Rua dos Ferreiros, 165 9004-520 – Funchal Telef (+351291)214970 Fax (+351291)223002 Email: [email protected] [email protected] http://www.madeira-edu.pt/ceha/ AS ILHAS AS ROTAS OCEÂNICAS ALBERTO VIEIRA COMO REFERENCIAR ESTE TEXTO: Vieira, Alberto, As ilhas-As Rotas Oceânicas, online, Funchal, CEHA, disponível em: http://www.madeira-edu.pt/Portals/31/CEHA/avieira/rotas.pdf, data da visita: / / RECOMENDAÇÕES O utilizador pode usar os livros digitais aqui apresentados como fonte das suas próprias obras, usando a norma de referência acima apresentada, assumindo as responsabilidades inerentes ao rigoroso respeito pelas normas do Direito de Autor. O utilizador obriga-se, ainda, a cumprir escrupulosamente a legislação aplicável, nomeadamente, em matéria de criminalidade informática, de direitos de propriedade intelectual e de direitos de propriedade industrial, sendo exclusivamente responsável pela infracção aos comandos aplicáveis. AS ILHAS AS ROTAS OCEÂNICAS ALBERTO VIEIRA Centro de Estudos de História do Atlântico (MADEIRA) A condição de ilha e de ilhéus leva-nos por vezes a pensar que somos o centro do mundo. Esta visão egocêntrica, muito comum no quotidiano, perpassa também a Historiografia. A História e a Geografia ensinam-nos que o Homem ao longo do multissecular processo histórico quebrou as barreiras do isolamento. A ilha deu-se a descobrir e descobriu o envolvimento insular e atlântica. Perante esta inequívoca realidade a ilha, quando encarada nos diversos aspectos do devir histórico deve ser de acordo com esta ambiência. Assim, o entendeu Gaspar Frutuoso em finais do século XVI com as célebres Saudades da Terra1. É por isso que Albert Silbert nos recomenda que "para bem conhecer a história da Madeira é a do Atlântico que é preciso evocar"2. Isto é verdade tanto para a Madeira como para as demais ilhas e arquipélagos. O Atlântico tornou-se uma realidade de análise historiográfica a partir da década de quarenta do século XX. Quem deu o exemplo foi a historiografia norte-americana, preocupada em rastrear as suas origens. O conceito começou a ser definido em 1947 com Louis Wright3, mas terá sido o Mediterrâneo de F. Braudel (1949) que provocou atenção desusada na década de cinquenta4. Só em finais da centúria surgiram estudos teóricos. Isto sucedeu num momento de afirmação da Historiografia Atlântica5. De ambos os lados do Atlântico surgiram trabalhos em o Atlântico é o palco principal6. O Atlântico pode ser considerado uma invenção europeia dos séculos XV e XVI, que se articula directamente com as políticas coloniais definidas pelas potências emergentes. Foi a partir daqui que se estabeleceu, em ambos os lados do oceano, um vínculo entre ilhas e áreas costeiras. A História, a Geografia marcaram a vida do oceano Atlântico nos últimos cinco 1 . Cf. Miguel Tremoço de Carvalho, Gaspar Frutuoso. O Historiador das Ilhas, Funchal, CEHA, 2001. .Uma Encruzilhada do Atlântico- Madeira(1640-1820), Funchal, CEHA, 1997, p.76 3 . The Atlantic Frontier. Colonial American Civilization, 1607-1763, N. York, 1947. Neste mesmo ano Jacques Godechot publicava em Paris: Histoire de l’Atlantique 4 . Horst Pietschmann, Introduction: Atlantic History. History Between European History and Global History, in Atlantic History. History of the Atlantic System 1580-1830, Gottingen, 2002, p.16; Leonard Outhwaite, the Atlantic: A History of an Ocean, N. York, 1957; John Elliott, Busqueda de la Historia Atlántica, Las Palmas de Gran Canaria, 2001 5 . Bernard Bailyn, The Idea of Atlantic History, Itinerário, Leiden-1996, nº.20, pp.1-27; Nicholas Canny, Writing Atlantic History; or Reconfiguring the History of Colonial British América, The Journal of A American History, nº.86[1999], pp.1093-114 6 . Huguette e Pierre Chaunu, Séville et l’Atlantique, 1504-1650, 8 vols, Paris, 1955-59; F. Mauro, Le Portugal etl’Atlantique au XVIIe siècle, 1570-1670, Paris, 1970; Charles Verlinden, the Beginnings of Modern Colonization, Ithaca/Londres, 1970. D. W. Meinig, The Shaping of América: A Geographical Perspective on 500 years of History, vol. I: Atlantic America 1492-1800, New Haven, 1986; KANAS, Alan L. e J. R. Mcnell, Atlantic American Societies from Columbus through abolition 1492-1888, London, 1992. 2 séculos7. O Atlântico define-se a partir do século XV como um espaço privilegiado dos impérios europeus, onde as ilhas assumem uma função privilegiada no cruzamento de rotas, circulação de pessoas e produtos8. Na História do Atlântico o mundo insular é uma realidade sempre presente. A Antiguidade Clássica faz apelo às ilhas míticas, fantásticas e imaginárias, cuja localização acontece sempre no Atlântico9. O fascínio pelo mundo insular manteve-se com os descobrimentos europeus, exercendo as ilhas um certo fascínio na divulgação das notícias. Surgiu assim a moda de divulgação europeia: os isolarios, em que se destaca o de Beneditto Bordone de 152810. Depois, construíram-se pontes que têm como pilhares as ilhas. As rotas do Atlântico, Índico e Pacífico só se afirmam por força da presença das ilhas. D. Manuel, ciente da importância desta realidade, mandou estabelecer o Livro das ilhas para tombar toda a documentação mais significativa referente às mesmas11. Em síntese podemos afirmar que as ilhas foram espaços de construção das utopias, escalas da navegação, áreas de desusada riqueza como de destinos de desterro de criminosos e políticos, refúgio de piratas, aventureiros, de lazer e turismo. A HISTORIOGRAFIA Algumas das questões têm definido os rumos da investigação insular. O enquadramento do mundo insular no contexto dos descobrimentos europeus faz ressaltar o protagonismo socioeconómico, a posição charneira dos rumos da política expansionista. As funções de escala, e modelo projectaram-nas na nova realidade emergente e conduziram a que fizessem parte disso e não um mundo à parte. Por outro lado a expansão foi propícia a definição de teias de subordinação e complementaridade que levaram a modelação de um mercado insular aberto e vinculado, de acordo com uma lógica de complementaridade. É isso, em certa medida, que define aquilo que ficou conhecido como o Mediterrâneo Atlântico nos séculos XV a XVII. A favor da valorização dos espaços insulares temos, ainda, a tese que vingou no seio da Historiografia americana que apresenta o Atlântico como uma unidade de análise. O período, que decorre entre os inícios de expansão, a partir do século XV, e a abolição da escravatura, 12 em 1888, delimitam cronologicamente a realidade . A dimensão assumida pelas ilhas no contexto da expansão quatrocentista,quer como terra de navegadores, quer como principal centro que modelou a realidade socio-económico do novo espaço atlântico, é a evidência da imprescindível da dimensão atlântica. 7 . D. W. Meinig, The Shaping of América: A Geographical Perspective on 500 years of History, vol. I: Atlantic America 1492-1800, New Haven, 1986. Pieter Emmer, In Search of a System: The Atlantic Economy, 1500-1800, in Horst Pietschmann, Atlantic History. History of the Atlantic System 1580-1830, Gottingen, 2002, pp.169-178; Barbara L. Solow, Slavery and the Rise of the Atlantic System, N. York, 1991. 8 . Cf. José Manuel Azevedo e Silva, A Importância dos Espaços Insulares no Contexto do mundo Atlântico, in História das Ilhas Atlânticas, vol. I, Funchal, 1997, pp.125-161. 9 .W.H. Babcock, Legendary Islnads of the Atlantic, N.York, 1922; Marcos Martinez, Canárias en la Mitologia, Santa Cruz de Tenerife, 1992; IDEM, Las Islas Canárias de la antiguedad al renacimiento. Nuevos Aspectos, Santa Cruz de Tenerife, 1996. 10 . Inácio Guerreiro, Tradição e Modernidade nos Isolarios ou “livros das Ilhas”, dos Séculos XV e XVI, in Oceanos, nº. 46(Lisboa, 2001), pp.28-40. 11 . Cf. José Pereira da Costa, O Livro das Ilhas, Lisboa, 1987. 12. Cf. Alan L. Kanas e J. R. Manell, Atlantic American Societies-from Columbus Through Abolition 1492-1886, London, 1992; Alfred W. Crosby, the Columbian Exchange, Biological and Cultural Consequences of 1492, Westport, 1972; S. Mintz, Sweetness and Power, N. York, 1985. Michael Meyerr, "The price of the new transnational history", the American Historical Review, 96, nº 4, 1991, 1056-1072; D.W. Meinig, Atlantic America 1492-1800, New Haven, 1980: Lan Stelle, The English Atlantic, 1675-1740 - An exploration & Communication and Community, N. Y. 1986. Se tomarmos em linha de conta alguns dos temas comuns da historiografia, como o vinho, o açúcar e a escravatura, seremos forçados a concluir que foram eles em boa parte, os responsáveis pela opção atlântica e que obrigam, sempre e em qualquer momento, a dar atenção ao meio envolvente. As rotas comerciais, os mercados europeu e colonial, e, acima de tudo, o oceano como mar aberto estão sempre presentes. Por tudo isto é forçoso afirmar que a ilha não se reduz à dimensão geográfica. Há que rasgar o casulo da ilha e postar-se nas torres avista-navios de forma a vislumbrar o imenso firmamento que nos conduz a ilhas e continentes. Isto só será possível quando ultrapassarmos a fase do egocentrismo, da insularização e mergulharmos na profundeza do Atlântico à busca da atlanticidade. Os rumos definidos pela historiografia insular nos últimos anos pautam-se por uma grande abertura temática e de envolvimento do espaço circunvizinho, isto é, as ilhas e os continentes que marcaram o devir histórico nos últimos cinco séculos. Deste modo poder-se-á afirmar que nas últimas décadas a historiografia saiu do casulo que a envolvia ganhando pela dimensão insular e atlântica. Acontece que esta não é uma atitude comungada por todos nós, havendo quem ainda se refugie no casulo da ilha e do próprio mundo, ignorando tudo e todos. O caminho para a investigação passa necessariamente pelo conhecimento do que existe, isto é, do imprescindível estado da questão. Nunca devemos avançar para uma pesquisa documental ou uma qualquer abordagem temática sem sabermos o que os outros fizeram sobre o mesmo. É a etapa primeira e fundamental de todo o percurso. Ignorar os outros não é honesto, mesmo se não fazemos uso das aportações. O aparato bibliográfico não é só uma questão de justiça, mas também uma necessidade imperiosa da produção científica. É chegado o momento de reflectir sobre a forma como se faz a História das Ilhas. Para isso torna-se imperioso repensar actividade historiografia para que se torne possível a definição de rumos adequados ao protagonismo e posicionamento que assumimos na História. Na actualidade depara-se perante nós um momento de grande valorização da História no quotidiano. Dispomos de tudo o necessário para isso: publicações periódicas, colóquios e conferências e um desusado interessem do público em geral pela temática. Mas será que isto tem favorecido, em simultâneo, a afirmação da investigação e consequente avanço do conhecimento do nosso passado histórico? Não será a via mais fácil para a ridicularizarão do conhecimento histórico, fazendo valer o primado do documento isolado, fruto de leitura apressada e da incessante procura de textos para colóquios e revistas. As perspectivas globalizantes não se compadecem com a dimensão do nosso umbigo e as limitações, que a nossa condição de ilhéus, por vezes nos impõe. Devemos criar mecanismos e disponibilidade para que em qualquer trabalho que seja, tomemos conhecimentos de tudo o que existe em termos bibliográficos e documentais. A História não se faz apenas com um documento, ou a leitura deste ou aquele texto. A abordagem parcelar não faz História, apenas a indicia e, por vezes, no sentido errado. A História das ilhas atlânticas tem merecido, na presente centúria, um tratamento preferencial no âmbito da História do Atlântico. Primeiro foram os investigadores europeus como F. Braudel (1949), Pierre Chaunu (1955-1960), Frédéric Mauro (1960) e Charles Verlinden (1960) a destacar a importância do espaço insular no contexto da expansão europeia. E só depois surgiu a historiografia nacional a corroborar a ideia e a equacioná-la nas dinâmicas da expansão insular. São pioneiros os trabalhos de Francisco Morales Padron (1955) e Vitorino de Magalhães Godinho (1963). Esta ambiência condicionou os rumos da historiografia insular nas últimas décadas e contribuiu para a necessária abertura às novas teorias e orientações do conhecimento histórico. As décadas de setenta e oitenta demarcam-se como momentos importantes no progresso da investigação e saber históricos, contribuindo para tal a definição de estruturas institucionais e de iniciativas afins. A produção historiográfica insular é desigual, dependendo o número da existência de literatos e de instituições capazes de incentivarem a elaboração e divulgação de estudos nos diversos domínios. Ainda, a similitude do processo vivencial aliada à permeabilidade às perspectivas históricas peninsulares definiram uma unidade na forma e conteúdo da historiografia insular. Gaspar Frutuoso, em finais do século XVI, com as Saudades da Terra, define e sintetiza a unidade insular, aproximando os arquipélagos da Madeira, Açores e Canárias. Esta ímpar situação na historiografia, só foi retomada na década de quarenta do nosso século pela historiografia europeia e no presente pela nova geração de historiadores insulares. Esta consciência histórica da unidade da múltipla realidade arquipelágica foi definida de modo preciso na expressão braudeliana de Mediterrâneo Atlântico13. A historiografia insular, permeável às origens europeias, surge, na alvorada da revolução do conhecimento cosmológico, como a expressão pioneira da novidade e, ao mesmo tempo necessidade institucional de justificação da intervenção e soberania peninsular. O período que medeia os séculos XV e XVI foi marcado por uma produção historiográfica mais europeia que local, próxima da crónica e da literatura de viagens, onde se espraiam estes ideais. Os factos históricos e as impressões das viagens atlânticas, perpetuados nas crónicas e relatos de diversa índole terão uma utilização posterior de acordo com as exigências da época. As exigências académicas, com a expansão do saber universitário, as solicitações do novo conhecimento histórico condicionaram tal avanço qualitativo da historiografia, a partir da década de quarenta. Assim, nas Canárias a tradição e vivência universitária propiciaram o forte arranque, enquanto nos Açores o academismo cultural e, depois, a universidade lançaram o arquipélago para uma posição similar. A Madeira, prenhe em documentos manteve-se num segundo plano, mercê da falta de suporte institucional e académico. Todavia, as condições imanentes da dinâmica autonómica com o aparecimento de suportes institucionais definiram um futuro promissor. O século XX pode ser considerado sem dúvida o momento de afirmação da Historiografia insulana. Um conjunto variado de realizações públicas, o lançamento de publicações da especialidade e a criação dos arquivos distritais ou provinciais alicerçaram a nova realidade. Na Madeira (1919-1921) e Açores (1932) as comemorações da respectiva descoberta associadas às efemérides nacionais de 1940 e 1960 contribuíram de modo decisivo para a afirmação e divulgação da História. Para as Canárias a animação ficou a dever-se ao impulso dado por Elias Serra Ráfols, a partir dos anos quarenta, na Universidade de La Laguna, que conseguiu motivar um numeroso grupo de entusiastas pela história do arquipélago, encaminhando-os para a carreira científica e para a valorização dos vestígios documentais levado a cabo com a criação dos arquivos provinciais. As três últimas décadas do século XX foram decisivas para o salto qualitativo da Historiografia insular, demarcando em todos os arquipélagos uma ambiência favorável à afirmação. Aqui, assumem particular importância as instituições culturais, as publicações periódicas e, a inovação da época, os colóquios de História. 13. Foi esse o objectivo dos nossos estudos: Comércio inter-insular nos séculos XV e XVI. Madeira, Açores e Canárias, Funchal, 1987; Portugal y las islas del Atlántico, Madrid, 1992. Os colóquios são na actualidade um momento privilegiado da divulgação do saber histórico. Estamos perante uma nova dimensão historiográfica, que surgiu a partir da década de setenta, firmando-se nos últimos anos como uma realidade insofismável. A década de oitenta emerge assim como o momento de maior relevância na investigação histórica insular, que condicionou os rumos da Historiografia nas décadas seguintes. Na verdade, os encontros, para além de permitirem o contacto com outras correntes historiográficas, têm o condão de nos oferecer visões de fora dos mesmos acontecimentos, permitindo um maior enquadramento das realidades14. Por tudo isto é forçoso afirmar que a ilha não se reduz apenas à dimensão geográfica. À sua volta palpita um mundo que gera múltiplas conexões e que não pode ser descurado sob pena de estarmos a atraiçoar o próprio devir histórico. Há que rasgar o casulo da ilha e postar-se nas torres avista-navios e vislumbrar o imenso firmamento que nos conduz a outras ilhas e continentes. Isto só será possível quando ultrapassarmos a fase do egocentrismo e mergulharmos na profundeza do Atlântico à busca da atlanticidade. A ECONOMIA INSULAR NA SUA DIMENSÃO ATLANTICA "...O conjunto dos arquipélagos das Canárias, Madeira e Açores: escalas obrigatórias em todo esse sistema mundial, uma vez que o globo se tornou em periferia desse centro dinâmico, empreendedor e avassalador, que é a Europa ocidental dos séculos XVI-XVIII. (...) A Madeira situa-se no centro deste sistema de duplo sentido, e por isso de certo modo comanda todo este espaço, porque vive sobretudo da riquíssima produção própria." V. M. Godinho, Mito e mercadoria, utopia e prática de navegar. Séculos XIII-XVIII, Lisboa, 1990. A historiografia vem defendendo única e exclusivamente a vinculação das ilhas ao Velho Mundo, realçando apenas a importância desta relação umbilical com a mãe-pátria. Os séculos XV e XVI seriam definidos como os momentos áureos do relacionamento, enquanto a conjuntura setecentista seria a expressão da viragem para o Novo Mundo, em que alguns produtos, como o vinho, assumem o papel de protagonista e responsável das trocas comerciais. Os estudos por nós realizados vieram a confirmar que a situação do relacionamento exterior da ilha não se resumia apenas a estas situações15. À margem das importantes vias e mercados subsistem outras que activaram também a economia madeirense, desde o séc. XV. As conexões com os arquipélagos próximos (Açores e Canárias) ou afastados (Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe) foram já motivo de aprofundada explanação, que propiciou a valorização da estrutura comercial16. Aqui ficou demonstrada a importância assumida pelos contactos humanos e comerciais, que no primeiro caso, resultou da necessidade de abastecimento de 14 . Primeiro foram os investigadores das Canárias a reconhecer a necessidade deste tipo de realização ao lançarem em 1976 o Colóquio de História Canario Americana, sob a égide da Casa de Colón, com a coordenação do Prof. Doutor Francisco Morales Padron. Os resultados da primeira iniciativa contribuíram para a continuidade e a concretização de idêntica iniciativa nos Açores (1983), em Fuerteventura (1984) e, por último, na Madeira (1986). 15. "O comércio de cereais dos Açores para a Madeira no século XVII", in Os Açores e o Atlântico (séculos XIV-XVII), A. Heroismo, 1984; "O comércio de cereais das Canárias para a Madeira nos séculos XVI e XVII", in VI Colóquio de História Canario Americana, Las Palmas, 1984; "Madeira e Lanzarote. Comércio de escravos e cereais no século XVII", in IV Jornadas de História de Lanzarote e Fuerteventura, Arrecife de Lanzarote, 1989. 16.O comércio inter-insular(Madeira, Açores e Canárias) nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987. cereais e, no segundo, das possibilidades de intervenção no tráfico negreiro, mercê da vinculação às áreas africanas da Costa da Guiné, Mina e Angola. Para além do privilegiado relacionamento com o mundo insular, a praça comercial madeirense foi protagonista de outros destinos no litoral africano ou americano e rosário de ilhas da América Central. No primeiro rumo ressalta a costa marroquina, onde os portugueses assentaram algumas praças, defendidas, a ferro e fogo, pelos ilhéus17. No século XVI, com a paulatina afirmação do novo mundo americano costeiro e insular, depara-se um novo destino e mercado, que pautou o relacionamento externo nas centúrias posteriores. O novo mundo e mercado foram para muitos uma esperança de enriquecimento ou a forma de assegurar a posse de bens fundiários. Em qualquer das situações o estreitamento dos contactos depende, primeiro, da presença de uma comunidade que pretende manter o contacto com a terra-mãe e depois das possibilidades de troca favorável. A oferta de vinho e a procura pelos agentes do tráfico negreiro, para enganadoramente oferecerem aos sobas africanos, ou do outro lado do Atlântico saciar a sede do europeu a troco do açúcar, foi o principal motor de relacionamento. A situação influenciou decisivamente a estrutura comercial, a partir da segunda metade do século XVI. AS ILHAS E O ATLÂNTICO O Atlântico não é só uma imensa massa de água, polvilhada de ilhas, pois a ele associa-se uma larga tradição histórica que remonta à Antiguidade, donde resultou o nome de baptismo. Aqui deparamo-nos com um conjunto polifacetado de ilhas e arquipélagos que se tornaram relevantes no processo histórico do Oceano, quase sempre como intermediários entre o maralto e os portos litorais dos continentes europeu, africano e americano. As ilhas anicham-se, de um modo geral, junto da costa dos continentes africano e americano, pois apenas os Açores, Santa Helena, Ascensão e o grupo de Tristão da Cunha se distanciam. Desde o pioneiro estudo de Fernand Braudel18 que às ilhas foi atribuída uma posição chave na vida do oceano e do litoral dos continentes. A partir daqui a Historiografia passou a manifestar grande interesse. Note-se ainda que, segundo Pierre Chaunu19, foi activa a intervenção dos arquipélagos da Madeira, Canárias e Açores na economia dos séculos XV e XVII20. Para o Atlântico português a conjuntura foi diversa. A actuação, em três frentes — Costa da Guiné, Brasil e Índico —, alargou os enclaves de domínio ao sul do oceano. Neste contexto surgiram cinco vértices insulares de grande relevo — Açores, Canárias, Cabo Verde, Madeira e S. Tomé — imprescindíveis para a afirmação da hegemonia e defesa das rotas oceânicas dos portugueses. Aí assentou a coroa portuguesa os principais pilares atlânticos da acção, fazendo de ilhas desertas, lugares de acolhimento e repouso para os náufragos, ancoradouro 17.A.A.SARMENTO, A Madeira e as praças de África. dum caderno de apontamentos, Funchal, 1932: Robert RICARD, "Les places lusomarocaines et les Iles portugaises de l'Atlantique", in Anais da Academia Portuguesa de História, II série, vol.II, 1949; António Dias FARINHA, "A Madeira e o Norte de África nos séculos XV e XVI", in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira.1986, vol.I, Funchal, 1989, pp.360-375. 18 . O Mediterrâneo e o Mundo Maditerrânico na época de Filipe III, 2 vols., Lisboa, 1984 (1ª edição em 1949). 19 . Sevilla y América. siglos XVI y XVII, Sevilha, 1983. 20 . Confronte-se nossos estudos: Comércio inter-insular nos séculos XV e XVI. Madeira, Açores e Canárias, Funchal, 1987; Portugal y las islas del Atlántico, Madrid, 1992. seguro e abastecedor para as embarcações e espaços agrícolas dinamizadores da economia portuguesa. No primeiro caso podemos referenciar a Madeira, Canárias, Cabo Verde, S. Tomé, Santa Helena e Açores, que emergem, a partir de princípios do século XVI, como os principais eixos das rotas do Atlântico. Aqui há necessidade de diferenciar as que se afirmaram como pontos importantes das rotas intercontinentais, como foi o caso das Canárias, Santa Helena e Açores, e as que se filiam nas áreas económicas litorais, como sucedeu com Arguim, Cabo Verde, o arquipélago do Golfo da Guiné, Santa Catarina e Marajó. Todas vivem numa situação de dependência em relação ao litoral que as tornou importantes. Apenas a de S. Tomé, pela importância da cana-deaçúcar, esteve fora desta subordinação por algum tempo. O protagonismo das ilhas das Canárias e dos Açores no traçado das rotas oceânicas que se dirigiam e regressavam das Índias ocidentais e orientais é muito mais evidente, sendo resultado da sua posição às portas do oceano. Actuaram como via de entrada e de saída das rotas oceânicas, atraindo a pirataria e corso para a região circunvizinha. Mas os arquipélagos não foram apenas áreas de apoio, uma vez que o solo fértil permitiu um aproveitamento das potencialidades por meio das culturas europeio-mediterrâneas. Foi a última vertente que os projectou para um lugar relevante na História do Atlântico. A valorização sócio-económica dos espaços insulares não foi unilinear, dependendo da confluência de dois factores. Primeiro, os rumos definidos para a expansão atlântica e os níveis de expressão em cada um, depois as condições propiciadoras de cada ilha ou arquipélago em termos físicos, de habitabilidade ou da existência ou não de uma população autóctone. Quanto ao último aspecto é de salientar que apenas as Antilhas, Canárias e a pequena ilha de Fernão do Pó, no Golfo da Guiné, já estavam ocupadas quando aí chegaram os marinheiros peninsulares. As restantes encontravam-se abandonadas — não obstante falarse de visitas esporádicas às ilhas dos arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé por gentes costeiras — o que favoreceu o imediato e rápido povoamento, quando as condições do ecossistema o permitiam. Se na Madeira a tarefa foi fácil, não obstante as condições hostis da orografia, o mesmo não se poderá dizer dos Açores ou de Cabo Verde, onde os primeiros colonos enfrentaram diversas dificuldades. Para as ilhas já ocupadas as circunstâncias foram diferentes, pois enquanto nas Canárias os castelhanos defrontaram-se com os autóctones por largos anos (1402/1496). Já em Fernão do Pó e nas Antilhas foi mais fácil vencer a resistência indígena. O Atlântico foi a partir do século XV um mar ibérico. Os actos formais desta partilha pelas coroas peninsulares têm lugar em 1479 em Alcáçovas e 1494 em Tordesilhas. A resposta dos restantes reinos europeus a este mar fechado foi o recurso ao corso como arma chave para abrir o oceano a todas as potências marítimas. A ultima situação teve consequências nefastas à estabilidade e segurança das rotas comerciais, obrigando os reinos peninsulares a definiram uma política consertada dos interesses no mar e em terra. Na estratégia de domínio e controle do espaço atlântico as ilhas assumiram um papel fundamental. São áreas destacadas de exploração económica, mas também portos fundamentais para o apoio e defesa da navegação. Neste contexto temos em data anterior a 1527 a criação da Provedoria das Armadas na ilha Terceira. Este papel das ilhas é fundamental para entender as disputas que se sucedem na década de oitenta do século XVI e que tem por palco as ilhas açorianas. As ilhas foram também espaços criadores de riqueza, sendo a agricultura a principal aposta. Esta exploração obedece às exigências da subsistência das populações e às solicitações do mercado externo com os produtos de exportação. Os Açores foi atribuído o papel de celeiro do atlântico português, enquanto a Madeira se especializa nos produtos de exportação com grande procura na Europa ou no mercado colonial. Estava assim dado o mote para o binómio da economia madeirense: açúcar e vinho. Em Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe, a proximidade ao continente africano conduziu a que tivessem outro protagonismo, sendo portos de ligação entre o mercado de escravos do continente africano e o novo mundo. Foi este o papel mais evidente, não obstante a efémera experiência açucareira de S. Tomé. A aclamação de Filipe II em 14 de Setembro de 1580 como rei de Portugal foi um marco decisivo na mudança do equilíbrio precário que dominava as relações das diversas potências europeias no palco atlântico. A partir daqui os confrontos se transferiram para as ilhas atlânticas, e de modo especial os Açores, consideradas fundamentais para a manutenção da hegemonia ibérica. Desta forma não será ocasional a transferência dos conflitos europeus para os mares açorianos, onde os ingleses e franceses se batem pelos interesses de D. António contra o avanço da soberania de Filipe II. O conflito só ficou resolvido em 26 de Julho de 1583 com a célebre batalha de Porto de Mós na ilha Terceira. A principal consequência da adesão forçada ou pacífica das ilhas a nova monarquia ibérica estava na vulnerabilidade face às investidas dos inimigos europeus. Os corsários são os protagonistas. O corso a partir da década de oitenta tomou outro rumo, sendo uma forma de represália à união das duas coroas peninsulares. A crise dinástica portuguesa e a consequente união das coroas peninsulares levaram a uma abertura total da área ao comércio dos insulares, vizinhos e demais europeus, nomeadamente, os holandeses. Perante isto Santiago deixou de ser o principal entreposto dos Rios de Guiné, pelo que foram evidentes os reflexos na economia da ilha. Por outro lado a S. Tomé torna-se mais evidente no papel de entreposto de escravos, nomeadamente de Angola, uma vez destruída a economia açucareira. Se é certo que as ilhas se fecharam ao comércio com os inimigos políticos e religiosos, também não é menos verdade que a união não conseguiu garantir o exclusivo dos mercados detidos pelas monarquias ibéricas, agora unidas. Isto foi um passo para a partilha do oceano por todas as potências europeias, que não prescindiram da posição fundamental das ilhas. Nos séculos XV e XVI as ilhas e arquipélagos firmaram um lugar de relevo na economia atlântica, distinguindo-se pela função de escala económica ou mista: no primeiro caso surgem as ilhas de Santa Helena, Ascensão, Tristão da Cunha, para o segundo as Antilhas e a Madeira e no terceiro as Canárias, Os Açores, Cabo Verde, são Tomé e Príncipe. Neste grupo emergem a Madeira e as Canárias pelo pioneirismo da ocupação que, por isso mesmo, se projectaram no restante espaço por meio de portugueses e castelhanos. Daqui resultou a vinculação económica e institucional da Madeira ao espaço atlântico português, como o é das Canárias com as índias de Castela. Daí também a importância que assume para o estudo e conhecimento da História do Atlântico a valorização da pesquisa histórica sobre ambos os arquipélagos21. Em síntese, as ilhas jogaram um papel fundamental na estratégia de afirmação colonial no Novo Mundo. São pilares do complexo que começou a construir-se a partir do século XV e foram, primeiro, dados como a imagem do Paraíso e depois afirmaram se como espaços de 21 . Cf. Alan L. Kanas e J. R. Manell, Atlantic American Societies-from Columbus through abolition 1492-1886, London, 1992; Alfred W. Crosby, the Columbian exchange, biological and cultural consequences of 1492, Westport, 1972; S. Mintz, Sweetness and power, N. York, 1985. Michael Meyerr, "The price of the new transnational history", the American Historical Review, 96, nº 4, 1991, 10561072; D. W. Meinig, Atlantic America 1492-1800, New Haven, 1980: Lan Stelle, The english atlantic, 1675-1740 - An exploration & communication and community, N. Y. 1986. rica exploração económica, escalas retemperadoras e de apoio aos intrépidos marinheiros. Paulatinamente elas ganharam a merecida posição na estratégia colonial, projectando-se nos espaços continentais próximos e longínquos. Abriram aos europeus as portas do Atlântico e mantiveram-se até a actualidade como peças fundamentais. Como ponto de partida para os descobrimentos oceânicos contribuíram para a afirmação e controlo dos mercados continentais vizinhos, como sucedeu em Cabo Verde e S. Tomé. Nos séculos XVIII e XIX não foi menor o protagonismo insular. As ilhas passaram de escalas de navegação e comércio a centros de apoio e laboratórios da ciência. Os cientistas cruzam-se com mercadores e seguem as rotas delineadas desde o século XV. Juntaram-se, depois, os "turistas", que afluem às ilhas desde o século XVIII na busca de cura para a tísica pulmonar ou à descoberta. Este movimento foi o início do turismo nas ilhas que só adquiriu a dimensão actual na década de cinquenta do século XX. Todo o protagonismo insular faz jus à ideia de que os portugueses criaram um império anfíbio. As ilhas foram o principal pilar e o mar o traço de união. A omnipresença do mar está patente num provérbio chinês: os portugueses são como peixes, que morrem quando se lhes tira a água22. AS ILHAS E OS DESCOBRIMENTOS No conjunto, os arquipélagos do Atlântico Oriental - Madeira, Açores, Canárias, Cabo Verde, S. Tomé-- deram um contributo à plena valorização e afirmação do novo espaço que ganhou evidencia no império português. A Madeira assume um papel fundamental. Senão vejamos. Logo a partir de 1515 a presença madeirense é notada no transplante das socas de cana na Baía e S. Vicente (Santos), mas a presença é mais notória na economia açucareira brasileira a partir de meados do século XVI. Também a cultura da vinha no Brasil está ligada à Madeira, pois em 1532 Martin Afonso de Sousa terá conduzido as primeiras cepas madeirenses que foram plantadas em S. Vicente e depois a partir de 1551 avançaram para o interior na área que é hoje S. Paulo. A Madeira foi pioneira e ponto de partida para a expansão do cultivo da cana sacarina e fabrico do açúcar no espaço atlântico. Mas não se fica por aqui, alargando-se às ilhas da América Central. Note-se que muitos, afugentados do Nordeste brasileiro pelo ocupante holandês na década de trinta do século XVII, foram parar às Caraíbas onde promoveram a indústria. Foi, aliás, no período da ocupação holandesa do Pernambuco que se evidenciou de igual forma o protagonismo dos madeirenses através da defesa face à cobiça holandesa. Muitos madeirenses corresponderam à chamada para correr com o invasor, sendo o movimento chefiado por um outro madeirense, João Fernandes Vieira, conhecido como libertador de Pernambuco. São aqueles madeirenses que se haviam batido com bravura nas pelejas de defesa das praças marroquinas, de Angola ou na expansão e conquista do Índico, que agora na primeira linha da salvaguarda deste rincão do mundo colonial. O mesmo princípio orientará a presença de muitas famílias madeirenses e açorianas no Sul do vasto espaço brasileiro, dando origem às colónias de povoamento na ilha de Santa Catarina e litoral próximo. A actual cidade de Portalegre foi criada por iniciativa de um madeirense que conseguiu convencer um grupo de açorianos a avançar para o sertão. O movimento de colonização das terras do sul do Brasil, como forma de defesa da soberania face à cobiça castelhana animada pela guerra de fronteiras. Mais uma vez os insulares cumprem a missão 22 . Urs Bitterli, Los "Selvajes" y los "civilizados"El encuentro de Europa y Ultramar, Mexico, 1981 de defesa de soberania nos mais recônditos espaços do império. As ilhas não foram apenas contribuintes financeiras do processo que levou a cultura e soberania imperial portuguesa aos quatro cantos do mundo, mas também participantes activos do processo. Por isso muitos foram tragados pela fúria das ondas ou sucumbiram vítimas das doenças tropicais e muitos outros caíram no campo de batalha, para que tal como nos assinala o poeta, “fosse nosso o mar”. É evidente o contributo madeirense para a construção da sociedade brasileira. A riqueza propiciada pelo açúcar não escapa ao engenho e arte dos nossos antepassados. Mas esta dádiva espraia-se noutras acções de defesa do espaço nos séculos XVII e XVIII. As colónias de povoamento do sul, impropriamente designadas de açorianas são criadas com o esforço de aventureiros madeirenses e açorianos. As condições sócio-económicas de ambas as ilhas aliadas às questões políticas definiram a necessidade deste surto migratório incentivado pela coroa que conduziu ao extremo sul do vasto espaço brasileiro a presença açórico-madeirense. O testemunho disso é ainda visível em algumas tradições culturais que persistem. Se é certo que os ilhéus estiveram ausentes do “achamento” das terras da Vera Cruz a presença torna-se notada no percurso histórico que se seguiu e que levou ao descobrimento do Brasil. E a construção como espaço açucareiro ou dos bandeirantes em busca dos metais e pedras preciosas foi também fruto do sangue e suor de muitos insulares. As ilhas não ficaram alheias ao descobrimento e processo de construção do Brasil e por isso não podem ser esquecidas na actual comemoração. A Madeira, os Açores foram terras descobertas, mas também de descobridores. Na verdade, afirmaram-se no processo da expansão europeia pela singularidade da intervenção. Vários são os factores que o propiciaram, no momento de abertura do mundo atlântico, e que fizeram com que ela fosse, no século XV, uma das peças chave para a afirmação da hegemonia portuguesa no Novo Mundo. O Funchal foi uma encruzilhada de opções e meios que iam ao encontro da Europa em expansão. É considerada a primeira pedra do projecto, que lançou Portugal para os anais da História do oceano que abraça o seu litoral abrupto. A fundamentação de tudo isto está patente no real protagonismo da ilha e das suas gentes. Á função de porta-estandarte do Atlântico, a Madeira associou outras, como “farol” Atlântico, o guia orientador e apoio para as delongas incursões oceânicas. Por isso nos séculos que nos antecederam, foi um espaço privilegiado de comunicações, tendo a favor as vias traçadas no oceano que a circunda e as condições económicas internas, propiciadas pelas culturas da cana sacarina e vinha. Ambas as condições contribuíram para que o isolamento definido pelo oceano fosse quebrado e se mantivesse um permanente contacto com o velho continente europeu e o Novo Mundo. Como corolário desta ambiência a Madeira firmou uma posição de relevo nas navegações e descobrimentos no Atlântico. O desenvolvimento da economia de mercado, em uníssono com o empenhamento dos principais povoadores em dar continuidade à gesta de reconhecimento do Atlântico, contribuiu para a posição e fizeram avolumar os serviços prestados pelos madeirenses. Surgiu uma nova aristocracia dos descobrimentos, cumulada de títulos e benesses pelos serviços prestados, no reconhecimento da costa africana, na defesa das praças marroquinas, ou nas campanhas brasileiras e Indicas23. A proximidade da Madeira ao vizinho arquipélago das 23 Confronte-se João José Abreu de SOUSA, "Emigração madeirense nos séculos XV a XVII", in Atlântico, nª.1, Funchal, 1985, pp. 46-52. Canárias, em conjugação com o rápido surto do povoamento e valorização sócio-económica do solo, orientaram as atenções do madeirense para as ilhas. Assim, decorridos apenas vinte e seis anos sob a ocupação, os moradores da Madeira empenharam-se na disputa pela posse das Canárias, ao serviço do infante D. Henrique. Em 1446, João Gonçalves Zarco, foi enviado a Lanzarote, como plenipotenciário para afirmar o contrato de compra da ilha. Acompanhamno as caravelas de Tristão Vaz, capitão do donatário em Machico e de Garcia Homem de Sousa, genro de Zarco24. Mais tarde em 1451, o infante enviou nova armada, em que participaram gentes de Lagos, Lisboa e Madeira, sendo de salientar, no último caso, Rui Gonçalves filho do capitão do donatário do Funchal. Para as aristocracias madeirense e açoriana o empenhamento nas acções marítimas e bélicas é, ao mesmo tempo, uma forma de homenagem ao senhor (monarca, donatário) e de aquisição de benesses e comendas. Zurara na «Crónica da Guiné» confirma isso, referindo que a participação madeirense ia ao encontro dos princípios e tradições da cavalaria do reino. O que não invalida a sua presença com outros objectivos, como sucede a partir de meados do século XV. Os principais obreiros do reconhecimento e ocupação da Madeira, como criados da casa do infante D. Henrique, foram impelidos para a aventura africana, com participação activa nas viagens henriquinas de 1445 e 1460 e nas aventuras bélicas nas praças africanas do norte, nos séculos XV e XVI. A presença de gentes continuará por todo o século XV em três frentes: Marrocos, litoral africano além do Bojador e terras ocidentais. Na primeira e última a presença dos madeirenses foi fundamental. A tradição refere que o primeiro homem a lançar-se à aventura do descobrimento das terras ocidentais foi Diogo de Teive, que em 1451 terá saído do Faial à procura da ilha das Sete Cidades, mas que no regresso apenas descobriu as de Flores e Corvo. Outros madeirenses seguiram o exemplo, gastando muita fazenda para abrir o caminho, mais tarde, trilhado por Colombo. A ilha estava em condições de propiciar ao navegador as informações consideradas imprescindíveis ao descobrimento das terras ocidentais. Note-se que o apelo do Ocidente é consequência lógica do reconhecimento dos Açores, ocorrido a partir de 1427, todavia as ilhas mais ocidentais (Flores e Corvo) só em 1452 foram pisadas por marinheiros portugueses. A entrada no domínio lusíada deu-se por mãos de Pedro Vasquez de la Frontera e Diogo de Teive em 1452, no regresso de uma das viagens para o Ocidente à procura das ilhas míticas. As ilhas açorianas, por serem as mais ocidentais sob domínio europeu até à viagem de Colombo, foram paradeiro para aventureiros interessados em embrenhar-se na gesta descobridora dos mares ocidentais. Desde meados do século XV, madeirenses e açorianos saem, com assídua frequência, à busca de novas terras assegurando, antecipadamente, a posse do que descobrissem por carta régia25. É de notar que este interesse dos insulares pela descoberta das terras ocidentais é muito anterior a Colombo e persistiu após 1492. A primeira carta conhecida é de 19 de Fevereiro de 1462, sendo a posse das novas ilhas Lovo e Capraria e outras que iria descobrir, dadas ao João Vogado. Ainda antes de 1492 temos outras concessões a Rui Gonçalves da Câmara (21 de Junho de 1473), Fernão Teles (28 de Janeiro de 1474), Fernão Dulmo e João Afonso do Estreito (24 de Julho de 1486). Após a primeira 24 José PEREZ VIDAL, «Aportación portuguesa a la población de Canarias. Datos», in Anuario de Estudios Atlânticos, nº 14, 1968; A. SARMENTO, «Madeira & Canárias», in Fasquias e Ripas da Madeira, Funchal, 1931, 13-14. 25 Manuel Monteiro Velho ARRUDA (Colecção de documentos relativos ao descobrimento e povoamento dos Açores, Ponta Delgada, 1977) refere as cartas atribuídas a João Vogado(19 de Fevereiro de 1462), Gonçalo Fernandes(29 de Outubro de 1462), Rui Gonçalves da Camara (21 de Janeiro de 1473), Fernão Teles(28 de Junho de 1474 e 10 de Novembro de 1475), Fernão Dulmo e João Afonso do Estreito (24 de Julho e 4 de Agosto de 1486). viagem de Colombo não esmoreceu o interesse dos insulares por tais viagens. A atestá-lo estão as cartas concedidas a Gaspar Corte Real (12 de Maio de 1500), João Martins (27 de Janeiro de 1501) e Miguel Corte Real (15 de Janeiro de 1502). O Ocidente exerceu sobre os ilhéus, madeirenses e açorianos, um fascínio especial, sendo acalentado, ademais, pelas lendas recuperadas da tradição medieval. Por isso mesmo, desde meados do século XV, eles entusiasmaram-se com a revelação das ilhas ocidentais - Antília, S. Brandão, Brasil. No extenso rol de navegadores anónimos que deram a vida por esta descoberta, permitam-nos que referencie os madeirenses Diogo de Teive, João Afonso do Estreito, Afonso e Fernão Domingues do Arco. A. Ballesteros26 identifica o último como o piloto anónimo que em 1484 veio a Lisboa pedir ao rei uma caravela para, segundo Fernando Colombo, "ir a esta tierra que via." A estas iniciativas isoladas acresce a tradição literária e os dados materiais visíveis nas plagas insulares. A literatura fantástica, a cartografia mítica o aparecimento de destroços de madeira e troncos de árvores nas costas das ilhas açorianas acalentavam a esperança da existência de terras a ocidente. Na costa das ilhas açorianas, Faial e Graciosa, encalhavam alguns pinheiros, enquanto nas Flores davam à costa dois cadáveres com feições diferentes das dos cristãos e dos negros. Tudo isto levantava o fervor dos aventureiros que com assiduidade se viam perante ilhas que nunca existiram. A "décima ilha", por exemplo, nunca passou de uma miragem. A curta permanência de Colombo no Porto Santo e, depois, na Madeira possibilitou-lhe um conhecimento das técnicas de navegação usada pelos portugueses e abriu as portas aos segredos, guardados na memória dos marinheiros, sobre a existência de terra a Ocidente. Bartolomé de Las Casas e Fernando Colombo falam que o mesmo teria recebido das mãos da sogra "escritos e cartas de marear"27. Ambos os cronistas fazem do sogro um destacado navegador quatrocentista. Tudo isto não passa de criação para enfatizar a ligação de ambas as famílias. Na verdade Bartolomeu Perestrelo, ao contrário de muitos genoveses ou descendentes, não é referenciado nas crónicas portuguesas como navegador28, sendo apenas o capitão do donatário da ilha do Porto Santo, por carta de doação de um de Novembro de 1446, e na condição de povoador da ilha acompanhou João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz em 1419. Mais importantes foram os elementos que lhe terá fornecido o cunhado Pedro Correia, capitão da ilha Graciosa (Açores). Daí ele dava conta de outras notícias das terras açorianas, sem esquecer os estranhos despojos que aportavam com assiduidade às praias da ilha do Porto Santo. Aí, na Madeira e Porto Santo, ouviu histórias e relatos dos aventureiros do mar, teve acesso a provas evidentes da existência de terras ocidentais legadas pelas correntes marítimas nas praias. Um dos vestígios foi a castanha do mar, mais popularmente conhecida como "fava de Colombo". Por tudo isto é legítimo de afirmar que o navegador saiu do arquipélago, em data que desconhecemos, com a firme certeza de que algo de novo poderia encontrar a Ocidente, capaz de justificar o empenho e da coroa. A ilha ficou-lhe no coração e nunca mais a esqueceu no afã descobridor. Bastaram alguns anos de convívio com os marinheiros madeirenses, esporádicas viagens ao golfo da Guiné, para ganhar o alento, a sabedoria e os meios técnicos necessários para definir o plano de 26 Cristóbal Colón y el descubrimiento de América, 2 vols, Barcelona, 1945. História de Las Índias, vol.I, México, 1986; Vida Del Almirante Don Cristóbal Colón, escrita por su hijo, México, 1984 28 Esta situação foi já realçada por Henry HARRISSE, Cristophe Colomb devant l'histoire, Paris, 1892; Henry VIGNAUD, Histoire critique de la grande entreprise de Cristophe Colomb, 2 vols, Paris, 1911; Gaetano FERRO, As navegações portuguesas no Atlântico e no Indico, Lisboa, pp.181-183. 27 traçar o caminho de encontro às terras indicas pelo Ocidente: Cipango (=Japão) era o objectivo. Durante os cerca de dez anos que permaneceu em Portugal Cristóvão Colombo acompanhou de perto as expedições portuguesas ao longo da costa africana. O fascínio do navegador pelo mar, conquistado no Mediterrâneo como corsário ou comerciante, despertoulhe o apetite para as navegações atlânticas portuguesas. No momento em que se fixou em Lisboa toda a atenção e azáfama estava orientada para o desbravamento da extensa costa africana além do Bojador, conhecida como costa da Guiné. Na época toda a área costeira até ao Cabo de Santa Catarina, era já conhecida e navegável, tendo sido alcançada em 1474, no período do contrato de Fernão Gomes. Não obstante o espaço ser vedado à navegação de embarcações que não fossem portuguesas, os estrangeiros poderiam faze-lo a bordo e ao serviço de embarcações nacionais. Assim havia sucedido na década de cinquenta com Cadamosto e Usodimare. Tal como o fez o patrício Usodimare, Colombo embarcou em caravelas portuguesas que demandavam as costas da Guiné. Facto normal para um experimentado marinheiro genovês, que na praia do Porto Santo ou na Madeira, acompanhava o vai e vem das nossas caravelas. É de salientar que por muito tempo a Madeira foi escala obrigatória das embarcações portuguesas que se dirigiam à costa africana. Tal facto derivou de o Funchal ser o único porto seguro, avançado no Atlântico, dispondo de excedentes de cereais e vinho, necessários à dieta de bordo dos marinheiros. A par disso os madeirenses acalentavam, desde a década de quarenta, a aventura das navegações africanas, tendo-se empenhado nisso as principais famílias da ilha. Por tudo isto é inevitável associar a viagem de Colombo à sua curta estadia nas ilhas da Madeira e Porto Santo, onde contactou com a realidade atlântica, adquiriu as necessárias técnicas para se embrenhar na aventura de busca das terras ocidentais. O retorno do navegador à ilha, em 1498, no decurso da terceira viagem, pode e deve ser entendido como o reconhecimento aos madeirenses. Aqui teve oportunidade de relatar, aos que com ele acalentaram a ideia da existência de terras a Ocidente, o que encontrara de novo. O convívio com as gentes do Porto Santo havia sido prolongado e cordial pois em Junho de 1498, aquando da terceira viagem, não resistiu à tentação de escalar a vila. A aproximação foi considerada mau presságio pois os porto-santenses pensavam estar perante mais uma armada de corsários. Desfeito o equívoco foi recebido pelos naturais da terra, seguindo depois para a Madeira. A 10 de Junho de 1498 a chegada do navegador ao Funchal foi saudada apoteoticamente, como nos refere frei Bartolomé de Las Casas, o que provoca mais uma vez, a familiaridade com as gentes e a esperança que elas depositavam em tal empresa. O cronista remata da seguinte forma o ambiente de festa que o envolveu: "le fué hecho mui buen recibimiento y mucha fiesta por ser alli muy conocido, que fué vecino de ella en algún tiempo"29. A Madeira surge, nos alvores do século XV, como a primeira experiência de ocupação em que se ensaiaram produtos, técnicas e estruturas institucionais. Tudo isto foi, depois, utilizado, em larga escala, noutras ilhas e no litoral africano e americano. O arquipélago foi, assim, o centro de divergência dos sustentáculos da nova sociedade e economia do mundo atlântico: primeiro os Açores, depois os demais arquipélagos e regiões costeiras onde os portugueses aportaram. Idêntica função preencheu as Canárias em relação ao modelo colonial castelhano30. 29 Fray Bartolomé de LAS CASAS, História de las Indias, vol.I, México, 1986, 497. 30 . Cf. José Pérez Vidal, Aportación de Canárias a la Población de América, Las Palmas de Gran Canária, 1991. O sistema institucional madeirense apresentava uma estrutura peculiar definida pelas capitanias. Foi a 8 de Maio de 1440 que o Infante D. Henrique lançou a base da nova estrutura ao conceder a Tristão Vaz a carta de capitão de Machico. A partir daqui ficou definido o sistema institucional que deu corpo ao governo português no Atlântico insular e brasileiro. Sem dúvida que o facto mais significativo da estrutura institucional deriva de a Madeira ter servido de modelo referencial para o delineamento no espaço atlântico. O monarca insiste, nas cartas de doação de capitanias posteriores, na fidelidade ao sistema traçado para a Madeira. Assim o comprovam idênticas cartas concedidas aos novos capitães das ilhas dos Açores e Cabo Verde. O mesmo sucede com a demais estrutura institucional que chegou também a S. Tomé e Brasil. Também os castelhanos vieram à ilha receber alguns ensinamentos para a sua acção institucional no Atlântico, como se depreende do desejo manifestado em 1518 pelas autoridades antilhanas em resolver a difícil situação das ilhas de Curaçau, Aruba e La Margarita com o recurso ao modelo madeirense de povoamento. Isto prova, mais uma vez, a presença modelar da ilha no contexto da expansão europeia e demonstra o interesse que ela assumiu para a Europa. João de Melo da Câmara, irmão do capitão da ilha de S. Miguel, resumia em 153231 de uma forma perspicaz o protagonismo madeirense no espaço atlântico, pois a família era portadora de uma longa e vasta experiência. Isso era o alento necessário e abri-lhe perspectivas para uma sua iniciativa no Brasil. Ele reclamava o protagonismo do ancestral Rui Gonçalves da Câmara que em 1474 comprara a ilha de S. Miguel, dando início ao povoamento. A mesma percepção surge em Gilberto Freire que em 1952 não hesita em afirmar o seguinte: "A irmã mais velha do Brasil é o que foi verdadeiramente a Madeira. E irmã que se estremou em termos de mãe para com a terra bárbara que as artes dos seus homens,... Concorreram para transformar rápida e solidamente em nova Lusitânia"32. Outra componente importante da afirmação da ilha como modelo de referência tem a ver com a organização da sociedade no espaço atlântico e da importância aí assumida pelo escravo. Mais uma vez a Madeira é o ponto de partida para esta transformação social. De acordo com S. Greenfield33 ela serviu de trampolim entre o "Mediterranean Sugar Production" e a "Plantation Slavery" americana. O autor não faz mais do que retomar os argumentos aduzidos por Charles Verlinden34 desde a década de sessenta. A argumentação mereceu alguns reparos na sua formulação, mercê de novos estudos35. 31 História da Colonização Portuguesa do Brasil, vol. III, p.90; cf Vera Jane GILBERT, "Os primeiros engenhos de açúcar" in Sacharum, nº.3, São Paulo, 1978, pp. 5-12. 32 Aventura e Rotina, 2ªed., pp 440-446, 448-449 33 "Madeira and the beginings of New World sugar cane cultivation and plantation slavery: a study in constitution building", in Vera RUBIN e Artur TUNDEN(eds.), Comparative perspectives on slavery in New World Plantation Societies, N. York, 1977. 34 "Précédents et paralèlles europeéns de l'esclavage colonial", in Instituto, vol.113, Coimbra, 1949; "Les origines coloniales de la civilization atlantique. antécédents et types de structure", in Journal of World History, 1953, pp. 378-398; Précédents médiévaux de la colonie emn Amérique, México, 1954; Les origines de la civilization atlantique, Nêuchatel, 1966. 35 Confronte-se Alfonso FRANCO SILVA, "La eclavitud en Andalucia...", in Studia, nº.47, Lisboa, 1989, pp.165-166; Alberto VIEIRA, Os escravos no arquipélago da Madeira. séculos XV a XVII, Funchal, 1991. Na verdade tudo o concretizado em termos do mundo atlântico português teve por matriz o sucedido na Madeira. A Madeira foi ao nível social, político e económico, o ponto de partida para o "mundo que o português criou..." nos trópicos. É sumamente importante o conhecimento do sucedido na Madeira quando pretendemos estudar e compreender outras situações. ROTAS: HOMENS E PRODUTOS Os descobrimentos europeus não podem ser vistos apenas como o encontro de novas terras, novas gentes e culturas, pois a isto deverá associar-se o movimento de migração humana, que arrastou consigo um universo envolvente de fauna, flora, tecnologia, usos e tradições que tiveram um impacto evidente em todo o processo. Estamos perante aquilo a que Pierre Chaunu define como desencravamento planetário, vinculado às transformações operadas pela a expansão europeia do século XV, que retirou ao europeu a ideia restrita de mundo e fez com que se avançasse paulatinamente para o que hoje definimos como aldeia global. Os Descobrimentos foram também responsáveis pela transformação e revolução ecológica, com impactos positivos ou negativos. Uma das transformações fundamentais ocorreu ao nível alimentar com a descoberta de novos produtos e condimentos que enriqueceram a dieta alimentar. NAVEGANTES, AVENTUREIROS E EMIGRANTES. "Deus deu aos portugueses um berço estreito para nascer e um mundo inteiro para morrer" Pe António Vieira Os Descobrimentos Portugueses do século XV foram o início de um novo processo de transmigração das populações europeias. Portugal, porque pioneiro, assumiu um lugar de destaque. Á tradicional movimentação interna das populações, resultante da reconquista e ocupação do espaço, sucedem-se outros movimentos para fora do continente, de acordo com os descobrimentos e a necessidade de ocupação de novos espaços. De acordo com Camões os portugueses chegaram às sete partidas do mundo: "e se mais mundo houvera, lá chegara". Aliás, o poeta é, em certa medida, a materialização disso: em Ceuta e, depois, na Índia, em 1553, a vida é a expressão dos protagonistas dos descobrimentos: degradado, aventureiro, soldado e funcionário. Por tudo isto o vate estava devidamente informado para evocar a diáspora nacional em Os Lusíadas36. Estamos perante um movimento dinâmico. Os que partem cruzam-se com os que chegam. Os últimos tanto podem ser os escravos, resultantes das razias africanas ou presas da guerra marroquina, ou estrangeiros sedentos de notícias e de participar na aventura do descobrimento ou comércio. É uma empresa nacional. Deste modo A.J.RUSSELL-WOOD37 não hesita em afirmar que "The portuguese seaborne empire was characterized by a constant flux and reflux 36 . Veja-se Armando de Castro, Camões e a sociedade do seu tempo, Lisboa, 1980; IDEM, "Camões emigrante, poeta do drama da emigração", in Revista Camões, nº.2-3, 1980. Luís de ALBUQUERQUE, "Luís de Camões. O cantor de uma obra colectiva", in Navegadores viajantes e aventureiros portugueses. sécs.XV e XVI, vol. I, Lisboa, 1987, pp.143-156; Martim de ALBUQUERQUE, A expressão do poder em Luís de Camões, Lisboa, 1988. 37 . A World on the move. The Portuguese in Africa, Asia, and America 1415-1808, London, 1992 of people. Some were in the service of the crown, others servants of God, others servants of men, others captive of their own self-interest and cupidity, and still others who were essentially part of the flotsam and jetsam of empire. Some travelled voluntarily, whereas others were coerced or forcefully transported against their will.". Por aqui se vê quão variado foi o processo. No período que decorre da conquista de Ceuta a meados do século dezasseis. definiu-se o espaço de ocupação portuguesa no novo mundo e os principais rumos das migrações, encaradas como movimento individual ou colectivo. De acordo com J. RUSSELWOOD38 o primeiro foi evidente no Índico, enquanto o segundo está expresso no Atlântico. Dos últimos já muito se tem dito, mas dos primeiros pouco ou nada se sabe. Fala-se de uma verdadeira sangria populacional do reino mas quase ninguém questiona a dimensão assumida por este movimento: quantos partiram à aventura? Quem são os aventureiros da conquista do Norte de África e Oriente, do descobrimento das ilhas, costa africana e Brasil? Por fim, importa saber porque se sai: vão todos de livre vontade, guiados pelo espírito de aventura ou por outros interesses e objectivos. Aqui surgem viajantes, aventureiros, militares, funcionários e missionários. É uma gesta nacional onde estão representadas todas as localidades do reino. A saída fazia-se a partir de Lagos ou de Lisboa mas as gentes que chegavam às plagas lusitanas para a partida ou despida são de todo o país. Não são os algarvios os únicos a aderirem de alma e coração a este processo. O Norte e o interior também estão representados: marinheiros, lavradores, e oficiais mecânicos são de todo o país. A alguns as crónicas lavraram o nome em letras douradas. A maioria ficou incógnita e será difícil, senão impossível, reconstituir a lista. Algumas das páginas de ouro da nossa escrita do século XVI são baseadas nesta vivência. A lista é extensa e contempla todas as áreas literárias: desde Gil Vicente, passando por Camões, Fernão Mendes Pinto é evidente tal premência das migrações geradas pelos descobrimentos39. A historiografia para além do tratamento diferenciado dos protagonistas dos descobrimentos, parece querer ignorar este processo. Continua a insistir-se no estudo das personalidades: navegadores, ou funcionários. A compilação mais recente é de Luís de Albuquerque, que publicou em dois volumes a biografia de 31 aventureiros, viajantes e navegadores40. Faltam estudos sobre as migrações provocadas pelos descobrimentos41. A ausência de registos ou séries que o documentem. Todavia, a exemplo do que sucede para Espanha, é possível suprir a falta com o recurso a outro tipo de fontes42. Há que decantar a realidade na documentação disponível e as crónicas para chegar-se a aproximações quantificáveis. Qualquer tentativa de quantificação dos fluxos migratórios na época pré-estatística está condenada ao fracasso. Faltam registos de saída mas também de entrada. Apenas é possível 38 . Ob.cit., pp.112-119. . Confronte-se Hernani CIDADE, A Literatura Portuguesa e a Expansão Ultramarina, vol.I, Coimbra, 1963. 40 . Navegadores viajantes e aventureiros Portugueses sécs.XV e XVI, 2 vols, Lisboa, 1987. Ao mesmo nível temos o projecto de investigação dirigido por Kenneth Macpherson e Sanjai Subrahmanyan com o título "From Biography to History. Essays in the social History of portuguese in Asia.1500- 1800"[ Veja-se Mare Liberum, nº.5, Junho de 1993.] 41 . Os estudos de Joel SERRÃO (A emigração portuguesa, Lisboa, 1977; "Emigração", in Dicionário de História de Portugal, vol. II, Porto, 1981, 363-373) e Vitorino Magalhães GODINHO (Estrutura da antiga sociedade portuguesa, Lisboa, 1980;"Sociedade Portuguesa", in Dicionário de História de Portugal, vol. IV; "L'émigration portugaise (XVe- XVIe siècles).Une constante structurale et les réponses aux changements du monde", in Revista de História Económica e Social, nº.1, 1978, 1-32). 42 . Peter Boyd Bowman, Indice deobiográfico de cuarenta mil pobladores españoles de América en el siglo XVI, 2 vols., Bogotá, 1964, 1968. Magnus Morner, "Un informe del estado de la investigación sobre la emigración española a América anterior al año 1810", in Anuario de Estudios Americanos, XXXII, Sevilha, 1975. Veja-se a mais recente aportação de um seminário coordenado por António EIRAS ROEL (ed.), La emigración española a ultramar. 1492-1914, Madrid, 1991. 39 estabelecer uma ideia do volume assumido43. Falta, ainda, contabilizar as campanhas a Marrocos no decurso dos séculos XV e XVI, as armadas que rumaram ao Oriente44. Compilados os dados da documentação oficial com a que surge nas crónicas45 é possível fazer uma ideia. Segundo C.R. Boxer46 o fluxo migratório conduziu à saída do reino nos séculos XV e XVI de 1 milhão e cento e vinte e cinco mil almas. Neste contexto são mais evidentes os dados dos fluxos com destino a Marrocos e Oriente. As campanhas marroquinas iniciadas em 1415 continuaram até a década de vinte do século XVI, quando em 1524 ganhou forma a política de abandono das praças africanas. Dos que partiram, levados, muitas vezes, pelo espírito de cruzada para combater o infiel, alguns caíram no campo de batalha e dos outros, uns ficaram na guarnição de defesa das praças e outros regressaram ao reino com a esperança de um título ou da comutação da pena a que estavam sujeitos antes da partida. Em 1415 D. Pedro de Menezes ficou em Ceuta com 40 nobres e 2700 homens de armas. Noutras alturas tivemos frotas com o objectivo específico de construir um recinto fortificado. Assim sucedeu em 1489 para Graciosa, onde em duas frotas seguiram os operários especializados e os materiais necessários à construção. Já em 1482 havia sucedido o mesmo com a ida de 500 homens de armas e 100 artesãos para S. Jorge da Mina. Quanto ao Oriente, após a primeira viagem de Vasco da Gama, tivemos outras quatro nos anos imediatos com o mesmo objectivo. Daqui resultou uma activa mobilidade da população motivada pela atracção do novo destino. No primeiro quartel do século XVI podemos referir apenas 2500 portugueses, mas na década de quarenta atinge-se os 6 a 7000. A este propósito refere Joel SERRÃO47 que em 1527 saíram em média 2400 portugueses nas armadas com destino à Índia. Difícil, senão impossível será fazer uma ideia daqueles que partiram com destino às ilhas, ao Brasil ou Costa da Guiné. Nada nos permite antever uma possível quantificação das expedições de ocupação e das gentes que as integraram. Quantos acompanharam João Gonçalves Zarco na expedição de povoamento da Madeira? Quantos seguiram Martim Afonso de Sousa com destino ao Brasil? A questão imediata à quantificação prende-se com a categoria sócio-profissional dos que foram lançados na aventura do descobrimento e ocupação dos novos espaços. Militares, missionários e funcionários da coroa têm lugar cativo em todas as expedições. Aos primeiros foi, sem dúvida, com destino ao Norte de África e à Índia que engrossou o número. A questão prende-se com outra que tem ocupado a Historiografia dos descobrimentos. Para o século XV estabeleceu-se uma dualidade de opções entre a burguesia e a aristocracia, expressa também no confronto de duas figuras: os infantes D. Pedro e D. Henrique48. Enquanto os primeiros estariam empenhados nas campanhas de defesa das praças africanas ou de conquista dos entrepostos orientais, os segundos postaram na linha da frente do descobrimento de novas terras, na senda de encontro de novos mercados e produtos. Dualidade de políticas, de rumos 43 Veja-se Vitorino Magalhães GODINHO, Mito e Mercadoria, utopia e prática de navegar. Séculos XIII-XVIII, Lisboa, 1990, pp.364-365. O estudo mais recente António LOPES, Eduardo FRUTUOSO E Paulo GUINOTE, "O movimento da carreira da Índia nos séculos XVIXVII. Revisão e propostas", in Mare Liberum, 4, 1992, 186-265. Com bibliografia actualizada. 45 . Por exemplo para o Oriente temos Fernão Lopes de CASTANHEDA, História do descobrimento e conquista da Índia pelos portugueses, livros I-II, Coimbra, 1924, livros III-IV, 1928, livros V-VI, 1929. Confronte-se Germana da Silva CORREIA, História da colonização portuguesa na Índia, 6 vols, Lisboa, 1948-56; Visconde LAGOA, Grandes e humildes na epopeia portuguesa do Oriente (séculos XV, XVI e XVII), 2 vols, Lisboa, 1942-43. Ficou pelo antropónimo Albuquerque. 46 . O império colonial português, Lisboa, 1977. 47 . A emigração portuguesa, Lisboa, 1977, 93. 48 . Confronte-se Armando de CASTRO, História Económica de Portugal, vol. III, Lisboa, 1985, 59 e segs. 44 e protagonistas eis a forma simplista de definir o processo. A realidade não foi assim tão linear como se pode provar em qualquer listagem49. A preocupação da nobreza pelos descobrimentos é considerada posterior às campanhas marroquinas e à morte do Infante D. Henrique. Até 1460 a nobreza, excepção feita a Nuno de Góis e Cide de Sousa, estava empenhada na conquista e defesa das praças de Marrocos. Para alguns, os descobrimentos foram protagonizados, maioritariamente, por aqueles que estavam próximos. O primeiro documento que testemunha esta mudança de atitude é a carta régia de 24 de Março de 146250 autorizando D. Duarte de Menezes a enviar embarcações à Terra Dos Negros. Todavia, tal como o refere Vitorino Magalhães Godinho51, é difícil distinguir a burguesia da aristocracia, uma vez que somos confrontados com mercadores-cavaleiros e cavaleiros-mercadores, por isso, "no mundo que os portugueses vão creando nestes séculos o vector social dinâmico é o cavaleiro-mercador"52 Na Índia, segundo Luís F. Reis Thomaz e Genevieve Bouchon53, a classe dirigente apresentase como um clã, composto por um grupo restrito das famílias, na maioria da velha nobreza anterior à crise de 1383-1385. Ainda, segundo os mesmos, há uma continuidade das famílias no processo de descobrimento e ocupação: "les fils se combattants à Ceuta em 1415 se battent à Tanger en 1437 ou à Alcacer-Ceguer en 1458, leurs petits-fils conquièrent Arzila en 1471 ou se battent à Toro en 1475, les fils de ceux-ci commencent à apparaitre en Indie"54. A ideia pode ser certificada com o testemunho de um dos descendentes do primeiro capitão do Funchal: João Gonçalves Zarco. Em 1526 João de Melo da Câmara, irmão do capitão da ilha de S. Miguel, justificava a capacidade de povoador do seguinte modo: "porque a ilha da Madeira meu bisavô a povoou, e meu avô a de são Miguel e meu tio a de são Tomé, e com muito trabalho, e todas do feito que se vê..."55. Os dois mil colonos que ele se propunha levar para a colonização do Brasil não eram "da espécie de tomarem índias por concubinas e de viverem na terra sem a fazerem produzir". Não sabemos se, com tão valiosa tradição e intenção, conseguiu os intentos. Outra família é também protagonista de rumo idêntico. São os Betencourts, que da Normandia, através das Canárias, avançam a todo o espaço atlântico. São um exemplo de família atlântica56. No caso do Brasil o processo foi distinto. Entre 1532 e 1548 tivemos o sistema de capitanias. Os usufrutuários são capitães e altos funcionários a quem a coroa procura compensar os serviços prestados no Indico57. A mudança foi operada em 1549 por iniciativa de D. João III, que procurou a unidade política e administrativa do Brasil através da criação do cargo de Governador-geral, entregue a Tomé de Sousa. É a política de povoamento dos demais espaços atlânticos, que levará à dos madeirenses para o início da cultura da cana-de-açúcar58. 49 . Ibidem. . Monumenta Henricina, XIV, 208-210. 51 . "Sociedade Portuguesa", in Dicionário de História de Portugal, vol. IV. 52 . Vitorino Magalhães Godinho,"As ilhas atlânticas. Da geografia mítica à construção das economias oceânicas", in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1989, 47. 53 . Voyage dans les Deltas du Gange et de l'Irraouaddy. 1521, Paris, 1988, pp.367-413. 54 Ibidem, p.410. 55 . História da Colonização Portuguesa do Brasil, vol.III, 90. 56 . J. Moniz BETTENCOURT, Os Betttencourt. Das origens normandas à expansão atlântica, Lisboa, 1993. 57 . Veja-se História da Colonização Portuguesa do Brasil, vol.III, pp.160-258. 58 Gilberto FREIRE, Aventura e Rotina, 2ª ed., s.d., 440-449; David F. GOUVEIA, "A manufactura açucareira madeirense 1420-1550", in Atlântico, nº.10, 1987, 115-131. 50 Tal como o refere João Paulo COSTA59 o permanente fluxo migratório foi alargado a todos os estratos sócio-profissionais, com especial incidência para os "comerciantes, sacerdotes, marinheiros, guerreiros e missionários" que "trilharam juntos os mesmos caminhos, falaram às mesmas gentes, perscrutaram o mesmo horizonte infinito de água...". A bordo das embarcações iam os soldados para a peleja, os funcionários que defendem os interesses da coroa e os missionários como arautos da fé. Os últimos, segundo José Pereira da Costa60, são na maioria estrangeiros, "sob a égide da coroa portuguesa", companheiros inseparáveis dos povoadores e conquistadores. Sucedeu assim na Madeira, em 1420, como para o Oriente no século XVI. Vasco da Gama em 1498 fez-se acompanhar apenas de dois religiosos, mas Pedro Álvares Cabral em 1502 levou 8 padres capelães, 1 vigário e um grupo de franciscanos sob as ordens de Frei Henrique Álvares61. A missão dos religiosos não se resumia apenas a assegurar a actividade de culto, a bordo e nos locais de fixação, à conversão dos gentios, pois podem ter também a missão específica de embaixadores. Depois foi a fixação com a criação de casas de franciscanos, dominicanos e, finalmente, jesuítas. Isto provocou a ida de muitos clérigos, oriundos do reino ou estrangeiro62. A estes juntam-se outros grupos de degredados ou aventureiros e também os judeus, que fundiram a diáspora com a dos descobrimentos63. O ano de 1497 marca o início da diáspora da comunidade judaica portuguesa, que os conduziu ao Norte de África, às ilhas, Costa da Guiné e Brasil64. Um dos factos mais significativos deste fluxo étnico sucedeu em S. Tomé com a ida em 1470 de 2000 crianças judias, arrancadas do seio da família para as terras inóspitas do Golfo da Guiné65. É de salientar que a presença da comunidade judaica nas terras da Costa da Guiné foi importante, tornando-se, por vezes, incómodos pela condição de lançados66. Tudo isto é revelador de algumas especificidades deste fluxo migratório provocado pelos descobrimentos. Às crianças judias enviadas para S. Tomé juntam-se as "órfãs del rei" no Oriente a partir de 1545. Estas foram recrutadas em Lisboa e Porto e conduzidas à Índia com a promessa de um dote e casamento67. A presença da mulher nas expedições rege-se por determinadas regras68. Aqui, ao contrário de Castela69, a coroa portuguesa nunca promoveu a saída da mulher, pois toda a política foi, no início, de desencorajamento. Os descobrimentos parecem conjugar-se no masculino. A mulher, quase só está presente nos casos de ocupação nas ilhas e Norte de África, sendo proibida, nos primeiros dez anos, a bordo das caravelas da Índia. Depois a necessidade de 59 "As missões cristãs em África", in Portugal no Mundo, vol. III, 1989, p.88. "Comunicação sobre a Relação da viagem que fizerão de Lisboa para Macao na galera Novo paquete 5 congregados de missão: Henriques e Almeida sacerdotes: cinco subdiaconos Amorim e Pinto menoristas em 1831", in Studia, nº.48, 1989, 369-444. 61 Manuel dos Santos ALVES, "A cruz, os diamantes e os cavalos: Frei Luís do Salvador, primeiro missionário e embaixador", in Mare Liberum, nº.5, 1993, pp.9-20. 62 Sobre esta temática confronte-se: António BRÁSIO, História e missiologia, Luanda, 1973; C. R. BOXER, A igreja e a expansão ibérica.1440-1770, Lisboa, 1975; Francisco Leite de FARIA, "Evangelização das terras descobertas no tempo de Bartolomeu Dias", in Congresso Internacional Bartolomeu Dias e a sua época. Actas, vol.V, Porto, 1989; João Paulo Oliveira e COSTA, "As missões cristãs em Africa", "As missões cristãs na China e no Japão", in Portugal no Mundo, vol.III, 1989, 88- 103, 143-157; Luís Filipe F. R. THOMAZ, "Descobrimentos e evangelização. Da cruzada à missão pacífica", in Congresso Internacional de História. Missionação Portuguesa e encontro de culturas. Actas, vol I, Lisboa, 1993, 81-129. 63 Veja-se Luís de ALBUQUERQUE, Navegadores, viajantes e aventureiros portugueses. Séculos XV e XVI, 2 vols, Lisboa, 1987 64 São muitos os estudos sobre os Judeus em Portugal, confronte-se a síntese actualizada de Maria José FERRO, Los judíos en Portugal, Madrid, 1992. 65 Samuel USQUE, Consolação às tribulações de Israel, Coimbra, 1906. 66 Maria Emília Madeira SANTOS, "Origem e desenvolvimento da colonização. Os primeiros lançados na Costa da Guiné. Aventureiros e comerciantes", Portugal no Mundo, vol.II, pp.125-136. 67 . Confronte-se C.R.BOXER, A mulher na expansão portuguesa ultramarina ibérica, Lisboa, 1977. 68 Sobre a presença da mulher na expansão veja-se: Elaine Sanceau, Mulheres portuguesas no ultramar, Porto, 1979; C.R. Boxer, A mulher na expansão ultramarina ibérica, Lisboa, 1977; Maria Regina Tavares da Silva, Heroínas da Expansão e Descobrimentos, Lisboa, 1989. 69 Veja-se Richart KONETZKE, "La imigración de mujeres españolas a América durante la época colonial", in Revista Internacional de Sociologia, nº.9-10, Madrid, 1945. 60 fixação no Indico mudou a política promovendo a coroa a migração do sexo feminino. É de salientar que, quer em Marrocos, quer no Oriente, algumas mulheres ficaram nos anais da História pelo empenho na defesa das praças ou guarnições em momentos de aflição. Outra questão, de não menor importância, prende-se com a forma como se procedeu ao recrutamento. Há os que vão, de livre vontade, à aventura, os que cumprem uma missão como funcionários da coroa ou que se dispõem a qualquer serviço na mira de uma compensação70. Junta-se, depois, um grupo com grande destaque em todo o processo, os degredados ou prisioneiros. No momento de organização das armadas de defesa das praças marroquinas71, de ocupação das ilhas ou do Oriente, a coroa permitia aos organizadores o recrutamento de homens entre os condenados de diversos delitos e degredados. A política moderna de degredo como forma de incentivo ao povoamento dos lugares ermos não era novidade, pois vinha sendo utilizada para o povoamento do litoral algarvio e zonas fronteiriças de Castela. A coroa, de acordo com o seu interesse, ordenava aos corregedores o destino a atribuir aos degredados. Depois do Algarve, tivemos Ceuta e demais praças marroquinas, as ilhas atlânticas. A presença em Marrocos é mais insistente a partir de 1431. A mudança é justificada da seguinte forma por Zurara: "muitos de meus naturaes que per alguuns negocios ssam desterrados de meus regnos, melhor estaram aqui fazendo serviço a Deos, conprindo sua justiça, que sse hirem pollas terras estranhas e desnaturarem-se pera todo o sempre de sua terra"72. Mais tarde, Luís Mendes de Vasconcelos73 refere que "o Brasil povoou-se com degredados, gente que se tirava do reino por benefício dele". Recorde-se que Martim Afonso de Sousa fez-se acompanhar de 600 degredados. Não será o indício de que estamos perante uma válvula de escape para os conflitos sociais74? Para as ilhas as orientações de envio dos degredados sucedem-se conforme a evolução do processo de povoamento do espaço atlântico: primeiro a Madeira, depois, os Açores, Cabo Verde e S. Tomé. Note-se que a partir de 145475 D. Afonso V determina, a pedido do Infante D. Henrique todos os homens condenados a degredo iam "povoarem as ditas ilhas que então começava de povoar...". No caso da Costa da Guiné, incluídos os arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé, temos para o período de 1463 a 1500 temos 19 casos em que foi solicitada a carta de perdão à coroa76. O processo migratório provocado pelos Descobrimentos é materializado por portugueses e também estrangeiros já residentes em Portugal ou que acudiram ao apelo dos descobrimentos. Não é possível saber qual a região do país que mais contribuiu para este movimento. A tradição, que filia os descobrimentos na região algarvia, vê na faixa litoral Sul do país a incidência dos agricultores, marinheiros e mercadores. Esta dedução resulta do facto de as 70 Veja-se no caso do Oriente o estudo de Luís de ALBUQUERQUE e José Pereira da COSTA, "Cartas de serviço da Índia (1500-1550) ", in Mare Liberum, nº.1, 1990, 309-396. 71 Confronte-se Luís Miguel DUARTE e José Augusto P. de Sotto Mayor PIZARRO, "Os forçados das galés (os barcos de João da Silva e Gonçalo Falcão na conquista de Arzila em 1471) ", in Congresso Internacional. Bartolomeu Dias e a sua época. Actas, vol. II, Porto, 1989, pp.313-328. 72 Citado por Pedro de AZEVEDO, Documentos das chancelarias reais anteriores a 1531 relativos a Marrocos, t.I, Lisboa, 1915, p.XIII. 73 "Diálogos do sítio de Lisboa", in Antologia dos Descobrimentos Portugueses (século XVII), Lisboa, 1974. 74 Veja-se o que aduz, ainda que para uma situação distinta, Manuel HERNANDEZ GONZALEZ, "La emigración a America como valvula de escape de las tensiones sociales en Canarias durante el siglo XVIII. Las actitudes sociales ante la delincuencia", in Antonio EIRAS ROEL (ed.), La emigración española a ultramar, 1492-1914, Madrid, 1991, pp.311-316. 75 Carta régia de 18 de Maio, ANTT, Chanc. de D. Afonso V, lº.10, fl.44vº, publ. V.M. Godinho, Documentos sobre a expansão, t. I, pp.215-216. 76 Veja-se Vitor RODRIGUES, "A Guiné nas cartas de perdão (1463-1500) ", in Congresso Internacional. Bartolomeu Dias e a sua Época. Actas, vol IV, Porto, 1989, pp.397-412. primeiras expedições terem partido de Lagos77 e de nelas se comprometerem muitos da casa do Infante que aí viviam, oriundos de várias localidades do país78. É certa a participação dos algarvios79, nomeadamente na primeira fase dos descobrimentos, conhecidos como henriquinos, mas foi um processo que empenhou todo o país. Na primeira expedição a Ceuta o infante D. Henrique percorreu o norte do país a recrutar as gentes para a armada. Note-se que no caso do Oriente foi precisamente na região entre o Sado e o Minho que Joaquim Veríssimo SERRÃO80 encontrou maior número, que contrasta com o valor reduzido do Alentejo e Algarve. A situação, que decorre a partir do século XVI, com a expansão no Indico, foi igual81. Outro factor importante é a presença de estrangeiros, que actuaram como marinheiros, mercadores e povoadores. Alguns residiam já em Portugal e estavam naturalizados, outros afluem cativados pelas novas dos descobrimentos. Aqui merecem especial destaque para os italianos, oriundos das diversas cidades-estados, e os flamengos. No primeiro caso temos que a presença genovesa remonta ao tempo de D. Dinis82. Foi Manuel Pessanha encarregado pela coroa de organizar a armada que estará na origem dos descobrimentos. Foram os genoveses, venezianos e florentinos quem mais usufruíram da abertura da coroa à participação estrangeira nos descobrimentos. Estes, mediante solicitação da coroa, ou através da naturalização por carta régia ou casamento-, integram-se nas viagens de descobrimento, povoamento e comércio83. AS ILHAS. “...porque a ilha da Madeira meu bisavô a povoou, e meu avô a de são Miguel, e meu tio a de são Tomé, e com muito trabalho, e todas do feito que vê...”João de Melo da Câmara, 1532. Foi o arquipélago madeirense o início da presença portuguesa no Atlântico, e o primeiro e mais proveitoso resultado desta aventura. Vários são os factores que se conjugaram para este protagonismo. A inexistência de população, em consonância com a extrema necessidade de valorização para o avanço das navegações ao longo da costa africana, favoreceu a rápida ocupação e crescimento económico da Madeira. Por isso, a afirmação nos primeiros anos dos descobrimentos, foi evidente: porto de escala ou apoio para as precárias embarcações quatrocentistas, que sulcavam o oceano; importante área económica, fornecedora de cereais, vinho e açúcar; modelo económico, social e político para as demais intervenções portuguesas no Atlântico. A Madeira foi no século XV uma peça primordial no processo de expansão. A ilha, considerada a primeira pedra da gesta descobridora dos portugueses no Atlântico, é o marco referencial mais importante desta acção no século XV. De inicial área de ocupação, passou a 77 Elaine SANCEAU, "O degredado João Machado", in Casos e Curiosidades, Porto, 1957, pp.181- 191; Maria Augusta Lima CRUZ, "As andanças de um degredado em terras perdidas -João Machado", in Mare Liberum, nº.5, 39-47. 78 Confronte-se Joaquim Veríssimo SERRÃO, História de Portugal, vol. II, Lisboa, 1979, pp. 135- 140. 79 Veja-se Rui LOUREIRO, Lagos e os descobrimentos até 1460, Lagos, 1989;Maria Benedita ARAUJO, "Algarvios em S. Tomé no início do século XVI", in Cadernos Históricos, IV, Lagos, 1993, 27-39. 80 História de Portugal, vol. III, Lisboa, 1980, 164-169. 81 . Ibidem, vol.III, Lisboa, 1980, pp.164-169. Confronte-se Morais do ROSÁRIO, Genoveses na História de Portugal, Lisboa, 1977; Virgínia RAU, Estudos sobre História Económica e social do antigo regime, Lisboa, 1984; IDEM, "Uma família de mercadores italianos em Portugal no século XV: os Lomellini", in Revista da Faculdade de Letras, Lisboa, 1956, XVI, nº2, 56-69. 83 Prospero PERAGALLO, Cenni in torno alla colonia italiana in Portogallo nei secoli XIV, XV e XVI, Torino, 1904; Charles VERLINDEN, "L'influenza italiana nela colonizzazione iberica.Uomini e metodi", in Nuova Rivista Storica, XXXVI, 1952, 254-270; Isabel Castro HENRIQUES, "Os italianos como revelador do projecto político português nas ilhas atlânticas(séculos XV e XVI)", in Ler História, nº.16, 1981. 82 um entreposto imprescindível às viagens ao longo da costa africana e, depois, foi modelo para todo o processo de ocupação atlântica, Por tudo isto a Madeira firmou nome com letras douradas na História da expansão europeia no Atlântico. O Funchal foi, por muito tempo, o principal ancoradouro do Atlântico que abriu as portas do mar oceano e traçou caminho para as terras do Sul. Aí a abundância do cereal e vinho propiciava ao navegante o abastecimento seguro para a demorada viagem. Por isso, o madeirense não foi apenas o cabouqueiro que transformou o rochedo e fez dele uma magnífica horta, também se afirmou como o marinheiro, descobridor e comerciante. Deste modo algumas das principais famílias da Madeira, enriquecidas com a cultura do açúcar, gastaram quase toda a fortuna na gesta descobridora, ao serviço do infante D. Henrique, ao longo da costa africana ou, de iniciativa particular, na direcção do Ocidente, correspondendo ao repto lançado pelos textos e lendas medievais. A juntar a tudo isso temos o rápido progresso social, resultado do porvir económico, que condicionou o aparecimento de uma aristocracia terra tenente. Esta, imbuída do ideal cavalheiresco e do espírito de aventura, embrenhou-se na defesa das praças marroquinas, na disputa pela posse das Canárias e viagens de exploração e comércio ao longo da costa africana e, até mesmo, para Ocidente. A valorização da Madeira na expansão europeia tem sido diversa. A historiografia nacional considera-a um simples episódio de todo o processo e, em face da posição geográfica, hesita no enquadramento, sendo levada, por vezes ao esquecimento. A europeia, ao invés, não duvida em realçar a singularidade do processo. Vários são os factores que o propiciaram, no momento de abertura do mundo atlântico, e que fizeram com que fosse, no século XV, uma peça chave na afirmação da hegemonia portuguesa no Novo Mundo. O Funchal foi uma encruzilhada de opções e meios que iam ao encontro da Europa em expansão. É considerada a primeira pedra do projecto, que lançou Portugal para os anais da História do oceano que abraça o litoral abrupto. O fundamento de tudo isto está patente no protagonismo da ilha e gentes. Á função de porta-estandarte do Atlântico, a Madeira associou outras, como “farol” Atlântico, o guia orientador e apoio às delongas incursões oceânicas, sendo um espaço privilegiado de comunicações, contando a seu favor com as vias traçadas no oceano que a circunda e as condições económicas internas, propiciadas pelas culturas da cana sacarina e vinha. Uma e outras contribuíram para que o isolamento definido pelo oceano fosse quebrado e se mantivesse um permanente contacto com o velho continente europeu e o Novo Mundo. A mobilidade social é uma das características da sociedade insular. O fenómeno da ocupação atlântica lançou as bases da sociedade e a emigração ramificou-a e a projectou além Atlântico. As ilhas foram, num primeiro momento, pólos de atracção, passando depois a áreas de divergência de rotas, gentes e produtos. A novidade, aliada à forma como se processou o povoamento, activaram o primeiro movimento. A desilusão, as escassas e limitadas possibilidades económicas e a cobiça por novas e prometedoras terras, definiram o segundo surto. Primeiro foi a Madeira, depois as ilhas próximas dos Açores e das Canárias e, finalmente, os novos continentes e demais ilhas. O madeirense, desiludido com a ilha, procurou melhor fortuna nos Açores ou nas Canárias, e colocou, na costa africana as prometedoras esperanças comerciais. No grupo incluem-se principalmente os filhos-segundos deserdados da terra pelo sistema sucessório. É disso exemplo Rui Gonçalves da Câmara, filho do capitão do donatário no Funchal, que preferiu ser capitão da ilha distante de S. Miguel a manter-se como mero proprietário na Ponta do Sol. Com ele surgiram outros que deram o arranque decisivo ao povoamento da ilha. A Madeira evidencia-se também no século quinze como um centro de divergência de gentes no novo mundo. A mobilidade do ilhéu levou os monarcas a definirem uma política de restrições no movimento emigratório em favor da fixação do colono à terra, como forma de evitar o despovoamento das áreas já ocupadas. O apelo das riquezas de fácil resgate africano ou da agricultura americana era para o homem do século XV mais convincentes, tendo a favor a disponibilidade dos veleiros que escalavam com assiduidade os portos insulares. A emigração era inevitável. A Madeira desfrutava no século XV, a exemplo das Canárias, de uma posição privilegiada perante a costa e ilhas africanas, afirmando-se por muito tempo como um importante centro emigratório para os arquipélagos vizinhos ou longínquos continentes. Para isso contribuiu o facto de estar associada ao madeirense uma cultura que foi a principal aposta das arroteias do Atlântico, isto é, a cana sacarina. Os madeirenses aparecem nas Canárias, Açores, S. Tomé e Brasil a dar o seu contributo para que no solo virgem brotem os canaviais, apareçam os canais de rega ou de serviço aos engenhos, a que também foram obreiros nos avanços tecnológicos. A crise da produção açucareira madeirense, gerada pela concorrência do açúcar das áreas que os habitantes contribuíram para criar, empurrou-nos para destinos distantes. A migração atlântica, que teve inicio na Madeira, é de referenciar o caso da emigração inter insular dos arquipélagos do Mediterrâneo Atlântico. As ilhas, pela proximidade e forma similar de vida, aliadas às necessidades crescentes de contactos comerciais, exerceram também uma forte atracção entre si. Madeirenses, açorianos e canários não ignoravam a condição de insulares e, por isso mesmo, sentiram necessidade do estreitamento dos contactos. A Madeira, mais uma vez, pela posição charneira entre os Açores e as Canárias e da anterioridade no povoamento, foi, desde meados do século XV, um importante viveiro fornecedor de colonos para os arquipélagos e elo de ligação. A ilha funcionou mais como pólo de emigração para as ilhas do que como área receptora de imigrantes. Se exceptuarmos o caso dos escravos guanches e a inicial vinda de alguns dos conquistadores de Lanzarote, podemos afirmar que o fenómeno é quase nulo, não obstante no século dezasseis os açorianos surgirem com alguma evidência no Funchal. A presença de uma comunidade de açorianos nas ilhas Canárias, principalmente nas ilhas de Gran Canária, Tenerife e Lanzarote, dedicados à cultura dos cereais, vinha, cana sacarina e pastel. Mas açorianos e canarianos, bem posicionados no traçado das rotas oceânicas, voltaram a atenção para o promissor novo mundo84. A ROTA DOS ESCRAVOS A expansão europeia abriu aos europeus as portas do Atlântico propiciando a migração das mais importantes rotas comerciais para este palco dominado pelos reinos peninsulares. Ligado ao processo está o da afirmação e definição da rota e mercado dos escravos. As viagens de reconhecimento da costa africana abriram aos portugueses a possibilidade de acesso fácil através das razias. Todavia não poderá afirmar-se que foram os portugueses que estiveram na origem da escravização do negro e na criação do mercado negreiro, pois já existia há muito tempo no mundo mediterrânico e africano. O papel dos portugueses resumese a estabelecer as rotas atlânticas e a iniciar a partir daqui a colonização assente nesta mãode-obra. A Madeira assume mais uma vez um papel relevante, todavia nunca assumiu uma posição dominante na sociedade e processo produtivo, situação que sucederá em Cabo Verde e S. Tomé. Note-se ainda que em ambos os arquipélagos um dos principais incentivos à 84 . Cf. José Pérez Vidal, Aportación de Canárias a la Población de América, Las Palmas de Gran Canária, 1991. fixação de colonos europeus foi o privilégio do resgate de escravos na costa africana vizinha. A escravatura está habitualmente ligada a actividade de extracção mineira e a um conjunto de culturas que implicam uma grande exigência por parte do Homem, como é o caso da cana sacarina, do tabaco e do algodão. Para o Brasil o Padre António Vieira afirma o seguinte: “sem açúcar não há Brasil e sem negros não há açúcar.” Isto quer dizer que no Brasil a interdependência do açúcar e escravo é evidente. O comércio de escravos, a exemplo das demais transacções comerciais no espaço atlântico alem do Bojador, esteve sujeito a apertada regulamentação. Primeiro tivemos a reserva de espaço no litoral africano para intervenção exclusiva dos vizinhos de Cabo Verde e S. Tomé. Ambos os arquipélagos funcionaram como placas giratórias do trato negreiro para o novo continente. Depois com a união das duas coroas, a partir de 1595, manteve-se o controlo régio, sendo o comércio sujeito a um sistema de contratos e assentos. A situação só persistiu até 1650, altura em que o mercado de escravos africanos abriu as portas a todos os intervenientes. Isto acontece num momento de retracção do mercado brasileiro que recuperará trinta e nove anos mais tarde com a necessidade da mão-de-obra para a mineração. A Madeira foi, nos primórdios da expansão atlântica, o primeiro e mais importante mercado receptor de escravos africanos. Tudo isto resulta do facto de estar próxima do continente africano e das suas gentes estarem envolvidas com o processo de reconhecimento, ocupação e defesa do controlo lusíada. À ilha chegaram os primeiros escravos guanches, marroquinos e africanos, que contribuíram para o arranque económico do arquipélago. O comércio entre a ilha e os principais mercados fornecedores de escravos existiu, desde o começo da ocupação do arquipélago, e foi fulgurante em alguns momentos. Impossível é estabelecer com exactidão a quantidade de escravos envolvida. A deficiente disponibilidade documental, para os séculos XV a XVII, não o permite. Carecemos dos registos de entrada da alfândega do Funchal e dos contratos exarados nas actas notariais. Os escravos que surgem no mercado madeirense são na quase totalidade de origem africana, sendo reduzida ou nula a presença daqueles de outras proveniências, como o Brasil, América Central e Índia. Isto pode ser resultado, por um lado, da distância ou das dificuldades no tráfico e, por outro, das assíduas medidas limitativas ou de proibição, como sucedeu no Brasil e Índia. Apenas o mercado africano, dominado pela extensa costa ocidental, em poder dos portugueses, não foi alvo de quaisquer proibições. Aí as únicas medidas foram no sentido de regular o tráfico, como sucedeu com os contratos e arrendamentos. O litoral Atlântico do continente africano, definido, primeiro, pelas Canárias e Marrocos e, depois, pela Costa e Golfo da Guiné e Angola, era a principal fonte de escravos. E aí a Madeira foi buscar a mãode-obra necessária para abrir os poios e, depois, plantar os canaviais. Tivemos primeiro os escravos brancos das Canárias e Marrocos. Depois os negros das partes da Guiné e Angola. As condições particulares da presença portuguesa no Norte de África definiram aí uma forma peculiar de aquisição. Os escravos eram sinónimo de presas de guerra, resultantes das múltiplas pelejas, em que se envolviam portugueses e mouros. Para os madeirenses, que defenderam com valentia a soberania portuguesa nestas paragens, os escravos mouros surgem ao mesmo tempo como prémio e testemunho dos feitos bélicos. Eram poucos os que podiam ostentar os triunfos de guerra. Outra forma de aquisição estava no corso, prática de represália comum a ambas as partes. Idêntica situação ocorreu na Índia onde os madeirenses também se evidenciaram nas diversas batalhas aí travadas, como sucedeu com Tristão Vaz da Veiga. Na Costa Africana, além do Bojador, os meios de abastecimento de escravos eram outros. Assim os assaltos e razias deram depois lugar ao trato pacífico com as populações indígenas. Tudo isto implicava uma dinâmica diferente para os circuitos de comércio e transporte. Aqui os cavaleiros e corsários são substituídos pelos mercadores. O processo de formação das sociedades insulares da Guiné foi diferente do da Madeira e Açores. Aqui, a distância do reino e as dificuldades de recrutamento de colonos europeus devido à insalubridade do clima condicionaram, de modo evidente, a forma de expressão étnica. A par de um reduzido número de europeus, restrito em alguns casos aos familiares dos capitães e funcionários régios, se juntaram os africanos, que corporizaram o grupo activo da sociedade. A presença de negros, sob a condição de escravos, incentivada no início, foi depois alvo de restrições. O espírito insubmisso, de que resultaram algumas e sérias revoltas em S. Tomé, foi a principal razão das medidas. Sem dúvida, o aspecto mais peculiar e relevante da estrutura social foi a posição assumida pela escravatura. Para certa historiografia torna-se paradigmático o caso madeirense, revelador da forma de passagem da sociedade mediterrânica para a atlântica, através da vinculação ao açúcar. De facto as ilhas do Atlântico Oriental foram o filão do açúcar que catapultou a mão-de-obra escrava para a uma afirmação nas referidas sociedades e economias. Daí resultou que nos Açores, onde a safra açucareira foi diminuta, este grupo social não adquiriu a mesma dimensão da Madeira e Canárias. Mas é difícil, em qualquer dos arquipélagos, estabelecer uma contabilização exacta. No caso da Madeira refere-se, com base em Gaspar Frutuoso, que os escravos representariam em 1552 cerca de 14% do total dos habitantes do Funchal e 29 % de toda a ilha, mas os dados por nós compulsados para toda a ilha e relacionados com o recenseamento de 1598 ficam-se por 5%, enquanto nas Canárias orientais tal percentagem rondaria os 15%.85. A presença da mão-de-obra resultou só das dificuldades sentidas no recrutamento de colonos derivadas das inúmeras exigências da safra do açúcar e da facilidade do resgate nas Canárias ou costa africana. Mais tarde, uma maior procura por outros mercados carentes causou aqui dificuldades à manutenção sendo mais fácil e barato e recurso à mão-de-obra livre. Os escravos tiveram uma função marcante no processo socio-económico nos séculos XV e XVI. Para isso terão contribuído, por um lado, as facilidades no acesso ao mercado africano e, por outro, a incessante procura da força braçal derivada das dificuldades no recrutamento de colonos no reino, conjugada com a permanente solicitação em face das más condições do solo a desbravar e da inusual necessidade pela safra e fabrico do açúcar. Na Madeira o processo de abertura de frentes de arroteamento foi moroso e necessitava de mão-de-obra numerosa e barata. A preparação do solo para as sementeiras foi demorada: as queimadas, a construção de paredes para retenção das terras e a abertura de levadas para a utilização da água no regadio e fruição da força motriz nos engenhos. Depois foram as culturas agrícolas. A situação, aliada à forte presença madeirense nas campanhas de defesa das praças africanas, de conquista das Canárias e reconhecimento da costa africana, implicou a solução da escravatura de canários ou africanos, muitos deles presas das façanhas. Deste modo estava aberta a via para a afirmação da escravatura na ilha, dispondo para isso de múltiplas frente de recrutamento: primeiro as Canárias, depois a costa africana, desde Marrocos até Angola. Mas o principal surgidouro de escravos foi a área da Costa e Rios de Guiné. Aí chegaram os madeirenses estabelecendo, em Santiago e depois em S. Tomé, um importante entreposto para comércio com destino à ilha. Mais tarde alargaram os interesses até ao tráfico transatlântico. A situação contribuiu para que a Madeira fosse um importante 85 Para a situação da Madeira nos séculos XV a XVII veja-se o nosso estudo Os escravos no arquipélago da Madeira.séculos XV a XVII, Funchal, 1991. entreposto de comércio de escravos para o reino ou Canárias. A escravatura na Madeira adquiriu uma dimensão diferente das ilhas de Cabo Verde e S. Tomé ou das Antilhas. A diferença não se radica apenas no número deles, pois também se alarga até à mundividência estabelecida pela estrutura social madeirense. Na Madeira o escravo é parte integrante da sociedade. O mundo do escravo entrecruzava-se com o do livre. Os regimentos régios, as posturas municipais, insistiam na necessidade de controlo do acanhado espaço de convívio do escravo, procurando evitar qualquer situação propiciadora da revolta. Perante isto o escravo estava amarrado ao quotidiano do senhor e só poderia desprender-se dele em condições especiais e mediante o seu consentimento. O escravo só existia perante a sociedade associado ao senhor. A par disso a mulher escrava mantinha umaestreita ligação com o proprietário, seja ele do sexo feminino ou masculino, servindo-o em tudo o que era necessário. As disposições testamentárias favorecem-nas. É comum associar-se o escravo à cultura e fabrico do açúcar: o binómio escravo/açúcar é uma realidade insofismável. ANTONIL chega mesmo a afirmar que os “escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho.” É-o sim em S. Tomé Antilhas e Brasil, mas na Madeira e Canárias a situação é diversa. Na verdade, a cultura foi a mola propulsora da afirmação dos escravos nas ilhas, mas as condições específicas do sistema de propriedade permitiram uma diversidade de relações sociais em torno da produção. Na Madeira, ao contrário do que sucedeu nas áreas supracitadas, a cultura dos canaviais adquiriu expressão fundiária diversa. Neste caso deparamo-nos com um excessivo parcelamento dos canaviais e a afirmação de uma nova forma de posse e usufruto da terra -- o arrendamento -- que colocava em segundo plano a função do escravo no processo produtivo. Depois a crise açucareira provocou a afirmação de outra cultura -- a vinha -- que relegou para um plano secundário a presença do escravo no sector produtivo. Acresce ainda que o binómio engenho/canaviais era pouco frequente, sendo usual o recurso ao engenho de outrem para a moenda das canas e fabrico do açúcar. A divisão de tarefas e a pequenez dos canaviais não facilitaram a permanência de uma mão-de-obra fixa, antes possibilitando uma afirmação da força de trabalho eventual. Perante isto só nos resta dizer que no caso da Madeira e mesmo das Canárias as tarefas da cultura e fabrico do açúcar foram executadas por uma mão-de-obra mista: escravos e livres trabalham a terra e animam a vida do engenho, mas os últimos dominam, ao contrário do que sucedeu nas Antilhas ou em S. Tomé. Também nos Açores o escravo misturou-se com o criado e trabalhador na prestação de serviços domésticos, agro-pecuários e artesanais. Mas aqui a escravatura não adquiriu a dimensão que assumiu na sociedade madeirense. Para isso terão contribuído a forma de organização da estrutura fundiária e o relativo afastamento dos mercados abastecedores de escravos. Em Cabo Verde e S. Tomé, porque próximos do mercado de resgate e funcionando como feitorias para este tráfico, a situação era diversa. No primeiro arquipélago, por exemplo, foi apenas a disponibilidade nos Rios da Guiné. A coroa havia determinado em 1472 que os moradores de Santiago pudessem "haver escravos, escravas, machos e fêmeas para seus serviços e sua melhor vivenda e povoação". Até mesmo o clero não dispensava os seus serviços, como se depreende de uma carta de 1607 do padre Barreira, missionário na Serra Leoa. Dizia ele: "a experiência nos tem demonstrado que nem a ilha (Santiago) nem cá podemos viver sem escravos". Nas ilhas do Golfo da Guiné o processo foi diferente uma vez que se deverá juntar o facto de o açúcar ter vingado em larga escala, necessitado de enormes excedentes de mão-de-obra africana, mais justificados pela reduzida dimensão dos europeus. Aqui laboravam mais de trezentos engenhos, no século dezasseis, todos eles alimentados pela força do trabalho escravo. De acordo com uma relação de 1554 cada engenho teria ao dispor entre cento e cinquenta a trezentos escravos. Álvaro de Caminha declara no testamento, feito em finais do século XV, ter ao serviço "nas obras, roças e sementeiras" mais de quinhentos escravos. É o prelúdio do que iria suceder, depois, aos africanos escravizados e obrigados a fazer a travessia do oceano. Quer em Cabo Verde, quer em S. Tomé o trabalho dos escravos era a força motriz da economia agrícola. O dia à dia era estabelecido pela tradição africana de uma forma peculiar. Seis dias era o tempo reservado para os escravos tornarem produtivas as terras do amo e apenas um dia lhes era facultado para encontrarem os meios de subsistência diária. Ao contrário do que sucedia na Madeira ou nos Açores "o senhor não dá coisa alguma àqueles negros (...) nem mesmo faz despesa em dar-lhes vestidos, nem de comer, nem em mandar-lhes construir choupanas porque eles por si mesmo fazem todas as coisas"86. Contra isto reclamava o Padre Manuel de Barros em 1605, dizendo que os escravos aos domingos e dias santificados não cumpriam o preceito religioso, porque "tais dias dá Deus ao cativo para trabalhar para as suas necessidade (...) e nada para o senhor". Os escravos assumiam aqui uma posição muito mais importante na composição da sociedade, do que nas ilhas aquém do Bojador. Aqui devemos diferenciar, quer em Santiago, quer em S. Tomé, os escravos residentes e os de resgate. Os últimos, depois de alguns dias de permanência nos armazéns da feitoria, seguiam rumo ao seu destino, para a América, a Europa ou as ilhas atlânticas. Eram numerosos mas de permanência limitada. Valentim Fernandes dá-nos conta disso em princípios do século XVI, referenciando para S. Tomé, entre os mil moradores livres, o dobro de escravos residentes e entre cinco a seis mil de resgate. Com o decorrer dos tempos a relação entre os livres e os escravos residentes aumentou, de modo que em 1546 existiam seiscentos brancos para igual número de mulatos e dois mil escravos. Na ilha do Príncipe em 1607 nos cinco engenhos em funcionamento contavam-se dez homens brancos casados, dezoito crioulos e quinhentos escravos87. Em Cabo Verde os dados disponíveis sobre a presença dos escravos cobrem apenas as ilhas povoadas desde o início (Santiago e Fogo) no período de 1513 e 1582. Na primeira data referencia-se na Ribeira Grande a residência de cento e sessenta e dois vizinhos, sendo destes trinta e dois escravos. Para o segundo surgem já 13.700 escravos (87%) e 1.008 vizinhos (13%), nas duas ilhas. Aqui é evidente a maior concentração na Ribeira Grande, onde representam mais de 92% da população88. Perante isto torna-se evidente a diferença entre o fenómeno da escravatura dos dois arquipélagos com os atrás citados. Em todas as ilhas a presença do escravo negro não era pacífica, sendo considerada em muitos momentos como um factor de forte instabilidade social. Os fugitivos, num e noutro lado, geravam a habitual apreensão das autoridades, que tudo faziam para sanar os aspectos nocivos que a sua presença poderia causar. Mas enquanto na Madeira e nos Açores a conflituosidade era sazonal, não assumindo proporções graves, o mesmo não se podendo dizer das ilhas da Guiné. Em S. Tomé, os fugitivos reuniam-se nas montanhas em quadrilhas e assaltavam esporadicamente as vilas. Daí resultaram também algumas sublevações importantes (em 1547 e 1595) que puseram em causa a permanência dos europeus e a continuidade da cultura da cana-de-açúcar açucareira. Ficou célebre a revolta de 1595, comandada por Amador, escravo fugitivo de Bernardo Vieira89. O afrontamento dos escravos fugitivos começou a ser evidente a partir de 1531, ano em que os moradores de S. 86 Viagem de Lisboa à ilha de S. Tomé, Lisboa, s.d., 54-60. Monumenta Missionária Africana, I, nº 137, 383. 88 .António Carreira, Cabo Verde, Lisboa, 1983, pp.373-374 89 Rui RAMOS, "Rebelião e Sociedade colonial: alvoroço e levantamento em S. Tomé (1545-1555)", in Revista Internacional de Estudos Africanos, nº 4/5, 1986, 17-74. 87 Tomé manifestaram apreensão ao rei pela presença de tais grupos de cativos fugidos, considerados ameaça permanente para a ilha. Daí resultava a necessidade de medidas por parte da coroa, caso contrário "se perderá esa ylha e cedo será toda dos negros". Também nos Açores, mais propriamente em Vila Franca do Campo, ficou registada uma revolta de escravos em 1522, tendo por chefe um Badail, escravo de Rui Gonçalves da Câmara, mas sem qualquer efeito para a sociedade. Na Madeira onde o grupo era mais numeroso não se conhece qualquer tipo de revolta, para além dos casos isoladas de violência dos escravos fugitivos nos caminhos que circundavam as serranias da ilha. A DIÁSPORA A comunidade judaica assumiu um papel de destaque no processo dos descobrimentos portugueses. A sua presença é notória desde o início do processo. Aos judeus serão atribuídas responsabilidades na definição das rotas comerciais que ligam o atlântico agora descoberto com os mercados do norte da Europa. Por sua iniciativa estabeleceram uma rede familiar de negócios que foi um dos principais suportes da rede comercial resultante dos descobrimentos90. Desde a Madeira com o incremento do açúcar que a sua presença é evidente. Tão pouco a criação do tribunal da Inquisição os impediu de manter esta posição. Note-se, que à medida das intervenções do tribunal da inquisição de Lisboa nos novos espaços atlânticos, estes iam avançando para novos destinos ou refugiavam-se nas praças do norte da Europa, mas sem perderem o vínculo aos mercados e espaços de origem. É evidente a presença de judeus portugueses nas Canárias com vínculos às ilhas portuguesas91. Certamente que a criação dos colégios dos Jesuítas em Ponta Delgada, Angra e Funchal, bem como as visitas realizadas nos anos de 1575, 1591 e 1618-21 contribuíram para aumentar e reforçar a presença da comunidade, que se alarga a Cabo Verde e ao Brasil92. A inquisição exercia a actividade através do tribunal de Lisboa, a quem pertencia todo o espaço atlântico. A acção do tribunal não era permanente e fazia-se através de visitadores aí enviados. Na Madeira e nos Açores realizaram-se três visitas: em 1575 por Marcos Teixeira, em 1591-93 por Jerónimo Teixeira Cabral e em 1618-19 por Francisco Cardoso Tornéo, mas só é conhecida a documentação das duas últimas93. Nas ilhas é manifesta a conivência das autoridades com a presença da comunidade judaica, o que poderá resultar das facilidades iniciais à sua fixarão. O tribunal interveio apenas nas primeiras ilhas levando a tribunal alguns judeus, mas poucos, a avaliar pela comunidade aí existentes e insistente permanência. Entretanto no intervalo de tempo entre as visitas o tribunal fazia-se representar pelo bispo, clero, reitores do colégio dos jesuítas, "familiares" e comissários do Santo Oficio. A presença da comunidade judaica era evidente. Os judeus, maioritariamente comerciantes, estavam ligados, desde o início, ao sistema de trocas nas ilhas, sendo os principais 90 . P. SALAMON, Os Primeiros Portugueses de Amesterdão, in Caminiana, V, nº.8, 1983, pp.22-104 Lucien Wolf, Jews in the Canary Islands..., Londres, s.d.; Luis Alberto Anaya Hernandez, Una Comunidad Judeoconversa de origen portuguesa comienzos del siglo XVI en la isla de La Palma, II Colóquio Internacional de História da Madeira, 1989, 685-700; IDEM, Relaciones de los Archipielagos de Azores y de la Madera con Canrias, segun fuentes inquisitoriales(siglos XVI y XVII), I Colóquio Interncional de História da Madeira, Funchal, 1989, 846-877. 92 Arnold Wiznitzer, Os Judeus no Brasil Colonial, S. Paulo, 1966; José António Gonçalves Salvador, Os Cristãos Novos e o comércio no Atlântico Meridional, S. Paulo, 1978. 93 .Confronte-se Maria do Carmo Dias FARINHA, "A Madeira nos arquivos da inquisição", in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira, vol.I, Funchal, 1990, pp.689-742. O seu estudo foi feito por Fernanda OLIVAL,"Inquisição e a Madeira. visita de 1618", in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira, vol. II, Funchal, 1990, 764-818; "A visita da Inquisição à Madeira em 1591-1592", in Actas. III Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1993, 493-520. 91 animadores do relacionamento e comércio a longa distância. A criação do tribunal do Santo ofício em Lisboa conduziu a que avançassem no Atlântico: primeiro nas ilhas e depois no Brasil. A diáspora fez-se de acordo com os vectores da economia atlântica pelo que deixavam atrás um rasto evidente na sua rede de negócios. O açúcar foi sem dúvida um dos principais móbeis da actividade, quer nas ilhas, quer no Brasil. A par disso, o relacionamento com os portos nórdicos conduziu a uma maior permeabilidade às ideias protestantes, o que gerou inúmeras cuidados por parte do clero e do Santo ofício. A incidência do comércio da Madeira no açúcar, pastel e vinho conduziu ao estabelecimento de contactos assíduos com os portos de Flandres e Inglaterra, que não era bem visto pelo tribunal. Isto deverá ter favorecido a presença de uma importante comunidade, o que veio a avolumar as preocupações dos inquisidores. Na Madeira, a presença da comunidade britânica era evidente mas manteve-se ilesa. O bispo funchalense, D. Frei Lourenço de Távora, no sínodo realizado em 15 de Junho de 1615 chamou a atenção para a presença de estrangeiros "de partes infeccionadas na fé", apelando para a necessidade de se cumprir o estabelecido em 1608 pelo prelado anterior que determinara "que os tais estrangeiros cismáticos e hereges não podem tratar nem disputar com a gente da terra sobre a fé, nem fazer cousa, que dece escandalo". Isto derivava certamente da assídua frequência de mercadores ingleses à cidade do Funchal, que assumiam uma posição dominante nas trocas externas. AS ROTAS DE EXPANSÃO DA FLORA E FAUNA A expansão atlântica revelou ao europeu um novo mundo, onde a flora e a fauna dominaram a admiração dos protagonistas. A descoberta da nova realidade fez-se não só pelo valor alimentar e económico, mas também científico, Sendo de destacar os estudos de Garcia da Horta, Cristóvão da Costa, Duarte Barbosa. O processo de povoamento implicava obrigatoriamente um processo de migração de plantas, animais e técnicas de recolecção, cultivo e transformação destes. De acordo com João de Barros os portugueses levavam “todas as sementes e plantas e outras coisas com quem esperava de povoar e assentar na terra”94. O retorno foi igualmente rico e paulatinamente revolucionou o quotidiano europeu e algumas das novas plantas entraram rapidamente nos hábitos das populações que cedo se perdeu o rastro da origem passando a ser considerada como indígena. No processo foi importante o papel de portugueses e espanhóis na troca de plantas entre o Novo e o Velho Mundo. Dos quatro cantos do mundo o contributo para a valorização do património natural foi evidente. No Oriente foram as especiarias que dinamizadora as rotas comerciais e cobiça dos europeus. A América revelou-se pela variedade e exoticidade das plantas e frutos, com valor alimentar, que contribuíram em África para colmatar a deficiência. O processo de migração de plantas e culturas não foi pacífico, pois em muitos casos provocou alterações catastróficas no quadro natural. Isto aconteceu em regiões e paisagens sujeitas à violência de uma monocultura solicitada pelos mercados internacionais. Estão neste caso a cana sacarina, o cacau, o café e o algodão. As ilhas assumiram em todo este processo um papel fundamental ao assumiram o papel de viveiros de aclimatação das plantas e culturas em movimento. A Madeira foi o viveiro de aclimatação nos dois sentidos. Da Europa propiciou a transmigração da fauna e flora identificada com a cultura ocidental. No retorno foram as plantas do Novo Mundo que 94 Ásia, década I, p.552 tiveram de novo passagem obrigatória pela ilha. A riqueza botânica do Funchal resulta disso. O processo de imposição da chamada biota europeia, no dizer de Alfred Crosby95, foi responsável por alguns dos primeiros e mais importantes problemas ecológicos. A Madeira surge, nos alvores do século XV, como a primeira experiência de ocupação em que se ensaiaram produtos, técnicas e estruturas institucionais. Tudo isto foi, depois, utilizado, em larga escala, noutras ilhas e no litoral africano e americano. O arquipélago foi o centro de irradiação dos sustentáculos da nova sociedade e economia do mundo atlântico: os Açores, depois os demais arquipélagos e regiões costeiras onde os portugueses aportaram. A par disso a ilha foi, nos alvores do século XV, a primeira experiência de ocupação em que se ensaiaram produtos, técnicas e estruturas institucionais. Tudo isto foi depois utilizado em larga escala noutras ilhas e no litoral africano e americano. O arquipélago foi o centro de divergência dos sustentáculos da nova sociedade e economia do mundo atlântico: primeiro os Açores, depois os demais arquipélagos e regiões costeiras onde os portugueses aportaram. Madeira não se posiciona apenas nos anais da História universal como a primeira área de ocupação atlântica, pioneira na cultura e divulgação do açúcar ao Novo Mundo. A expansão europeia não se resume apenas ao encontro e desencontro de Culturas, mas também marca o início de um processo de transformação ou degradação do meio ambiente. O europeu carrega consigo a fauna e flora do seu convívio e com valor económico, que irão provocar profundas mudanças nos novos ecossistemas. Com isto acontece que o espaço vivido e natureza se universalizam. Nos séculos XV e XVI foram as viagens de descobrimento, enquanto no século XVIII sucederam as de exploração e descoberta da natureza, comandadas por ingleses e franceses. No traçado das rotas oceânicas situava-se o Mediterrâneo Atlântico com um papel primordial na manutenção e apoio à navegação atlântica. A Madeira e as Canárias foram nos séculos XV e XVI como entrepostos do comércio no litoral africano, americano e asiático. Os portos principais da Madeira, Gran Canaria, La Gomera, Hierro, Tenerife e Lanzarote animaram-se de forma diversa com o apoio à navegação e comércio nas rotas da ida, enquanto nos Açores, com as ilhas de Flores, Corvo, Terceira, e S. Miguel, foram a escala necessária e fundamental da rota de retorno. Esta posição demarcada do Mediterrâneo Atlântico no comércio e navegação atlântica fez com que as coroas peninsulares investissem aí todas as tarefas de apoio, defesa e controle do trato comercial. As ilhas foram os bastiões avançados, suportes e os símbolos da hegemonia peninsular no Atlântico. A disputa pela riqueza em movimento no oceano fazia-se na área definida por elas e atraiu piratas e corsários ingleses, franceses e holandeses, ávidos das riquezas em circulação. Uma das maiores preocupações das coroas peninsulares foi a defesa das embarcações das investidas dos corsários europeus. A área definida pela Península Ibérica, as ilhas das Canárias e Açores, foi o principal foco de intervenção do corso europeu sobre os navios que transportavam açúcar ou pastel ao velho continente. Por outro lado o protagonismo das ilhas não se fica só pelos séculos XV e XVI, pois as navegações e explorações oceânicas nos séculos XVIII e XIX levaram-nas a assumir uma nova função para os europeus. De primeiras terras descobertas passaram a campos de experimentação e escalas retemperadoras da navegação na rota de ida e regresso. Finalmente, no século XVIII desvendou-se uma nova vocação: as ilhas como campo de ensaio das técnicas de experimentação e observação directa da natureza. A afirmação da Ciência na Europa fez delas escala para as constantes expedições científicas dos europeus. O 95 Imperialismo Ecológico. A Expansão biológica da Europa: 900-1900, S. Paulo, 1993. enciclopedismo e as classificações de Linneo (1735) tiveram nas ilhas um bom campo de experimentação. Tenha-se em conta as campanhas da Linnean Society e o facto de o próprio presidente da sociedade, Charles Lyall, ter-se deslocado em 1838 de propósito às Canárias. De entre as culturas que a Europa deu ao mundo atlântico aquelas que assumiram maior valor económico e condicionaram a História dos espaços onde foram lançadas merecem destaque a vinha, a cana sacarina e o pastel. A VINHA E O VINHO. O ritual cristão valorizou o pão e o vinho que, por isso mesmo, acompanharam o avanço da Cristandade. Em ambos os casos a adaptação às ilhas aquém do Bojador foi fácil, o mesmo não sucedendo com as da Guiné. A viticultura ficou reservada às do Mediterrâneo Atlântico, onde o vinho adquiriu um lugar importante nas exportações. A partir da Madeira as cepas chegaram a todos os recantos do Novo mundo. A presença é resultado da intervenção de madeirenses. Assim da Madeira as primeiras cepas foram conduzidas à ilha do Pico donde se expandiram às demais ilhas. Também temos notícia da presença sem sucesso em Cabo Verde. As mesmas cepas chegaram ao Brasil a partir da década de trinta do século XVI por mãos madeirenses, não obstante a actual produção vinícola ser resultado da emigração italiana a partir do século XIX. A evolução da safra vitivinícola madeirense dos séculos quinze e dezasseis só pode ser conhecida através do testemunho de visitantes estrangeiros, uma vez que é escassa a informação nas fontes diplomáticas. A documentação e os visitantes, entre os sécs. XVIII/XIX, são unânimes em considerar o vinho como a principal e total riqueza da ilha, a única moeda de troca. A Madeira não tinha com que acenar aos navios que por aí passavam, ou a demandavam, senão o copo de vinho. Tudo isto fez aumentar a dependência da economia madeirense. Desde o século XVII o ilhéu traçou a rota no mercado internacional, acompanhando o colonialista nas expedições e fixação na Ásia e América. O comerciante inglês, aqui implantado desde o séc. XVII, soube tirar partido do produto fazendo-o chegar em quantidades volumosas às mãos dos compatriotas que se haviam espalhado pelos quatro cantos do mundo colonial europeu. O movimento do comércio do vinho da Madeira ao longo dos sécs. XVIII e XIX imbrica-se de modo directo no traçado das rotas marítimas coloniais que tinham passagem obrigatória na ilha. A estas juntavam-se outras subsidiárias, quase todas sob controlo inglês: são as rotas da Inglaterra colonial que fazem do Funchal porto de refresco e carga de vinho no rumo aos mercados das Índias Ocidentais e Orientais, donde regressavam, via Açores, com o recheio colonial; são os navios portugueses da rota das Índias, ou do Brasil que escalam a ilha onde recebem o vinho que conduzem às praças lusas; são, ainda, os navios ingleses que se dirigem à Madeira com manufacturas e fazem o retorno tocando Gibraltar, Lisboa, Porto; e, finalmente, os norte-americanos que trazem as farinhas para madeirense e regressam carregados de vinho. Por isto o vinho ilhéu conquistou, desde o séc. XVI, o mercado colonial em África, Ásia e América afirmando-se até meados do séc. XIX como a bebida por excelência do colonialista e das tropas coloniais em acção. Regressado o colonialista à terra de origem, depois do surto do movimento independentista, trouxe na bagagem o vinho da ilha e fá-lo apreciar pelos patrícios. Aqui releva-se a posição do mercado americano, dominado pelas colónias das Índias Ocidentais e portos norte-americanos. O último destino sedimentou-se, a partir da segunda metade do século XVII, mercê de um activo relacionamento. Desde então o vinho da Madeira foi uma presença assídua nos portos atlânticos - Boston, Charleston, N. York e Filadélfia, Baltimore, Virgínia - onde era trocado por farinhas96. Esta contrapartida reforçou o relacionamento comercial e actuou como circunstância favorecedora do progresso da economia vitivinícola. Assim, se nos séculos XV e XVI a afirmação da cultura dos canaviais foi conseguida com o suprimento de cereais dos Açores e Canárias, a partir de finais do século XVII é na América do Norte que se situa o celeiro madeirense. Cedo a Madeira entrou na esfera dos interesses norte-americanos, sendo o vinho o cartão de visita. Nos demais arquipélagos,i apenas nas Canárias e Açores a cultura da vinha e o comércio do vinho atingiram posição similar à da Madeira97. Os mercados foram os mesmos sendo disputados com extrema concorrência. Note-se que estas, entenda-se os arquipélagos dos Açores, Canárias e Madeira, ficaram conhecidas na documentação oficial norte-americana como as ilhas do vinho98. A Madeira e os Açores, face aos privilégios concedidos pela coroa britânica no período após a Restauração-- as actas de navegação de 1660 e 1665 e o tratado de Methuen em 1703-- conseguiram firmar uma posição de destaque. Mas nos séculos seguintes apagaram-se as diferenças e o vinho das ilhas entrava em pé de igualdade nos portos e mesa dos norte-americanos. CANAVIAIS, AÇÚCAR E AGUARDENTE A cana-de-açúcar, pelo alto valor económico no mercado europeu e mediterrâneo, foi um dos primeiros e principais produtos que a Europa legou e definiu para as novas áreas de ocupação no Atlântico. O percurso iniciou-se na Madeira, alargando-se depois às restantes ilhas e continente americano. Na primeira experiência além Europa a cana sacarina evidenciou as possibilidades de desenvolvimento fora do habitat mediterrânico. Tal evidência catalisou os interesses do capital nacional e estrangeiro, apostando na cultura e comércio dos derivados. Se nos primeiros anos de vida no solo insular a cana sacarina se apresentava como subsidiária, a partir de meados do século XV já aparecia como o produto dominante, situação que perdurou na primeira metade do século seguinte. O período de plena afirmação desta cultura situa-se entre 1450 e 1521. Durante estes anos os canaviais dominaram o panorama agrícola madeirense e o açúcar foi o principal produto de troca com o mercado externo. O ritmo de crescimento da cultura é quebrado apenas nos anos de 1497-1499, com uma crise momentânea na comercialização. A partir de 1516 os efeitos da concorrência fizeram-se sentir na ilha e conduziram a um paulatino abandono dos canaviais. A primeira metade do século dezasseis é definida como o momento de apogeu da cultura açucareira insular e pelo avolumar das dificuldades que entravaram a promoção em algumas áreas como a Madeira onde o cultivo era oneroso e os níveis de produtividade desciam em flecha. As ilhas de Gran Canária, La Palma, Tenerife e S. Tomé estavam melhor posicionadas para produzir açúcar a preços mais competitivos. Isto sucedeu na década de vinte do século dezasseis e avançou à medida que os novos mercados produtores de açúcar atingiam o máximo de produção. 96 Cf. Jorge Martins RIBEIRO, "Alguns aspectos do comércio da Madeira com a América na segunda metade XVIII", in Actas III Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1993, pp.389-401. 97 António Béthencourt Massieu, Canarias e Inglaterra el Comercio de Vinos(1650-1800), Las Palmas, 1991;Manuel Lobo Cabrera, El Comercio del Vino entre Gran Cnaria y las Indias en el Siglo XVI, Las Palmas,,1993; Agustín Guimerá Ravina, Burguesia Extranjera y Comercio Atlantico, La Empresa Comercial Irlandesa en Canarias(1703-1771), Madrid, 1985. 98 Veja-se A. GUIMERA RAVINA, "Las islas del vino (Madeira, Açores e Canarias) y la América inglesa durante el siglo XVIII. Una aproximación a su estudio", in II C.I.H.M. Actas, Funchal, 1990, pp. 900-934, confronte-se Albert SILBERT, art. cit., pp. 420-428. Na Madeira manteve-se a tradição das indústrias ligadas ao açúcar, isto é, da doçaria e conservas, não desaparecendo a cana sacarina que retornava sempre que havia dificuldades no abastecimento a partir do mercado brasileiro. Já no último quartel do século XIX os canaviais retornaram a recobrir o solo madeirense e a indústria de fabrico de aguardente e açúcar manteve-se com alguma pujança até à década de setenta da presente centúria99. As socas de cana foram levadas para os Açores pelos primitivos cabouqueiros, promovendo-se o cultivo em Santa Maria, S. Miguel, Terceira e Faial. Aqui a cultura foi tentada várias vezes, mas sem surtir os efeitos desejados. As condições geofísicas aliadas à inexistência ou reduzida dimensão dos capitais estrangeiros travaram o seu desenvolvimento. O Açúcar açoriano só ganhou importância a partir do século XX, mas apenas com a transformação da beterraba. Aos arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé os canaviais chegaram muito mais tarde e como noutras áreas a experiência madeirense foi importante. Apenas nas ilhas de Santiago e S. Nicolau nunca foi concorrencial do açúcar madeirense. As condições morfológicas e orográficas foram-lhe adversas. A introdução deverá ter sido feita, no início do povoamento na década de sessenta, não obstante a primeira referência datar de 1490. Por outro lado o açúcar produzido no arquipélago, a exemplo do que sucederá em S. Tomé, não apresentava a qualidade do madeirense, pois como nos refere Gaspar Frutuoso "nada deste chega ao da ilha da Madeira". No século XIX os canaviais expandiram-se às ilhas de Santiago, Santo Antão, Brava, S. Nicolau e Maio. A valorização tinha a ver com a solicitação de aguardente para o trato de escravos na Costa da Guiné.100 Em S. Tomé os canaviais estendiam-se pelo norte e nordeste da ilha, fazendo lembrar, segundo um testemunho de 1580, os campos alentejanos101. Um dos factos que contribuiu para que ele se tornasse concorrencial do madeirense foi a elevada produtividade. Segundo Jerónimo Munzer102 seria três vezes superior à madeirense. A partir do último quartel do século dezasseis a concorrência desenfreada do açúcar brasileiro definiu uma acentuada quebra no período de 1595 a 1600. A isto deverá juntar-se a revolta dos escravos (1595), agravada pela destruição dos engenhos provocada pelo saque holandês. A partir daí o arquipélago de São Tomé ficou a depender apenas do comércio de escravos e da pouca colheita de mandioca e milho. A crise do comércio de escravos a partir de princípios do século dezanove fez com que se operasse uma mudança radical na economia. Surgiram, então, novas culturas (cacau, café, gengibre coconote, copra e óleo de palma) que proporcionaram uma nova aposta agrícola e de dependência. AS PLANTAS TINTUREIRAS. Até ao século XVII com a introdução do anil na Europa ele foi a principal planta da tinturaria europeia, donde se extraía as cores preta e azul. A par disso a disponibilidade de outras plantas tintureiras, como a urzela (donde se tirava um tom castanho avermelhado) e o sanguede-drago, levaram ao aparecimento de italianos e flamengos, interessados no comércio, que por sua vez nos legaram a nova planta tintureira: o pastel. A exemplo do sucedido com o açúcar na Madeira, a coroa concedeu vários incentivos para a promoção da cultura, que com a incessante procura por parte dos mercados nórdicos, fizeram avançar rapidamente o cultivo. Em 1589 Linschoten referia que "o negócio mais frequente destas ilhas é o pastel" de que os 99 Alberto Vieira, A Rota do Açúcar na Madeira, Funchal, 1986 António Carreira, Estudos de Economia Caboverdiana, Lisboa, 1982. 101 Isabel Castro HENRIQUES, "O Ciclo do Açúcar em S. Tomé nos Séculos XV e XVI", in Portugal no Mundo, I, Lisboa, 1989, 271. 102 Monumenta Missionária Africana, IV, 1954, nº 6, 16-20. 100 camponeses faziam o "principal mister", sendo o comércio "o principal proveito dos insulares"103, enquanto em 1592 o Governador de S. Miguel atribuía a falta de pão ao domínio quase exclusivo do solo pelo cultivo do pastel104. Foi ainda um tradicional mercado produtor de linho com exportação para o mercado europeu, situação que perdurou até princípios do século XIX. Nos arquipélagos além do Bojador ignora-se a presença do pastel, não obstante a importância que aí assumiu a cultura do algodão e o consequente fabrico de panos. O clima e o desconhecimento das técnicas de tinturaria, demonstrados na entrega da exploração da urzela aos castelhanos João e pêro de Lugo, favoreceram a conjuntura. Mas aqui a cultura do algodão foi imposta pelos mercados costeiros africanos, carentes de fio para a indústria têxtil. No decurso dos séculos XVI e XVII o algodão apresentou-se como primordial para a economia cabo-verdiana, sendo o principal incentivo, ao lado do sal, para as trocas comerciais com a costa africana, nomeadamente Casamansa e o rio de S. Domingos. No início apenas se produzia algodão com exportação para a Europa, mas depois passou a desenvolver-se a indústria de panos, face à grande procura que havia na costa africana a troco de escravos105. No séculos XVIII e XIX a exploração da urzela manteve-se activa em algumas das ilhas, sendo de destacar o caso das ilhas de Cabo Verde. A exploração do recurso segue lado a lado da do azeite de purgueira para a iluminação106. A TECNOLOGIA “...com sua pouca ciência e menos experiência, saiu aquele assuqre assim tão bom e tão fino.”[ Gaspar Frutuoso, Livro Quarto das Saudades da Terra, vol.II, Ponta Delgada, 1981, p.211.] O processo de expansão europeia não se ficou apenas pelo processo de descobrimento de novos mundos, da abertura de novos mercados e o encontro de novas gentes e produtos. A história Tecnológica evidencia que a expansão europeia condicionou também a divulgação de técnicas e permitiu a invenção de novas que revolucionar a economia mundial. Os homens que circulam no espaço atlântico, e de forma especial os colonos, suo portadores de uma cultura tecnológica que divulgam nos quatro cantos e procuram adaptar às condições de cada espaço de povoamento agrícola. Á agricultura prende-se um indispensável suporte tecnológico que auxilia o homem no processo. As culturas do vinho e da cana sacarina assumem particular significado. Ambas acompanham o processo de expansão atlântica e impõem-se no mercado europeu. A dominância e incessante procura condicionaram ao longo dos séculos o progresso tecnológico, mais evidente quanto ao fabrico do açúcar. A moenda e o consequente processo de transformação da guarapa em açúcar, mel, álcool ou aguardente projectou as áreas produtoras de canaviais para a linha da frente das inovações técnicas, no sentido de corresponderem às cada vez maiores exigências. A madeira e o metal foram a matéria-prima que deram forma a capacidade inventiva dos senhores de canaviais e engenhos. Na moenda da cana utilizaram-se vários meios técnicos comuns ao mundo mediterrânico. A disponibilidade de recursos hídricos conduziu à generalização do engenho de água. Na Madeira, o primeiro particular que temos conhecimento foi o de Diogo de Teive em 1452. E terá sido o primeiro engenho que se veio juntar ao lagar do infante. O infante, 103 Ob. cit., 152-154. Arquivo dos Açores, II, 130. 105 António Carreira, Panaria Cabo-Verdeano-Guineense, Cabo Verde, 1983. 106 António Carreira, Estudos de Economia Caboverdiana, Lisboa, 1982. 104 donatário da ilha, detinha a o exclusivo destas infra-estruturas. O documento espelha apenas a situação. A estrutura resultou apenas nas áreas onde era possível dispor da força motriz da água fez-se uso da força animal ou humana. Os últimos eram conhecidos como trapiches ou almanjaras. O infante D. Fernando em 1468 refere as estruturas diferenciando os engenhos de água, alçapremas e trapiches de besta. Até à generalização dos engenhos de cilindros horizontais no século XVII, a infra-estrutura para espremer as canas era composta do engenho ou trapiche e da alçaprema. Não conhecemos qualquer dado que permita esclarecer os aspectos técnicos de engenho107. Apenas se sabe, segundo Giulio Landi, que na década de trinta do século XVI funcionava um com o sistema semelhante ao usado no fabrico de azeite: "Os lugares onde com enorme actividade e habilidade se fabrica o açúcar estão em grandes herdades, e o processo é o seguinte: primeiramente, depois que as canas cortadas foram levadas para os lugares acima referidos, põem-nos debaixo de uma mó movida a água, a qual triturando e esmagando a cana, extrai-lhes todo o suco"108. Na ilha de são Miguel a cultura da cana está inegavelmente ligada aos madeirenses. A eles se deveu o transplante das socas e da tecnologia109. Gaspar Frutuoso conta que em Ponta delgada Bastião Pires contratou o madeirense Fernão Vaz, “o qual deu ordem como se fez um engenho de besta, como de pastel, mas o assento da mó diferente, porque era de uma pedra grande e mui cavada, a maneira de gamela e furada pelo fundo, por onde o sumo das canas, que dentro nela se moiam, ia por debaixo do chão, por uma calle ou bica, sair fora do andaimo da besta que moia, e assim fez fazer também um fuso e caixa para espremer o bagaço, e uma fornalha com uma caldeira em cima, a maior que então se achou, onde cozia aquela calda, e cozida a deitava em uma tacha e ao outro dia fazia o mesmo, até que fez cópia de melado para se poder fazer assúqre. (...) com sua pouca ciência e menos experiência, saiu aquele assuqre assim tão bom e tão fino.”110 Foi a partir da Madeira que se generalizou o consumo do açúcar, sendo necessário para isso uma produção em larga escala. A pressão do mercado europeu conduziu a uma rápida afirmação da cultura na segunda metade do século XVI, situação que só seria possível de alimentar com o recurso a inovações tecnológicas capazes de atenderem a tais solicitações. Note-se que a evolução para o sistema de cilindros não reverte no melhor aproveitamento do suco da cana, mas sim vantagens acrescentadas para a rapidez no processo de esmagamento. A situação que se vive na Madeira a partir de meados do século XV é de incremento da cultura que se alia a inovações tecnológicas, que certamente o engenho de Diogo de Teive foi o primeiro exemplo. Se as referências forem indício dos engenhos de cilindros quer dizer que é na Madeira que encontrámos a mais antiga referência desta tecnologia no espaço atlântico e será a partir da Madeira que a mesma se difundiu. Os madeirenses estiveram ligados à promoção da cultura e construção dos primeiros engenhos açucareiros nas ilhas Canárias, dos Açores, S. Tomé, e Brasil, chegando mesmo ao norte de África, situação que foi interditada pela coroa em 1537111. Por outro lado a sua origem não poderá associar-se a uma influência directa da Índia ou da China, onde estiveram muitos madeirenses, uma vez que as primeiras referências são anteriores à primeira viagem de Vasco da Gama. Perante tantas evidências não 107 Sobre a história dp engenho e a discussão das inovações tecnológicas o estudo mais importante foi publicado por John e Cristian DANIELS, The origin of rhe sugar cane roller mill , Technology and Culture, vol. 29, nº. 3, 1988, pp.493_535. 108 António ARAGÃO, A Madeira vista por estrangeiros, Funchal, 1981, p.87. 109 Gaspar Frutuoso, Livro Quarto das Saudades da Terra, vol.II, Ponta Delgada, 1981, p.209-212 110 Gaspar Frutuoso, Livro Quarto das Saudades da Terra, vol.II, Ponta Delgada, 1981, p.211. 111 . ARM., RGCMF, t. I, fl. 372v, publ. in Arquivo Histórico da Madeira, vol. XIX(1990)pp.79-80. é possível afirmar com toda a certeza que a expansão dos engenhos de cilindros se fez a partir do Funchal. Teremos de continuar no domínio das hipóteses, pois faltam descrições e gravuras capazes de o testemunhar. Mas se olharmos ao que sucede com as demais áreas tudo se constrói no domínio da hipótese e dificilmente teremos conclusões plausíveis sobre os primórdios da evolução do sistema de cilindros na moagem da cana sacarina. AS ESCALAS DAS ILHAS. Uma das funções privilegiadas das ilhas nos últimos quinhentos anos foi o serviço de escala oceânica, servindo de apoio a todos os que sulcavam o oceano em distintos sentidos. Primeiro escalas de descobrimento que abriram os caminhos para as rotas comerciais e depois escalas do percurso de afirmação da Ciência através das expedições científicas que dominaram os areópagos europeus a partir do século XVIII. Umas e outras cruzam-se por diversas vezes e revelam-nos quão importante foi para a Europa o mundo das ilhas. O Atlântico surge, a partir do século XV, como o principal espaço de circulação dos veleiros, pelo que se definiu um intricado liame de rotas de navegação e comércio que ligavam o velho continente às costas africana e americana e as ilhas. Esta multiplicidade de rotas que resultou da complementaridade económica das áreas insulares e continentais surge como consequência das formas de aproveitamento económico aí adoptadas. Tudo isto se completa com as condições geofísicas do oceano, definidas pelas correntes e ventos que delinearam o traçado das rotas e os rumos das viagens. A mais importante e duradoura de todas as rotas foi sem dúvida aquela que ligava as Índias (ocidentais e orientais) ao velho continente. Foi ela que galvanizou o empenho dos monarcas, populações ribeirinhas e acima de tudo os piratas e corsários, sendo expressa por múltiplas escalas apoiadas nas ilhas que polvilhavam as costas ocidentais e orientais do mar: as Canárias e raramente a Madeira, depois Cabo Verde, Santa Helena e os Açores. Nos três arquipélagos, definidos como Mediterrâneo Atlântico, a intervenção nas grandes rotas faz-se a partir de algumas ilhas, sendo de referir a Madeira, Gran Canaria, La Palma, La Gomera, Tenerife, Lanzarote e Hierro, Santiago, Flores e Corvo, Terceira e S. Miguel. Para cada arquipélago afirmou-se uma ilha, servida por um bom porto de mar como o principal eixo de actividade. No mundo insular português, por exemplo, evidenciaram-se, de forma diversa, as ilhas da Madeira, Santiago e Terceira como os principais eixos. As rotas portuguesas e castelhanas apresentavam um traçado diferente. Enquanto as primeiras divergiam de Lisboa, as castelhanas partiam de Sevilha com destino às Antilhas, tendo como pontos importantes do raio de acção os arquipélagos das Canárias e Açores. Ambos os centros de apoio estavam sob soberania distinta: o primeiro era castelhano desde o século XV, enquanto o segundo português, o que não facilitou muito o imprescindível apoio. Mas por um lapso tempo (1585-1642) o território entrou na esfera de domínio castelhano, sem que isso tivesse significado maior segurança para as armadas. Apenas se intensificaram as operações de represália de franceses, ingleses e holandeses. As expedições organizadas pela coroa espanhola na década de oitenta com destino à Terceira tinham uma dupla missão: defender e comboiar as armadas das Índias até porto seguro, em Lisboa ou Sevilha, e ocupar a ilha para aí instalar uma base de apoio e de defesa das rotas oceânicas. A escala açoriana justificava-se mais por necessidade de protecção das armadas do que por necessidade de reabastecimento ou reparo das embarcações. A reunião dos navios das armadas e o comboiamento até o porto seguro na península fazia-se à entrada dos mares açorianos, junto da ilha das Flores, furtando-os à cobiça dos corsários, que infestavam os mares. Desde o início que a segurança das frotas foi uma das mais evidentes preocupações para a navegação atlântica pelo que as coroas peninsulares delinearam, em separado, um plano de defesa e apoio. Em Portugal tivemos, primeiro, o regimento para as naus da Índia nos Açores, promulgado em 1520, em que foram estabelecidas normas para impedir que as mercadorias caíssem nas mãos da cobiça do contrabando e corso. A necessidade de garantir com eficácia tal apoio e defesa das armadas levou a coroa portuguesa a criar, em data anterior a 1527, a Provedoria das Armadas, com sede na cidade de Angra112. A nomeação em 1527 de Pero Anes do Canto para provedor das armadas da Índia, Brasil e Guiné, marca o início da viragem. Ao provedor competia a superintendência de toda a defesa, abastecimento e apoio às embarcações em escala ou de passagem pelos mares açorianos. Além disso estava sob as suas ordens a armada das ilhas, criada expressamente para comboiar, desde as Flores até Lisboa, todas aquelas provenientes do Brasil, Índia e Mina. No período de 1536 a 1556 há notícia do envio de pelo menos doze armadas com esta missão. Depois, procurou-se garantir nos portos costeiros do arquipélago um ancoradouro seguro construindo-se as fortificações necessárias. Esta estrutura de apoio fazia falta aos castelhanos uma área considerada crucial para a navegação atlântica, e por isso por diversas vezes solicitaram o apoio das autoridades açorianas. Mas a ineficácia ou a necessidade de uma guarda e defesa mais actuante obrigouos a reorganizar a carreira, criando o sistema de frotas. Desde 1521 as frotas passaram a usufruir de uma nova estrutura organizativa e defensiva. No começo foi o sistema de frotas anuais artilhadas ou escoltadas por uma armada. Depois a partir de 1555 o estabelecimento de duas frotas para o tráfico americano: Nueva Espana e Tierra Firme. O activo protagonismo do arquipélago açoriano e, em especial, da ilha Terceira é referenciado com frequência por roteiristas e marinheiros que nos deram conta das viagens ou os literatos açorianos que presenciaram a realidade. Todos falam da importância do porto de Angra que, no dizer de Gaspar Frutuoso, era "universal escala do mar do poente"113. A participação do arquipélago madeirense nas grandes rotas oceânicas foi esporádica, justificando-se a ausência pelo posicionamento marginal em relação ao traçado ideal. Mas a ilha não ficou alheia ao roteiro atlântico, evidenciando-se em alguns momentos como escala importante das viagens portuguesas com destino ao Brasil, Golfo da Guiné e Índia. Inúmeras vezes a escala madeirense foi justificada mais pela necessidade de abastecer as embarcações de vinho para consumo a bordo do que pela falta de água ou víveres frescos. Não se esqueça que o vinho era um elemento fundamental da dieta de bordo, sendo referenciado pelas suas qualidades na luta contra o escorbuto. Acresce ainda que ele tinha a garantia de não se deteriorar com o calor dos trópicos, antes pelo contrário ganhava um envelhecimento prematuro. Era o chamado vinho da roda, tão popular nos séculos seguintes. Motivo idêntico conduziu à assídua presença dos ingleses, a partir de finais do século dezasseis. A proximidade da Madeira em relação aos portos do litoral peninsular e as condições dos ventos e correntes marítimas foram o principal obstáculo à valorização da ilha no contexto das navegações atlânticas. As Canárias, porque melhor posicionadas e distribuídas por sete ilhas em latitudes diferentes, estavam em condições de oferecer o adequado serviço de apoio. Todavia a situação conturbada que aí se viveu, resultado da disputa pela posse entre as coroas peninsulares e a demorada pacificação da população indígena, fizeram com que a Madeira 112 113 . Confronte-se o nosso estudo sobre O Comércio inter-insular nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987, 17-24. Livro sexto das Saudades da Terra, Cap.II. surgisse no século XV como um dos principais eixos do domínio e navegação portuguesa no Atlântico. Tal como nos refere Zurara a ilha foi desde 1445 o principal porto de escala para as navegações ao longo da costa africana. Mas o maior conhecimento dos mares, os avanços tecnológicos e náuticos retirou ao Funchal a posição charneira nas navegações atlânticas, sendo substituído pelos portos das Canárias ou Cabo Verde. Já a partir de princípios do século XVI a Madeira surgirá apenas como um ponto de referência para a navegação atlântica, uma escala ocasional para reparo e aprovisionamento de vinho. Apenas o surto económico da ilha conseguirá atrair as atenções das armadas, dos navegantes e aventureiros. Em síntese, as ilhas são as portas de entrada e saída e por isso mesmo assumiram um papel importante nas rotas atlânticas. Mas para sulcar longas distâncias rumo ao Brasil, à costa africana ou ao Indico, era necessário dispor de mais portos de escala, pois a viagem era longa e difícil. As áreas comerciais da costa da Guiné e, depois, com a ultrapassagem do cabo da Boa Esperança, as indicas tornaram indispensável a existência de escalas intermédias. Primeiro Arguim que serviu de feitoria e escala para a zona da Costa da Guiné, depois, com a revelação de Cabo Verde, foi a ilha de Santiago que se afirmou como a principal escala da rota de ida para os portugueses e podia muito bem substituir as Canárias ou a Madeira, o que realmente aconteceu. Outras mais ilhas foram reveladas e tiveram um lugar proeminente no traçado das rotas. É o caso de S. Tomé para a área de navegação do golfo da Guiné e de Santa Helena para as caravelas da rota do Cabo. Também a projecção dos arquipélagos de S. Tomé e Cabo Verde sobre os espaços vizinhas da costa africana levou a coroa a criar duas feitorias (Santiago e S. Tomé) como objectivo de controlar, a partir daí, todas as transacções comerciais da costa africana. No Atlântico sul as principais escalas das rotas do Índico assentavam nos portos das ilhas de Santiago, Santa Helena e Ascensão. Aí as armadas reabasteciam-se de água, lenha, mantimentos ou procediam a ligeiras reparações. A par disso releva-se, ainda, a de Santa Helena como escala de reagrupamento das frotas vindas da Índia depois de ultrapassado o cabo, isto é, missão idêntica à dos Açores no final da travessia oceânica. Esta função da ilha de Santiago com escala do mar oceano foi efémera. A partir da década de trinta do século XVI as escalas são menos assíduas. O mar era já conhecido e as embarcações de maior calado permitiam viagens mais prolongadas. Apenas os náufragos dos temporais aí aparecem à procura de refúgio. O posicionamento das ilhas no traçado das rotas de comércio e navegação atlântica fez com que as coroas peninsulares dirigissem para aí todo o empenho nas iniciativas de apoio, defesa e controlo do trato comercial. As ilhas foram, assim, os bastiões avançados, suportes e símbolos da hegemonia peninsular no Atlântico. A disputa pelas riquezas em circulação tinha lugar em terra ou no mar circunvizinho, pois para aí incidiam os piratas e corsários, ávidos de conseguir ainda que uma magra fatia do tesouro. Uma das maiores preocupações das autoridades terá sido a defesa dos navios. Mas no caso das ilhas da Guiné isso nunca foi conseguido, tardando, ao contrário do que sucedeu na Madeira, Açores e Canárias, o delineamento de um sistema defensivo em terra e no mar. Isto explica a vulnerabilidade dos portos, evidenciada nas inúmeras investidas inglesas e holandesas na primeira metade do século XVII. O século é marcado por uma mudança total no sistema de rotas do Atlântico. Os progressos no desenvolvimento da máquina a vapor fizeram com que se elaborasse um novo plano de portos de escala, capazes de servirem de apoio à navegação como fornecedores dos produtos em troca e do carvão para a laboração das máquinas. Nos Açores o porto de Angra cedeu o lugar aos da Horta e Ponta Delgada, enquanto em Cabo Verde a ilha de Santiago foi substituída pela de S. Vicente, lugar que disputava com as Canárias. Entretanto o Funchal viu reforçada pela dupla oferta como porto carvoeiro e do vinho da ilha, o que fez atrair inúmeras embarcações inglesas e americanas. A par disso a posição privilegiada que os ingleses gozavam na ilha levou a que eles se servissem do porto do Funchal como base para as actividades de corso contra os franceses e castelhanos. Esta nova aposta no sector de serviços de apoio à navegação comercial e de passageiros vai depender de uma outra política, a dos portos francos. As ilhas foram no século XVIII o centro das transformações sócio-políticas então operadas, de ambos os lados do oceano, fruto da forte presença da comunidade inglesa e o facto desta a ter transformado num importante centro para a sua afirmação colonial e marítima, a partir do século XVII. Esta vinculação da ilha ao império britânico é bastante evidente no quotidiano e devir histórico madeirenses dos séculos XVIII e XIX114. A Madeira, no decurso do século XVIII, firmou a vocação atlântica. Para isso contribuiu o facto de os ingleses não dispensarem o porto do Funchal e o vinho madeirense na sua estratégia colonial. As diversas actas de navegação (1660, 1665), corroboradas pelos tratados de amizade, de que merece relevo especial o de Methuen (1703)115, foram os meios que abriram o caminho para que a Madeira entrasse na área de influência do mundo inglês116. Aos poucos, esta comunidade ganhou uma posição de respeito na sociedade madeirense que, por vezes, se tornava incomodativa 117. A presença e importância da feitoria inglesa, no decurso do século XVIII, é uma realidade insofismável. A comunidade inglesa passou a usufruir na ilha de um estatuto diferenciado que lhe dava a possibilidade de possuir um cemitério próprio, desde 1761. Também os mesmos tiveram direito a igreja própria, enfermaria, conservatória118 e juiz privativo. A opção, embora colhesse o de surpresa Governador, parecia ser desejada, pois em 1898 o governador de S. Miguel, depois de tomar conta do sucedido, manifestou o desejo que o mesmo sucedeu nos Açores, para evitar o perigo dos franceses119. A presença de armadas inglesas no Funchal era constante sendo o relacionamento com as autoridades locais amistoso, sendo recebidos pelo governador com toda a hospitalidade120. Destas relevam-se as de 1799 e 1805, compostas, respectivamente de 108 e 112 embarcações121. Para além disto era assídua a presença de uma esquadra inglesa a patrulhar o mar madeirense, sendo a de 1780 comandada por Jonhstone122. A partir de meados do século XIX o Funchal especializase como porto de escala de navios de passageiros, com especial destaque para os ingleses. Para isso contribuiu a tradicional presença britânica e a afirmação da ilha com estância turística. Daqui resulta que o porto funchalense no viu quebrado o protagonismo na navegação atlântica, antes pelo contrário recobrou forças e novas funções face aos novos desafios da navegação oceânica. Nos Açores assiste-se no decurso do século XVII a uma clara mudança dos espaços portuários de dimensão intercontinental. Assim, a Horta pela posição charneira no grupo 114 115 116 117 118 Desmond GREGORY, The Beneficent Usurpers. A History of the British in Madeira, London, 1988. Public Record Office, FO 811/1, cartas dos privilégios da nação britânica com Portugal desde 1401 a 1805. J. H. FISHER, The Methuen a Pombal. O Comércio anglo-português de 1700 a 1770, Lisboa, 1984, p. 29. Em 1754 o Governador Manuel Saldanha Albuquerque lamenta o exclusivo do comércio inglês na ilha (AHU, Madeira e Porto Santo, n1.48-49). Public Record Office, FO 811/1, fls.278, 31 de Janeiro de 1724. 119 Em 27 de Fevereiro de 1808 o governador madeirense havia-lhe enviado uma carta relatando o sucedido. Confronte-se: Arquivo dos Açores, vol.XI, 359-360, 373379; Francisco d'Atayde de Faria e MAIA, Subsídios para a História de S. Miguel e Terceira. Capitães-generais 1766-1831, 20 edição Ponta Delgada, 1988. 120 Public Record Office, FO 63/7, sabe-se que por ordem de 14 de Junho de 1722 as embarcações com destino às colónias permaneciam alguns dias no Funchal. A 20 de Janeiro de 1786 são 20 barcos em tal situação, coordenada pelo cônsul. 121 122 AHU, Madeira e Porto Santo, n1.1125, 1620, 22 de Outubro de 1799 e 7 de Outubro de 1805 Ibidem, n1.545, 22 de Janeiro de 1780. central e pelo destaque que assumiu no apoio à baleação dos americanos acabou por assumir a posição de porto oceânico de apoio às pescarias, ao comércio americano e de fornecimento de carvão, retirando importância ao de Angra. A posição foi reforçada na segunda metade do século XIX com a amarração aí dos cabos submarinos. Por outro lado o centro económico do arquipélago situava-se na ilha de S. Miguel, o que implicava a valorização do porto de mar. Também em Cabo Verde ocorreram idênticas mudanças que levaram à desvalorização de Santiago em favor de S. Vicente. O porto oceânico transformou-se num oásis oceânico das embarcações conduzidas a vapor que aí demandavam o necessário abastecimento de carvão e num eixo destacado de amarração de cabos submarinos. O processo foi evidente a partir 1838 com a criação da vila nas proximidades do Porto Grande e a instalação do primeiro depósito de carvão pelo cônsul inglês John Rendall. A situação muda a partir de 1883, pois a agressividade espanhola através dos portos francos de Las Palmas e Santa Cruz de Tenerife associada à modernização do porto francês de Dakar conduziram à desvalorização dos portos portugueses nas ilhas. Já a presente centúria atribui uma dimensão distinta às ilhas. Assim, o jogo de interesses entre o continente europeu e americano fez com que algumas ilhas se transformassem em peças chave da hegemonia económica. Daqui resultou a evidente disputa entre Alemanha e Inglaterra por conseguir traze-las à esfera de influência. Note-se que a política dos sanatórios foi o subterfúgio usado pelos alemães para iludir as pretensões expansionistas no Atlântico. Na base disto está o conflito gerado pela questão dos sanatórios na Madeira, que teve como instigador a Inglaterra123. Aqui, mais uma vez a Inglaterra usufruiu uma posição favorável ao reivindicar a tradição histórica da aliança124. A percepção da importância das ilhas na afirmação da hegemonia marítima britânica levou Thomas Ashe(1813)125 a reivindicar para os Açores a transformação num protectorado britânico. Nos anos vinte os vapores começaram a ceder lugar às "máquinas voadoras" e paulatinamente a aviação civil foi conquistando o mercado de transporte de passageiros. Mesmo assim as ilhas continuaram por muito tempo a manter o papel de apoio às rotas transatlânticas. Nos Açores tivemos a ilha de Santa Maria, enquanto em Cabo Verde idêntico papel foi atribuído à ilha do Sal desde 1939126. Até ao aparecimento e vulgarização da telegrafia sem fios a estratégia de circulação da informação assentava nas ilhas. A Madeira, a Horta e São Vicente foram de novo motivo de disputa e interesses por ingleses e alemães127. A Horta rapidamente se transformou num nó de amarração de cabos submarinos que ligavam a Europa, América, África do Sul e Brasil, assinalando-se em 1926 a existência de quinze cabos128. O mesmo acontecia na ilha de S. Vicente onde amarrou o cabo submarino inglês em 1874. ESCALAS DA CIÊNCIA. Desde o século dezoito que a literatura científica e de viagens definiu de modo claro este conjunto de ilhas como uma unidade merecedora de atenção. São 123 .Gisela Medina Guevara: As Relações Luso-Alemãs antes da Primeira Guerra Mundial. A Questão da Concessão dos Sanatórios da Ilha da Madeira, Lisboa, 1997 .Cf. António José Telo, Os Açores e o Controlo do Atlântico, Lisboa, 1993. 125 . ASHE, T(homas), History of the Azores on Western Islands; Containing an Account of the Government, Laws and Religion, the Martners, Ceremonies and Character of the Inhabitants and demonstrating the Importance of these Valuable Islands to the British Empire, Ed. Sherwood, Neely, and Jones, Londres 1813. Confronte J. Reis Leite, " , 126 . Francis M. Rogers, Atlantic Islanders of the Azores and Madeiras, Massachusetts, 1979, pp.191-208; R. E. G. Davies, A History of the World´s Airlines, London, 1964. 127 . Paul Kennedy, "Imperial Cable Comunications and Strategy, 1870-1914", in The English Historical Review, vol. LXXXVI, 1971; Francis M Rogers, ob.cit., pp.175-190, 209-230; Charles Bright, Submarine Telegraphs: Their History, Construction and Working, London, 1898; K. C. Baghahole, A Century of Service. A Brief History of Cable and Wireless Ltd 1868-1968, London, 1970; K. R. Haigh, Cableships and Submarine Cables, London, 1968; H. H. Schenck(org.), The World's Submarine Telephone Cable Systems, Washington DC, 1975. 128 . F.S. Weston, "Os Cabos Submarinos nos Açores", in Boletim do Núcleo Cultural da Horta, vol. III, n1.2, 1963. 124 as Western Islands que encabeçam os títulos das publicações129. Aqui se entendia quase sempre os Açores, mas muitas vezes associava-se as Canárias, a Madeira e, raramente Cabo Verde. Esta unidade ficou estabelecida na designação de Macaronésia, dada às ilhas para fazer jus à mais antiga designação da Antiguidade Clássica. Note-se que o mais antigo testemunho que se conhece da vida vegetal e animal aparece nas volumosas Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso (1522-1591), escritas no último quartel do século XVI. Aliás, ele pode ser considerado precursor dos naturalistas do século XVIII. Aí é possível fazer um percurso por todas as ilhas e constatar a riqueza natural e a que resultou da acção do colono europeu. Mesmo assim o rastreio não é exaustivo tornando-se difícil ao cientista saber com exactidão quais os elementos vegetais e animais indígenas e os que resultaram da ocupação europeia. A descoberta é tardia, como veremos. Apenas o homem do século XVIII sentido necessidade de o fazer e é a partir de então que temos notícia do quadro natural das ilhas. Mas. Entretanto haviam passado mais de três séculos de presença europeia em que as espécies do velho continente se haviam mesclado com as do novo. As ilhas entraram rapidamente no universo da ciência europeia dos séculos XVIII e XIX. Ambas as centúrias foram momentos de assinaláveis descobertas do mundo através de um estudo sistemático da fauna e flora130. Daqui resultou dois tipos de literatura com públicos e incidências temáticas distintas. Os textos turísticos, guias e memórias de viagem, que apelavam o leitor para a viagem de sonho à redescoberta deste recanto do paraíso que se demarca dos demais pela beleza incomparável da paisagem, variedade de flores e plantas. Já os tratados científicos apostam na divulgação através daquilo que o identifica. As técnicas de classificação das espécies da fauna e flora têm aqui um espaço ideal de trabalho. Algumas colecções foram feitas para deleite dos apreciadores, que figuram em lista que antecede a publicação131. O século XX anuncia-se como o momento ecológico. As preocupações com a preservação do pouco manto florestal existente e da recuperação dos espaços ermos eram acompanhadas da crítica impiedosa aos responsáveis. As preocupações ambientalistas são orientadas no sentido de estabelecer um equilíbrio do quadro natural e travar o impulso devastador do homem não são apenas apanágio do homem do século XX. Na Madeira como nas demais ilhas sucedemse regimentos e posturas que regulamentam esta relação. Nas Canárias e nos Açores a situação das diversas ilhas não foi uniforme. Os problemas de desflorestação fizeram-se sentir com maior acuidade nas do primeiro arquipélago, Assim em Gran Canaria já em princípios do século XVI a falta de madeiras e lenhas era evidente, assim o testemunham as posturas e intervenção permanente das autoridades locais e a coroa132. A solução estava no recurso às demais ilhas, nomeadamente Tenerife e La Palma. Mas mesmo nestas começaram a fazer-se a sentir as mesmas dificuldades. Nos Açores o facto de a cultura da cana não alcançar o mesmo sucesso da Madeira e Canárias salvou o espaço florestal deste efeito predador. O homem do século XVIII perdeu o medo ao meio circundante e passou a olhá-lo com maior curiosidade e, como dono da criação, estava-lhe atribuída a missão de perscrutar os segredos ocultos. É este impulso que justifica todo o afã científico que explode na centúria. A ciência é 129 . Victor Morales Lezcano, Los Ingleses en Canarias. Libro de Viajes e Historias de Vida, Las Palmas de Gran Canaria, 1986, p.124 . Mary L. Pratt, Imperial Eye.Travel Writing and Transculturation, N.Y., 1993; STAFFORD, B. M., Voyage into Substance - Science, Nature and the Illustrated Travel Account 1770-1840, Cambridge, Mass., 1984, pp. 565-634 131 . Estampas, Aguarelas e desenhos da Madeira Romântica, Funchal, 1988. 132 . Francisco Morales Padron, Ordenanzas del Concejo de Gran Canaria(1531), Las Palmas, 1974; José Peraza de Ayala, Las Ordenanzas de Tenerife, Madrid, 1976; Pedro Cullen del Castilho, Libro Rojo de Gran Canaria o Gran Libro de Provisiones y Reales Cédulas, Las Palmas, 1974. Alfredo Herrera Piqué, La Destrucción de los Bosques de Gran Canaria a comienzos del siglo XVI, in Aguayro, n1.92, 1977, pp.7-10; James J. Pearsons, Human Influences on the Pine and Laurel Forests of the Canary Islands, in Geographical Review, LXXI, n13, 1981, pp.253-271. 130 então baseada na observação directa e experimentação. A insaciável procura e descoberta da natureza circundante cativou toda a Europa, mas foram os ingleses quem entre nós marcaram presença, sendo menor a de franceses e alemães133. Aqui são protagonistas as Canárias e a Madeira. Tudo isto é resultado da função de escala à navegação e comércio no Atlântico. Foi também na Madeira que os ingleses estabeleceram a base para a guerra de corso no Atlântico. Se as embarcações de comércio, as expedições militares tinham escala obrigatória, mas razões assistiam às científicas para a paragem obrigatória. As ilhas, pelo endemismo que as caracteriza, história geo-botânica, permitiram o primeiro ensaio das técnicas de pesquisa a seguir noutras longínquas paragens. Também elas foram um meio revelador da incessante busca do conhecimento da Geologia e Botânica. Instituições seculares, como o British Museum, Linean Society, e Kew Gardens, enviaram especialistas para proceder à recolha das espécies. Os estudos no domínio da Geologia, botânica e flora são resultado da presença fortuita ou intencional dos cientistas europeus. Esta moda do século XVIII levou a que as instituições científicas europeias ficassem depositárias das mais importantes colecções de fauna e flora das ilhas: o Museu Britânico, Linnean Society, Kew Gardens, a Universidade de Kiel, Universidade de Cambridge, Museu de História Natural de Paris. E por cá passaram destacados especialistas da época, sendo de realçar John Byron, James Cook, Humbolt, John Forster. Darwin esteve nas Canárias e Açores (1836) e mandou um discípulo à Madeira. No arquipélago açoriano o cientista mais ilustre terá sido o Príncipe Alberto I do Mónaco que aí aportou em 1885. James Cook escalou a Madeira por duas vezes em1768 e 1772, numa réplica da viagem de circum-navegação apenas com interesse científico. Os cientistas que o acompanharam intrometeram-se no interior da ilha à busca das raridades botânicas para a classificação e depois revelação à comunidade científica. Em 1775 o navegador estava no Faial e no ano imediato em Tenerife. Os Arquipélagos da Madeira e Canárias, devido à posição estratégica na rota que ligava a Europa ao mundo colonial, foram activos protagonistas nos rumos da Ciência dos séculos XVIII e XIX. Já aos Açores estava, ao contrário, reservado o papel de ancoradouro seguro antes de se avistar a Europa. Foi este papel desempenhado pelo arquipélago desde o século XVI que o catapultou para uma posição privilegiada na história de navegação e comércio do Atlântico. Nas Canárias, a primeira referência sobre a presença de naturalistas ingleses, é de 1697, ano em que James Cuningham esteve em La Palma. Os Séculos XVIII anunciam-se como de forte presença, nomeadamente dos franceses. O contacto do cientista com o arquipélago açoriano acontecia quase sempre na rota de regresso de Africa ou América. Para os americanos as ilhas eram a primeira escala de descoberta do velho mundo. Por outro lado os Açores despertaram a curiosidade das instituições e cientistas europeus. Os aspectos geológicos, nomeadamente os fenómenos vulcânicos foram o principal alvo de atenção. Mesmo assim o volume de estudos não atingiu a dimensão dos referentes à Madeira e Canárias pelo que Maurício Senbert em 1838 foi levado a afirmar que a "flora destas ilhas [fora]por tanto tempo despresada", o que o levou a dedicar-se ao estudo134. As ilhas recriavam os mitos antigos e reservavam ao visitante um ambiente paradisíaco e calmo para o descanso, ou, como sucedeu no século dezoito, o laboratório ideal para os estudos científicos. O endemismo insular propiciava a última situação. As ilhas forram o principal alvo de atenção de botânicos, ictiólogos, geólogos. A situação é descrita por Alfredo 133 Cf. "Algumas das Figuras Ilustres Estrangeiras que Visitaram a Madeira", in Revista Portuguesa, 72, 1953; A. Lopes de Oliveira, Arquipélago da Madeira. Epopeia Humana, Braga, 1969, pp. 132-134. 134 . "Flora Azorica", in Archivo dos Açores, XIV(1983), pp.326-339. Herrera Piqué a considerar como "a escala científica do Atlântico"135. Os ingleses foram os primeiros a descobrir as qualidades de clima e paisagem e a divulgar junto dos compatriotas. É esta quase esquecida dimensão como motivo despertador da ciência e cultura europeia desde o século XVIII que importa realçar Na Madeira aquilo que mais os emocionou os navegadores do século XV foi o arvoredo, já para os cientistas, escritores e demais visitantes a partir do século XVIII o que mais chama à atenção é, sem dúvida, o aspecto exótico dos jardins e quintas que povoam a cidade. Nas Canárias a atenção está virada para os milenares dragoeiros de Tenerife. O Funchal transformou-se num verdadeiro jardim botânico e segue uma tradição secular europeia. Eles começaram a surgir na Europa desde o século XVI: em 1545 temos o de Pádua, seguindo-se o de Oxford em 1621. Em 1635 o de Paris preludia a arte de Versailles em 1662. Em todos é patente a intenção de fazer recuar o paraíso136. As ilhas não tinham necessidade disso pois já o eram. Diferente é a atitude do homem do século XVIII. Aliás, desde a segunda metade do século XVII que o seu relacionamento com as plantas mudou. Em 1669 Robert Morison publica Praeludia Botanica, considerada como o princípio do sistema de classificação das plantas, que tem em Carl Von Linné (Linnaeus) (1707-1778) o protagonista. A partir daqui a visão do mundo das plantas nunca foi a mesma. Contemporâneo dele é o Comte de Buffon que publicou entre 1749 e 1804 a "Histoire Naturelle, Générale et Particuliére" em 44 volumes. Perante isto os jardins botânicos do século XVIII deixaram de ser uma recriação do paraíso e passaram a espaços de investigação botânica. O Kew Gardens em 1759 é a verdadeira expressão disso. Note-se que Hans Sloane (1660-1753), presidente do Royal College of Physicians, da Royal Society of London e fundador do British Museum, esteve na Madeira no decurso das expedições que o levaram às Antilhas inglesas137. A aclimatação de plantas, com valor económico, medicinal ou ornamental, adquiriu cada vez mais importância. Aliás, foi fundamentalmente o interesse medicinal que provocou desde o século XVII o desusado empenho pelo estudo138. Assim em 1757 o inglês Ricardo Carlos Smith fundou no Funchal um dos jardins onde reuniu várias espécies com valor comercial. Já em 1797 Domingos Vandelli (1735-1816) e João Francisco de Oliveira no estudo sobre a flora apresentou no ano imediato um projecto para um viveiro de plantas. O viveiro foi criado no Monte e manteve-se até 1828. O naturalista francês, Jean Joseph d'Orquigny, que em 1789 se fixou no Funchal foi o mentor da criação da Sociedade Patriótica, Económica, de Comércio, Agricultura Ciências e Artes. Também na ilha de Tenerife, em Puerto de La Cruz, Alonso de Nava y Grimón criou em 1791 um jardim de Aclimatação de Plantas. Na Madeira tivemos a proposta de Frederico Welwistsch139 para a criação de um jardim de aclimatação no Funchal e em Luanda140. A ilha cumpriria o papel de ligação das colónias aos jardins de Lisboa, Coimbra e Porto. O botânico alemão que fez alguns estudos em Portugal, passou em 1853 pelo Funchal com destino a Angola. Já a presença de outro alemão, o Padre Ernesto João Schmitz, como professor do seminário diocesano, levou à criação em 1882 um Museu de História Natural, que hoje se encontra integrado no actual Jardim botânico. Só passado um século a temática voltou a merecer a atenção dos especialistas. E, várias vozes se ergueram em favor da criação de um jardim botânico. Em 1936 refere-se uma tentativa 135 .Las islas Canarias, Escala Científica en el Atlántico Viajeros y Naturalistas en el siglo XVIII, Madrid, 1987. . Richard Grove, Ecology, climate and Empire. Studies in colonial enviromental. History 1400-1940, Cambridge, 1997, p. 46; J. Prest, The Garden of Eden: The Botanic Garden and the Re-creation of Paradise, New Haven, 1981. 137 Raymond R. Stearns, Science in the British Colonies of America, Urban, 1970 138 K. Thomas, Man and the Natural World. Changing attitudes in England. 1500-1800, Oxford, 1983, p. 27, 65-67. 139 . Cf. Ebarhard Axel Wilhelm, "Visitantes de língua Alemã na Madeira(1815-1915)", in Islenha, 6, 1990, pp.48-67. 140 . "um Jardim de Aclimatação na ilha da Madeira", in Das Artes e da História da Madeira, n1. 2, 1950, pp.15-16 136 frustrada de criação de um Jardim Zoológico e de Aclimatação nas Quintas Bianchi, Pavão e Vigia, que contava com o apoio do Zoo de Hamburgo141. A criação do Jardim Botânico por deliberação da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal a 30 de Abril de 1960 foi o corolário da defesa secular das condições da ilha para a criação e a demonstração da importância científica revelada por destacados investigadores botânicos que procederam a estudos142. Nos Açores foi evidente a aposta nos jardins de aclimatação. Um dos principais empreendedores foi José do Canto que desde meados do século XIX criou diversos viveiros de plantas de diversas espécies que adquiriu em todo o mundo. Na década de setenta as suas propriedades enchiam-se de criptomérias, pinheiros, eucaliptos e acácias143. Tenha-se em conta os contactos com as sociedades científicas e de aclimatação francesas, as visitas aos mais considerados jardins europeus. Tudo isto permitiu que o mesmo e alguns dos compatriotas micaelenses transformassem a paisagem da ilha em densos arvoredos e paradisíacos jardins de flora exótica. A José do Canto podemos juntar António Borges que em 1850 lançou o parque das Sete Cidades e oito anos após o jardim de Ponta Delgada que ostenta o nome. Outro entusiasta da natureza foi José Jácome Correia que nos legou o jardim de Santana. Tenha-se em consideração o facto de António Borges ter permanecido desde 1861 oito anos em Coimbra onde trabalhou no Jardim Botânico e manteve contactos estreitos com a universidade, mercê do apoio do patrício Carlos M. G. Machado. Daqui resultou uma estreita cooperação como envio à ilha de Edmond Goeze144 com a finalidade de recolher espécies arbóreas para a estufa do jardim coimbrão. Já nas Canárias a preocupação fundamental foi a política de florestação. Para isso contribuíram a partir do séc.XVIII as Sociedades Económicas de los Amigos del Pais em Gran Canaria(1777), Tenerife(1776) e La Palma. Das actas da de Las Palmas rapidamente se extrai a preocupação e aposta na política de reflorestação145. Os Jardins botânicos surgem aqui a partir da década de quarenta do nosso século: em 1943 o de Puerto de La Cruz em Tenerife e em 1953 o de Viera y Calvijo em Gran Canaria. Em qualquer dos momentos assinalados as ilhas cumpriram o papel de ponte e espaço de adaptação da flora colonial. Os jardins de aclimatação foram a moda que na Madeira e Açores tiveram por palco as amplas e paradisíacas quintas. O Marquez de Jácome Correia146 identifica para a Madeira as quintas do Palheiro Ferreiro e Magnólia como jardins botânicos. São viveiros de plantas, hospital para acolher os doentes da tísica pulmonar e outros visitantes. O deslumbramento acompanhou o interesse científico e os dois conviveram lado a lado nas inúmeras publicações que o testemunham no século XIX. Os jardins, através da harmonia arvoredo e das garridas cores das flores tiveram nos séculos XVII e XVIII um avanço evidente. Os bosques deixaram de ser espaços de maldição e as árvores entraram no quotidiano das classes altas. Os jardins adquiriram a dimensão de paraíso bíblico e como tal de espaço espiritual. Eles são a expressão do domínio humano sobre a Natureza147. A Inglaterra do século XIX popularizou os jardins e as flores148. A ambiência chegou à ilha através dos mesmos súbditos de Sua Majestade. As ilhas exerceram um fascínio especial em 141 César A. Pestana, A Madeira Cultura e Paisagem, Funchal, 1985, p.65 Cf Boletim da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, Abril de 1960; Rui Vieira, "Sobre o 'Jardim Botânico' da Madeira ", in Atlântico, 2, 1985, pp.101109. 143 . Fernando Aires de Medeiros Sousa, José do Canto. Subsídios para a História micaelense (1820-1898), Ponta Delgada, 1982, pp.78-113 144 . A Ilha de S. Miguel e o Jardim Botânico de Coimbra, in O Instituto, 1867, pp.3-61. 145 . Jose de Viera y Clavijo, Extracto de las Actas de la Real Sociedad Económica de amigos del Pais de las Palmas(1777-1780), Las Palmas de Gran Canaria, 1981. 146 . A Ilha da Madeira, Coimbra, 1927, p.173, 178 147 . Peter J. Bowler, Fontana History of environmental Sciences. N. Y., 1993.,p.111. 148 . Cf. K. Thomas, ibidem, pp.207-209, 210-260 142 todos os visitantes e parece que nunca perderam a imortal característica de jardins à beira do oceano. Poderemos afirmar que as ilhas foram jardins e que os jardins continuam a ser o encanto dos que a procuram, sejam turistas ou cientistas. No século XVIII as ilhas assumiram um novo papel no mundo europeu. Assim, de espaços económicos passaram também a contribuir para alívio e cura de doenças. O mundo rural perde importância em favor da área em torno do Funchal, que se transforma num hospital para a cura da tísica pulmonar ou de quarentena na passagem do calor tórrido das colónias para os dias frios e nebulosos da vetusta cidade de Londres. A função catapultou as ilhas da Madeira e Canárias para uma afirmação evidente. O debate das potencialidades terapêuticas da climatologia propiciou um grupo numeroso de estudos e gerou uma escala frequente de estudiosos149. As estâncias de cura surgiram primeiro na bacia mediterrânica europeia e depois expandiram-se no século XVIII até à Madeira e só na centúria seguinte chegaram às Canárias150. Dos visitantes das ilhas merecem especial atenção três grupos distintos: invalids (=doentes), viajantes, turistas e cientistas. Enquanto os primeiros fugiam ao Inverno europeu e encontravam na temperatura amena das ilhas o alívio das maleitas, os demais vinham atraídos pelo gosto de aventura, de novas emoções, da procura do pitoresco e do conhecimento e descobrimento dos infindáveis segredos do mundo natural. O viajante diferencia-se do turista pelo aparato e intenções que o perseguem. Ele é um andarilho que percorre todos os recantos das ilhas na ânsia de descobrir os aspectos mais pitorescos. Na bagagem constava sempre um caderno de notas e um lápis. Através da escrita e desenho ele regista as impressões do que vê. Daqui resultou uma prolixa literatura de viagens, que se tornou numa fonte fundamental para o conhecimento da sociedade oitocentista das ilhas. Ao historiador está atribuída a tarefa de interpretar estas impressões151. Aqui são merecedoras de destaque duas mulheres: Isabella de França152 para a Madeira e Olívia Stone153 para as Canárias. O turista ao invés é pouco andarilho, preferindo a bonomia das quintas, e egoísta guardando para si todas as impressões da viagem. O testemunho da presença é documentado apenas pelos registos de entrada dos vapores na alfândega, das notícias dos jornais diárias e dos "títulos de residência"154, pois o mais transformou-se em pó. A presença de viajantes e "invalids" nas ilhas conduziu à criação de infra-estruturas de apoio. Se num primeiro se socorriam da hospitalidade dos insulares, num segundo momento a cada vez mais maior afluência de forasteiros obrigou à montagem de uma estrutura hoteleira de apoio. Aos primeiros as portas eram franqueadas por carta de recomendação. A isto juntou-se a publicidade através da literatura de viagens e guias. Os guias forneciam as informações indispensáveis para a instalação no Funchal e viagem no interior da ilha, acompanhados de breves apontamentos sobre a História, costumes, fauna e flora. Para a Madeira, um dos mais antigos guias que se conhece é anónimo155, seguindo-se os de Robert White156, E. V. Harcourt157, J. Y. Johnson158 e E. M. Taylor159. O primeiro guia de conjunto dos arquipélagos 149 . James Clark, The Sanative Influence of Climate, Londres, 1840; W. Huggard, A Handbook of Climatic Treatment, Londres, 1906; Nicolás González Lemus, Las Islas de la Ilusión. Británicos en Tenerife 1850-1900, Las Palmas, 1995; Zerolo, Tomás, Climatoterapia de la Tuberculosis Pulmonar en la Península Española, Islas Baleares Y Canarias, Santa Cruz de Tenerife, 1889. O debate sobre o tema provocou a publicação de inúmeros estudos a favor e contra. Cf. Bibliografia textos de S. Benjamin (1870), John Driver (1850), W. Gourlay (1811), M. Grabham (1870), R. White (1825). 150 . M. J. Báguerra Cervellera, La Tuberculosis y su História, Barcelona, 1992. 151 .António Ribeiro Marques da Silva. Apontamentos sobre o Quotidiano Madeirense (1750-1900), Lisboa, 1994, N. González Lemus, Viajeros Victorianos en Canarias, Las Palmas, 1998. 152 Journal of a visit to Madeira and Portugal (1853-1954), Funchal, 1970. Todavia, a primeira viajante na ilha foi Maria Riddel que em 1788 visitou a ilha durante 11 dias: A Voyage to The Madeira..., Edinburgh, 1792. 153 .Teneriffe and its six Satellites(1887) 154 . Na Madeira as autorizações de residência estão registadas para os anos de 1869 a 1879 e 1922 a 1937. 155 . A Guide to Madeira Containing a Short Account of Funchal, Londres, 1801. 156 . Madeira its Climate and Scenery containing Medical and General Information for Invalids and Visitors; a tour of the Island, Londres, 1825. 157 . A Sketch of Madeira Containing Information for the Traveller or Invalid Visitor, Londres, 1851. é de William W. Cooper160 e A Samler Brown161. O último tornou-se num best-seller, pois atingiu 14 edições. Tenha-se em conta os destinatários dos guias. Assim em 1851 James Yate Johnson e Robert White162 fazem apelo aos "invalid and other visitors", enquanto em 1887 Harold Lee163 dirige-se aos "tourists" e em 1914 temos o primeiro guia turístico de C. A. Power164. Este deverá marcar nas ilhas o fim do chamado turismo terapeutico e o início do actual. Aos dois grupos junta-se um terceiro que também merece atenção dos guias, isto é, o naturalista ou cientista165. A Madeira firmou-se a partir da segunda metade do século dezoito como estância para o turismo terapêutico, mercê das qualidades profiláticas do clima na cura da tuberculose, o que cativou a atenção de novos forasteiros166. Aliás, a ilha foi considerada por alguns como a primeira e principal estância de cura e convalescença da Europa167. No período de 1834 a 1852, a média anual de Invalid's oscilava entre os 300 e 400, maioritariamente ingleses. Em 1859 construiu-se o primeiro sanatório. O último investimento foi dos alemães que em 1903 através do príncipe Frederik Charles de Hohenlohe Oehringen constituiu a Companhia dos Sanatórios da Madeira. Da polémica iniciativa resultou apenas o imóvel do actual Hospital dos Marmeleiros168. Não temos dados seguros quanto ao desenvolvimento da hotelaria nas ilhas, pois os dados disponíveis são avulsos169. Os Hotéis são referenciados em meados do século XIX mas desde os inícios do século XV que as cidades portuárias de activo movimento de forasteiro deveriam possuir estalagens. A documentação oficial faz eco desta realidade como se poderá provar pelas posturas e actas da vereação dos municípios servidos de portos. No caso da Madeira assinala-se em 1850 a existência de dois hotéis (the London Hotel e Yate's Hotel Family) a que se juntaram outros dez em 1889170. Em princípios do século XX a capacidade hoteleira havia aumentado, sendo doze os hotéis em funcionamento que poderiam hospedar cerca de oitocentos visitantes171. A preocupação destes visitantes em conhecer o interior, nomeadamente a encosta norte levou ao lançamento de uma rede de estalagens que tem expressão visível em S. Vicente, Rabaçal, Boaventura, Seixal, Santana e Santa Cruz172. Tenha-se ainda em conta um conjunto de melhoramentos que tiveram lugar no Funchal para usufruto dos forasteiros. Assim, desde 1848 com José Silvestre Ribeiro temos o delinear de um moderno sistema viário, a que se juntaram novos meios de locomoção: em 1891 o Comboio do Monte, em 1896 o Carro Americano e finalmente o automóvel em 1904. 158 Madeira its Climate and Scenery. A Handbook for Invalids and other Visitors, Edinburg, 20ed., 1857, 30ed., 1860. .Madeira its Scenery and How to See it with Letters of a Year's Residence and Lists of the Trees, Flowers, Ferns, and Seaweeds, Londres, 10ed., 1882, 20 ed., 1889. 160 . The Invalid's Guide To Madeira With a Description of Tenerife..., Londres, 1840. 161 . Madeira and the Canary Islands. 162 . Madeira Its Climate and Scenery. A Handbook for Invalid and Other Visitors, Edimburgo, 1851. 163 . Madeira and the Canary islands. A Handbook for Tourists, Liverpool, 1887. 164 . Tourist´s Guide to the Island of Madeira, Londres, 1914. 165 . C. A. Gordon, The Island of Madeira for the Invalid and Naturalis- "the Flower of the Ocean. The Island of Madeira: A Resort for the Invalid; a Field for the Naturalist, Londres, 1896. 166 . As mais antigas referências a esta situação surgem em 1751 em texto de Thomas Heberden em Philosophal Transactions, sendo corroborado pelo Dr. Fothergill em On Consuption Medical Observation (1775). Veja-se ainda J. Adams, Guide to Madeira with an Account of the Climate, Londres, 1801; W. Gourlay, Observations on the Natural History, Climate and Desease of Madeira During of Period os Sixteen Years, Londres, 1811. 167 . Hugo C. de Lacerda Castelo Branco, Le Climat de Madère. Ébauche d'une étude Comparative:Le Meilleur Climat du Monde: Station Fixe et la Plus Belle d'Hiver, Funchal, 1936. 168 . Nelson Veríssimo, A questão dos Sanatórios da Madeira, in Islenha, 6, 1990, 124-144; Desmond Gregory, The Beneficient Usurpers: A History of the British in Madeira, Londres, 1988, pp.112-124; F. A. Silva, Sanatórios da Madeira, in Elucidário Madeirense, 10 ed. 1921-22. 169 . Apenas a partir de 1891 temos o Registo de Licenças de Botequins, tabernas, Hoteis, Estalagens, Clubes e Lotaria(1891-1901). Cf. Fátima Freitas Gomes, Hotéis e Hospedarias (1891-1901), in Atlântico, n1.19, 1989, 170-177. 170 . Isto de acordo com as informações de J. Driver (Guide to Visitors, Londres, 1850) e C. A. Mourão Pita (Madère, Station Mèdicale Fixe, Paris, 1889). 171 . Marquês de Jácome Correia, A Ilha da Madeira, Coimbra, 1927, p.232 172 . Para S. Vicente veja-se nossos estudos sobre "Retratos de Viajantes e Escritores", Boletim Municipal. São Vicente, n1.3, 1995,pp.3-7; "O Norte na História da Madeira", in Boletim Municipal. São Vicente, n1.8, 1996,pp.7-15 159 As Canárias, nomeadamente Tenerife e Furteventura, juntaram-se à Madeira no turismo terapeutico desde meados do século XIX173. Note-se que em 1865 Nicolás Benitez de Lugo construiu em La Orotava (Tenerife) "un estabelecimiento para extranjeros enfermos". Deverá ter sido nesta época que a ilha de Tenerife se estreou como health resort, passando a fazer concorrencia com a Madeira, tendo a favor melhores condições climáticas174. O Vale de La Orotava, através do seu porto (hoje Puerto de La Cruz), afirma-se como a principal estância do arquipélago. Isto provocou o desenvolvimento da indústria hoteleira, que depois alastrou também à cidade de Santa Cruz de Tenerife175. Vários factores permitiram a rápida ascensão das ilhas de Tenerife e Gran Canária na segunda metade do século XIX que assumiram rapidamente a dianteira face à Madeira. A afirmação de Santa Cruz de Tenerife como porto abastecedor de carvão aos barcos a vapor, a declaração dos portos francos em 1852 fizera atrair para aqui todas as linhas francesas e inglesas de navegação e comércio no Atlântico. A aposta no turismo e serviços portuários permitiu uma saída para a crise económica do arquipélago e uma posição privilegiada face à concorrência da Madeira ou dos Açores176. Nos Açores o turismo teve um aparecimento mais recente. Não obstante Bullar (1841) referir a presença de doentes americanos na Horta foi reduzido o movimento no arquipélago. Todavia, isto conduziu ao aparecimento do primeiro hotel conhecido no Faial, em 1842. Em 1860 chegou o primeiro grupo de visitantes norte-americanos, mas só a partir de 1894 ficaram conhecidos como tourists177. A partir de finais do século XIX o turismo dava os primeiros passos. Foi como corolário disso que se estabeleceram as primeiras infra-estruturas hoteleiras e que o turismo passou a ser uma actividade organizada e com uma função relevante na economia. E mais uma vez o inglês é o protagonista. Este momento de afluência de estrangeiros coincide ainda com a época de euforia da Ciência nas Academias e Universidades europeias. Desde finais do século XVII as expedições científicas tornaram-se comuns e a Madeira (Funchal) ou Tenerife (Santa Cruz de Tenerife e Puerto de La Cruz) foram portos de escala, para ingleses, franceses e alemãs. AS ILHAS, O ESPAÇO ATLÂNTICO E O NOVO MUNDO. Constroem-se em definitivo, a partir da Madeira, as linhas e redes de comércio atlânticos atraindo de modo decisivo as áreas e mercados europeus mais nevrálgicos e mais importantes e criando nas áreas ribeirinhas metropolitanas, insulares (Canárias, Açores, Cabo Verde) e continentais (Costa de Marfim-Magreb-Arguim-Fez) fortes relações de dependência e de solidariedade. Aurélio de Oliveira, A Madeira nas linhas de comércio do Atlântico. Séculos XV- XVII, III CIHM, Funchal, 1993, 923. A definição dos espaços económicos não resultou apenas dos interesses políticos e 173 . W. Cooper, The Invalid's Guide to Madeira with a Description of Tenerife, Londres, 1840; M Douglas, Grand Canary as a heatlth Resort for Consummptives and Others, London, 1887; John Whiteford, The Canary Islands as a Winter Resort, Londres, 1890; George Victor Pérez, Orotava as a Health Resort, Londres, 1893. 174 . Note-se que em 1861 Richard F. Burton (Viajes a las Islas Canarias I. 1861, Puerto de La Cruz, 1999, p.26) que na sua viagem todos os tuberculosos ficaram na Madeira. 175 .A. Hernández Gutiérrez, De la Quinta Roja al Hotel Taoro, Puerto de La Cruz, 1983; IDEM, Cuando los Hoteles eran Palacios, Islas Canarias, 1990; A.Guimera Ravina, EL Hotel Marquesa, Puerto de la Cruz, 1988; IDEM, El Hotel Taoro, 1890-1990.Cien Años de Turismo en Tenerife, Santa Cruz de Tenerife, 1991. 176 . Madeirenses e açorianos cedo se aperceberam desta realidade culpando as autoridades de Lisboa. Vide: João Augusto d'Ornellas, A Madeira e as Canárias, Funchal, 1884; João Sauvaire de Vasconcelos, Representação da Câmmara Municipal da Cidade do Funchal ao Governo de S. M. sobre Diversas Medidas Tendentes a Conservar e Arruinar a Navegação de passagem neste Porto dos Paquetes Transatlânticos, Funchal, 1884; Visconde Valle Paraizo, Propostas Apresentadas pela Commissão Nomeada em Assembleia da Associação Commercial do Funchal de 14 de Novembro de 1894 para Estudar as Causas do Desvio da Navegação do Nosso Porto e do Afastamento de Forasteiros, Funchal, 1895; Maria Isabel João, Os Açores no século XIX, Economia, Sociedade e Movimento Autonomista, Lisboa, 1991. 177. Ricardo Manuel Madruga da Costa, Açores, Western Islands. Um Contributo para o Estudo do Turismo nos Açores, Horta, 1989. económicos derivados da conjuntura expansionista europeia mas também das condições internas, oferecidas pelo meio. Elas tornam-se por demais evidentes quando estamos perante um conjunto de ilhas dispersas no oceano. São ilhas com a mesma origem geológica, sem quaisquer vestígios de ocupação humana, mas com diferenças marcantes ao nível climático. Os Açores apresentavam-se como uma zona temperada, a Madeira como uma réplica mediterrânica, enquanto nos dois arquipélagos meridionais eram manifestas as influências da posição geográfica, que estabelecia um clima tropical seco ou equatorial. Daqui resultou a diversidade de formas de valorização económica e social. As condições morfológicas estabelecem as especificidades de cada ilha e tornam possível a delimitação do espaço e a forma de aproveitamento económico. Aqui o recorte e relevo costeiro foram importantes. A possibilidade de acesso ao exterior através de bons ancoradouros era um factor importante. É a partir daqui que se torna compreensível a situação da Madeira definida pela excessiva importância da vertente sul em detrimento da do Norte. De acordo com as condições geo-climáticas é possível definir a mancha de ocupação humana e agrícola das ilhas. Isto conduziu a uma variedade de funções económicas, por vezes complementares. Deste modo nos arquipélagos constituídos por maior número de ilhas a articulação dos vectores da subsistência com os da economia de mercado foi mais harmoniosa e não causou grandes dificuldades. Os Açores apresentam-se como a expressão mais perfeita da realidade, enquanto a Madeira é o reverso da medalha. O processo de povoamento das ilhas definiu-lhes uma vocação de áreas económicas sucedâneas do mercado e espaço mediterrânicos. Assim o que sucedeu nos séculos XV e XVI foi a lenta afirmação do novo espaço, tendo como ponto de referência as ilhas. A mudança de centros de influência foi responsável porque os arquipélagos atlânticos assumissem uma função importante. A tudo isso poderá juntar-se a constante presença de gentes ribeirinhas do Mediterrâneo, interessadas em estabelecer os produtos e o necessário suporte financeiro. A constante premência do Mediterrâneo nos primórdios da expansão atlântica poderá ser responsabilizada pela dominante mercantil das novas experiências de arroteamento aqui lançadas. Certamente que os povos peninsulares e mediterrânicos, ao comprometerem-se com o processo atlântico, não puseram de parte a tradição agrícola e os incentivos comerciais dos mercados de origem. Por isso na bagagem dos primeiros cabouqueiros insulares foram imprescindíveis as cepas, as socas de cana, alguns grãos do precioso cereal, de mistura com artefactos e ferramentas. A afirmação das áreas atlânticas resultou deste transplante material e humana de que os peninsulares foram os principais obreiros. Foi a primeira experiência de ajustamento das arroteias às directrizes da nova economia de mercado. A sociedade e economia insulares surgem na confluência dos vectores externos com as condições internas do multifacetado mundo insular. A concretização não foi simultânea nem obedeceu aos mesmos princípios organizativos pelo facto de a mesma resultar da partilha pelas coroas peninsulares e senhorios ilhéus. Por outro lado a economia insular é resultado da presença de vários factores que intervêm directamente na produção e comércio. Ao nível do sector produtivo deverá ter-se em conta a importância assumida, por um lado, pelas condições geofísicas e, por outro, pela política distributiva das culturas. É da conjugação de ambas que se estabelece a necessária hierarquia. Os solos mais ricos eram reservados para a cultura de maior rentabilidade económica (o trigo, a cana de açúcar, o pastel), enquanto os medianos ficavam para os produtos hortícolas e frutícolas, ficando os mais pobres como pasto e área de apoio aos dois primeiros. A Madeira, que se encontrava a pouco mais de meio século de existência como sociedade insular, tinha em condições de oferecer os contingentes de colonos habilitados para a abertura de novas arroteias e ao lançamento de novas culturas nas ilhas e terras vizinhas. Assim terá sucedido com o transplante da cana-de-açúcar para Santa Maria, S. Miguel, Terceira, Gran Canária, Tenerife, Santiago, S. Tomé e Brasil. A tendência uniformizadora da economia agrícola do espaço insular esbarrou com vários obstáculos que, depois, conduziram a um reajustamento da política económica e à definição da complementaridade entre os mesmos arquipélagos ou ilhas. As ilhas conseguiram criar no seu seio os meios necessários para solucionar os problemas quotidianos - assentes quase sempre no assegurar os componentes da dieta alimentar -, à afirmação nos mercados europeu e atlântico. Assim sucedeu com os cereais que, produzidos foram suficientes, em condições normais, para satisfazer as necessidades da dieta insular, sobrando um grande excedente para suprir as carências do reino. Um dos iniciais objectivos que norteou o povoamento da Madeira foi a possibilidade de acesso a uma nova área produtora de cereais, capaz de suprir as carências do reino e depois as praças africanas e feitorias da costa da Guiné. A última situação era definida por aquilo que ficou conhecido como o saco de Guiné. Entretanto os interesses em torno da cultura açucareira recrudesceram e a aposta na cultura era óbvia. A mudança só se tornou possível quando se encontrou um mercado substitutivo. Sucedeu assim nos Açores que, a partir da segunda metade do século dezasseis, passaram a assumir o lugar da Madeira. O cereal foi o produto que conduziu a uma ligação harmoniosa dos espaços insulares, o mesmo não sucedendo com o açúcar, o pastel e o vinho, que foram responsáveis pelo afrontamento e a crítica desarticulação dos mecanismos económicos. A par disso todos os produtos foram a garantia do domínio europeu na economia insular. Primeiro o açúcar, depois o pastel e o vinho exerceram uma acção devastadora no equilíbrio latente na economia das ilhas. A incessante procura e rendoso negócio conduziu à plena afirmação, quase que exclusiva dos produtos, geradora da dependência ao mercado externo. Para além de consumidor exclusivo das culturas é o principal fornecedor dos produtos ou artefactos de que os insulares carecem. Perante isto qualquer eventualidade que pusesse em causa o sector produtivo era o prelúdio da estagnação do comércio é o prenúncio de dificuldades, que desembocavam quase sempre na fome. A estrutura do sector produtivo de cada ilha moldou-se de acordo com isto, podendo definir-se em componentes da dieta alimentar (cereais, vinha, hortas, fruteiras, gado) e troca comercial (pastel, açúcar). Em consonância com a actividade agrícola verificou-se a valorização dos recursos disponibilizados por cada ilha, que integravam a dieta alimentar (pesca e silvicultura) ou as trocas comerciais (urzela, sumagre, madeiras). A CONTEXTUALIDADE ATLÂNTICA. A ilha da Madeira... que Deus pôs no mar ocidental para escala, refúgio, colheita e remédio dos navegantes, que de Portugal e de outros regnos vão, e de outros portos e navegações vêm para diversas partes, além dos que para ela somente navegam, levando-lhe mercadorias estrangeiras e muito dinheiro para se aproveitar do retorno que dela levam para suas terras....(Gaspar Frutuoso, Livro Segundo das Saudades da Terra, P. Delgada, 1979, pp.99100) A valorização do Atlântico nos séculos XV e XVI conduziu a um intrincado liame de rotas de navegação e de comércio que ligavam o Velho Continente ao litoral atlântico. A multiplicidade de rotas resultou das complementaridades económicas e de formas de exploração adoptadas. Se é certo que estes vectores geraram as referidas rotas, não é menos certo que as condições mesológicas do oceano, dominadas pelas correntes, ventos e tempestades, delinearam o rumo. As mais importantes e duradouras de todas as traçadas neste mar foram sem dúvida a da Índia e a das Índias, que galvanizaram as atenções dos monarcas, da população europeia e insular, dos piratas e corsários. No traçado de ambas situava-se o Mediterrâneo Atlântico com actuação primordial na manutenção e apoio à navegação atlântica. As ilhas da Madeira e das Canárias surgem nos séculos XV e XVI como entreposto para o comércio no litoral africano, americano e asiático. Os portos principais da ilha da Madeira, Gran Canaria, La Gomera, Hierro, Tenerife e Lanzarote animam-se de forma diversa com o apoio à navegação e comércio nas rotas da ida, enquanto nos Açores, com as ilhas de Flores, Corvo, Terceira, e S. Miguel, surgem como a escala da rota de retorno. Segundo Pierre Chaunu a rota das Índias de Castela assentou em quatro vértices fundamentais: Sevilha, Canárias, Antilhas, Açores178. A Madeira mantinha-se numa posição excêntrica, pois apenas servia as rotas portuguesas do Brasil e da costa africana. A participação madeirense na carreira das Índias foi esporádica, justificando-se a ausência pela posição marginal em relação à rota. A Madeira representa um porto de escala muito importante para as navegações portuguesas para o Brasil, Golfo da Guiné e Índia. Desde o século XV que ficou demarcada a posição da escala madeirense para as explorações geográficas e comerciais dos portugueses na costa ocidental africana. A opção madeirense adveio dos conflitos latentes com Castela pela posse das Canárias. A expansão comercial de finais do século XV, com a abertura da rota do Cabo, veio valorizar mais uma vez a escala aquém equador, surgindo inúmeras referências, em roteiros e relatos de viagens, à escala madeirense. Os mesmos ingleses que utilizaram as Canárias tocavam com assiduidade a Madeira, onde se proviam de vinho para a viagem. A Madeira, como as Canárias, muito raramente foi escolhida como escala de retorno - uma vez que a missão estava, por condicionalismos geográficos, reservada aos Açores. Ocasionalmente a escala das embarcações vindas da Mina Índias e Índias na Madeira. A posição do Mediterrâneo Atlântico no comércio e na navegação atlântica fez com que as coroas peninsulares investissem aí todas as tarefas de apoio, defesa e controlo do trato comercial. As ilhas eram os bastiões avançados, suportes e símbolos da hegemonia peninsular no Atlântico. A disputa da riqueza em movimento no oceano foi na área definida por elas, pois para aí incidiam piratas e corsários ingleses, franceses e holandeses, ávidos das riquezas em circulação nas rotas americanas e índicas. Uma das maiores preocupações das coroas peninsulares terá sido a defesa das embarcações que sulcavam o Atlântico em relação às investidas dos corsários europeus. A área definida pela Península Ibérica, Canárias e Açores era o principal foco de intervenção do corso europeu sobre os navios que transportavam açúcar ou pastel ao velho continente. A definição dos espaços políticos fez-se, primeiro de acordo com os paralelos e, depois, com o avanço dos descobrimentos para Ocidente, no sentido dos meridianos. A expressão disso resultava apenas da conjuntura favorável e do acatamento da situação pelos demais estados europeus. Mas o oceano e terras circundantes podiam ainda subdividir-se em novos espaços 178 . Sevilla y América. Siglos XVI y XVII, 43-48. de acordo com o protagonismo económico. Assim podemos situar, dum lado ilhas orientais e ocidentais e do outro o litoral dos continentes americano e africano. A partilha não foi resultado de um pacto negocial, mas sim da confluência das potencialidades económicas de cada uma das áreas em causa. Neste contexto assumiram particular importância as condições internas e externas de cada área. As primeiras foram resultado dos aspectos geo-climáticos, enquanto as últimas derivam dos vectores definidos pela economia europeia. A partir da maior ou menor intervenção de ambas as situações estaremos perante espaços agrícolas, vocacionados para a produção de excedentes capazes de assegurar a subsistência dos que haviam saído e dos que ficaram na Europa, de produtos adequados a um activo sistema de trocas intercontinentais, que mantinha uma forte vinculação do velho ao novo mundo. O açúcar e o pastel foram os produtos que deram corpo à conjuntura. De acordo com isso podemos definir múltiplos e variados espaços agro-mercantis: áreas agrícolas orientadas para as trocas com o exterior e para assegurar a subsistência dos residentes; áreas de intensa actividade comercial, vocacionadas para a prestação de serviços de apoio, como escalas ou mercados de troca. No primeiro caso incluem-se as ilhas orientais e ocidentais e a franja costeira da América do Sul, conhecida como Brasil. No segundo, merecem referência as ilhas que, mercê da posição ribeirinha da costa (Santiago e S. Tomé), ou do posicionamento estratégico no traçado das rotas oceânicas (como sucede com as Canárias, Santa Helena e Açores), fizeram depender o processo económico disso. A estratégia de domínio e valorização económica do Atlântico passava necessariamente pelos pequenos espaços que polvilham o oceano. Foi nos arquipélagos (Canárias e Madeira) que se iniciou a expansão atlântica e foi aí que a Europa assentou toda a estratégia de desenvolvimento económico nos séculos XV e XVI. Ninguém melhor que os portugueses entendeu a realidade, definindo para o empório lusíada um carácter anfíbio. Ilhas desertas ou ocupadas, bem ou mal posicionadas para a navegação foram os verdadeiros pilares do mundo português no Atlântico. A definição dos espaços económicos não resultou apenas dos interesses políticos e económicos derivados da conjuntura expansionista européia, mas também das condições internas, oferecidas pelo meio. Isto é por demais evidente quando estamos perante um conjunto de ilhas dispersas no oceano. No conjunto estávamos perante ilhas com a mesma origem geológica, sem quaisquer vestígios de ocupação humana, mas com diferenças marcantes ao nível climático. Os Açores apresentavam-se como uma zona temperada, a Madeira como uma réplica mediterrânica, enquanto nos dois arquipélagos meridionais eram manifestas as influências da posição geográfica na definição de um clima tropical seco ou equatorial. Daqui resultou a diversidade de formas de valorização económica e social. Para os europeus a Madeira e os Açores ofereciam melhores requisitos, pelas semelhanças do clima com o de Portugal, do que Cabo Verde ou S. Tomé. Nos dois últimos arquipélagos foram inúmeras as dificuldades de adaptação do homem e das culturas europeiomediterrânicas. Aí deu-se lugar ao africano e as culturas mediterrânicas de subsistência foram substituídas pelas trocas na vizinha costa africana. A preocupação pelo aproveitamento dos recursos locais surge num segundo momento. Por fim é necessário ter em conta que as condições morfológicas estabeleceram as especificidades de cada ilha e tornaram possível a delimitação do espaço e forma de aproveitamento económico. O relevo costeiro foi importante pois, as possibilidades de acesso ao exterior através de bons ancoradouros, era um factor importante. A partir daqui se torna compreensível a situação da Madeira, definida pela excessiva importância da vertente sul em detrimento do norte, como ao facto de Fernando Pó ser preterida em favor de S. Tomé. Estávamos perante a plena dominância do litoral como área privilegiada de fixação ainda que, por vezes, o não fosse em termos económicos. Nas ilhas em que as condições orográficas propiciavam uma fácil penetração no interior, como sucedeu em S. Miguel, Terceira, Graciosa, Porto Santo, Santiago e S. Tomé, a presença humana alastrou até aí e gerou os espaços arroteados. Para as demais a omnipresença do litoral é evidente e domina a vida dos insulares, sendo o mar a via privilegiada. Os exemplos da Madeira e S. Jorge são paradigmáticos. As condições geo-climáticas definiram a mancha de ocupação humana e agrícola das ilhas, conduzindo a uma variedade de funções económicas, por vezes, complementares. Nos arquipélagos constituídos por maior número de ilhas a articulação dos vectores da subsistência com os da economia de mercado foi mais harmoniosa não causando grandes desequilíbrios. Os Açores apresentam-se como a expressão perfeita da realidade, enquanto a Madeira pode ser considerada o reverso da medalha. A mudança de centros de influência levou a que os arquipélagos atlânticos assumissem uma função importante. Poderá juntar-se a presença de gentes ribeirinhas do Mediterrâneo, interessadas em estabelecer os produtos de troca e o necessário suporte financeiro. A constante premência do Mediterrâneo nos primórdios da expansão atlântica poderá ser responsabilizada pela dominante mercantil das novas experiências de arroteamento. Certamente que os povos peninsulares e mediterrânicos, ao comprometerem-se com o processo atlântica, não puseram de parte a tradição agrícola e os incentivos comerciais dos mercados de origem. Por isso, na bagagem dos primeiros cabouqueiros insulares foram imprescindíveis cepas, socas de cana, alguns grãos do precioso cereal, de mistura com artefactos e ferramentas. A afirmação das áreas atlânticas resultou do transplante material e humana de que os peninsulares foram os principais obreiros. O processo foi a primeira experiência de ajustamento das arroteias às directrizes da nova economia de mercado. A aposta foi numa agricultura capaz de suprir as faltas do velho continente, quer os cereais, quer o pastel e açúcar, do que o usufruto das novidades propiciadas pelo meio. Assim, em Cabo Verde e São Tomé onde as dificuldades de implantação das culturas de subsistência europeia não foram facilmente compensadas com a oferta dos produtos africanos como o milho zaburro e inhames. Em Cabo Verde, cedo se reconheceu a impossibilidade da rendosa cultura dos canaviais, mas tardou em valorizar-se o algodão como produto substitutivo, tal era a obsessão pelo açúcar e trocas na costa da Guiné. A sociedade e economia insulares surgem na confluência dos vectores externos com as condições internas do multifacetado mundo insular. A concretização não foi simultânea nem obedeceu aos mesmos princípios organizativos pelo facto de resultar da partilha pelas coroas peninsulares e senhorios ilhéus. Por outro lado a economia insular resultou da presença de vários factores que intervêm directamente na produção e comércio. Não basta dispor de solo fértil ou de produtos de permanente procura, pois a isso deverão associar-se os meios propiciadores do escoamento e a existência de técnicas e meios de troca, adequados ao nível mercantil atingido pelos circuitos comerciais. Deste modo, para conhecermos os aspectos produtivos e de troca das economias insulares torna-se necessária a referência aos factores que estão na origem. Quanto ao sector produtivo deverá ter-se em conta a importância assumida, por um lado, pelas condições geofísicas e, por outro, pela política régia de distribuição das culturas. É desta conjugação que se estabelece a necessária hierarquia. Os solos mais ricos eram reservados para a cultura de maior rentabilidade económica (o trigo, a cana de açúcar, o pastel), enquanto os medianos ficavam para os produtos hortícolas e frutícolas, e os mais pobres para pasto e área de apoio às primeiras actividades. A esta hierarquia definida pelas condições do solo e persistência do mercado podemos adicionar, no caso da Madeira, outra de acordo com a geografia da ilha e os microclimas que a mesma gera. O arquipélago açoriano e as demais ilhas na área da Guiné surgem numa época tardia, sendo o processo de valorização económica atrasado mercê de vários factores de ordem interna a que não são alheias as condições mesológicas. O clima e solo áridos, num lado, sismos e vulcões, no outro, eram um cartaz pouco aliciante para os primeiros povoadores. Em ambos os casos o lançamento da cultura da cana sacarina esteve ligado aos madeirenses. A Madeira, que se encontrava a pouco mais de meio século de existência como sociedade insular estava em condições de oferecer os contingentes de colonos habilitados para a abertura de novas arroteias e ao lançamento de novas culturas nas ilhas e terras vizinhas. Assim terá sucedido com o transplante da cana-de-açúcar para Santa Maria, S. Miguel, Terceira, Gran Canária, Tenerife, Santiago, S. Tomé e Brasil. A tendência uniformizadora da economia agrícola do espaço insular esbarrou com vários obstáculos que conduziram a um reajustamento da política económica e à definição da complementaridade entre os mesmos arquipélagos ou ilhas, através de soluções assentes, quase sempre, no assegurar os componentes da dieta alimentar, e em corresponder à afirmação nos mercados europeu e atlântico. Foi o que sucedeu com os cereais que, produzidos apenas nalgumas ilhas, foram suficientes, em condições normais, para satisfazer as necessidades da dieta insular, sobrando um excedente para suprir as carências do reino. Um dos objectivos que norteou o povoamento da Madeira foi a possibilidade de acesso a uma nova área produtora de cereais, capaz de suprir as carências do reino e depois das praças africanas e feitorias da Costa da Guiné, conhecida como o "saco de Guiné". Os interesses em torno da cultura açucareira recrudesceram e a aposta na cultura era óbvia. A mudança só se tornou possível quando se encontrou um mercado substitutivo para o abastecimento de cereal. Sucedeu assim com os Açores que a partir da segunda metade do século dezasseis passaram a assumir o lugar da Madeira. O cereal foi o único produto que conduziu à ligação harmoniosa entre os espaços insulares, o mesmo não sucedendo com o açúcar, o pastel e o vinho, que foram responsáveis pelo afrontamento e crítica desarticulação dos mecanismos económicos. A par disso foram o suporte do domínio europeu sobre a economia insular. O açúcar, o pastel e o vinho exerceram acção devastadora no equilíbrio latente na economia das ilhas. Diferente foi o que sucedeu aos colonos portugueses quando chegaram a Santiago e S. Tomé. Aqui houve necessidade de estruturar de forma diversa o povoamento das ilhas e as culturas a implantar. O recurso aos africanos, como escravos ou não, foi solução mais acertada para transpor o primeiro obstáculo. A alimentação era diferente, baseada no milho zaburro, no arroz e inhame, culturas que aí, nas ilhas ou vizinha costa africana, medravam com facilidade. Perante isto os poucos europeus que aí se fixaram estiveram sempre dependentes do trigo, biscoito ou farinha, enviados das ilhas ou do reino, ou foram obrigados a adaptar-se à dieta africana. A dependência dos espaços continentais, com especial destaque para o europeu, não foi apenas apanágio dos primórdios da ocupação das ilhas. A situação persistiu por mais de quatro séculos, mantendo-se as ilhas na periferia da economia europeia e do mercado colonial, actuando de acordo com os ditames da política colonial. As culturas dominantes quase sempre em sistema de monocultura obedeceram a estes requisitos. Sucedeu assim com os panos e a cana sacarina em Cabo Verde, com o cacau em S. Tomé e Príncipe, com a laranja nos Açores e o vinho na Madeira. A segunda metade do século XIX pode ser considerada como uma das fases mais conturbadas da economia insular. Aqui é evidente a capacidade da ilha de S. Miguel no reajustamento da economia. A crise da laranja é prontamente suplantada com a aposta numa variedade de culturas (batata doce, chá tabaco, e ananás) e indústrias (tabaco, álcool). O reajustamento do processo de exploração agrícola é parceiro de uma discussão política sobre a forma de acabar com os entraves ao desenvolvimento económico. As orientações vão desde a discussão do sistema tradicional de propriedade ao novo regime de portos francos. ROTAS E MERCADOS. As ilhas assumiram um papel evidente no traçado das rotas comerciais atlânticas, sendo os principais pilares. A posição estratégica no meio do Atlântico valorizou-se nas transacções oceânicas. Ao mesmo tempo a riqueza reforçou a vinculação ao velho continente através da exploração desenfreada dos recursos ou da imposição de culturas destinadas ao mercado europeu, como foi o caso da cana sacarina e pastel. Mais a Sul as feitorias de Santiago, Príncipe e S. Tomé, para além de centralizarem o tráfico comercial em cada arquipélago, firmaram-se como os principais entrepostos de comércio com o litoral africano. Santiago manteve, até meados do século dezasseis o controlo do trato da costa da Guiné e das ilhas do arquipélago com o exterior. E foi também o centro de redistribuirão dos artefactos e mantimentos europeus e de escoamento do sal, chacinas, courama, panos e algodão. Enquanto a primeira situação, com o evoluir da conjuntura económica, foi perdendo importância, a segunda manteve-se por muito tempo, definindo uma trama complicada de rotas. O relacionamento entre as ilhas dos três arquipélagos atlânticos resultava não só da complementaridade económica, definida pelas assimetrias propiciadas pela orografia e clima, mas também da proximidade e assiduidade dos contactos. O intercâmbio de homens, produtos e técnicas, dominaram o sistema de contactos entre os arquipélagos. A Madeira, mercê da posição privilegiada entre os Açores e as Canárias e do parcial alheamento das rotas indica e americana, apresentava melhores possibilidades para o estabelecimento e manutenção de intercâmbios. Os contactos com os Açores resultaram da forte presença madeirense na ocupação e da necessidade de abastecimento em cereais, que o arquipélago dos Açores era um dos principais produtores. Com as Canárias as imediatas ligações foram resultado da presença de madeirenses, ao serviço do infante D. Henrique, na disputa pela posse do arquipélago e da atracção que elas exerceram sobre os madeirenses. Tudo isto contrastava com as hostilidades açorianas à rota de abastecimento de cereais à Madeira. Acresce, ainda, que o Funchal foi por muito tempo um porto de apoio aos contactos entre as Canárias e o velho continente. A assiduidade de contactos entre os arquipélagos, evidenciada pela permanente corrente emigratória, define-se como uma constante do processo histórico dos arquipélagos, até ao momento que o afrontamento político ou económico os veio separar. A última situação emerge na segunda metade do século dezassete como resultado da concorrência do vinho produzido, em simultâneo, nos três arquipélagos. O trigo foi, sem dúvida, o principal móbil das conexões interinsulares. O comércio entre a Madeira e as Canárias era muito anterior ao estabelecimento dos primeiros contactos com os Açores. O relacionamento iniciara-se em meados do século quinze, activado pela disponibilidade no arquipélago de escravos, carne, queijo e sebo. Mas a insistência dos madeirenses nos contactos com as Canárias não terá sido do agrado ao infante D. Fernando, senhor da ilha, interessado em promover os contactos com os Açores. Apesar disso continuaram e a rota adquiriu um lugar relevante nas relações externas da ilha, valendo-lhe a disponibilidade de cereal e carne, que eram trocados por artefactos, sumagre e escravos negros. A última situação surge, na primeira metade do século dezassete com evidência nos contactos entre a Madeira, Lanzarote e Fuerteventura. Algo diferente sucedeu nos contactos comerciais entre os Açores e as Canárias, que nunca assumiram a mesma importância das madeirenses. A pouca facilidade nas comunicações, a distância entre os dois arquipélagos e a dificuldade em encontrar os produtos justificativos de intercâmbio fizeram com que as trocas fossem sazonais. Só as crises cerealíferas do arquipélago de Canárias fizeram com que o trigo açoriano aí chegasse em 1563 e 1582. Por vezes a permuta fazia-se a partir da Madeira, como sucedeu em 1521 e 1573. A contrapartida de Canárias baseava-se no vinho, tecidos europeus e o breu. As relações interinsulares com os arquipélagos além do Bojador situavam-se num plano distinto. Primeiro as dificuldades na ocupação só conduziram ao imediato e pleno povoamento de uma ilha em cada área --Santiago e S. Tomé --, que passou a actuar como o principal eixo do trato interno e externo. Depois, o aproveitamento económico não foi uniforme e de acordo com as solicitações do mercado insular aquém do Bojador, assumindo, por vezes, como sucede com S. Tomé uma posição concorrencial. Por fim, registe-se que os espaços existiam mais para satisfazer as necessidades do vizinho litoral africano do que pela importância económica interna. Do relacionamento com os do Mediterrâneo Atlântico é evidente o empenho dos últimos no tráfico negreiro, nomeadamente para os madeirenses e canarianos179. Os madeirenses que aí aparecem foram favorecidos pelo comprometimento com as viagens de exploração e comércio ao longo da costa africana e da presença, ainda que temporária, do porto do Funchal no traçado das rotas. Ao invés, os Açores mantiveram-se por muito tempo como portos receptores das caravelas que faziam a rota de retorno ao velho continente. Os contactos com as ilhas do golfo da Guiné eram exíguos, uma vez que estiveram por muito tempo aquém dos interesses das gentes do Mediterrâneo Atlântico. Na verdade, se retiramos a eventual presença de madeirenses para transmitir os segredos da cultura açucareira, o aparecimento é tardio e rege-se pela necessidade de capturar escravos nas costas vizinhas, situação comum também com as Canárias. A malagueta, pimenta e marfim não eram produtos capazes de despertarem o interesse das gentes insulares e, além disso, tinha como destino obrigatório a Casa da Mina em Lisboa. O posicionamento periférico do insular condicionou a subjugação do comércio aos interesses hegemónicos do velho continente. Os europeus foram os cabouqueiros, responsáveis pela transmigração agrícola, mas também os primeiros a usufruir a qualidade dos produtos lançados à terra e a desfrutar dos elevados réditos que o comércio propiciou. Daí resultou a total dependência dos espaços insulares ao velho continente, sendo a vivência económica moldada de acordo com as necessidades, que, por vezes, se apresentavam estranhas. Por isso é evidente a preferência pelo velho continente nos contactos com o exterior dos arquipélagos. Só depois surgiram as ilhas vizinhas e os continentes africano e americano. Do velho rincão de origem vieram os produtos e instrumentos necessários para a abertura das arroteias, mas também as directrizes institucionais e comerciais que os materializaram. O usufruto das possibilidades de um relacionamento com outras áreas continentais, no caso do Mediterrâneo Atlântico, foi consequência de um aproveitamento vantajoso da posição geográfica e em 179 . Manuel Lobo Cabrera," Relaciones entre Gran Canaria Africa y América a través de la trata de negros", in II Colóquio de Historia Canario Americana, Las Palmas, 1977, 77-91; idem, La esclavitud en las Canarias orientales en el siglo XVI. negros, moros y moriscos, Las Palmas, 1979, 104-110; Elisa TORRES SANTANA, "El comércio de Gran Canaria con Cabo Verde a principios del siglo XVII", in II Coloquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1990, 761-778. alguns casos uma tentativa de fuga à omnipresente rota europeia. O arquipélago canário, mercê da posição e condições específicas criadas após a conquista, foi dos três o que tirou maior partido do comércio com o Novo Mundo. A proximidade ao continente africano, bem como o posicionamento correcto nas rotas atlânticas, permitiram-lhe a intervir no trato intercontinental. Para os Açores, o facto de as ilhas estarem situadas na recta final das grandes rotas oceânicas possibilitou-lhes algum proveito com a prestação de inúmeros serviços de apoio e eventual contrabando. Fora disso encontrava-se a Madeira, a partir de finais do século XV. Por muito tempo o comércio foi apenas uma miragem e só se tornou realidade quando o vinho começou a ser o preferido dos que embarcaram na aventura americana ou índica. Perante isto o vinho madeirense afirmou-se em pleno a partir da segunda metade do século dezassete. Rumos diferentes tiveram os arquipélagos de S. Tomé e Príncipe e Cabo Verde: a proximidade da costa africana e a permanente actividade comercial definiram a vinculação ao continente africano. Por muito tempo os dois arquipélagos pouco mais foram que portos de ligação da América ou a Europa e as feitorias da costa africana. O comércio das ilhas com o litoral africano, exceptuando o caso de Cabo Verde e S. Tomé, fazia-se com maior assiduidade a partir das Canárias do que da Madeira ou dos Açores. Mesmo assim a Madeira, mercê da posição charneira no traçado das rotas quatrocentistas, teve um papel relevante. Os madeirenses participaram activamente nas viagens de exploração geográfica e comércio no litoral africano, surgindo o Funchal, nas últimas décadas do século XV, como um importante entreposto para o comércio de dentes de elefante. Além disso, a iniciativa madeirense bifurcou-se. Dum lado as praças marroquinas, a quem a ilha forneceu os homens para a defesa, os materiais para a construção das fortalezas e cereais para sustento dos homens aí aquartelados. Do outro a área dos Rios e Golfo da Guiné abastecia-se de escravos, necessários para assegurar a força de trabalho na safra do açúcar. Ao invés do que sucedia com as Canárias, Cabo Verde e S. Tomé, as ilhas dos arquipélagos da Madeira e Açores estiveram até ao século dezassete afastadas do comércio com o continente americano. Restava-lhes aguardar pela chegada das embarcações daí oriundas e aspirar pelo contrabando ou trocas ocasionais. Ao porto do Funchal chegaram algumas embarcações desgarradas. O desvio era considerado pela coroa como intencional, para aí se fazer o contrabando, pelo que foram determinadas medidas proibitivas, de pouca aplicação prática. As ilhas de Santiago e S. Tomé, mercê da proximidade da costa africana, afirmaram-se como importantes entrepostos do trato negreiro africano no século XVI, tendo como principal destino, a partir do século dezasseis, o novo continente americano. A primeira feitoria dominava a vasta área, conhecida como os Rios de Guiné, enquanto a segunda estendia-se desde S. Jorge da Mina até Angola, passando por Axem e Benim. Aqui o povoamento só foi possível à custa de facilidades concedidas aos moradores para o comércio na cobiçada costa. S. Tomé assumiu lugar relevante no comércio do Golfo da Guiné até o último quartel do século dezasseis, sendo a crise, a partir de 1578, resultado do desvio das rotas para o litoral africano. Em Santiago, principal ilha do arquipélago de Cabo Verde e feitoria do comércio dos escravos dos Rios de Guiné, o comércio foi definido por outros rumos. No começo resultou da oferta das produções locais mas depois, com a abertura de novos mercados de escravos, foram solicitações externas que o motivaram. Eles passaram a ser conduzidos, primeiros à Europa e ilhas atlânticas e depois ao Brasil e Antilhas180. Para o último destino o 180 . E. VILA VILAR, Hispano-America y el Comercio de Esclavos. Los Asientos Portugueses, Sevilha, 1977; T. B. DUNCAN, Ob.cit., 198/238. comércio fazia-se sob a forma de contratos entre a coroa e os mercadores. A importância dos mercados no comércio de escravos para o continente americano ficou demonstrada em finais do século dezasseis, altura em que os povos estrangeiros se lançaram ao ataque dos principais entrepostos do tráfico negreiro, com particular relevo para os castelhanos. Os séculos seguintes não foram pautados por mudanças significativas na trama de rotas e mercados. A vinculação aos mercados tradicionais manteve-se e apenas mudaram os produtos propiciadores da troca. Nos Açores o mais significativo será a valorização dos portos de Horta e Ponta Delgada como eixos fundamentais do mercado externo. Enquanto a primeira evidencia a vinculação à América do Norte o segundo vê reforçada a posição com os mercados nórdicos. As mudanças mais significativas ocorreram nos arquipélagos de S. Tomé e Príncipe e Cabo Verde. A abolição do trato negreiro a partir de 1811 acabou com a tradição dependência dos arquipélagos ao mercado africano e a rota de ligação ao outro lado do Atlântico e conduziu a um reforço da presença e vinculação à metrópole. Toda a exploração económica foi orientada no sentido do fornecimento de produtos e matérias-primas indispensáveis ao desenvolvimento industrial da metrópole que, por sua vez, os abastecia de produtos manufacturados181. OS PIRATAS E CORSÁRIOS. O século quinze marca o início da afirmação do Atlântico, novo espaço oceânico revelado pelas gentes peninsulares. O mar, que até meados do século catorze se mantivera alheio à vida do mundo europeu, atraiu as atenções e em pouco tempo veio substituir o mercado e via mediterrâneos. Os franceses, ingleses e holandeses que, num primeiro momento, foram apenas espectadores atentos, entraram também na disputa a reivindicar um mare liberum e o usufruto das novas rotas e mercados. Nestas circunstâncias o Atlântico não foi apenas o mercado e via comercial, por excelência, da Europa, mas também um dos principais palcos em que se desenrolaram os conflitos que definiam as opções políticas das coroas europeias, expressas muitas vezes na guerra de corso. Em 1434, ultrapassado o Bojador, o principal problema não estava no avanço das viagens, mas sim na forma de assegurar a exclusividade a partir daí, já que na área aquém deste limite isso não fora conseguido. Primeiro foi a concessão em 1443 ao infante D. Henrique do controlo exclusivo das navegações e o direito de fazer guerra a sul do mesmo cabo. Depois a procura do beneplácito papal, na qualidade de autoridade suprema estabelecida pela "res publica christiana" para tais situações182. A presença de estrangeiros foi considerada um serviço ao Infante, como sucedeu com Cadamosto, António da Noli, Usodimare, Valarte e Martim Behaim, ou uma forma de usurpar o domínio e afronta ao papado. Os castelhanos, a partir da década de setenta, intervêm na Costa da Guiné como forma de represália às pretensões portuguesas pela posse das Canárias. Não obstante as medidas repressivas, definidas em 1474 contra os intrusos no comércio da Guiné, a presença castelhana continuará a ser um problema de difícil solução, alcançada apenas com cedências mútuas através do tratado exarado em 1479 em Alcáçovas e depois confirmado a 6 de Março do ano seguinte em Toledo. À partilha do oceano, de acordo 181 Elisa Silva ANDRADE, As Ilhas de Cabo Verde da *Descoberta+ à Independência Naciona(1460-1975), Lisboa, Paris, 1996: Armando de CASTRO, O Sistema Colonial Português em África(meados do século XX), Lisboa, 1980. 182 .As bulas de Eugénio IV (1445), Nicolau V (1450 e 1452) preludiaram o que veio a ser definido pela célebre bula "Romanus Pontifex" de 8 de Janeiro de 1454 e "inter coetera" de 13 de Março de 1456. Nela se legitimava a posse exclusiva aos portugueses dos mares além do Bojador pelo que a sua ultrapassagem para nacionais e estrangeiros só seria possível com a anuência do infante D.Henrique. com os paralelos, sucedeu mais tarde outra no sentido dos meridianos, provocada pela viagem de Colombo. O encontro do navegador em Lisboa com D. João II, no regresso da primeira viagem, despoletou, de imediato, o litígio diplomático, uma vez que o monarca português entendia estarem as terras descobertas na área de domínio. O conflito só encontrou solução com o tratado assinado em 7 de Julho de 1494 em Tordesilhas e ratificado pelo papa Júlio II em 24 de Janeiro de 1505. A partir de então ficou estabelecida uma nova linha divisória do oceano, a trezentos e setenta léguas de Cabo Verde. Estavam definidos os limites do mar ibérico. Para os demais povos europeus só lhes restava uma reduzida franja do Atlântico, a Norte, e o Mediterrâneo. Mas tudo isto seria verdade se fosse atribuída força de lei internacional às bulas papais e às opções das coroas peninsulares, o que na realidade não sucedia. O cisma do Ocidente, por um lado, e a desvinculação de algumas comunidades da alçada papal, por outro, retiraram aos actos jurídicos a medieval plenitude "potestatis". Em oposição à doutrina definidora do mare clausum antepõe-se a do mare liberum, que teve em Grócio o principal teorizador. A última visão da realidade oceânica norteou a intervenção de franceses, holandeses e ingleses183. A guerra de corso foi a principal resposta e teve uma incidência preferencial nos mares circunvizinhos do Estreito de Gibraltar e ilhas, e levou ao domínio de múltiplos espaços de ambas as margens do Atlântico. Podemos definir dois espaços de permanente intervenção: os Açores e a Costa da Guiné e da Malagueta. Os ingleses iniciaram em 1497 as incursões no oceano, ficando célebres as viagens de W. Hawkins (1530), John Hawkins (1562-1568) e Francis Drake (1578, 1581-1588). Entretanto os franceses fixaram-se na América, primeiro no Brasil (1530, 1555-1558), depois em San Lorenzo (1541) e Florida (1562-1565). Os huguenotes de La Rochelle afirmaram-se como o terror dos mares, tendo assaltado em 1566 a cidade do Funchal. A última forma de combate ao exclusivismo do atlântico peninsular foi a que ganhou maior adesão dos estados europeus no século XVI. A partir de princípios da centúria o principal perigo para as caravelas não resultou das condições geo-climáticas, mas sim da presença de intrusos, sempre disponíveis para as assaltar. A navegação foi dificultada e as rotas comerciais tiveram de ser adequadas à nova realidade. Surgiu a necessidade de artilhar as embarcações e de uma armada para as comboiar até porto seguro. As insistentes reclamações, nomeadamente dos vizinhos de Santiago em Cabo Verde, levaram a coroa a estabelecer armadas para protecção e defesa das áreas e rotas de comércio: armada da costa ocidental do reino, do litoral algarvio, dos Açores, da costa e golfo da Guiné, do Brasil184. Cedo os franceses começaram a infestar os mares próximos da Madeira (1550, 1566), Açores (1543, 1552-53, 1572) e Cabo Verde, e depois os ingleses e holandeses seguiram-lhe o encalço. Os primeiros fizeram incidir a acção nos arquipélagos da Madeira e Açores, patente na primeira metade do século XVI, pois em Cabo Verde apenas se conhecem alguns assaltos em 1537-1538 e 1542. Os navegantes do norte escolhiam os mares ocidentais ou a área do Golfo e costa da Guiné, tendo os das ilhas de Santiago e S. Tomé o principal centro de operações. Nos arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé, ao perigo inicial dos castelhanos e franceses, vieram juntar-se os ingleses e, fundamentalmente, os holandeses. Na década de sessenta o corso inglês era aí exercido por John Hawkins e John Lovell. Os ingleses não 183 . Frei Serafim de Freitas, Do Justo Império Asiático dos Portugueses, vol. I, Lisboa, 1960. . Vitorino Magalhães Godinho, "As incidências da pirataria e da concorrência na economia marítima portuguesa no século XVI", in Ensaios II, Lisboa, 1978, pp. 186-200. 184 macularam a Madeira, onde tinham uma importante comunidade residente e empenhada no comércio atlântico, fazendo incidir a acção nos Açores (1538, 1561, 1565, 1572) e Cabo Verde. A presença de corsários nos mares insulares deve ser articulada, por um lado, de acordo com a importância que as ilhas assumiram na navegação atlântica e, por outro, pelas riquezas que geraram, despertadoras da cobiça de estranhos. Mas, se estas condições definem a incidência dos assaltos, os conflitos políticos entre as coroas europeias justificam-nos à luz do direito da época. Deste modo na segunda metade do século XV o afrontamento entre as coroas peninsulares definiu a presença dos castelhanos na Madeira ou em Cabo Verde, enquanto os conflitos entre as famílias régias europeias atribuíam a legitimidade necessária às iniciativas, fazendo-as passar de mero roubo a acção de represália: primeiro, desde 1517, o conflito entre Carlos V de Espanha e Francisco I de França, depois a partir de 1580 os problemas decorrentes da união ibérica, que foi um dado mais no afrontamento das coroas castelhana e inglesa, despoletado a partir de 1557. São evidentes os esforços da diplomacia europeia no sentido de conseguir solução para as presas do corso. Portugal e França haviam acordado em 1548 a criação de dois tribunais de arbitragem, cuja função era anular as autorizações de represália e cartas de corso. Mas a existência não teve reflexos evidentes na acção dos corsários. É precisamente em 1566 que tivemos o mais importante assalto francês a um espaço português. Em Outubro de 1566 Bertrand de Montluc ao comando de uma armada composta de três embarcações perpetrava um dos mais terríveis assaltos à vila Baleira e à cidade do Funchal. Acontecimento parecido só o dos argelinos em 1616 no Porto Santo e Santa Maria, ou dos holandeses em S. Tomé. A incessante investida de corsários no mar e em terra firme criou a necessidade de definir uma estratégia de defesa adequada. No mar optou-se por artilhar as embarcações comerciais e a criação de uma armada de defesa das naus em trânsito, conhecida como a armada das ilhas, fixa nos Açores e que daí procedia ao comboiamento das naus até porto seguro. Em terra foi o delinear de uma incipiente linha de defesa dos principais portos, ancoradouros e baías, capaz de travar o possível desembarque dos intrusos. O espaço insular não poderá considerar-se uma fortaleza inexpugnável, pois a disseminação por ilhas, servidas de uma extensa orla costeira impossibilitou uma iniciativa concertada de defesa. Qualquer das soluções que fosse encarada, para além de ser muito onerosa, não satisfazia uma necessária política de defesa. Perante isto era sempre protelada até que surgissem ameaças capazes de impelir a concretização. O sistema de defesa costeiro surge com a dupla finalidade: desmobilizar ou barrar o caminho ao invasor e de refúgio para populações e haveres. Por isso tivemos a construção de fortalezas após uma ameaça e nunca de uma acção preventiva, pelo que após qualquer assalto de grandes proporções sucedia, quase sempre, uma campanha para fortificar os portos e localidades e organizar as milícias e ordenanças. A instabilidade provocada pela permanente ameaça dos corsários, a partir do último quartel do século XV, condicionou o delineamento de um plano de defesa do arquipélago, assente numa linha de fortificação costeira e de um serviço de vigias e ordenanças. Até ao assalto de 1566 pouca ou nenhuma atenção foi dada à questão ficando a ilha e as gentes entregues à sua sorte. Em termos de defesa este assalto teve o mérito de empenhar a coroa e os locais na definição de um adequado plano de defesa. O assalto francês de 1566 veio a confirmar a ineficácia das fortificações existentes e a reivindicar uma maior atenção das autoridades. Assim realmente aconteceu, pois pelo regimento de 1572185 foi estabelecido um plano de defesa a ser executado por Mateus Fernandes, fortificador e mestre-de-obras. Daqui resultou o reforço do recinto abaluartado da fortaleza velha, a construção de outra junto ao pelourinho e de um lanço de muralha entre as duas e o Castelo de S. Filipe do Pico (1582-1637)186. O plano de defesa das ilhas açorianas começou a ser esboçado em meados do século dezasseis por Bartolomeu Ferraz, como forma de resposta ao recrudescimento do corso, mas só teve plena concretização no último quartel da centúria. Bartolomeu Ferraz apresentou à coroa o rastreio: as ilhas, de S. Miguel, Terceira, S. Jorge, Faial e Pico, expostas a qualquer eventualidade de corsários ou hereges; os portos e vilas clamavam por mais adequadas condições de segurança. Segundo ele os açorianos deveriam estar preparados para isso, pois "ome percebido meo combatido". Daí terá resultado a reorganização do sistema de defesa levado a cabo por D. João III e D. Sebastião. Foram eles que reformularam o sistema de vigilância e defesa através de novos regimentos. A construção do castelo de S. Brás em Ponta Delgada e, passados vinte anos, do castelo de S. Sebastião no Porto de Pipas (em Angra) e de um baluarte na Horta, eis os resultados mais evidentes da política defensiva. Pior foi o estado em que permaneceram as ilhas da costa e golfo da Guiné, pois as insistentes acções de piratas e corsários não foram suficientes para demover os insulares e autoridades a avançar com um adequado sistema defensivo. São poucas as referências à defesa, mas o suficiente para atestar a precariedade. Em S. Tomé começou a erguer-se a primeira fortaleza na Povoação com o capitão Álvaro Caminha, que lhe chamava apenas torre, concluída com o seu sucessor Fernão de Melo. No tempo de D. Sebastião, por força das investidas de corsários franceses, -ficou célebre o de 1567— tivemos a construção da fortaleza de São Sebastião, concluída em 1576 e reformulada em 1596. Todavia, tornou-se ineficaz no assalto holandês de 1599 pelo que se ergueu outra de apoio em Nossa Senhora da Graça. Em Cabo Verde o empenho na defesa das povoações e portos costeiros tardou uma vez que o principal alvo dos corsários, nomeadamente franceses, estava no mar. Mais do que construir fortalezas havia necessidade de limpar os mares e rotas da presença dos intrusos. Para isso, e correspondendo aos pedidos incessantes dos moradores, a coroa criou uma armada para guarda e defesa do mar e costa. A petição dos moradores da Ribeira Grande em 1542 apontava a necessidade de apetrechar o porto da cidade com um sistema de defesa adequado. Os assaltos de Francis Drake a Santiago (1578 e 1585) levaram à construção de uma fortaleza na Ribeira Grande apoiada por um lanço de muralha, no período filipino. As mudanças no domínio político e económicas operadas ao longo dos séculos dezoito e dezanove não retiraram às ilhas a função primordial de escala e espaço de disputa do mar oceano. A frequência de embarcações manteve-se enquanto o corso ficou marcado por uma forte escalada, entre finais da primeira centúria e princípios da seguinte. Aos tradicionais corsários de França, Inglaterra, Holanda vieram juntar-se os americanos do Norte e Sul. A presença dos holandeses na disputa rege-se por condições específicas. Eles, porque detinham importantes interesses na cultura açucareira americana, procuravam assegurar o domínio de S. Tomé, Santiago e demais feitorias do comércio de escravos. A isso se juntava o empenho na manutenção das rotas do tráfico e destruir os interesses açucareiros da área. Em 1598 foi o ataque a Santiago e no ano imediato a S. Tomé. Na última destruíram todos os engenhos em actividade. Mais tarde, com a ocupação da Baía e Pernambuco, os holandeses voltaram-se de novo para a Guiné para dominarem as rotas do comércio dos escravos. Daqui resultou a 185 186 . Rui Carita, O Regimento de Fortificação de D. Sebastião(1572), Funchal, 1984. Saudades da Terra, livro segundo, 109-110. passagem em 1624 e 1625 de duas armadas para a Baía, com o objectivo de aí tomar posição, retornando depois em 1628 para conquistar Santiago e em 1641 para ocupar S. Tomé e Angola. Nas últimas áreas mantiveram se até 1648, momento em que foram expulsos pelos portugueses. Perante a incessante investida de corsários no mar e em terra firme houve necessidade de definir uma estratégia de defesa adequada. No mar optou-se pelo necessário artilhamento das embarcações comerciais e pela criação de uma armada de defesa das naus em trânsito. Esta ficou conhecida como a armada das ilhas, fixa nos Açores e que daí procedia ao comboiamento das naus até porto seguro. Em terra foi o delinear de uma incipiente linha de defesa dos principais portos, ancoradouros e baías, capaz de travar o possível desembarque destes intrusos. A partir da década de 70 e até aos princípios do século seguinte os conflitos que têm como palco o continente europeu e americano alargaram-se ao Atlântico. Aliás, o oceano é um activo protagonista das disputas entre os três principais beligerantes: Espanha, França e Inglaterra. Por isso Mário Hernandez Sánchez-Barba187 define o século XVIII por três realidades: guerra, diplomacia e comércio. Entre elas existe uma perfeita sintonia. A tudo isto junta-se a permanente preocupação com a organização militar e a defesa da costa, porque o perigo espreita no mar a qualquer momento. É de acordo com esta ambiência que deverá considerar-se a presença dos corsários. Os arquipélagos da Madeira e Açores foram a encruzilhada de intercepção do fogo resultante da guerra de represália americana e europeia. O corso europeu incidia preferencialmente sobre as embarcações espanholas e francesas e motivava uma resposta violenta das partes molestadas, como sucederá com a investida francesa contra os ingleses em 1793, 1797, 1814. Os últimos foram de todos aqueles que actuaram com maior segurança, pois haviam montado um plano de domínio do Atlântico, servindo-se do Funchal como principal porto de apoio para as incursões. O mar açoriano era o alvo preferencial dos corsários americanos. Era aí que tinham lugar a maioria dos assaltos. As principais vítimas do corso americano foram os portugueses e espanhóis. A permanente ameaça de corsários redobrou o empenho nas obras de defesa, que resultaram várias campanhas, entre finais do século dezoito e princípios do seguinte. A incidência foi mais acentuada nas ilhas da Madeira, S. Miguel e Terceira. Concluídas as obras de restauro das fortificações, apaziguado o ímpeto dos corsários, viveu-se, a partir da década de trinta, um período de relativa acalmia, seguido nas décadas de cinquenta e sessenta com novas campanhas de rectificação dos recintos fortificados, conforme os princípios orientadores da Engenharia Militar. Isto não tem paralelo nas ilhas de Cabo Verde, onde as dificuldades económicas com que as populações se deparavam inviabilizaram tais medidas, não obstante o interesse demonstrado por alguns governadores. Em todos os momentos a Madeira funcionou como base para as inúmeras incursões dos corsários ingleses. A neutralidade, insistentemente proclamada no papel não passava disso, pois os ingleses afrontaram por diversas formas a atitude do governador188. Desde a guerra de sucessão da Casa de Áustria que a Madeira teve esta vocação. Aí estacionaram alguns navios corsários como sucedeu com a balandra do capitão Filipe Maré e o corsário rei Jorge. Da resposta castelhana temos a presença do bergantim Santelmo Nossa Senhora Candelária, sob 187 El mar en la Historia de América, Madrid, 1992, p. 239. Em 1780 o Governador João Gonçalves da Câmara participa a Martinho de Mello e Castro a presença de uma esquadra inglesa no Funchal, pedindo instruções para manter absoluta neutralidade Ibidem, nº.545, 22 de Janeiro). 188 o comando do capitão Pascoal de Sousa Viúvo, possuidor desde 1739 de carta de corso189. Todavia não foi feliz nas suas presas. Em 14 de Abril de 1748 apresou junto ao Cabo Girão, uma balandra inglesa que ao pretender vender o recheio viu embargado pelo bispo governador a favor dos ingleses. Depois tomou uma escuna inglesa na Ponta do Sol, mas acabou apresada pela nau inglesa Chesterfield, sendo arrematada pela alfândega do Funchal190. Mais tarde em 1762 recomenda-se ao Governador José Correia de Sá para manter uma posição neutral em face dos acontecimentos, mas que exerça represália sobre os navios espanhóis e franceses, o que ia de encontro às pretensões inglesas.191 Mesmo assim os ingleses não aceitaram este pacto de vizinhança, atacando os navios costeiros ou de pescarias, como sucedeu em 1780.192 E a situação continuou nos anos subsequentes, afirmando-se a Madeira como base para as incursões inglesas contra os navios castelhanos e franceses. O facto de estar sob as ordens de Sua Majestade, entre 1801-1802 e 1807-1814, favoreceu isso. Assim tivemos duas presas francesas e 21 castelhanas.193 Por seu turno os franceses faziam incidir mais a sua acção sobre as embarcações portuguesas, porque menos seguras e protegidas, do que as inglesas. Esta permanente ameaça da esquadra de Brest sobre o Funchal justificava-se mais pelo colaboracionismo madeirense aos ingleses do que pela guerra declarada entre as coroas peninsulares. Os dados que documentam esta preocupante presença são elucidativos. Em 1785194é uma esquadra de 12 embarcações sob o comando do general Le Comte d'Albert Derions. Depois a partir de 1718 instalou-se o pânico com os franceses a estabelecerem um bloqueio à ilha, o que lesou o comércio externo.195 Nos Açores o corso teve maior incidência nos primeiros anos do século XIX. Os protagonistas europeus são ingleses e castelhanos.196 Todavia é entre os originários do continente americano que temos as acções mais violentas. A intervenção dos corsários americanos é uma forma de reclamar o direito à independência. As acções são lançadas contra as embarcações da metrópole e aliados, o que vem a atingir os portugueses. A isto acresce a guerra entre ingleses e norteamericanos no período de 1812 a 1815 que provocou um aumento desmesurado do número de corsários. Com as pazes muitos deles passaram-se para o serviço dos insurgentes.197 As transformações político-ideológicas porque passaram os continentes fizeram do Atlântico o espaço privilegiado de embate, sendo o corso o meio usado. O oceano foi assim a via de mútua troca de ideias, mas também o palco de debate e defesa. E as ilhas jogaram um papel fundamental. Os três arquipélagos do Mediterrâneo atlântico (Madeira, Açores e Canárias) foram, mais uma vez, a área charneira para a expressão disso. Os contactos preferenciais com o continente americano, a assídua presença de gentes (mercadores ou corsários) destas paragens, foram um poderoso veículo de expansão do novo ideário político saído da declaração da independência dos E.U.A.(1776). O facto marcou um novo momento da vida do até então conhecido como Novo Mundo e do oceano que o separa do Velho Mundo,198 e também uma nova função para a guerra de corso. Por iniciativa dos 189 A.N.T.T.,P.J.R.F.F.,nº972, fls.233-235vº, 24 de Novembro. A.N.T.T., P.J.R.F.F., nº 109, fls. 79, 82, 83vº; A.F., nº 970, fls. 16vº-17. 191 A.N.T.T., P.J.R.F.F., nº 985, fls. 16vº-19. 192 A.N.T.T., P.J.R.F.F., nº 985, fls. 16vº-19. 193 Ibidem, nº 1556-60, 1584, 1589, 1594. 194 Ibidem, nº760-761. 195 A.H.U, Madeira e Porto Santo, nº 1019 e 1126; veja-se também A.H.U, Madeira e Porto Santo, nº 1476. 196 A.H.U, Açores, Maço 11. 197 José Calvet de Magalhães, História das relações diplomáticas entre Portugal e os Estados Unidos de América, Lisboa, 1991, p.92. 198 Confronte-se François-Xavier GUERRA, Modernidad e Independencias, Madrid, 1992; Merle E. 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Note-se que estes arvoravam habitualmente a bandeira dos E.U.A., sendo a tripulação das embarcações composta por marinheiros de diversas proveniências, onde pontuavam, mais uma vez, os norte-americanos.201 CONCLUSÃO Hoje parece que as ilhas retomaram o deslumbramento do passado. Esgotados os recursos económicos resta-lhes apenas aquilo que as diferencia dos espaços continentais e que está na origem do nome dado na Antiguidade Clássica. As Afortunadas continuam ainda como o paraíso atlântico que continua a atrair o europeu. E no milénio que agora começou não está provado que percam o protagonismo que as marcou no passado. O europeu continuará a fazer depender destes pilares erguidos no atlântico para sedimentar protagonismos. Ontem como hoje, as ilhas não se fizeram rogadas aos desafios do devir histórico. Nos últimos cinco séculos às ilhas foram atribuídos diversos papéis. De espaços económicos rapidamente avançaram para faróis do Atlântico que acompanhavam as inúmeras embarcações que sulcavam o vasto oceano atlântico. As ilhas foram escalas imprescindíveis para abastecimento de víveres frescos, água e carvão, mas paulatinamente se transformaram em espaços aprazíveis, primeiro para a cura da tísica pulmonar e depois repouso e deleite de aristocratas e aventureiros. O turismo é hoje a evidência, mas convém referir que foi nas ilhas atlânticas e, de forma especial na Madeira, que a actual indústria do lazer deu os primeiros passos. BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL GERAL: BITTERLI, URS, (1981): Los "Salvages" y los "Civilizados" El Encuentro de Europa y Ultramar, Mexico, BRAUDEL, Fernand, civilização material e capitalismo séculos XV-XVIII - o tempo do Mundo, Lisboa, 1993. CROSBY, Alfred, W., The Columbian exchange. Biological and cultural consequences of 1492, Westport, 1972; Imperialismo ecológico e a expansão biológica da Europa. 900-1900, S. Paulo, 1993. 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