Islamismo e intolerância Desde os atentados de 11 de Setembro 2001 contra as Torres Gêmeas e o Pentágono, o Islã se tornou um tema permanente nas mídias ocidentais. Muito se falou sobre Al Qaeda, terrorismo, jihad, homens bomba. Os atentados colocaram em evidência o radicalismo islâmico de uma forma até então inédita no Ocidente, mas de forma alguma esse radicalismo era recente. O fundamentalismo islâmico remonta à fundação da Sociedade dos Irmãos Muçulmanos em 1928, no Egito, uma organização que considera que apenas um Estado Islâmico pautado na sharia (lei sagrada derivada do Alcorão, da Suna e dos hadith – relatos documentados dos ensinamentos e ações de Maomé que não constam no Alcorão e que foram registrados por seus companheiros e familiares) é a única ordem política válida. Além do Egito, essa organização teve importantes ramificações e atuações no Paquistão, na Argélia, no Sudão e no Afeganistão, onde o êxito da resistência contra a ocupação soviética foi essencial para a difusão de suas ações para outros lugares do mundo, incluindo a Europa. De vez em quando, alguns eventos contribuem para aumentar as tensões entre o mundo islâmico e o Ocidente, como a declaração de morte proclamada em 1989 pelo Aiatolá Khomeini contra Salman Rushdie pela publicação de “Os Versos Satânicos” e os recentes protestos por um curta-metragem norte-americano que satirizava Maomé, ou a exigência de retratação do ex-papa Bento XVI quando, em discurso, mencionou o uso da violência para promover conversões por parte de muçulmanos. Esses fatos evidenciam que o Islã não consegue lidar com a crítica, seja interna ou externa, e não há perspectiva de que isso possa mudar. Mas, afinal, que religião é essa e por que a concórdia parece ser algo tão distante entre os dois hemisférios? Muito já se escreveu acerca das contribuições da civilização islâmica ao mundo ocidental, sua filosofia, suas pesquisas em medicina, alquimia, astronomia e a tolerância religiosa na Península Ibérica sob seu domínio. Mas os episódios das cruzadas e as colonizações dos séculos 19 e 20 alteraram de forma significativa e irreversível esse quadro. O pioneirismo do Ocidente com a modernidade e os elementos que lhe são intrínsecos (racionalização, desencantamento, autonomização das esferas de valor), magistralmente analisados por Weber, não apenas projetaram a superioridade política e militar da Europa sobre o restante do mundo, como também colocaram as civilizações islâmicas diante do espelho e do dilema entre a adesão à modernidade e o fechamento a ela por meio do fundamentalismo religioso. Ao fracasso resultante da primeira opção seguiu-se o inevitável degringolar à segunda. Mas, além das vicissitudes históricas, há algo que precisa ser dito. Infelizmente, a imagem criada do Islã de uma religião violenta e intolerante é, não apenas verdadeira, como também se constitui no cerne de sua doutrina. Tomemos como exemplo inicial o Alcorão. Escrito no estilo do Antigo Testamento hebraico, o livro apresenta um Deus da guerra e vingativo, está eivado de juras de maldições a quem não vive de acordo com sua doutrina (genericamente chamados de descrentes), prescreve a lei de talião, incentiva a violência contra mulheres, permite a escravidão e contém ameaças constantes ao fogo eterno. Não existe princípio de não-resistência no Alcorão: recomenda-se a agressão e a guerra contra aqueles que a praticarem primeiro, considera blasfêmia não reconhecer o livro como sagrado e prescreve sérios castigos para quem criticar Maomé. Descrentes são repetidamente considerados ameaças e colocados na condição de “piores criaturas”. Ameaças ao inferno estão presentes em quase todos os 114 capítulos (suratas) do livro. Questionamentos à doutrina são terminantemente proibidos como pecados graves e passíveis da ira de Deus. O Alcorão é não apenas um manual de regulação da conduta, mas também da vida social e política. O Islã se expandiu pela violência e foi através dela que pôde unificar as tribos beduínas da Península Arábica, depois recrutadas para conquistarem a Síria, a Palestina, o Egito e a Pérsia. Há episódios da história islâmica sobre os quais há um inexplicável silêncio na historiografia. Um deles é o tema da escravidão africana. Há poucas referências a isso em língua portuguesa. Entre essas está o seguinte comentário de Marc Ferro no livro “A História Vigiada”: Em terras do Islão, por exemplo, os historiadores, sempre prontos a estabelecer o inventário de todos os delitos e crimes do imperialismo e do colonialismo, omitem o tráfico negreiro organizado pelos árabes durante mais de oito séculos. Tanto que, nas obras aí escritas, não há uma única palavra sobre a grande revolta dos escravos negros no Iraque, por volta de 950. Aliás, na África negra, atualmente, a mão dos historiadores ainda treme quando falam da islamização, do papel dos árabes. […] Assim, pouco se fala desse tráfico que, no entanto, despovoou a África e transformou em eunucos, privando-os de descendência, milhares de cativos arrancados do Sudão, de Gana, e transportados para o Cairo, Bagdá, Isfahan. Segundo B. Lewis, isso e a intensa mortalidade que acompanhou esse tráfico explicam o desaparecimento quase total dos guetos de negros em terras árabes ou persas. Assim, esse martirológio não deixou testemunhas, ao passo que na América, onde sofreram as sevícias conhecidas por todos, esses negros sobreviveram e ainda relatam a lembrança de seu desespero. Mais adiante, no mesmo livro, falando sobre o filme como agente da história, o renomado historiador francês novamente observa: “Há outros lugares onde o filme constitui uma forma privilegiada de contra-história: a África negra. Ali, a mão dos historiadores treme de medo antes de ousar evocar as perversidades perpetradas não pela colonização, o que é comum, mas pelo Islão e pela escravidão árabe em particular. No entanto, a mão do cineasta Sembene Ousmane não tremeu quando sua câmara assimilou o Islão triunfante do século XVIII a uma espécie particular de totalitarismo, contra o qual lutam e morrem os ceddo [grupo nativo que lutava contra o comércio de escravos]”. O termo “história vigiada” que intitula o livro de Ferro é um conceito que levanta a questão da importância do silêncio enquanto história. Para ele, os silêncios e lacunas da história são resultado da consciência do poder que reproduz determinada versão do passado. Suas poucas palavras demonstram como a escravidão islâmica foi mais longa e mais terrível do que a europeia. Trata-se de algo que não foi um “acidente histórico” ou práticas isoladas, mas um evento de longa duração a respeito do qual o silêncio e o medo compactuam de forma temerosa nesses países ou mesmo no Ocidente. Mas a violência islâmica não se resume apenas “aos outros”, mas a seus próprios concidadãos. Esse é o exemplo da teocracia instituída no Irã em 1979. No livro “Perseguições Religiosas”, James Haught escreveu: Torturas e execuções se tornaram desenfreadas. Os diplomatas estrangeiros que viviam perto de um centro de detenção em Teerã disseram que suas noites eram atormentadas por gritos insuportáveis e tiros frequentes. Em 1983, a Anistia Internacional, organização mundial de direitos humanos, computou relatos de 5.195 execuções nos quatro primeiros anos do regime religioso. O programa noticioso “60 minutos” relatou que, como a lei islâmica proíbe a execução de virgens, algumas jovens condenadas eram estupradas pelos guardas antes de serem fuziladas. […] A matança mais puramente religiosa foi a execução em massa de baha’is que recusaram se converter ao islã. Grupos, inclusive mulheres e adolescentes, eram enforcados em público. […] O Comitê para Refugiados dos Estados Unidos citou um juiz xiita iraniano que justificou as mortes com base em uma oração do Corão: “Senhor, não deixai sobre a Terra uma única família de infiéis”. Junto com toda essa matança, o Irã também declarou guerra à sexualidade. As mulheres foram obrigadas a se cobrir tão inteiramente que nenhuma mecha de cabelo aparecesse. Patrulhas da moralidade percorriam as ruas em jipes brancos, prendendo mulheres por estarem “malcobertas” e enviando-as a prisões-acampamento para cursos de reabilitação de três meses. As revistas ocidentais que entravam no Irã iam primeiro para os censores, que cuidadosamente cobriam de preto todas as fotos de mulheres, deixando apenas seus olhos. O mesmo autor menciona que, inflamados pela revolução iraniana, milícias armadas promoveram atentados e mortes no Egito, Arábia Saudita, Afeganistão, Nigéria e outros países. Outros exemplos poderiam ser mencionados, como as ações militares de grupos radicais na Argélia, no Sudão e no Egito, especialmente a partir da década de 1980, contra aqueles que não seguem os princípios da lei islâmica, ou contra estrangeiros ou minorias de outras religiões. Obviamente, a violência e a intolerância não são apanágio do Islã, existindo também em outras religiões ou mesmo em sociedades seculares. Mas os dados mencionados pelo autor acima mostram, por exemplo, que em apenas quatro anos de regime teocrático o número de vítimas foi maior do que os da ditadura militar brasileira em duas décadas. Culpar o Ocidente pelas atrocidades que o Islã comete contra suas próprias populações não parece ser uma atitude sensata. Historicamente o Islã é uma religião beligerante, em que liberdades individuais são privilégios de poucos. Mesmo a tão aclamada “primavera árabe” não conduziu a uma revisão radical dos princípios da lei islâmica nem a considerações sérias sobre a importância da separação entre religião e política. Além dos estupros e outros tipos de violência entre os próprios manifestantes que chocaram o mundo durante aqueles eventos, a “primavera árabe” logo tornou-se outono e evaporou-se nas brumas do radicalismo religioso. Confrontadas durante séculos com a superioridade econômica e tecnológica ocidental, as sociedades muçulmanas refugiaram-se numa retomada de suas tradições religiosas sob a forma de um radicalismo fundamentalista visceralmente anti-ocidental. Incapazes de separar Estado e religião e de garantir direitos civis e liberdade religiosa, essas sociedades se tornaram nichos de crescimento de grupos terroristas que se apoiam em seu livro sagrado e nas tradições para justificar a perseguição e morte de virtualmente todos os não-muçulmanos. Entre elas, a Turquia permanece como único exemplo de sociedade que conseguiu manter-se laica, mas ao custo da imposição dessa laicidade por meio de várias reviravoltas militares. Os muçulmanos desejam as tecnologias ocidentais, especialmente mísseis e metralhadoras, mas não os valores das democracias seculares e pluralistas do Ocidente, os quais rechaçam em nome de uma fé excludente e persecutória. O Islã não é apenas uma religião, mas uma religião política universalista de feições fascistas que deve representar, neste século 21, a maior ameaça mundial à democracia e às liberdades individuais. Em 2011, quando a imprensa fez várias reportagens sobre os dez anos do atentado de onze de setembro, o historiador Jaime Pinsky, em entrevista à Record News, falava da necessidade de as sociedades islâmicas separarem religião de política e de que o Islã precisa de um “Iluminismo”. De fato, o Ocidente conseguiu criar mecanismos de regulação do poder e Estados constitucionais que são realizações singulares na história, além das noções de direitos humanos e direitos individuais e de minorias, noções completamente alheias ao Islã. Embora a transposição desses ideais para algumas nações do Oriente em muitos casos tenha sido dificultada pelo próprio Ocidente, já não é mais por causa das Cruzadas ou do colonialismo que as nações muçulmanas não conseguem modernizar-se, pois no caso do Islamismo, a intolerância religiosa e o uso da violência são incentivadas por seu próprio livro sagrado e por sua lei religiosa, a sharia; por isso não será possível a essas sociedades tornar-se democráticas e garantir direitos civis a minorias sem abandonar muitos princípios de sua religião. E entre suas sociedades há exemplos que, apesar das dificuldades, mostram que é possível fazer reformas políticas nesse sentido. Além da Turquia, já mencionada, Indonésia e Marrocos empreenderam importantes mudanças no sentido de uma democratização. No entanto, em muitos casos, essa democratização não é impedida apenas pela religião, mas especialmente pelas próprias elites locais que se utilizam de princípios religiosos para se perpetuarem no poder. E como diz o historiador francês Gilles Kepel, é na abertura para o mundo e para a democracia que as sociedades muçulmanas deverão construir seu futuro – embora para algumas, esse futuro ainda pareça muito distante. _____________________________________ Por: BERTONE SOUSA – Professor no curso de História da Universidade Federal do Tocantins (UFT), mestre e doutor em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Desenvolve pesquisas na área de história e religiosidades, com enfoque para os pentecostalismos, fundamentalismos religiosos e a relação religião e política no mundo moderno.