O materialismo aleatório e a lógica objetiva da evolução. Necessidade + acaso: a metáfora da chuva. Recorrente no pensamento filosófico, a imagem da chuva (que ele retirou de Lucrécio) inspirou a Louis Althusser a abertura de seu célebre ensaio sobre o materialismo aleatório e a contingência radical de todo encontro. Bem antes de Lucrécio porém, Aristóteles a ela tinha recorrido, evocando (Física II,8,198b16-32) a chuva que « o céu faz cair» não para o trigo crescer, mas « por necessidade» (“as exalações após terem ido para o alto, esfriam forçosamente e, tornando-se água, caem»). É “por acidente”, entretanto, que caindo sobre uma plantação de trigo ela o faz crescer, mas sobre o trigo já colhido, ela o apodrece. Aristóteles pergunta então polemicamente se “não seria também por necessidade que os dentes cresceriam, uns, os incisivos, cortantes e próprios para fragmentar os alimentos, outros, os molares, largos e aptos à esmagá-los”. É o que dizem os materialistas: “os seres nos quais ocorreu que todas as partes são tais quais seriam se produzidas em vista de algo, foram os que sobreviveram, por estarem, por acaso, adequadamente constituídos; aqueles ao contrário, em que isso não ocorreu, pereceram e perecem; é o caso dos bovinos de face humana a que se refere Empédocles”. Vincular necessidade e acaso, opondo-os à causalidade teleológica, é próprio a uma física da forma. Na sequência do texto (que vai até o fim de II,8, 199b33), ele sustenta que a causalidade natural é teleológica. Aristóteles distingue, pois aqui: (a) o que ocorre por necessidade; (b) o que ocorre por acidente; (c) o que corresponde à finalidade inscrita na forma natural, sustentando que a finalidade imanente dos órgãos dos viventes (em seu exemplo, a especialização dos dentes em incisivos e molares) não se explica, no essencial, pelo aquecimento ou resfriamento ou por quaisquer outras causas materiais, nem, menos ainda, pelo acaso e sim pelo telos imanente de sua forma natural. Os efeitos do telos sobre a matéria são irredutíveis aos efeitos casuais da necessidade. A Empédocles o que é de Empédocles. Darwin foi um genial intérprete das formas vivas, mas não era muito atento à interpretação de textos. Comentando esta passagem na primeira nota do “Storical Sketch” colocado no início da sexta edição inglesa (1859) de A origem das espécies, ele assinala que Aristóteles aplica (“applies”) o argumento dos efeitos aleatórios da chuva “to organisation” (dos dentes, no caso). Segundo ele, vê-se aqui “prefigurado (shadowed forth) o princípio da seleção natural”. Mas não tendo percebido o caráter aporético que o texto atribui à hipótese da gênese aleatória, ele comenta: “as observações sobre a formação dos dentes mostram porém que Aristóteles estava bem longe de compreender a fundo este princípio”1. O que Aristóteles vislumbrou nos hilozoistas, mas para rejeitá-la in limine, foi a ideia de que as formas orgânicas resultavam, à maneira dos efeitos da chuva, da interação da necessidade e do acaso, ambos opondo-se ao “agir em vista de algo e porque é o melhor” (=telos imanente). É necessário que a chuva caia; caindo, ela faz o trigo crescer (ou apodrecer) por acidente. O que impede então a natureza, em relação à função dos dentes, em vez de agir em vista de algo e porque é o melhor, de atuar também como o céu, que derrama a chuva não para fazer o trigo crescer, mas porque a água é mais pesada do que o ar.. Este, para ele, não é uma causa, mas o efeito contranatural de uma falha da forma natural: “é o caso dos bovinos de face humana a que se refere Empédocles” (198 b 31-32) (A natureza erra quando a matéria prevalece sobre a forma, impedindo que esta atinja seu telos). Sintomaticamente, Darwin interrompe 1 Charles Darwin, The origin of species. A reprint of the sixth edition(1859). London, Oxford University Press, 1968, p. xxi, note 1. Darwin cita na tradução para o inglês de Mr. Clair Grece, qui lui avait attiré l’attention sur l’argument d’Aristote. a citação da Física na palavra «perecem», não mencionando esta última frase, que conclui o argumento. É com efeito a Empédocles que Aristóteles atribui tal teoria: logo antes da passagem aqui analisada, ele alude “àquele que se refere à amizade e à discórdia” (ib. b 15-16). A seleção natural no materialismo antigo. Na verdade, antes da descoberta do princípio da evolução das espécies, que só ocorreu na passagem do século XVIII para o XIX, como o próprio Darwin assinala na sequência do “Storical Sketch”2, a noção de seleção natural foi vislumbrada apenas estaticamente, à maneira de um gabarito. Darwin nunca leu Lucrécio. É uma pena, porque ele teria provavelmente constatado que é do poeta romano a mais notável exposição da versão antiga do princípio da seleção natural. No Livro V do De rerum natura, explicando a origem da terra, da vida e dos homens, Lucrécio argumenta que, operando sem plano nem telos imanente (ou "desígnio inteligente" como hoje dizem os criacionistas), a força vital da matéria gerava cegamente inúmeras formas orgânicas, umas viáveis, porque sua conformação estava por acaso adaptada à luta pela sobrevivência, outras inviáveis, portanto inaptas para sobreviver (ou ao menos para deixar descendência) e por isso mesmo consideradas monstruosas. Entre as bizarrices da natureza, ele mencionou os andróginos, bem como os antropoides desprovidos de pernas, de braços ou de órgãos reprodutivos. Em síntese, a noção de seleção natural no materialismo antigo limitava-se ao princípio de que as combinações aleatoriamente convenientes fazem viver, as não-convenientes fazem perecer. O desvio de Lucrécio. Numa passagem célebre do livro II do De rerum natura, em que ele expõe a doutrina da declinação dos átomos, dita clinamen, Lucrécio evoca a imagem da chuva para ilustrar a hipótese irreal da impossibilidade de encontros cosmogônicos. Nesta metáfora, as gotas representam os átomos caindo no vazio profundo3. Mas caindo paralelamente, com a mesma velocidade, impulsionados para baixo (deorsum) por seu próprio peso (ponderibus propriis), em linha reta (rectum), como as gotas de chuva caem sobre a terra, eles não se encontrariam. Mas posto que a natureza foi gerada e que ela resulta de encontros, temos de admitir que a queda dos átomos não é semelhante à das gotas da chuva. Estas servem de contra metáfora ao raciocínio pelo absurdo que visa a justificar a necessidade de introduzir o clinamen para explicar os encontros. Se os átomos não declinassem, não se resolveria a aporia da queda vertical. É notável a ênfase do poeta no caráter espontâneo (incerto tempore ferme, incertisque locis) do desvio (II, 218-219). Os mundos formaram-se porque, diferentemente das gotas da chuva, os átomos não caem em linha reta, mais desviam um pouquinho, de modo a se juntarem uns aos outros. Este desvio é aleatório quanto ao «onde» e o «quando», mas necessário para tornar possíveis os encontros. É difícil não reconhecer um fundo teleológico no argumento. Em trabalhos sobre a física de Epicuro e o desvio dos átomos, procuramos mostrar, com efeito, que o clinamen não corresponde a nenhuma exigência de seu sistema, além de nele introduzir, desnecessariamente, o recurso a um efeito sem causa, brecha teórica por onde investiram seus críticos antigos e modernos4. 2 Os historiadores atuais da biologia consideram que ele foi esboçado por Buffon, mas segundo Darwin o primeiro a descobri-lo foi Lamarck no início do século XIX. 3 Imbris guttae, cadere per inane profundum (De rerum natura, II, 222). O argumento comentado a seguir está em II, 217-224. 4 Quartim de Moraes, João. “Clinamen : o milenar prestígio de um falso problema”. Em Benoit, Hector; Funari, Pedro Paulo Abreu (org.). Ética e política no mundo antigo (Campinas, IFCH/Fapesp, 2001, p. 179-212); reproduzido em Amor Scientiae: Festschrift em homenagem a Reinholdo Aloysio Ullmann (Porto Alegre, Edipucrs, 2002, p. 405-437); “A linha reta e o infinito na refundação epicureana do atomismo” (Cadernos de história e filosofia da ciência, CLE/Unicamp, v. 14, n. 1, p. 7-47, juil.- Friedrich Lange já havia apontado, em sua notável História do materialismo (1867), o desvio filosófico de Lucrécio relativamente a Epicuro. Notando que, para este, os átomos “have no qualities except size, figure and weight”, ele constata que “This proposition, which formally denies the existence of intrinsic qualities as opposed to external motions and combinations, forms one of the characteristic features of all Materialism. With the assumption of intrinsic qualities, the atom has already become a monad, and we pass on into Idealism or pantheistic Naturalism” 5. Com efeito, que é o «hábito de declinar» (Quod nisi declinare solerent II, 221), senão uma qualidade intrínseca atribuída aos átomos? Outra chuva, outro desvio. “Le courant souterrain du matérialisme de la rencontre” abre-se com uma imagem de forte efeito retórico: “Il pleut. Que ce livre soit donc d’abord un livre sur la simple pluie”. Não, enfatiza desde logo, a de Malebranche, «providentielle ou contre-providentielle », qui tombe, indifférente, aussi bien sur les cultures que sur la mer, les grands chemins et les sablons. C’est une « autre pluie» qui l’intéresse, aquela de Lucrécio e da doutrina do clinamen, que configuram “uma tradição materialista quase completamente desconsiderada (méconnue) na história da filosofia: o ‘materialismo’ da chuva , do desvio, do encontro e da pega. Há uma ordem nas características desse «materialismo» (as aspas estão no original): elas progridem da simples chuva até as coisas (os encontros que «pegam»), passando pelo desvio, tão decisivo para Althusser quanto foi para Lucrécio, embora por motivos filosóficos bem diferentes. Mas foi exatamente esse efeito sem causa, essa indeterminação radical, que atraíram Althusser: « L’audace de la thèse d’Épicure” consistiria em sustentar que “l’origine de tout monde, donc de toute réalité et de tout sens se doit à une déviation” 6. O mundo é um “fato consumado”, “pur effet de contingence[...] suspendu à la rencontre aléatoire des atomes due à la déviation du clinamen”(p.556). Essa última expressão é sintomaticamente pleonástica. Clinamen é o nome que Lucrécio deu ao desvio espontâneo; desvio do clinamen significa desvio do desvio. Para o poeta romano um desvio basta para romper a inércia do movimento mecânico dos átomos7, mas seu sentido é muito diferente daquele que o materialismo aleatório lhe confere. Ele permite explicar a capacidade de modificar os próprios movimentos que constatamos em todos os viventes. “Nós também declinamos, não segundo um tempo e um lugar pré-estabelecidos, mas para onde nossa própria mente nos leva”8. E a melhor prova disso é que o prazer rompe a inércia dos corpos, nos arranca do encadeamento dos fatos (fatis avolsa voluptas9) em busca do objeto do desejo. É com certa ligeireza que Althusser imputa a Epicuro a doutrina do clinamen: ele bem sabia que somente a encontramos em Lucrécio. Daí a frase no mínimo curiosamente obscura: « la « pluie » (Lucrèce) des atomes d’Épicure[...] 10. Vimos que não há chuva de átomos no De rerum natura; a chuva lá funciona como contra-metáfora. Na progressão dos atributos do “materialismo” aleatório, a chuva déc.2004) e “La deviazone e l'aleatorio”. Quaderni Materialisti, n. 5, 2006, p. 183-204. Edizioni Ghibli, Milano. 5 Nous avons utilisé la traduction anglaise en un volume, The History of Materialism, Londres, The International Library, 1950, p.105. (L’original Geschichte des Materialismus est de 1865. La première version anglaise, en trois volumes, a été publiée en 1877, 1890 et 1892).Lange, op. cit., p.105. 6 Écrits philosophiques et politiques, Paris, Stock/Imec, 1994, p.555. 7 Nos versos II, 251-252 refuta a hipótese de que tudo obedece à necessidade mecânica: si semper motus conectitur omnis; ex vetere exoritur semper novus ordine certo. 8 Declinamus item motus, nec tempore certo, nec regione loci certa, sed ubi ipsa tulit mens (versos II, 259-260). 9 Unde est haec, inquam, fatis avolsa voluptas, Per quam progredimur quo ducit quemque voluntas? (versos II, 257-258). 10 Ib., p. 553. As aspas em « pluie » e os parêntesis em (Lucrèce) estão no original. serve de emblema literário, logo abandonado em proveito do desvio, do encontro e da pega, aspectos inseparáveis da contingência radical. Com efeito, mesmo os encontros que “pegam”, formando agregados relativamente estáveis, são contingentes. « Jamais une rencontre réussie et qui ne soit pas brève mais dure, ne garantit pas qu’elle durera encore demain au lieu de se défaire.[...] rien ne vient jamais garantir que la réalité du fait accompli soit la garantie de sa pérennité”11. Processos sem sujeito? A ênfase na precariedade dos “fatos consumados” deixa em plano secundário o exame das condições da “pega”. Por que, na matéria elementar como na evolução das formas biológicas e culturais, alguns encontros «pegam», outros não? Vittorio Morfino num bom «insight», sustentou que a teoria de Darwin constitui o «centro invisível» do materialismo do encontro12. Mas é preciso analisar essa hipótese para decidir em que sentido ela «pega». Para Darwin a origem de uma espécie se explica pela série de mutações (aleatórias, mas seletivamente vantajosas) das espécies anteriores das quais ela provém. O princípio da descendência com modificação pressupõe a continuidade de um sujeito (ou substrato) biológico, a saber a população que se modifica, e uma lógica objetiva que explica porque os encontros dão ou não dão liga. Todo vivente sexuado provém de um encontro da semente masculina com o óvulo, durante o qual enorme quantidade de sementes é aleatoriamente eliminada, já que só uma dá liga com o óvulo. As variações individuais são, pois resultados aleatórios da mecânica genética. Algumas dessas variações são “trifling” (a expressão é de Darwin), isto é, irrelevantes para a seleção natural. Outras aumentam ou reduzem a aptidão para enfrentar o meio ambiente. Em milhares de anos, as variações vantajosas configuram uma nova espécie. A posição nevrálgica que o acaso ocupa na teoria de Darwin não significa que a seleção natural seja puramente contingente, como ocorre no “gabarito” de Lucrécio. Descontando malformações e outras deficiências congênitas, as diferenças fenotípicas não são vantajosas ou desvantajosas em si mesmas, mas em sua relação com o meio ambiente. Enquanto este permanece estável, o equilíbrio da espécie só pode ser rompido por fatores endógenos, principalmente pela tendência das populações a crescer mais depressa do que os alimentos disponíveis. Na luta pelo alimento escasso triunfam os mais fortes ou mais ágeis. Mas os menos dotados podem também sobreviver se encontrarem novo ambiente propício. Esse esforço corresponde ao lado ativo da seleção. (A despeito do desmentido científico à hipótese da transmissão de caracteres adquiridos, as ideias de Lamarck encontram um campo de aplicação nas populações excedentes que buscam a sobrevivência em ambientes mais propícios). Quando, porém o equilíbrio com o meio é rompido por fatores externos (chegada de predadores, mudança climática afetando a disponibilidade alimentos etc.), as diferenças individuais dos membros da população adquirem máxima eficácia seletiva, positiva ou negativa, e a eficácia do esforço individual é insignificante. Basta considerar uma população de gazelas crescentemente atacada por grandes felinos: a rapidez da fuga, inscrita na carga genética individual, é decisiva. Ou ainda, uma população de lagartos: aqueles cuja pele tem um colorido mais semelhante ao do terreno em que vivem têm mais chances de escapar das aves de rapina do que aqueles cuja cor contrasta mais com o mesmo terreno. Nessa hipótese o acaso intervém duplamente. Para a população como um todo, o aparecimento de predadores em seu habitat é casual. Para cada indivíduo, possuir ou não uma cor que exerça um efeito de camuflagem é efeito aleatório da 11 12 Ib., pp. 560-561. Vittorio Morfino, “O primado do encontro sobre a forma”, Crítica Marxista, nº 23, 2006, p. 31. hereditariedade, que funciona independentemente das condições do ecossistema onde ocorreu a variação. É, pois o encontro aleatório das variações individuais com o ecossistema que determina se elas serão vantajosas, desvantajosas ou indiferentes para a sobrevivência. Mas esta só é relevante se concernir a uma “massa crítica” de portadores da variação seletiva. Com efeito, o substrato biológico da adaptação não são os indivíduos tomados isoladamente e sim as populações: quem evolui é a espécie. Encontros sem processo? Diferentemente do materialismo aleatório althusseriano, que põe a ênfase na contingência radical de todo encontro, inclusive daqueles que “pegam”, em detrimento dos fatores suscetíveis de explicar porque certos encontros « pegam » e outros não « pegam », a teoria darwiniana concentra-se no exame da lógica objetiva da evolução dos viventes. Os materialistas da Antiguidade desconheciam a ideia de evolução. Althusser a conhecia, mas dela não se serve, a despeito dela oferecer a base objetiva para sua noção filosófica de processo sem sujeito. Consideremos o exemplo mais importante com que ele ilustra sua visão aleatória do marxismo: a formação do modo de produção capitalista pela “combinação” de quatro “elementos” acumulados: capital-dinheiro (“l’homme aux écus”), meios técnicos da produção, matéria (natureza) e produtores proletários. Ele tem razão de assinalar que estes elementos são independentes uns dos outros, cada um resultando de uma história própria (p. 586). Mas não nos diz porque eles se combinaram na Inglaterra do século XVIII. Apenas constata. Sem dúvida, os “landlords” que a partir do século XV começaram a suprimir aldeias e culturas camponesas não tinham nenhum projeto de criar um proletariado a ser explorado, alguns séculos depois, pelos “hommes aux écus”. Mas essa constatação não proporciona o conhecimento concreto da gênese das relações de produção capitalistas. A rejeição das explicações teleológicas próprias às versões essencialistas do marxismo está entre as grandes contribuiçoes filosóficas de Althusser. Mas a justa e fecunda remoção do entulho metafísico não basta para concluir, com Morfino, que embora invisível, Darwin está no centro do materialismo do encontro. Mais exatamente, como bem sabem seus leitores, Althusser se refere a Darwin no mesmo contexto em que formula o princípio de que “em vez de pensar a contingência como modalidade ou exceção da necessidade, cumpre pensar a necessidade como o tornar-se necessário do encontro dos contingentes“ 13. Esse princípio se inscreve na trama básica da evolução. Para passar de um patamar evolutivo a outro é preciso ultrapassar o abismo da contingência radical: nenhuma adaptação seletiva está garantida de antemão. Mas a tese de que todas as configurações do devir material e histórico resultam de encontros aleatórios e que mesmo os encontros que “pegam”, formando aglomerados relativamente estáveis, são radicalmente contingentes, enfatiza unilateralmente o acaso e a descontinuidade radical, deixando impensada a lógica objetiva (não teleológica) dos processos evolutivos. As populações de primatas que há algumas dezenas de milhões de anos, ao se “encontrarem” com a redução crescente das florestas na África, desceram das árvores para tentar a perigosa aventura da vida no solo, não tinham o projeto de virar homens; tangia-os o dilema de aceitar passivamente a eliminação da superpopulação pela fome ou adaptar-se à bipedia. Ao longo de milhões de anos, elas aprimoraram a bipedia e a postura ereta, mesmo porque sem enxergar longe na savana e correr depressa, era muito grande a probabilidade de cair nas garras dos grandes felinos da savana, sempre à espreita. A hominização 13 p. 581. resultou do nexo evidente de antecedente a consequente entre os patamares constitutivos da história natural do homem, desde a adaptação à bipedia, que condicionou a liberação e a especialização da mão, até a sinergia intensa da destreza manual com o desenvolvimento do cérebro, que conduziu sucessivamente aos hominídeos, ao homo e ao homo sapiens. Podemos, com boa vontade, explicar a origem do homem por uma longa série de encontros aleatórios, mas o conhecimento científico da hominização consiste em determinar como cada estágio evolutivo, da bipedia à liberação e especialização da mão14, foi condicionado pelo anterior e por sua vez, criou condições para o posterior. As espécies se transformam porque uma determinada população, submetida a pressões adversas, acumulou mudanças seletivamente vantajosas. Para a reconstituição desse processo cumulativo, cujo suporte objetivo é uma população evoluindo, os “encontros aleatórios” de Althusser são de pouca valia. Sem dúvida, a sombra do acaso está sempre por perto: se todos os primatas que abandonaram as árvores tivessem sido devorados por felinos famintos, não teria surgido o primata bípede nem, portanto seu remoto descendente, o homo. Constatamos, porém que durante milhões de anos aqueles primatas passaram por transformações de uma espécie a outra, incorporando sucessivas adaptações articuladas umas com as outras. Em síntese, o conceito de evolução apoia-se num elemento básico de continuidade subjacente à descontinuidade entre uma espécie e outra, mas modificado pela adaptação seletiva. O “materialismo aleatório” ou “do encontro” não dá conta dessa dialética, materialmente inscrita no ácido desoxirribonucleico (ADN). JQM 14 Tran-Duc-Thao, a quem devemos a mais notável contribuição, depois de Engels, aos fundamentos da paleo-antropologia marxista, considera “essencial notar que a mudança fundamental não consiste aqui na aquisição da bipedia em geral, mas da bipedia enquanto ela libera a mão. Tanto assim que os gibões andam muito bem sobre os dois pés, mas são obrigados a estender os braços para manter o equilíbrio: não há, pois liberação da mão”. Tran-Duc-Thao, Recherches sur l’origine du langage et de la conscience, Paris, Éditions sociales, 1973, p. 68, nota 2.