim de permitir a seus membros o desenvolvimento completo de suas personalidades. XV – A Ordem Econômica e os Direitos Dela Decorrentes a. b. c. d. e. f. g. Na sua busca econômica, todas as pessoas têm direito a todos os benefícios da natureza e de seus recursos. Eles são bênçãos concedidas por Deus para o bem da humanidade como um todo. Todos os seres humanos têm o direito de ganhar seu sustento de acordo com a Lei. Toda a pessoa tem o direito à propriedade privada ou em associação com outras. A propriedade estatal de certos recursos econômicos no interesse público é legítima. O pobre tem direito a uma parte prescrita na fortuna do rico, conforme estabelecido pelo Zakat, cobrado e arrecado de acordo com a Lei. Todos os meios de produção serão utilizados no interesse da comunidade (Ummah) como um todo e não podem ser descuidados ou malversados. A fim de promover o desenvolvimento de uma economia equilibrada e proteger a sociedade da exploração, a Lei islâmica proíbe monopólios, práticas comerciais restritivas desmedidas, usura, o uso da força para fazer contratos e a publicação de propaganda enganosa. Todas as atividades econômicas são permitidas, desde que não prejudiquem os interesses da comunidade (Ummah) e não violem as leis e valores islâmicos. XVI – Direito de Proteção da Propriedade Nenhuma propriedade será expropriada, exceto quando no interesse público e mediante o pagamento de uma compensação justa e adequada. XVII – Condição e Dignidade dos Trabalhadores O Islam dignifica o trabalho e o trabalhador e ordena que os muçulmanos tratem o trabalhador justa e generosamente. Não só deve receber seus salários imediatamente como também tem direito ao repouso adequado e ao lazer. XVIII – Direito à Seguridade Social Toda a pessoa tem direito à alimentação, moradia, vestuário, educação e assistência médica, compatível com os recursos da comunidade. Esta obrigação da comunidade se estende em particular a todos os indivíduos sem condições, em razão de alguma incapacidade temporária ou permanente. XIX - Direito de Constituir Família e Assuntos Correlatos a. Toda pessoa tem o direito de se casar, constituir família e ter filhos, de acordo com sua b. c. d. e. f. g. h. religião, tradições e cultura. Todo cônjuge está autorizado a usufruir tais direitos e privilégios e deve cumprir essas obrigações na conformidade do estabelecido na Lei. Cada um dos parceiros no casamento tem direito ao respeito e consideração por parte do outro. Todo marido é obrigado a manter sua esposa e filhos, de acordo com suas possibilidades. Toda criança tem o direito de ser mantida e educada convenientemente por seus pais, sendo proibido o trabalho de crianças novas ou que qualquer ônus seja colocado sobre elas, que possam interromper ou prejudicar seu desenvolvimento natural. Se por alguma razão seus pais estiverem impossibilitados de cumprir com suas obrigações para com a criança, torna-se responsabilidade da comunidade a satisfação dessas obrigações às custas do poder público. Toda pessoa tem direito ao apoio material, assim como ao cuidado e proteção de sua família durante a infância, na velhice ou na incapacidade. Os pais têm direito ao apoio material, assim como ao cuidado e proteção de seus filhos. A maternidade tem direito a respeito especial, cuidado e assistência por parte da família e dos órgãos públicos da comunidade (Ummah). Na família, homens e mulheres devem compartilhar suas obrigações e responsabilidades, de acordo com o sexo, dotes naturais, talentos e inclinações, sem perder de vista as responsabilidades comuns para com os filhos e parentes. i. Ninguém deverá se casar contra sua vontade, nem perder ou sofrer diminuição de sua personalidade legal por conta do casamento. XX – Direitos das Mulheres Casadas Toda mulher casada tem direito a: a. b. c. d. e. morar na casa em que seu marido mora; receber os meios necessários para a manutenção de um padrão de vida que não seja inferior ao de seu marido e, em caso de divórcio, receber, durante o período legal de espera (iddah), os meios de subsistência compatíveis com os recursos do marido, para si e para os filhos que amamenta ou que cuida, independente de sua própria condição financeira, ganhos ou propriedades que possua; procurar e obter a dissolução do casamento (khul’a), na conformidade da Lei. Este direito é cumulativo com o direito de buscar o divórcio através das cortes; herdar de seu marido, pais, filhos e outros parentes, de acordo com a Lei; segredo absoluto de seu marido, ou ex-marido se divorciada, com relação a qualquer informação que ele possa ter obtido sobre ela, e cuja revelação resulte em prejuízo a seus interesses. Idêntica responsabilidade cabe a ela, em relação ao marido ou ao ex-marido. XXI – Direito à Educação a. b. Toda pessoa tem direito a receber educação de acordo com suas habilidades naturais. Toda pessoa tem direito de escolher livremente profissão e carreira e de oportunidade para o pleno desenvolvimento de suas inclinações naturais. XXII – Direito à Privacidade Toda pessoa tem direito à proteção de sua privacidade. XXIII – Direito de Liberdade de Movimento e de Moradia a. b. Considerando o fato de que o Mundo do Islam é verdadeiramente a Ummah Islâmica, todo muçulmano terá o direito de se mover livremente dentro e fora de qualquer país muçulmano. Ninguém será forçado a deixar o país de sua residência ou ser arbitrariamente deportado sem o recurso do devido processo legal. Notas Explicativas: 1. Na Declaração dos Direitos Humanos acima, a menos que o contexto propicie de outra forma: Na Declaração dos Direitos Humanos acima, a menos que o contexto propicie de outra forma: a. b. o termo "pessoa" refere-se tanto ao homem quanto à mulher. O termo "Lei" significa a Chari’ah, ou seja, a totalidade de suas normas provém do Alcorão e da Sunnah e de quaisquer outras leis que tenham sido baseadas nessas duas fontes, através de métodos considerados válidos pela jurisprudência islâmica. 2. Cada um dos direitos humanos enunciados nesta declaração traz uma obrigação correspondente. Cada um dos direitos humanos enunciados nesta declaração traz uma obrigação correspondente. 3. No exercício e gozo dos direitos citados acima, toda pessoa se sujeitará apenas aos limites da lei, assim como por ela se obriga a assegurar o devido reconhecimento e respeito pelos direitos e liberdade dos outros, e de satisfazer as justas exigências de moralidade, ordem pública e bem-estar geral da Comunidade (Ummah). No exercício e gozo dos direitos citados acima, toda pessoa se sujeitará apenas aos limites da lei, assim como por ela se obriga a assegurar o devido reconhecimento e respeito pelos direitos e liberdade dos outros, e de satisfazer as justas exigências de moralidade, ordem pública e bem-estar geral da Comunidade (Ummah). O texto árabe desta Declaração é o original. Glossário dos termos árabes: SUNNAH – O exemplo e o modo de vida do Profeta Muhammad (que a Paz e a Bênção de Deus estejam sobre ele), compreendendo tudo o que ele disse ou concordou. KHALIFAH – A vice-gerência do homem na terra, ou o sucessor do Profeta, transliterado para Califado. HISBAH - Vigilância Pública, uma instituição do estado islâmico que está autorizado a observar e a facilitar a satisfação das normas corretas do comportamento público. "Hisbah" consiste na vigilância pública e é uma oportunidade para que as pessoas procurem se corrigir. MA'ROOF – Boa ação. MUNKAR – Ato repreensível. ZAKAH – O imposto "purificador" sobre a riqueza, um dos cinco pilares do Islam e que é compulsório aos muçulmanos. 'IDDAH – O período de espera da mulher viúva ou divorciada, durante o qual ela não pode se casar de novo. KHUL'A – Divórcio obtido por solicitação da mulher. UMMAH ISLAMIA – Comunidade Muçulmana Mundial. CHARI'AH – Lei Islâmica. Referências: Nota: Os algarismos romanos referem-se a tópicos do texto. Os algarismos arábicos referem-se ao Capítulo e Versículo do Alcorão, por exemplo, 5:32 significa Capítulo 5, versículo 32. I 1 2 3 Alcorão Al-Maidah 5:32 Hadith narrado por Muslim, Abu Daud,Tirmidhi, Nasai Hadith narrado por Bukhari II 4 Hadith narrado por Bukhari, Muslim 5 Ditos do Califa Omar 6 Alcorão As-Shura 42:41 7 Alcorão Al-Hajj 22:41 III 8 Sermão do Profeta 9 Hadith narrado por Bukhari, Muslim, Abu Daud, Tirmidhi, Nasai 10 Do sermão do Califa Abu Bakr 11 Do Sermão da Despedida, do Profeta 12 Alcorão Al-Ahqaf 46:19 13 Hadith narrado por Ahmad 14 Alcorão Al-Mulk 67:15 15 Alcorão Al-Zalzalah 99:7-8 IV 16 Alcorão An-Nisa 4:59 17 Alcorão Al-Maidah 5:49 18 Alcorão An-Nisa 4:148 19 Hadith narrado por Bukhari, Muslim, Tirmidhi 20 Hadith narrado por Bukhari, Muslim 2l Hadith narrado por Muslim, Abu Daud, Tirmdhi, Nasai 22 Hadith narrado por Bukhari, Muslim, Abu Daud, Tirmidhi, Nasai 23 24 25 Hadith narrado por Abu Daud, Tirmidhi Hadith narrado por Bukhari, Muslim, Abu Daud, Tirmidhi, Nasai Hadith narrado por Bukhari V 26 Hadith narrado por Bukhari, Muslim 27 Alcorão Al-Isra 17:15 28 Alcorão Al-Ahzab 33:5 29 Alcorão Al-Hujurat 49:6 30 Alcorão An-Najm 53:28 31 Alcorão Al Baqarah 2:229 32 Hadith narrado por Al Baihaki, Hakim 33 Alcorão Al-Isra 17:15 34 Alcorão At-Tur 52:21 35 Alcorão Yusuf 12:79 VI 36 VII 37 Hadith narrado por Bukhari, Muslim, Abu Daud, Tirmidhi, Nasai 38 Hadith narrado por Ibn Majah Alcorão Al Ahzab 33:58 VIII 39 Do Sermão da Despedida, do Profeta 40 Alcorão Al-Hujurat 49:12 41 Alcorão Al-Hujurat 49:11 IX 42 Alcorão At-Tawba 9:6 43 Alcorão Al-Imran 3:97 44 Alcorão Al-Baqarah 2:125 45 Alcorão Al-Hajj 22:25 X 46 Alcorão Al Baqarah 2:256 47 Alcorão Al-Maidah 5:42 48 Alcorão Al-Maidah 5:43 49 Alcorão Al-Maidah 5:47 XI 50 Alcorão As-Shura 42:38 51 Hadith narrado por Ahmad 52 Do sermão do Califa Abu Bakr XII 53 Alcorão Al-Ahzab 33:60-61 54 Alcorão Saba 34:46 55 Hadith narrado por Tirmidhi, Nasai 56 Alcorão An-Nisa 4:83 57 Alcorão Al-Anam 6:108 XIII 58 Alcorão Al Kafirun 109:6 XIV 59 Alcorão Yusuf 12:108 60 Alcorão Al-Imran 3:104 61 Alcorão Al-Maidah 5:2 62 Hadith narrado por Abu Daud, Tirmidhi, Nasai, Ibn Majah XV 63 64 65 66 67 68 69 Alcorão Al-Maidah 5:120 Alcorão Al-Jathiyah 45:13 Alcorão Ash-Shuara 26:183 Alcorão Al-Isra 17:20 Alcorão Hud 11:6 Alcorão Al-Mulk 67:15 Alcorão An-Najm 53:48 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 Alcorão Al-Hashr 59:9 Alcorão Al-Maarij 70:24-25 Ditos do Califa Abu Bakr Hadith narrado por Bukhari, Muslim Hadith narrado por Muslim Hadith narrado por Muslim, Abu Daud, Tirmidhi, Nasai Hadith narrado por Bukhari, Muslim, Abu Daud, Tirmidhi, Nasai Alcorão Al-Mutaffifin 83:1-3 Hadith narrado por Muslim Alcorão Al-Baqarah 2:275 Hadith narrado por Bukhari, Muslim, Abu Daud, Tirmidhi, Nasai XVI 81 Alcorão Al Baqarah 2:188 82 Hadith narrado por Bukhari 83 Hadith narrado por Muslim 84 Hadith narrado por Muslim, Tirmidhi XVII 85 Alcorão At-Tawbah 9:105 86 Hadith narrado por Abu Yala¾ Majma Al Zawaid 87 Hadith narrado por Ibn Majah 88 Alcorão Al-Ahqaf 46:19 89 Alcorão At-Tawbah 9:105 90 Hadith narrado por Tabarani¾ Majma Al Zawaid 91 Hadith narrado por Bukhari XVIII 92 Alcorão Al-Ahzab 33:6 XIX 93 94 95 96 97 98 99 100 101 102 103 XX 104 Alcorão At-Talaq 65:6 105 Alcorão An-Nisa 4:34 106 Alcorão At-Talaq 65:6 107 Alcorão AtTalaq 65:6 108 Alcorão Al-Baqarah 2:229 109 Alcorão An-Nisa 4:12 110 Alcorão Al-Baqarah 2:237 XXI 111 112 113 114 115 116 XXII 117 Hadith narrado por Muslim 118 Alcorão Al-Hujurat 49:12 119 Hadith narrado por Abu Daud, Tirmidhi Alcorão An-Nisa 4:1 Alcorão Al-Baqarah 2:228 Hadith narrado por Bukhari, Muslim,Abu Daud, Tirmidhi, Nasai Alcorão Ar-Rum 30:21 Alcorão At-Talaq 65:7 Alcorão Al-Isra 17:24 Hadith narrado por Bukhari, Muslim,Abu Daud, Tirmidhi Hadith narrado por Abu Daud Hadith narrado por Bukhari, Muslim Hadith narrado por Abu Daud, Tirmidhi Hadith narrado por Ahmad, Abu Daud Alcorão Al-Isra 17:23-24 Hadith narrado por Ibn Majah Alcorão Al-Imran 3:187 Sermão da Despedida, do Profeta Hadith narrado por Bukhari, Muslim Hadith narrado por Bukhari, Muslim, Abu Daud, Tirmidhi XXIII 120 121 122 123 124 Alcorão Al-Mulk 67:15 Alcorão Al-Anam 6:11 Alcorão An-Nisa 4:97 Alcorão Al-Baqarah 2:217 Alcorão Al-Hashr 59:9