MarOriginal ins e cols. Artigo Ecodopplercardiograma em portadores de anemia falciforme Arq Bras Cardiol volume 73, (nº 6), 1999 Estudo Ecodopplercardiográfico em Adolescentes e Adultos Jovens Portadores de Anemia Falciforme Wolney de Andrade Martins, Evandro Tinoco Mesquita, Delma Maria da Cunha, Luiz Augusto de Freitas Pinheiro, Luiz José Martins Romêo Fº, Raul Carlos Pareto Jr Niterói - Teresópolis, RJ Objetivo - Avaliação anatômica e funcional do coração, através da ecodopplercardiografia, na anemia falciforme (AF). Métodos - Estudaram-se, prospectivamente, 25 pacientes com anemia falciforme, entre 14 e 45 anos, comparandose com 25 voluntários sadios. Todos submeteram-se à avaliação clínica e laboratorial e à ecodopplercardiografia. As medidas foram convertidas para índices de superfície corporal. Resultados - Houve aumentos de todos os diâmetros cavitários e da massa do ventrículo esquerdo (VE) no grupo com AF. Caracterizou-se um padrão de hipertrofia excêntrica. Houve aumento da pré-carga (volume telediastólico) e diminuição da pós-carga (pressão arterial diastólica, resistência vascular periférica e estresse parietal telessistólico EPS).O índice cardíaco esteve aumentado às custas do volume de ejeção. A fração de ejeção, o percentual de encurtamento sistólico e os intervalos sistólicos foram equivalentes. O período de contração isovolumétrica do VE esteve aumentado. Houve aumentos da distância E-septo mitral e do índice de volume telessistólico (iVolS). A relação EPS/ iVolS, parâmetro independente das alterações de carga, esteve diminuída na AF, indicando disfunção sistólica do VE. Não houve diferenças na função diastólica ou na pressão pulmonar. Conclusão - As dilatações cavitárias, a hipertrofia excêntrica e a disfunção sistólica corroboram as evidências da literatura na caracterização de uma cardiomiopatia falcêmica. Palavras-chave: anemia falciforme, ecocardiografia, cardiomiopatia. Universidade Federal Fluminense e Faculdade de Medicina de Teresópolis Correspondência: Wolney de Andrade Martins - Rua Josepha Fernandes Plaza, 3 23845-550 - Dom Bosco - Seropédica - RJ Recebido para publicação em 12/12/98 Aceito em 23/8/99 Certamente não pode ser creditado à casualidade, e sim à exuberância das manifestações cardiovasculares, o fato de a anemia falciforme ter sido descrita pela primeira vez por um cardiologista 1. No Brasil, a influência dos povos africanos na formação étnica fez com que as doenças falciformes se tornassem as doenças hereditárias de maior prevalência 2-4. A anemia falciforme apresenta alta morbimortalidade 2,5,6 e curso clínico mais grave do que as anemias carenciais 7, constituindo um problema clínico e epidemiológico. O afoiçamento da hemácia diminui sua flexibilidade e, conseqüentemente, alentece sua passagem pela microcirculação. Acredita-se que a patogênese seja multifatorial, porém, o alentecimento do fluxo com a isquemia conseqüente deve ser o fator principal no processo de agressão contínua e progressiva ao miocárdio 8-10. É consensual que a anemia falciforme leva à cardiomegalia 11-15 e a um estado de alto débito secundário ao aumento da pré-carga e diminuição da pós-carga 15-18. Houve hipótese 19, posteriormente contestada 20, de que haveria maior prevalência de prolapso valvar mitral em pacientes falcêmicos. Há escassez de estudos da pressão arterial pulmonar ecodopplercardiografia nestes pacientes. São controversas as presenças de disfunção sistólica e diastólica do ventrículo esquerdo 17,21. Controvérsia esta, em parte explicada pelas interferências das alterações da pré e pós-cargas sobre os parâmetros ecocardiográficos de avaliação. Freqüentemente, a exuberância das alteraç es cardiovasculares ao exame físico e as queixas de dispnéia e cansaço motivam o encaminhamento do paciente com anemia falciforme ao cardiologista. Apesar da evolução dos métodos diagnósticos em cardiologia e da expressiva presença de falcêmicos nas instituições de atendimento terciário, encontram-se poucos trabalhos em população adulta, com metodologia criteriosa, excluindo heterozigotos e outras hemoglobinopatias do grupo de estudo. As inúmeras dúvidas motivaram este estudo, cujo objetivo é uma avaliação anatômica e funcional do coração, através da ecodopplercardiografia, em adolescentes e adultos jovens com anemia falciforme. Arq Bras Cardiol, volume 73 (nº 6), 463-468, 1999 463 Arq Bras Cardiol volume 73, (nº 6), 1999 Mar ins e cols. Ecodopplercardiograma em portadores de anemia falciforme Métodos No período de 12 meses, estudaram-se, prospectivamente, 50 indivíduos voluntários, cientes e concordantes com a pesquisa, divididos em dois grupos. O grupo de doentes foi denominado falcêmico e o de voluntários sadios como grupo referência. Após a exclusão daqueles que não atenderam às exigências do protocolo, cada grupo foi formado por 25 indivíduos, entre 14 e 45 anos. A idade média do grupo falcêmico foi de 26,56+9,19 anos e do grupo referência foi de 26,76+7,62 anos. Houve eqüivalência estatística quanto à idade (p=0,90), ao sexo (p=0,77) e ao tipo racial (p=0,92). No grupo falcêmico, incluíram-se aqueles sob acompanhamento ambulatorial, com o diagnóstico clínico e eletroforético da forma homozigótica da hemoglobinopatias (HbSS). Excluíram-se os pacientes sob crises álgicas, hemolíticas e com infecções nas quatro semanas anteriores, assim como os hemotransfundidos nos três meses anteriores. Excluíram-se os portadores de outras doenças, as gestantes e aqueles sob uso de drogas com efeito cardiovascular. Os 50 indivíduos foram submetidos ao exame clínico, coleta de sangue para hemograma completo, eletroforese de hemoglobina em acetato de celulose, glicemia, creatinina, uréia, sódio e potássio. Foram submetidos à telerradiografia do tórax em posições póstero-anterior e de perfil e eletrocardiografia basal. Todos submeteram-se à ecodopplercardiografia com aferição da pressão arterial em momento próximo à obtenção dos diâmetros e fluxos do ventrículo esquerdo. A pressão arterial foi medida no membro superior direito, em decúbito dorsal, através de esfigmomanômetro de coluna de mercúrio, de uso exclusivo para o estudo. A pressão telessistólica do ventrículo esquerdo (PTS) foi inferida através de uma equação de regressão obtida a partir do cateterismo cardíaco e validada na literatura 17,22-24, onde a pressão telessistolica do ventrículo esquerdo foi igual a pressão sistólica à esfigmomanometria multiplicada por 0,66 e acrescida da constante 13,55. Obteve-se a ecodopplercardiografia, por um só executor, no mesmo aparelho, com transdutor de 3,5MHz, com eletrocardiografia basal concomitante. Foram utilizadas as médias aritméticas de, no mínimo, três ciclos cardíacos consecutivos, de todas as variáveis ecocardiográficas. Os exames foram gravados e revisados por dois ecocardiografistas independentes e alheios aos laudos anteriores que procederam análise qualitativa dos exames. As variáveis ecocardiográficas foram corrigidas para a superfície corporal de cada indivíduo e referidas como índices 25. Cabe ressaltar que algumas aferições seguiram os critérios especiais seguintes: 1) estimou-se a massa ventricular esquerda através da equação de Bennett e cols. 26, considerando-se as determinações da Convenção de Penn 27 para a aquisição das medidas. A equação de Bennett e cols. 26 determina que a massa do ventrículo esquerdo = [(2 x PPVEd + VEd)3 – VEd3] x 1,05, onde PPVEd= espessura diastólica da parede posterior do ventrículo esquerdo e VEd= diâmetro diastólico do ventrículo esquerdo; 2) calculou-se a espessura 464 relativa do septo (ERS) através da fórmula, onde a ERS é o dobro da espessura diastólica do septo interventricular dividida pelo diâmetro diastólico do ventrículo esquerdo. Considerou-se normal valor menor que 0,45 28; 3) calculou-se o volume de ejeção (VEj) através da integral do fluxo na via de saída do ventrículo esquerdo e da área aórtica estimada ao modo M 28-31; 4) estimou-se a resistência vascular periférica total (RVPt) através da divisão da pressão arterial média (PAM) pelo débito cardíaco (DC) multiplicado pela constante 80 25; 5) obtiveram-se os intervalos sistólicos do ventrículo esquerdo através da aferição do fluxograma intermediário entre o transmitral e o da via de saída do ventrículo esquerdo comparados a eletrocardiografia basal concomitante 32; 6) os critérios para o diagnóstico de prolapso valvar mitral foram: o abaulamento sistólico de um ou dois folhetos para o interior do átrio esquerdo no corte paraesternal longitudinal; o movimento meso ou telessistólico posterior do aparelho valvar mitral ou a amplitude excessiva do folheto anterior na diástole (distância CE>25mm) 32; 7) calculou-se o espessamento telessistólico da parede posterior do ventrículo esquerdo (EPP) por uma modificação do método proposto por Hugenholz e cols. 33, no qual, EPP=0,5 [(VEd+2 PPVEd)3 - (VEd)3 + (VEs)3]1/3 - 0,5 x VEs; 8) obteve-se o estresse parietal telessistólico (EPS) pela equação a seguir 17, 22, 34-36: EPS = PTS X VEs . 4 X EPP(1 + EPP/VEs) 9) obteve-se a relação estresse parietal/índice de volume telessistólicos pela divisão do estresse parietal telessistólico pelo índice de volume telessistólico do ventrículo esquerdo (iVolS) 17; 10) inferiu-se a pressão arterial pulmonar (PAP), a partir do fluxograma da via de saída do ventrículo direito, através das equações propostas por Isobe e cols. 37. Procedeu-se a análise estatística dos resultados pelos testes t de Student ou Mann-Whitney para amostras independentes ou o qui-quadrado ou exato de Fisher para as proporções. O coeficiente de correlação de Pearson foi usado para medir o grau de associação entre duas variáveis intervalares. O critério de determinação de significância foi o nível de 5%. Resultados Os estudos uni, bidimensional e ao Doppler não evidenciaram lesões oro-valvares, defeitos estruturais ou alterações pericárdicas nos 50 indivíduos, excetuando-se um caso de prolapso valvar mitral, com regurgitação leve, sem degeneração mixomatosa, em um falcêmico. Observou-se aumento significativo em todos os diâmetros cavitários, espessuras musculares e na massa muscular estimada do ventrículo esquerdo no grupo falcêmico. Houve aumento do índice de massa do ventrículo esquerdo com a preservação da espessura relativa do septo dentro da normalidade, caracterizando um padrão de hipertrofia excêntrica nos falcêmicos (tabela I). Os falcêmicos apresentaram alterações de carga pelos Mar ins e cols. Ecodopplercardiograma em portadores de anemia falciforme Arq Bras Cardiol volume 73, (nº 6), 1999 Tabela I - Comparação entre diâmetros cavitários, espessuras musculares e massa nos grupos falcêmico e referência. Variável iAo (cm/m2) iAE (cm/m2) iVDd (cm/m2) iVEd (cm/m2) iVEs (cm/m2) iSIVd (cm/m2) iSIVs (cm/m2) iPPVEd (cm/m2) iPVEs (cm/m2) iM masculino (g/m2) iM feminino (g/m2) ERS Falcêmico Referência p 1,81±0,21 2,81±0,33 1,39±0,34 3,47±0,40 2,19±0,32 0,66±0,15 0,88±0,19 0,66±0,15 1,06±0,17 178,80±66,61 147,97±53,71 0,38±0,09 1,45±0,19 1,94±0,24 1,15±0,27 2,81±0,21 1,79±0,20 0,46±0,08 0,62±0,10 0,41±0,06 0,80±0,20 91,25±15,71 72,94±8,60 0,33±0,06 <0,001 <0,001 <0,009 <0,001 <0,001 <0,001 <0,001 <0,001 <0,001 <0,001 <0,001 0,013 iAo- índice de aorta; iAE- índice do átrio esquerdo; iVDd- índice do ventrículo direito em diástole; iVEd- índice do ventrículo esquerdo em diástole; iVEs- índice do ventrículo esquerdo em sístole; iSIVd- índice do septo interventricular em diástole; iSIVs- índice de septo interventricular em sístole; iPPVEd- índice da parede posterior do ventrículo esquerdo em diástole; iPPVEs- índice de parede posterior de ventrículo esquerdo em sístole; iM- índice de massa; ERS- espessura relativa do septo. parâmetros de avaliação indireta. Houve aumento do índice de volume telediastólico do ventrículo esquerdo (iVolD) (pré-carga), contrastando com a diminuição expressiva da pressão arterial diastólica (PAD), da resistência vascular periférica total estimada (RVPt) e do estresse parietal telessistólico (pós-carga) (tabela II). A freqüência cardíaca foi eqüivalente entre os grupos falcêmico (69,96±9,17) e referência (66,88±9,48) (p=0,240). Os intervalos sistólicos do ventrículo esquerdo: sístole eletromecânica (SEM), período pré-ejeção (PPEjVE) e tempo de ejeção (TEjVE) foram estatisticamente semelhantes em ambos os grupos. Somente o período de contração isovolumétrica (PCIV) mostrou-se aumentado nos falcêmicos (tabela III). Tabela II - Comparação entre os parâmetros de pré e pós-cargas entre os grupos falcêmico e referência Variável Pré-carga: - iVolD (ml/m2) Pós-carga: - PAD (mmHg) - RVPt (dyn/s/cm-2) - EPS (103 dyn/cm2) Falcêmico Referência p 86,17±17,85 63,79±9,12 <0,001 62,00±12,46 774,96±269,43 37,63±11,20 73,60±7,30 <0,001 1.407,62±455,12 <0,001 55,93±15,91 <0,001 Os índices da fase de ejeção, fração de ejeção (FEj) e percentual de encurtamento sistólico (%D), apresentaram-se equivalentes. O volume de ejeção (VEj) e o índice cardíaco (iC) mostraram-se expressivamente aumentados no grupo falcêmico (tabela IV). Os parâmetros estudados de avaliação indireta da função sistólica indicaram a presença de disfunção no grupo falcêmico. A distância entre o ponto E da valva mitral e o septo interventricular (E-Septo) foi de 7,29±3,44mm no grupo falcêmico e de 5,37±3,22mm no referência (p=0,048). O índice de volume telessistólico do ventrículo esquerdo (iVolS) apresentou-se aumentado (29,55±10,48ml/m2) no grupo falcêmico em relação ao referência (22,07±5,68ml/m2) (p=0,003). A relação entre o estresse parietal e o índice de volume telessistólicos (EPS/iVolS), considerada parâmetro independente das alterações de carga, portanto mais fidedigna da função contrátil intrínseca do miocárdio, indicou disfunção sistólica nos falcêmicos. Esta relação foi aproximadamente a metade nos falcêmicos (1,30±0,35) quando comparada ao grupo referência (2,57±0,47) (p<0,001). Estudaram-se quatro parâmetros de função diastólica: tempo de relaxamento isovolumétrico (TRIV), velocidade da rampa EF mitral (EF), relação entre os fluxogramas E e A mitrais (E/A) e a desaceleração da onda A mitral (\A). Destes quatro, três apresentaram-se com uma tendência diferença entre os grupos, sem, contudo, apresentar significância estatística ao nível de 5% (tabela V). Os valores médios das pressões arteriais pulmonares sistólica (PAPs), média (PAPm) e diastólica (PAPd), estimados a partir da relação entre o período pré-ejeção do Tabela IV - Comparação entre índices de fase de ejeção nos grupos Variável FEj (%) %D (%) VEj (l) iC (l/min/m2) Falcêmico Referência p 66,07±8,14 36,81±6,41 0,125±0,036 5,90±1,77 64,77±6,69 36,25±5,42 0,081±0,020 3,14±0,91 0,540 (ns) 0,730 (ns) <0,001 <0,001 Tabela V - Comparação entre parâmetros de função diastólica entre os grupos falcêmico e referência Variável TRIV (s) EF (mm/s) E/A \A (m/s2) Falcêmico Referência p 0,087±0,025 114,23±21,67 1,902±0,453 5,158±2,094 0,075±0,018 131,19±38,58 2,266±0,780 4,397±1,276 0,063 0,062 0,052 0,120 Tabela III - Comparação entre os intervalos sistólicos do ventrículo esquerdo nos grupos falcêmico e referência Variável Falcêmico Referência p SEM (s) PPEj (s) TEj (s) PCIV (s) 0,399±0,030 0,102±0,017 0,296±0,027 0,094±0,058 0,390±0,025 0,100±0,020 0,287±0,033 0,048±0,020 0,290 (ns) 0,610 (ns) 0,290 (ns) <0,001 ns- não significativo. Tabela VI - Comparação da pressão arterial pulmonar entre os grupos falcêmico e referência. Variável PAPs (mmHg) PAPm (mmHg) PAPd (mmHg) Falcêmico Referência p 18,38±9,88 11,16±6,49 6,73±4,79 17,72±6,04 10,73±3,97 6,41±2,93 0,810 0,810 0,810 465 Mar ins e cols. Ecodopplercardiograma em portadores de anemia falciforme ventrículo direito (PPEjVD) e o tempo de aceleração do fluxo pulmonar (TAcP), não diferiram entre os grupos (tabela VI). Discussão Ao se comparar estes resultados com os da literatura, deve-se atentar para erros metodológicos comumente encontrados. O mais freqüente deles relaciona-se à heterogeneidade dos grupos de estudo. Agrupam-se pacientes sem confirmação eletroforética ou com diferentes doenças falciformes, populações pediátricas e adultas, pacientes ambulatoriais com outros descompensados, sob transfusões ou com crises hemolíticas recentes. Se, por um lado, é consensual na literatura que a anemia falciforme leva ao aumento cavitário do átrio esquerdo e do ventrículo esquerdo 14,15,18,20,21,38-42, o aumento do ventrículo direito, quando analisado em valores absolutos, é duvidoso. Estrade e cols. 15 chamam a atenção que o aumento do ventrículo direito se dá mais tardiamente do que o do ventrículo esquerdo. A análise de cada caso comparado com os valores de normalidade da literatura mostra que há aumento do índice do ventrículo direito em 28% dos falcêmicos em contraste com um aumento do índice do ventrículo esquerdo em 80% destes mesmos falcêmicos em nossa casuística. O fato de alguns autores não encontrarem aumento do ventrículo direito em falcêmicos se deve, provavelmente, a trabalharem com valores absolutos. Sabe-se que falcêmicos apresentam superfície corporal menor, influenciando nos diâmetros cavitários do coração 18,21,41. Esta menor freqüência do aumento do ventrículo direito em relação ao ventrículo esquerdo vem contradizer a hipótese de que as alterações encontradas na anemia falciforme são exclusivamente secundárias à sobrecarga volumétrica comum às anemias crônicas. Caso fosse verdadeiro, o aumento do ventrículo direito seria proporcional, ou até mais freqüente, que o do ventrículo esquerdo. Provavelmente, há fatores que atingem mais especificamente o lado esquerdo do coração, como a isquemia crônica sobre a parede ventricular hipertrofiada. A literatura mostra que há aumento da massa muscular do ventrículo esquerdo, em falcêmicos, para aproximadamente o dobro do esperado, tanto à ecodopplercardiografia quanto à necropsia 7,18,21,40,41. Tanto a hipertrofia como a dilatação são progressivas com a idade 20,21, sendo encontradas mesmo nas populações pediátricas 14,15. Provavelmente, a hipertrofia surge como mecanismo compensatório à sobrecarga volumétrica, na tentativa de se reduzir o estresse parietal 34. A hipótese de uma maior prevalência de prolapso valvar mitral na anemia falciforme foi levantada por Lippman e cols. 19 estudando 57 falcêmicos e encontrando 25 % de prolapso valvar mitral. Um possível mecanismo seria a isquemia que sofreriam os músculos papilares durante os episódios de agravamento da doença, devido a localização terminal na circulação coronariana 43. Os relatos do Estudo Cooperativo de Anemia Falciforme referem-se a um caso de prolapso valvar mitral em 225 pacientes estudados 20,44. Nosso estudo, assim como outros que se utilizaram da ecocardiografia bidimensional 17,40,44, apresentam casuísticas estatisticamente insu466 Arq Bras Cardiol volume 73, (nº 6), 1999 ficientes para conclusões quanto à prevalência de prolapso valvar mitral em falcêmicos. A pré-carga encontra-se aumentada devido ao incremento no volume plasmático 16-18, enquanto que a diminuição da pós-carga decorre da intensa vasodilatação periférica secundária à liberação de bradicinina e adenosina 45,46. Estas alterações de carga ora aferidas no estudo pelo índice de volume telediastólico do ventrículo esquerdo (iVold), pressão arterial diastólica (PAD) resistência periférica total (RVPt) e estresse parietal telessistólico (EPS) levam ao estado de alto débito presente na anemia falciforme. Cabe ressaltar que o índice cardíaco elevado é, exclusivamente, secundário ao aumento do volume de ejeção, uma vez que a freqüência cardíaca nos falcêmicos encontra-se normal 16,39,47-50. A presença dos intervalos sistólicos sistole eletromecânica (SEM), tempo de ejeção (TEJ) e período pré- ejeção (PPEj) normais em falcêmicos neste estudo está concordante com a literatura 14,21,51. Abdullah e cols. 52 chamam a atenção que os intervalos sistólicos sofrem importante influência das alterações de carga encontradas nas anemias crônicas, podendo haver uma pseudo-normalização dos mesmos. Sabe-se que o período de contração isovolumétrica (PCIV) encontra-se aumentado na insuficiência cardíaca 32. Nesta casuística, o período de contração isovolumétrica (PCIV) mostra-se aumentado. Não foi possível, porém, fazer comparações devido à inexistência de dados em populações semelhantes. Denenberg e cols. 17 foram os primeiros a chamarem a atenção que a dissonância entre as evidências clínicas e laboratoriais de insuficiência cardíaca na anemia falciforme com a ecocardiografia se devia a pseudo-normalização dos índices de fase de ejeção (FEj e %D) pelas alteraç es de carga. Estes índices foram os únicos, até então, utilizados para aferir a função sistólica nos falcêmicos. Propuseram o uso da relação estresse parietal telessistólico/índice de volume telessistólico (iVolS), tida como independente das alterações de carga. Obtiveram, com pequena casuística, resultados indicando a disfunção sistólica esperada. Repetiu-se, neste trabalho, aquela metodologia, com casuística maior e melhor controlada, obtendo-se resultados semelhantes, mas com melhor nível de significância estatística. Além da relação estresse parietal telessistólico/ índice de volume telessintólico (iVolS), a distância E-Septo mitral, o período de contração isovolumétrica (PCIV) e o índice de volume telessistólico (iVolS) aumentados ratificaram a existência de disfunção sistólica nos falcêmicos. No estudo atual, observou-se uma tendência sugerindo um padrão de déficit de relaxamento em três dos quatro parâmetros estudados. Esta alteração poderia ser atribuída à hipóxia miocárdica levando a alterações cinéticas do cálcio na fase do relaxamento. Poucos trabalhos estudaram a função diastólica em falcêmicos. Um agrupou diferentes hemoglobinopatias 53, outro estudou um único parâmetro 18. Entretanto, a maior limitação é de natureza técnica. Sabe-se que a pré-carga aumentada influencia nos parâmetros de aferição da função diastólica ao Doppler levando a uma pseudo-normalização 54,55. É difícil, porém, precisar quais seriam os efeitos da combinação entre pré-carga aumentada Mar ins e cols. Ecodopplercardiograma em portadores de anemia falciforme Arq Bras Cardiol volume 73, (nº 6), 1999 com pós-carga diminuída sobre os parâmetros ecodopplercardiográficos. O estudo do fluxo em veias pulmonares e do tempo de desaceleração do fluxo mitral, não realizados neste trabalho, talvez pudessem acrescentar informações. Fazse necessário estudo complementar para avaliação criteriosa da função diastólica em falcêmicos. A estimativa da pressão da artéria pulmonar (PAP) à ecodopplercardiografia pelo jato regurgitante tricuspídeo, calculada pela equação de Bernoulli, foi considerada a mais acurada por Feigenbaum 56, e é, certamente, a mais conhecida. Entretanto, tem a limitação de não poder ser utilizada em estudos de série com comparação com normais, já que nestes, geralmente, não se consegue obter a velocidade máxima da regurgitação tricúspide. Os raros estudos que avaliaram a pressão da artéria pulmonar à ecodopplercardiografia na anemia falciforme utilizaram metodologia pouco precisa, como o agrupamento de diferentes hemoglobinopatias, ou foram retrospectivos 57. Isobe e cols. 37 concluíram que a relação período pré ejeção do ventrículo direito (PPEjVD) tempo de aceleração do fluxo pulmonar (TAcP) foi o melhor índice preditor da PAP. No entanto, não houve alusões, nas bases consultadas, quanto à provável influência das alterações de carga sobre estes parâmetros. Neste trabalho, calcularam-se diversos parâmetros propostos na literatura, tais como as relações entre o tempo de aceleração do fluxo pulmonar (TAcP) e o tempo de ejeção do ventrículo direito, encontrando-se todos, em média, normais. É possível que as alteraç es de carga que influenciaram o ventrículo esquerdo também o fizeram com o ventrículo direito, interferindo e subestimando a pressão arterial pulmonar inferida à ecodopplercardiografia. As dilatações cavitárias, o padrão geométrico de hipertrofia excêntrica do ventrículo esquerdo, as alteraç es na pré e pós-cargas com suas conseqüências e a disfunção sistólica aferida pela distância E-septo mitral, pelo período de contração isovolumétrica (PCIV), pelo índice de volume telessistólica (iVolS) e pela relação estresse parietal telessistólico/ índice de volume telessistólico (iVolS), observados ecodopplercardiografia, corroboram as evidências clínicas e histopatológicas da literatura, caracterizando uma cardiomiopatia falcêmica. Agradecimentos Aos Profs. Drs. Charles Mady (InCor-USP), Gesmar Volga Hadad Herdy (UFF) e Marco Antonio Rodrigues Torres (UFRGS) pelas sugestões. Referências 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. Herrick JB. Peculiar elongated and sickle-shaped red blood corpuscles in a case of severe anemia. Arch Intern Med 1910; 6: 517-21. Silva RBP, Ramalho AS, Cassorla RMS. A anemia falciforme como problema de saúde pública no Brasil. Rev Saúde Pública 1993; 27: 54-8. Zago MA, Costa FF. Hereditary hemoglobin disorders in Brazil. Trans R Soc Trop Med Hyg 1995; 79: 385-8. Naoum PC. Distribuição geográfica das hemoglobinopatias. In: Naoum PC – Hemoglobinopatias e Talassemias. São Paulo: Sarvier, 1997: 137-43. Hutz MH. História natural da anemia falciforme em pacientes da região metropolitana do Rio de Janeiro (Tese Doutorado em Ciências). Porto alegre, UFRGS, 1981: 275 p. Platt OS, Brambilla DJ, Rosse WF, et al. 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