Lenin e Trotsky e o debate marxista sobre as tarefas da revolução

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Leon Trotsky e a história da
revolução russa
Alvaro Bianchi
A editora Sundermann publicou o
livro a História da Revolução
Russa, de Leon Trotsky, como
parte das comemorações dos 90
anos da Revolução de Outubro.
Além de poder adquirir um livro
que era até então impossível de
achar nas livrarias, o leitor é
premiado com o sóbrio e bem
cuidado tratamento editorial que este recebeu. Nada é
desnecessário ou prescindível nessa nova edição. Apenas a o
texto de Trotsky, com sua prosa fluente e arrebatadora tem
nela lugar. Não poderia ser de outro modo. O livro se basta a
si próprio.
Issac Deustscher, o mais conhecido biógrafo do revolucionário
russo, não vacila ao afirmar em sua trilogia que a História da
Revolução Russa é o livro mais importante de Trotsky, um autor
que escreveu várias obras memoráveis. Emilia Viotti da Costa,
uma das historiadoras mais importantes do Brasil confessou em
entrevista que esse foi um dos livros que fizeram sua cabeça.
Outros tantos notáveis poderiam dar esse testemunho, sem falar
dos incontáveis militantes anônimos que o leram nas mais
diversas línguas pelo mundo todo.
A tese de Deustscher, entretanto, não deixa de ser polêmica.
Não são poucos os que consideram mais importantes outros
textos do mesmo autor, tais como Balanço e perspectivas (que
merece há tempos uma edição brasileira), A revolução traída,
ou o pequeno, mas importantíssimo Programa de transição, estes
dois últimos também publicados pela Sundermann. Mas há fortes
razões a sustentar essa tese.
A História da Revolução Russa reúne as idéias de Trotsky sobre
a história e a revolução expondo de modo desenvolvido, o que
ele nem sempre fazia, o núcleo de sua contribuição ao
pensamento marxista. O resultado foi um clássico da
historiografia do século XX. Apesar de seu autor ter tido uma
posição privilegiada como observador – foi presidente do
soviet de Petrogrado e comandante da insurreição – não se
trata de um livro de memórias ou recordações e sim de um
exercício de história do presente levado a cabo de modo
rigoroso.
A originalidade do marxismo de Leon Trotsky aparece de modo
vigoroso neste livro. Como ele próprio conta em sua
autobiografia, desde muito cedo rejeitou as concepções
mecânicas que procuravam deduzir a revolução social das
condições econômicas. Essa rejeição aparece claramente nos
primeiros capítulos de História da Revolução Russa. O livro
inicia-se com uma descrição da formação social russa com base
na lei do desenvolvimento desigual e combinado, enunciada aí
pela primeira vez. A Rússia embora ainda fortemente marcada
por relações sociais herdadas do passado já tinha um pé na
civilização capitalista à qual se encontrava conectada por
meio do mercado mundial. Em Petrogrado e Moscou, uma moderna e
concentrada classe operária encontrava seu lugar. Se o campo
prendia a Rússia a seu passado asiático, as cidades a
empurravam para seu futuro. Desse caráter combinado do
desenvolvimento do capitalismo na Rússia é que nasceria a
revolução social.
Mas a revolução não era, senão uma possibilidade colocada pelo
desenvolvimento
histórico.
A
relação
entre
esse
desenvolvimento e a revolução não era mecânica. Por essa
razão, Trotsky assume os principais traços desse
desenvolvimento como relativamente constantes. A questão chave
para a revolução, afirma o autor já na primeira página de seu
livro “é a interferência direta das massas nos eventos
históricos”. E a seguir completava: “A história de uma
revolução é para nós, antes de tudo, a história da entrada
violenta das massas no domínio de decisão de sue próprio
destino”.
É por essa razão que não há nas 1.171 páginas desse livro uma
análise das oscilações da economia russa. E quando o
historiador soviético Mikhail Pokrovsky acusou-o de não
perceber o colapso econômico que teria ocorrido na Rússia
entre fevereiro e outubro, Trotsky respondeu que a concepção
desse historiador, embora se fizesse passar por marxismo, não
passava de uma explicação vulgarmente econômica da história. A
crise econômica e a existência de privações, não são
suficientes para provocar uma insurreição. Além de privações
que sejam reconhecidas pelas massas como intoleráveis, é
necessária, também, a difusão de novas idéias que tragam a
perspectiva da revolução. É pois, sobre a mudança de “opinião
e sentimento das massas” que o livro trata. Pois é com isso
que as revoluções são feitas.
Trotsky para o século XXI
Alvaro Bianchi
Qual é a contribuição que o pensamento de Trotsky pode dar
para uma renovação teórica e política do marxismo? Passados
72 anos de seu assassinato, e é esta data o que nos provoca a
reflexão, a pergunta faz sentido e poderia, até mesmo assumir
a seguinte forma provocativa: o pensamento de Trotsky tem
alguma contribuição a dar para a teoria dos movimentos sociais
revolucionários do século XXI? A resposta é, do nosso ponto de
vista afirmativa, se compreendermos seu pensamento como um
ponto de partida para tal e não como um ponto de chegada.
Somente esta resposta pode ser fiel ao espírito antidogmático
que deve alimentar o marxismo e que foi cultivado por Trotsky.
Dois aspectos do pensamento de Trotsky são cruciais para essa
renovação e merecem ser destacados: uma concepção da história
antideterminista e uma concepção internacionalista da
política.
Comecemos pela sua concepção da história. Durante toda sua
vida, Trotsky foi um tenaz opositor do determinismo econômico
que caracterizava tanto a social-democracia como o stalinismo.
Repetidas vezes contestou a tentativa de derivar os fenômenos
políticos diretamente da economia, a crise política da crise
econômica. No Relatório sobre a Crise Econômica Mundial e as
Tarefas da Internacional Comunista, apresentado no 3º
Congresso da Internacional Comunista essa oposição ao
determinismo é assim colocada: “Em geral, o movimento
revolucionário
do
proletariado
não
depende
da
crise
1
(econômica). Há apenas interação dialética”. Essa formulação é
constante no pensamento de Trotsky e será novamente
explicitada, em 1935, no artigo Uma vez mais, aonde vai a
França?: “Não há nenhuma crise que, por si mesma, possa ser
‘mortal’ para o capitalismo. As oscilações da conjuntura criam
somente uma situação na qual será mais fácil ou mais difícil
para o proletariado derrotar o capitalismo. A passagem da
sociedade burguesa para a sociedade socialista pressupõe a
2
atividade de pessoas vivas, que fazem sua própria história.”
A crítica contra o determinismo econômico é em Trotsky uma
crítica contra o imobilismo que ele produzia no movimento
operário internacional. Revalorizando o lugar da vontade
humana na história, ele descarta todo automatismo reformista e
afirma o primado da política nos processos de revolução
social. É como parte dessa concepção antideterminista que
Trotsky formulará a teoria do desenvolvimento desigual e
combinado e a teoria da revolução permanente.
O segundo aspecto no qual a contribuição de Trotsky para a
renovação teórica e política do marxismo é decisiva é seu
internacionalismo radical. Já no século XIX podemos encontrar
formas intensas de solidariedade entre movimentos democráticos
revolucionários. A construção da Associação Internacional dos
Trabalhadores e, mas tarde da chamada Segunda Internacional
podem ser considerados os pontos culminantes desse
internacionalismo. Tal solidariedade estava fundada na
identidade que esses movimentos partilhavam e no futuro comum
no qual apostavam.
O internacionalismo de Trotsky incorpora a necessidade da
solidariedade fundada na identidade e nos projetos comuns mas
vai além ao alicerçar-se em uma compreensão do imperialismo.
Longe de ser um princípio abstrato, o internacionalismo é,
para Trotsky, uma necessidade decorrente do caráter mundial da
economia e da política capitalista em sua fase imperialista.
Em sua análise do imperialismo, Trotsky destacará a
contradição existente entre a existência de Estados nacionais
e a crescente internacionalização da economia e sua
manifestação nas contradições que se dão entre a lei do valor
no mercado mundial e a regulação estatal, por um lado, e os
países imperialistas e as colônias e semicolônias, por outro.
Economia e política encontram-se unificadas na análise que
Trotsky faz do imperialismo, o que lhe permitirá pensar a
atualidade (e não iminência) da revolução socialista na época
imperialista. Sua visão do imperialismo produz um
internacionalismo que supera a ênfase em uma identidade comum.
A ênfase agora é colocada na necessidade de contrapor ao
imperialismo a ação internacional organizada do proletariado.
O internacionalismo dos séculos XX e XXI é revolucionário. Ele
inclui um esforço sistemático para coordenar os movimentos de
emancipação do proletariado e alterar a correlação de forças
na arena nacional, mas também na arena mundial. Tal esforço de
coordenação só pode ser eficaz se estiver materializado em uma
organização internacional dos trabalhadores. Depois da
falência da social-democracia e do stalinismo essa organização
passou a ser a Quarta Internacional, para a qual Trotsky
dedicou suas energias ao longo de seus últimos anos de vida.
Notas:
1 Leon Trotsky. The first five years of the Communist
international. Londres: New Park, 1973, v. 2, p. 261.
2 Leon Trtosky. Aonde vai a França? São Paulo: Desafio, 1994,
p. 64.
Lenin e Trotsky e o debate
marxista sobre as tarefas da
revolução na Rússia
Carlos Zacarias F. de Sena Júnior
Em janeiro de 1905, uma multidão de operários de diversos
ramos da indústria, 200 mil pessoas segundo estimativas da
época, entre homens, mulheres e crianças, haviam marchado para
o centro da cidade de São Petesburgo, na Rússia, com o
objetivo de protestarem frente ao todo poderoso Tzar, Nicolau
II, contra as duras condições de vida e trabalho que se
abatiam sobre a maioria da população. Sob a liderança do padre
George Gapon, a multidão caminhava pacificamente e sem armas
(os que estavam armados, tinham tido suas armas recolhidas por
ordens de Gapon), com muitos levando imagens de Nicolau II e
entoando cantos religiosos e o “Deus salve o Tzar”. Os
trabalhadores, que reivindicavam jornada de oito horas,
salário mínimo de um rublo por dia, abolição da hora extra
compulsória sem pagamento e liberdade de organização, não
tinham idéia de que os acontecimentos que protagonizariam em
seguida dariam ensejo a um processo histórico de
transformações que ganhariam a Rússia e o mundo. Não obstante,
marchavam pacificamente levando consigo as décadas de atraso
de um país semi-feudal, oprimido por séculos de autocracia,
miséria e fome.
No texto da petição que a multidão pretendia entregar a
Nicolau II, constava muito mais do que meras reivindicações
por melhorias nas condições de vida da classe trabalhadora,
pois a Rússia era um dos países mais atrasados da Europa e um
dos países em que as hierarquias da sociedade nobiliárquica,
onde apenas na segunda metade do século XIX os servos se
haviam libertado, prevaleciam sobre a maioria da população das
cidades e dos campos. Desta maneira, ficava evidente que ao
lado da Rússia moderna do proletariado que pretendia emergir
com as suas reivindicações e manifestações de massa, repousava
ainda um bocado de passado de um país arcaico, mergulhado no
obscurantismo que dialeticamente vinha sendo superado, como
aparece no texto da petição:
“Senhor – Nós, operários residentes da cidade de São
Petesburgo, de várias classes e condições sociais, nossas
esposas, nossos filhos e nossos desamparados velhos pais,
viemos a Vós, Senhor, para buscar justiça e proteção. Nós
nos tornamos indigentes; estamos oprimidos e sobrecarregados
de trabalho, além de nossas forças; não somos reconhecidos
como seres humanos, mas tratados como escravos que devem
suportar em silêncio seu amargo destino. Nós o temos
suportado e estamos sendo empurrados mais e mais para as
profundezas da miséria, injustiça e ignorância. Estamos
sendo tão sufocados pela justiça e lei arbitrária que não
mais podemos respirar. Senhor, não temos mais forças! Nossas
resistências estão no fim. Chegamos ao terrível momento em
que é preferível a morte a prosseguir neste intolerável
sofrimento.”1
Apesar de sua marcha pacífica e ordeira, Nicolau II parecia
não ter interesse em conhecer o teor das reivindicações dos
trabalhadores e terminou não tendo o privilégio de ler o texto
da petição, talvez o último de uma longa era, pois a multidão
conduzida pelo Padre Gapon nem chegou a se aproximar do
imponente Palácio do Tzar. Cercada por “cerca de 20 mil
soldados fortemente armados”, que atiraram indiscriminadamente
nos trabalhadores a uma distância mínima de poucos metros,
centenas ou talvez mais de um milhar de mortos levaram consigo
para as sepulturas parte das cinzas de uma Rússia que começava
a desaparecer. Foi um massacre e apesar de não se saber
quantos haviam sido mortos naquele “domingo sangrento”, sabiase, por certo, “que uma época da história russa havia
concluído abruptamente e uma revolução começara”. 2
Em fevereiro de 1905, uma onda de greves varreu toda a Rússia
em resposta ao massacre do dia 9 de janeiro em São Petesburgo.
Envolvendo cerca de um milhão de trabalhadores e atingindo
mais de cento e vinte cidades, paralisando minas, ferrovias e
inúmeras fábricas, o conteúdo das greves que sacudiram a
Rússia em 1905 produziu muito mais do que algumas simples
transformações nas relações entre a sociedade e a autocracia,
ou entre os trabalhadores das fábricas e os patrões. Foi uma
verdadeira revolução no sentido estrito do termo, pois a
Rússia semi-feudal e majoritariamente camponesa deixava para
trás toda uma era de obscurantismo e arcaísmo nas relações
entre as classes e a história assistia, pela primeira vez, o
nascimento de uma experiência inédita produzida pelos
trabalhadores urbanos, os modernos proletários. Com efeito, os
sovietes foram o resultado mais importante do ensaio de 1905,
como organismos de duplo poder que dirigiram a revolução e
produziram as transformações qualitativas exigidas pela
maioria da população. Não obstante o novo ainda estivesse por
nascer, o velho havia sido superado pela história, assim como
o fora o Padre Gapon que dali por diante teria um papel muito
menor do que o de outras lideranças emergentes da velha
Rússia.
Os acontecimentos ocorridos no dia 9 de janeiro de 1905, que
os historiadores passaram a chamar de “ensaio geral” da
Revolução Russa de 1917, inauguraram um longo processo de
entrada em cena da classe trabalhadora daquele país, que viveu
momentos de fluxo e refluxo das suas lutas, até que pudessem
tomar o poder em Outubro de 1917. Mais do que um “ensaio
geral”, entretanto, os significados da revolução de 1905 na
Rússia iriam além das transformações que ela produziu na terra
dos Urais, pois daria oportunidade a que as principais
lideranças dos posteriores acontecimentos de 1917, Lenin e
Trotsky, produzissem reflexões que redimensionariam o marxismo
esterilizado dos gabinetes da social-democracia européia.
As tarefas da revolução na Rússia
Falando dos acontecimentos daqueles anos, Trotsky se referiu
ao uso que a história fez do “fantástico plano de Gapon” que
culminou na conclusão revolucionária de 1905 e na formação dos
sovietes.3 Trotsky, que em 1905 havia presidido o soviete de
São Petesburgo, o mais importante de toda o país, esteve
empenhado em estudar a fundo as implicações de uma revolução
num país tão atrasado como a Rússia. Em função disso, travou
uma das mais profícuas polêmicas do interior do marxismo,
polêmica esta que culminou na elaboração da teoria da
“Revolução Permanente” que, curiosamente nas suas origens,
opôs o futuro comandante do Exército Vermelho, ao líder máximo
do Partido Bolchevique.
Os termos do debate ocorrido em torno dos acontecimentos de
1905 remontam a um dos principais postulados do materialismo
histórico que defende que uma “organização social nunca
desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas
que ela é capaz de conter”. 4 Neste sentido, quais as
possibilidades de uma revolução socialista triunfar num tão
atrasado como a Rússia que sequer tinha desenvolvido
completamente relações sociais de produção do tipo
capitalistas?
Para Lenin, que no curso dos acontecimentos de 1905
desenvolveu um texto em polêmica com os mencheviques, a
conquista do poder pelo proletariado, colocada na ordem do
dia, não implicava numa imediata transição para o socialismo,
haja vista a impossibilidade de se saltar etapas.5 Lenin tinha
em mente que o que estava em jogo na Rússia era a revolução
burguesa e suas tarefas democráticas e por isso propunha a
consigna de “ditadura revolucionária e democrática do
proletariado e do campesinato”. Mas Lenin advertia aos
mencheviques que, apesar de suas tarefas democráticas,
portanto burguesas, as forças sociais que se opunham ao
tzarismo, e que, portanto, deveriam se perfilar para a
“vitória decisiva” sobre a autocracia, não poderiam contar com
a presença da grande burguesia e dos latifundiários, visto
“que eles nem sequer desejam uma vitória decisiva”. Para o
líder bolchevique, a burguesia russa era incapaz, “pela sua
situação de classe”, de empreender uma luta decisiva contra o
tzarismo, justamente porque “a propriedade privada, o capital
e a terra”, eram um lastro demasiadamente pesado para esta
classe. Neste sentido, Lenin entendia que a “única força capaz
de obter ‘vitória decisiva sobre o tzarismo’”, só podia ser o
“povo, isto é, o proletariado e o campesinato, se se tomar as
grandes forças fundamentais e se se distribuir a pequena
burguesia rural e urbana (também ‘povo’) entre um e outro”.
Não obstante, a vitória da revolução na Rússia, para Lenin,
não converteria “ainda, de forma alguma”, a revolução russa de
burguesa a socialista. De acordo com o líder russo, que
antevia os profundos significados das transformações que se
começavam a produzir na Rússia, a “revolução democrática” não
ultrapassaria “diretamente os limites das relações econômicossociais burguesas”, e embora se fizesse apesar da burguesia,
teria “importância gigantesca para o desenvolvimento futuro da
Rússia e do mundo inteiro”.6
O fato é que em 1905, enquanto combatia os primeiros passos do
reformismo no seu país, representado pela corrente
menchevique, Lenin raciocinava rigorosamente dentro dos
limites das proposições do materialismo histórico de Marx e
Engels que pressupunha que as transformações profundas nas
sociedades só poderiam ocorrer em meio a condições materiais
concretas, de maneira que “a humanidade só levanta problemas
que é capaz de resolver”. Em todo caso, se a humanidade havia
levantado o problema da tomada do poder pelo proletariado, não
era o caso de as condições estarem efetivamente colocadas para
uma revolução socialista na Rússia? Com efeito, caberia se
perguntar sobre os limites e possibilidades de um outro
postulado do materialismo histórico, também central da
formulação marxiana e engelsiana e intimamente articulado com
as condições objetivas legadas pelo passado, que dizia que
eram os homens que faziam a história. Desta forma, foi
justamente Trotsky que descobriu o caminho que traria a
revolução das suas tarefas democráticas, para o socialismo,
através da teoria da Revolução Permanente, contribuindo de
forma original e inovadora para superar a letargia do
formalismo que pesava sobre o pensamento marxista europeu.
Sobre o assunto, Trotsky se dedicou a estudar o
desenvolvimento do capitalismo na Rússia no início do século
XX e as forças motrizes da revolução, para propor, que no que
se referia às suas tarefas diretas e indiretas, a revolução
russa seria uma “revolução ‘burguesa’, porque se propõe
libertar a sociedade burguesa das correntes e grilhões do
absolutismo e da propriedade feudal”. Contudo, pensava
Trotsky, se a principal força condutora da revolução russa era
a classe operária, a revolução era “proletária no que diz
respeito ao seu método”. 7 (p. 66) Ou seja, se em 1905 o
proletariado russo havia avançado em nome dos seus próprios
objetivos, quase todos eles contrapostos aos objetivos da
própria burguesia que se limitava às tarefas democráticas da
transformação, a revolução não poderia fazer retornar a
“unidade da nação burguesa”, de maneira que, na “revolução
burguesa sem uma burguesia revolucionária”, o proletariado
seria conduzido “pelo desenvolvimento interno dos
acontecimentos”, a assumir a hegemonia sobre o campesinato e à
luta pelo poder do Estado”.
Não obstante, Trotsky não ignorava que o atraso do
desenvolvimento russo poderia dificultar, ou mesmo impedir, o
sucesso completo da revolução naquele país. Ou seja, para
aqueles que apressadamente poderiam dizer “voluntarista” a
formulação trotskiana, cabe mencionar que no seu estudo mais
importante sobre o assunto, Balanços e Perspectivas, Trotsky
partiu das forças da necessidade histórica, para propor que,
apesar das condições objetivas legadas pelo passado, são os
homens que fazem a história.8 Desta maneira, o presidente do
soviete de São Petesburgo defendia a possibilidade de que a
Rússia pudesse “saltar etapas”, tendo em vista que, de nenhuma
maneira, uma sociedade atrasada, tendo diante de si um modelo
histórico já pronto e desenvolvido, precisaria necessariamente
percorrer o mesmo caminho da sociedade avançada. De acordo com
Trotsky, isso ocorria em virtude da existência de uma outra
lei histórica do desenvolvimento da sociedade descoberta pelo
marxismo, qual seja, a lei do desenvolvimento desigual e
combinado que aparece enunciada plenamente no seu texto sobre
a História da Revolução Russa:
“As leis da História nada têm em comum com os sistemas
pedantescos. A desigualdade do ritmo, que é a lei mais geral
do processus histórico, evidencia-se com maior vigor e
complexidade nos destinos dos países atrasados. Sob o
chicote das necessidades externas, a vida retardatária vê-se
na contingência de avançar aos saltos. Desta lei universal
da desigualdade dos ritmos decorre outra lei que, por falta
de uma denominação apropriada, chamaremos de lei do
desenvolvimento combinado, que significa aproximação das
diversas etapas, combinação das fases diferenciadas,
amálgama das formas arcaicas com as mais modernas. Sem esta
lei, tomada, bem entendido, em todo o seu conjunto material,
é impossível compreender a história da Rússia, como em geral
a de todos os países chamados à civilização em segunda,
terceira ou décima linha.”9
Neste sentido, quando pensava nas possibilidades de uma
vitória do socialismo num país atrasado, Trotsky respondia a
questão apenas de forma condicional, remetendo a outros
aspectos que diretamente influenciariam nas possibilidades do
socialismo vingar na Rússia. Com efeito, dizia Trotsky, caso o
proletariado tivesse êxito em conquistar a hegemonia política
sobre o campesinato, cujos interesses democráticos poderiam
levá-los para o campo da burguesia, e dessa forma exceder “os
limites nacionais da revolução russa, então essa revolução
pode tornar-se o prólogo de uma revolução socialista
mundial”.10 Ou seja, para o dirigente russo, as possibilidades
de o socialismo vingar na Rússia nas condições em que uma
revolução proletária tomasse novamente aquele solo diziam
respeito ao fato de que nenhum país poderia ser pensado
isoladamente e nenhuma revolução poderia triunfar plenamente
nos marcos e nos limites de uma só nação.
1917:
a revolução permanente
Os resultados dos acontecimentos históricos que se abateram
sobre a Rússia em 1917, deram razão aos postulados e
vaticínios de Trotsky. Contudo, sem o gênio político de Lenin,
a revolução de Outubro, muito dificilmente, teria logrado
sucessor, isto porque se os resultados do embate entre Lenin e
Trotsky em 1905-1907, não devem ser considerados como os mais
importantes nos desdobramentos da Revolução de Outubro, não
deixa de ser importante o fato de que foi da convergência de
posições dos dois grandes líderes revolucionários que se
produziu a melhor síntese que permitiu ao marxismo russo
superar dialeticamente seus congêneres europeus. Trotsky
parece ter sido vitorioso no que tange a efetividade prática
de sua teoria da Revolução Permanente, mas sem a teoria do
partido de Lenin, que lutara arduamente para edificar a
ferramenta indispensável do Partido Bolchevique, inicialmente
criticada por Trotsky, a revolução muito dificilmente teria
tido sucesso na Rússia. E se Trotsky reconheceu a
superioridade da formulação leniniana do partido já em 1917,
quando aderiu à organização bolchevique e dirigiu, junto com
Lenin, a Revolução de Outubro, Lenin, à sua maneira, aderiu a
formulação trotskiana da Revolução Permanente em abril de
1917, através das famosas Teses de Abril. Estas colocaram a
tomada do poder pelos sovietes na ordem do dia para os
bolchevques, que também passaram a ser exortados por Lenin a
fazerem transitar a revolução da sua etapa burguesa para a
etapa socialista.11
Para o líder bolchevique, após a revolução de fevereiro e os
acontecimentos que se produziram na consciência dos
trabalhadores russos em poucos meses, colocar a conclusão da
revolução burguesa nos marcos de uma longa etapa, como havia
pensado originalmente em 1905, seria esterilizar o marxismo
que é, antes de tudo, “análise concreta de situação concreta”.
Neste sentido, pensava Lenin, na circunstância em que uma
guerra atingia a Europa e as possibilidades do socialismo na
Rússia se ligavam umbilicalmente a vitória da revolução
mundial, a revolução russa seria, apenas, “a primeira etapa da
primeira das revoluções proletárias geradas inevitavelmente
pela guerra”. Por isto, a tarefa urgente dos bolcheviques era
lutar pelo papel dirigente do proletariado na revolução e
“explicar ao povo a urgência de uma série de passos
praticamente maduros em direção ao socialismo”. 1 2
O sucesso da Revolução de Outubro de 1917, na Rússia, foi o
resultado de um longo processo de amadurecimento de condições
históricas que, de maneira desigual e combinada, prepararam o
mundo para o socialismo. Evidentemente, que os desdobramentos
daquela experiência que produziram a contra-revolução
stalinista e a ascensão da burocracia, também estiveram
relacionados a condições históricas muito particulares. Não
obstante, como a nenhum marxista é dado o direito de
raciocinar apenas sobre os termos em que os fatores objetivos
criam as condições para a emergência das subjetividades, deve-
se afirmar que ao lado das condições produzidas pela
necessidade histórica, caminharam sempre os fatores da vontade
e da agência humana. Sendo assim, da mesma forma que as
derrotas posteriores da revolução mundial foram provocadas
pela presença de direções stalinistas que estiveram à frente
dos diversos processos, sempre a serviço da teoria do
“socialismo num só país”, a vitória da revolução russa em 1917
deveu-se a existência de gênios políticos da estatura de Lenin
e Trotsky, que estudaram a fundo as leis da necessidade
histórica e os significados das revoluções para que pudessem
incidir a fundo sobre a política de maneira a mudar o rumo da
História.
Notas:
1 Apud BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar. A
aventura da modernidade. 9 ed., São Paulo: Companhia das
Letras, 1992, p. 236.
2 Idem, ibidem, p. 237.
3 TROTSKY, Leon. A revolução de 1905. São Paulo: Global, s/d,
p. 90.
4 MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. 2
ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983, p. 25.
5 LENINE, V. I. “Duas táticas da social-democracia na
revolução democrática”. In: Obras escolhidas. 3 ed. São Paulo:
Alfa-Omega, 1986, p. 406, v. 1.
6 LENINE, “Duas táticas…”, in: Obras escolhidas, Op. cit., p.
410-411, v. 1.
7 TROTSKY, A revolução de 1905. Op. cit., p. 72.
8 TROTSKY, Leon. 1905: resultados y perspectives. Madrid:
Ruedo Ibérico, 1971. Alguns capítulos desta importante obra de
Trotsky, ainda não traduzida em sua íntegra para o português,
aparecem na edição brasileira da A revolução de 1905, da
global citada anteriormente.
9 TROTSKY, Leon. História da revolução russa. A queda do
tzarismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 25, v. 1
(grifos no original).
10 TROTSKY, A revolução de 1905, Op. cit., p. 291.
11 Cf. LENINE, V. I. “Sobre as tarefas do proletariado na
presente revolução”. In: Obras escolhidas. São Paulo: AlfaOmega, 1988, p. 14, v. 2.
12 LENIN, V. I. “VII Conferência (de abril) de toda a Rússia
do POSDR(b)”. In: Id., ibid., p. 98.
(Texto
publicado
originalmente
no
site
do
PSTU
(www.pstu.org.br), em 2007, por ocasião da passagem dos 90
anos da Revolução Russa.)
Trotsky
fala
sobre
“Processos de Moscou”
1936-1938 (Vídeo)
os
de
Discurso de Leon Trotsky, em inglês, para a Comissão Dewey, na
Cidade do Mexico.
http://www.youtube.com/watch?v=DzNPXQo3_DY
Discurso de Leon Trotsky, em
abril de 1919 (Vídeo)
Discurso pronunciado por Leon Trotsky em abril de 1919 sobre a
União das Repúblicas Soviéticas. Trata-se de uma das raras
gravações do dirigente do Exército Vermelho. A tradução e a
legenda do vídeo são de Erick Fishuk.
Discurso sobre a união das repúblicas
soviéticas
Leon Trotsky
[ A união fraternal das repúblicas soviéticas. Discurso do
Comissário do Povo para Assuntos Militares e Navais, camarada
Trotsky. ]
Camaradas!
A velha Rússia tsarista era um todo firmado pelos aros férreos
da violência e do despotismo. Em meio à brutalidade da última
guerra mundial, esses aros foram rebentados, bem como se fez
em pedaços o antigo regime monárquico.
E muitos pensaram que os povos da velha Rússia tsarista se
apartariam para sempre. Mas eis que às nossas vistas se dá um
grande prodígio histórico: o Poder Soviético está os dispondo
numa sólida e harmoniosa união.
As tropas soviéticas libertaram Khárkov e Kíev. Mas e daí? O
povo ucraniano quer afinal conduzir sua existência à parte do
restante da Rússia Soviética?! Não, ele quer uma união
fraternal comum mantida por laços indissolúveis.
Os regimentos vermelhos libertaram Riga e Vilno. Mas e daí? O
povo letão, o povo lituano e o povo bielo-russo desejam afinal
que uma muralha de pedra os separe de nós?! Não, eles querem
uma união fraternal estreita.
E o mesmo ocorrerá amanhã à Estônia, ao Cáucaso, à Sibéria e a
todos os territórios do antigo império tsarista ainda hoje
desmembrados. Isso mostra que no coração dos povos
trabalhadores reside um desejo inabalável de combinar suas
forças.
Onde o ferro e o sangue firmavam o império tsarista, aí também
o povo, no íntimo de sua consciência, desejava uma existência
fraternal e livre, sem guerras, disputas ou hostilidades de
uma nação com outra. Hoje, tendo recebido a direção do Estado
em suas mãos por intermédio do Poder Soviético, o povo
trabalhador está edificando uma nova Rússia, soviética e
federativa.
E essa Rússia Soviética estende suas mãos à nova Alemanha em
surgimento, para que todos os povos transformem o mundo numa
república soviética unida!
Outros Outubros virão
Valério Arcary
Hoje celebramos noventa e cinco anos da revolução russa. A
efeméride oferece a ocasião para o ressurgimento da
interpretação liberal sobre o seu significado: seus arautos
nos recordarão, em um exercício manipulado de história contrafactual, que o século XX teria sido o palco de uma luta
titânica da democracia contra os totalitarismos comunista e
fascista. Esquecerão, convenientemente, que sem a revolução de
outubro e, portanto, a existência da URSS, seria pelo menos
duvidoso a introdução de regulações no capitalismo como a
experiência do New Deal de Roosevelt nos EUA na sequência da
crise de 1929, ou a seguridade social na Escandinávia nos anos
trinta. A vitória da luta contra o nazi-fascismo na Segunda
Guerra Mundial teria sido imensamente mais difícil.
Argumentarão, pomposos e solenes, que as revoluções seriam
processos de transformação, historicamente, superados: teriam
sido, afinal, terremotos convulsivos característicos de nações
com baixos níveis de instrução. O que não permitiria explicar
o Maio de 1968 na França: um dos países centrais com
escolaridade média mais elevada do mundo. Descuidarão,
portanto, que a história é um processo em aberto.
Ininterrupta, a história voltou a nos surpreender com
revoluções políticas, como nos recordam os últimos dois anos
na Tunísia, Egito, Líbia, Síria, enfim, no Magreb e Oriente
Médio.
O século do encontro da revolução com a história
A revolução política e social foi o fenômeno decisivo da
história contemporânea, deslocando o lugar que, no passado,
era ocupado pela guerra. A desigualdade social foi e continua
sendo o maior problema da civilização. Revoluções aconteceram
e continuarão acontecendo porque há injustiça e tirania no
mundo. A disparidade de condições materiais e culturais de
existência humana precipitaram, recorrentemente, crises
sociais que transbordaram em crises políticas. Quando as
crises políticas não encontram uma solução no limite das
relações sociais dominantes, abre-se uma situação
revolucionária. A revolução russa de outubro não foi uma
excepção. Ao contrário, a revolução bolchevique estabeleceu um
dos paradigmas mais longevos do século XX e inspirou várias
das gerações de socialistas que vieram depois.
Mudanças eram – e continuam – sendo necessárias. Nenhuma
sociedade permanece imune à pressão por mudanças. Mas, as
forças da inércia histórica são proporcionais à força social
reacionária de cada época. Um atraso significativo e, muitas
vezes, terrível, é inevitável entre o momento da manifestação
de uma crise social, e o tempo que a sociedade precisa para
que seja capaz de enfrentar as mudanças que são
indispensáveis. Revoluções não acontecem quando são
necessárias, mas quando a pressão pela transformação se
demonstrou inadiável. A história confirmou que as
transformações podem ocorrer por via de reformas, ou seja, por
lutas que resultam em negociações e acordos transitórios que
mantém, na essência, a ordem econômica, social e política, ou
por via de revoluções.
Significado das derrotas históricas
A velha máxima que assegura que as revoluções tardias são as
mais radicais não deixou de se confirmar. Ao final da Primeira
Guerra Mundial ruíram na Europa Central e Oriental três
Impérios – o russo, o austro-húngaro e o prussiano – que
tinham atravessado, incólumes, o século XIX, desde a Santa
Aliança anti-republicana e o Tratado de Viena de 1815. As
formas monárquicas mais ou menos arcaicas de cada um deles –
expressão de uma transição burguesa negociada sob as cinzas da
derrota das revoluções democráticas de 1848 – foram destruídas
pelo desenlace da guerra, mas, também, pela maior vaga
revolucionária que a história tinha até então conhecido: de
Petrogrado a Budapeste, de Viena a Berlim, milhões de homens e
mulheres, trabalhadores e soldados, atraíram para o seu lado
setores das camadas médias, artistas, intelectuais e
professores, e lançaram-se na obra de destruir os velhos
regimes de opressão que os tinham mergulhado no turbilhão do
genocídio que acabou consumindo algo próximo a dez milhões de
vidas.
Aonde as revoluções democráticas de 1848 foram derrotadas
pelas velhas monarquias – fortalecidas na época da restauração
depois de 1815- como na Alemanha prussiana e no Império dos
Habsburgos, a tarefa de pôr fim à guerra uniu-se à proclamação
da República, mas as forças sociais que impuseram, pelos
métodos da revolução, a derrota do governo – o proletariado e
os camponeses arruinados que constituíam a maioria do exército
– não se contentaram somente com as liberdades democráticas, e
lançaram-se na vertigem da conquista do poder com suas
esperanças socialistas.
As revoluções atrasadas da Europa Central e Oriental
transformaram-se em revoluções proletárias pioneiras ao final
da Primeira Guerra Mundial, mas, à excepção da Rússia, foram
desbaratadas. Derrotas históricas, contudo, têm conseqüências
trágicas e duradouras. O custo histórico, para os alemães, da
derrota de seus jacobinos em 1848 foi o militarismo
nacionalista do II Reich, o imperialismo do Kaiser, e a
Primeira Guerra Mundial. O preço que a nação alemã pagou pela
derrota do seu proletariado – o triunfo do nazismo, a Segunda
Guerra e os seis milhões de vidas da juventude alemã – foi
ainda maior.
Ditadura do proletariado ou ditadura fascista
Aonde as formas tirânicas do Estado revelaram-se mais rígidas,
como na Rússia, a revolução democrática radicalizou-se, muito
rapidamente, em revolução socialista, confirmando que
revoluções não podem ser compreendidas somente pelas tarefas
que se propõem resolver, e menos ainda pelos seus resultados,
mas, sobretudo, pelos sujeitos sociais, ou classes, que
tiveram a audácia de fazê-las, e pelos sujeitos políticos, ou
partidos, que foram capazes de dirigi-las. O substitucionismo
histórico – de uma classe por outra – e a centralidade da
política – com a redução das margens de improviso da liderança
– demonstraram-se as chaves de explicação dos processos
revolucionários contemporâneos.
Não foi a burguesia russa que se lançou à insurreição para
derrubar o Estado semi-feudal dos Romanov em fevereiro de
1917, mas foi ela quem impediu o governo provisório do
Príncipe Lvov de fazer a paz em separado com a Alemanha: os
capitalistas russos demonstraram-se demasiado frágeis para,
por um lado, romper com seus parceiros europeus, e por outro,
para garantir a sua dominação através de métodos eleitorais na
República que nascia pelas mãos da insurreição proletária e
popular. Não foi a burguesia quem mandou os seus filhos para
as trincheiras da guerra serem massacrados, mas era ela quem
apoiava Kerensky, quando este insistia em lançar os camponeses
fardados em ofensivas suicidas sobre o exército alemão.
A pressão de Londres e Paris exigia a manutenção da frente
oriental, mas a pressão de um proletariado poderoso e
combativo – proporcionalmente a uma burguesia com pouco
“instinto de poder” pela submissão à monarquia – exigia o fim
da guerra; as forças mais fortes da esquerda socialista –
mencheviques e esseristas – se recusavam a assumir o poder
sozinhos, porque não queriam romper com a burguesia, porém os
bolcheviques, minoritários até setembro, recusavam a
integração no governo de colaboração de classes, porque não
admitiam romper com as reivindicações populares. Quando
Kerensky perdeu o apoio nas classes populares, a burguesia
russa apelou ao general Kornilov para resolver com as armas, o
que não podia ser resolvido com argumentos. A hora das
eleições para a Constituinte tinha passado. A burguesia russa
perdeu a paciência com Kerensky e rompeu com a democracia,
dois meses antes de o proletariado perder a paciência com os
seus líderes, e recorrer a uma segunda insurreição para
terminar com a guerra.
O fracasso do putsch selou o destino da burguesia russa. O
proletariado e os soldados encontraram nos bolcheviques, nas
horas terríveis de agosto, o partido disposto a defender com a
vida as liberdades conquistadas em fevereiro. Sem o apoio da
burguesia e sem o apoio das massas, suspenso no ar, o governo
de Kerensky – e seus aliados reformistas – procurou socorro no
pré-parlamento, mas a legitimidade da democracia direta dos
sovietes superava a representação indireta de qualquer
assembléia: o tempo para as negociações com a Entente tinha se
esgotado, a oportunidade histórica para a república burguesa
tinha sido perdida. Era tarde demais.
A engrenagem da revolução permanente empurrava os sujeitos
sociais interessados no fim imediato da guerra – a maioria do
Exército e dos trabalhadores – para uma segunda revolução e
operava a favor dos bolcheviques que, no espaço de poucos
meses, viam sua influência se agigantar. O proletariado e os
camponeses pobres precisaram dos meses que separaram fevereiro
de outubro para perderem as ilusões no governo provisório,
onde os partidos em que depositavam suas esperanças,
mencheviques e esseristas, eram incapazes de garantir a paz, a
terra e o pão, e entregar sua confiança aos sovietes onde a
liderança de Lênin e Trotsky se afirmava.
Martov, líder dos mencheviques internacionalistas e Kautsky,
líder da social-democracia alemã, insistiram, nos anos
seguintes, que Outubro teria sido uma aventura voluntarista.
Acusaram os bolcheviques de golpistas por terem feito a
revolução: queriam que os bolcheviques construíssem o regime
democrático-liberal quando a burguesia russa tinha apoiado os
métodos da guerra civil para defender a propriedade privada.
Quis a ironia da história que, na Rússia de 1917 – antecipando
um movimento histórico que depois se generalizou à Europa – os
partidos menchevique e SR, que nasceram como organizações
operárias e populares, transfiguraram-se nos porta-vozes da
pequena-burguesia e das incipientes classes médias urbanas: um
colchão de amortecimento da luta de classes entre o Capital e
o Trabalho, e os últimos advogados de um regime democráticoliberal, mesmo depois que a burguesia tinha abraçado o plano
da ditadura fascista, que poderia ser adornada com uma coroa
monárquica. Mais razoável, entretanto, seria concluir que uma
hesitação bolchevique em outubro, ou a sua derrota na guerra
civil entre 1918/1920, teria levado ao poder – apoiado pelas
democracias de Washington e Londres – um fascismo russo, e
ninguém deveria querer imaginar o que poderia ter sido um
“Hitler” no Kremlin.
A alternativa de outubro: capitalismo ou socialismo
O balanço que a história deixou parece irrefutável: se até a
Alemanha, a mais desenvolvida e educada das nações européias
não escapou da ditadura nazista, seria superficial e até,
talvez, ingênuo, imaginar que a atrasada Rússia semi-asiática
poderia ter consolidado um regime democrático-liberal ao final
da Primeira Guerra Mundial. São variadas as razões que
explicam essa impossibilidade na Rússia, ao contrário do que
aconteceu, posteriormente, na Europa do Mediterrâneo em 1945,
em Portugal e Espanha entre 1975 e 1978, ou na América Latina
entre 1982 e 1985.
Nas condições da Rússia depois da queda do Czar, em fevereiro,
a burguesia não estava disposta a romper suas relações com
Londres e Paris e iniciar um processo de paz em separado com
Berlim, porém, sem a paz, a burguesia não poderia imaginar a
convocação das eleições para a Constituinte. Ao chegar mais de
meio século atrasada ao processo de industrialização, e ao ter
se inserido no sistema internacional como potência semiperiférica – imperialista em relação às suas colônias no
Cáucaso e na Ásia, mas sub-metrópole em relação à França e à
Inglaterra – a burguesia russa tinha se associado aos capitais
estrangeiros para financiar a implantação de seu parque
industrial.
A
consolidação
de
uma
democracia-liberal
pressupunha
a
convocação de eleições em uma situação em que a legitimidade
da vontade popular tinha encontrado representação nos
sovietes, onde o principal partido burguês, o Kadete, não
tinha expressão. A força do proletariado em movimento impunha
uma forte presença dos partidos socialistas moderados,
mencheviques e esseristas, nos variados Governos provisórios,
mas, assim como Miliukov não estava disposto a romper com a
Entente, estes partidos não estavam dispostos a romper com a
burguesia, levando primeiro o Príncipe Lvov, e depois
Kerensky, ao impasse crônico.
Ao exigir das massas que
fizeram a revolução contra o Czar para se libertar da guerra,
que prolongassem a guerra para conseguir a Constituinte (e a
promessa secular de terra e libertação nacional para
ucranianos, bálticos, caucasianos e asiáticos) sucessivas
crises políticas foram se precipitando em vertigem até à crise
revolucionária, depois da derrota do golpe de Kornilov.
Referências bibliográficas
COLLETTI, Lucio. El marxismo y el derrumbe del capitalismo.
México: Siglo XXI, 1985.
DRAPER, Hal. Karl Marx’s theory of revolution. v. 2. Nova
York: Monthly Review Press, 1978.
FURET, François.
Siciliano, 1995.
O
passado
de
uma
ilusão.
São
Paulo:
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século
1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
XX,
TROTSKY, Leon. Historia de la revolución rusa. Bogotá: Pluma,
1982.
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