Leon Trotsky e a história da revolução russa Alvaro Bianchi A editora Sundermann publicou o livro a História da Revolução Russa, de Leon Trotsky, como parte das comemorações dos 90 anos da Revolução de Outubro. Além de poder adquirir um livro que era até então impossível de achar nas livrarias, o leitor é premiado com o sóbrio e bem cuidado tratamento editorial que este recebeu. Nada é desnecessário ou prescindível nessa nova edição. Apenas a o texto de Trotsky, com sua prosa fluente e arrebatadora tem nela lugar. Não poderia ser de outro modo. O livro se basta a si próprio. Issac Deustscher, o mais conhecido biógrafo do revolucionário russo, não vacila ao afirmar em sua trilogia que a História da Revolução Russa é o livro mais importante de Trotsky, um autor que escreveu várias obras memoráveis. Emilia Viotti da Costa, uma das historiadoras mais importantes do Brasil confessou em entrevista que esse foi um dos livros que fizeram sua cabeça. Outros tantos notáveis poderiam dar esse testemunho, sem falar dos incontáveis militantes anônimos que o leram nas mais diversas línguas pelo mundo todo. A tese de Deustscher, entretanto, não deixa de ser polêmica. Não são poucos os que consideram mais importantes outros textos do mesmo autor, tais como Balanço e perspectivas (que merece há tempos uma edição brasileira), A revolução traída, ou o pequeno, mas importantíssimo Programa de transição, estes dois últimos também publicados pela Sundermann. Mas há fortes razões a sustentar essa tese. A História da Revolução Russa reúne as idéias de Trotsky sobre a história e a revolução expondo de modo desenvolvido, o que ele nem sempre fazia, o núcleo de sua contribuição ao pensamento marxista. O resultado foi um clássico da historiografia do século XX. Apesar de seu autor ter tido uma posição privilegiada como observador – foi presidente do soviet de Petrogrado e comandante da insurreição – não se trata de um livro de memórias ou recordações e sim de um exercício de história do presente levado a cabo de modo rigoroso. A originalidade do marxismo de Leon Trotsky aparece de modo vigoroso neste livro. Como ele próprio conta em sua autobiografia, desde muito cedo rejeitou as concepções mecânicas que procuravam deduzir a revolução social das condições econômicas. Essa rejeição aparece claramente nos primeiros capítulos de História da Revolução Russa. O livro inicia-se com uma descrição da formação social russa com base na lei do desenvolvimento desigual e combinado, enunciada aí pela primeira vez. A Rússia embora ainda fortemente marcada por relações sociais herdadas do passado já tinha um pé na civilização capitalista à qual se encontrava conectada por meio do mercado mundial. Em Petrogrado e Moscou, uma moderna e concentrada classe operária encontrava seu lugar. Se o campo prendia a Rússia a seu passado asiático, as cidades a empurravam para seu futuro. Desse caráter combinado do desenvolvimento do capitalismo na Rússia é que nasceria a revolução social. Mas a revolução não era, senão uma possibilidade colocada pelo desenvolvimento histórico. A relação entre esse desenvolvimento e a revolução não era mecânica. Por essa razão, Trotsky assume os principais traços desse desenvolvimento como relativamente constantes. A questão chave para a revolução, afirma o autor já na primeira página de seu livro “é a interferência direta das massas nos eventos históricos”. E a seguir completava: “A história de uma revolução é para nós, antes de tudo, a história da entrada violenta das massas no domínio de decisão de sue próprio destino”. É por essa razão que não há nas 1.171 páginas desse livro uma análise das oscilações da economia russa. E quando o historiador soviético Mikhail Pokrovsky acusou-o de não perceber o colapso econômico que teria ocorrido na Rússia entre fevereiro e outubro, Trotsky respondeu que a concepção desse historiador, embora se fizesse passar por marxismo, não passava de uma explicação vulgarmente econômica da história. A crise econômica e a existência de privações, não são suficientes para provocar uma insurreição. Além de privações que sejam reconhecidas pelas massas como intoleráveis, é necessária, também, a difusão de novas idéias que tragam a perspectiva da revolução. É pois, sobre a mudança de “opinião e sentimento das massas” que o livro trata. Pois é com isso que as revoluções são feitas. Trotsky para o século XXI Alvaro Bianchi Qual é a contribuição que o pensamento de Trotsky pode dar para uma renovação teórica e política do marxismo? Passados 72 anos de seu assassinato, e é esta data o que nos provoca a reflexão, a pergunta faz sentido e poderia, até mesmo assumir a seguinte forma provocativa: o pensamento de Trotsky tem alguma contribuição a dar para a teoria dos movimentos sociais revolucionários do século XXI? A resposta é, do nosso ponto de vista afirmativa, se compreendermos seu pensamento como um ponto de partida para tal e não como um ponto de chegada. Somente esta resposta pode ser fiel ao espírito antidogmático que deve alimentar o marxismo e que foi cultivado por Trotsky. Dois aspectos do pensamento de Trotsky são cruciais para essa renovação e merecem ser destacados: uma concepção da história antideterminista e uma concepção internacionalista da política. Comecemos pela sua concepção da história. Durante toda sua vida, Trotsky foi um tenaz opositor do determinismo econômico que caracterizava tanto a social-democracia como o stalinismo. Repetidas vezes contestou a tentativa de derivar os fenômenos políticos diretamente da economia, a crise política da crise econômica. No Relatório sobre a Crise Econômica Mundial e as Tarefas da Internacional Comunista, apresentado no 3º Congresso da Internacional Comunista essa oposição ao determinismo é assim colocada: “Em geral, o movimento revolucionário do proletariado não depende da crise 1 (econômica). Há apenas interação dialética”. Essa formulação é constante no pensamento de Trotsky e será novamente explicitada, em 1935, no artigo Uma vez mais, aonde vai a França?: “Não há nenhuma crise que, por si mesma, possa ser ‘mortal’ para o capitalismo. As oscilações da conjuntura criam somente uma situação na qual será mais fácil ou mais difícil para o proletariado derrotar o capitalismo. A passagem da sociedade burguesa para a sociedade socialista pressupõe a 2 atividade de pessoas vivas, que fazem sua própria história.” A crítica contra o determinismo econômico é em Trotsky uma crítica contra o imobilismo que ele produzia no movimento operário internacional. Revalorizando o lugar da vontade humana na história, ele descarta todo automatismo reformista e afirma o primado da política nos processos de revolução social. É como parte dessa concepção antideterminista que Trotsky formulará a teoria do desenvolvimento desigual e combinado e a teoria da revolução permanente. O segundo aspecto no qual a contribuição de Trotsky para a renovação teórica e política do marxismo é decisiva é seu internacionalismo radical. Já no século XIX podemos encontrar formas intensas de solidariedade entre movimentos democráticos revolucionários. A construção da Associação Internacional dos Trabalhadores e, mas tarde da chamada Segunda Internacional podem ser considerados os pontos culminantes desse internacionalismo. Tal solidariedade estava fundada na identidade que esses movimentos partilhavam e no futuro comum no qual apostavam. O internacionalismo de Trotsky incorpora a necessidade da solidariedade fundada na identidade e nos projetos comuns mas vai além ao alicerçar-se em uma compreensão do imperialismo. Longe de ser um princípio abstrato, o internacionalismo é, para Trotsky, uma necessidade decorrente do caráter mundial da economia e da política capitalista em sua fase imperialista. Em sua análise do imperialismo, Trotsky destacará a contradição existente entre a existência de Estados nacionais e a crescente internacionalização da economia e sua manifestação nas contradições que se dão entre a lei do valor no mercado mundial e a regulação estatal, por um lado, e os países imperialistas e as colônias e semicolônias, por outro. Economia e política encontram-se unificadas na análise que Trotsky faz do imperialismo, o que lhe permitirá pensar a atualidade (e não iminência) da revolução socialista na época imperialista. Sua visão do imperialismo produz um internacionalismo que supera a ênfase em uma identidade comum. A ênfase agora é colocada na necessidade de contrapor ao imperialismo a ação internacional organizada do proletariado. O internacionalismo dos séculos XX e XXI é revolucionário. Ele inclui um esforço sistemático para coordenar os movimentos de emancipação do proletariado e alterar a correlação de forças na arena nacional, mas também na arena mundial. Tal esforço de coordenação só pode ser eficaz se estiver materializado em uma organização internacional dos trabalhadores. Depois da falência da social-democracia e do stalinismo essa organização passou a ser a Quarta Internacional, para a qual Trotsky dedicou suas energias ao longo de seus últimos anos de vida. Notas: 1 Leon Trotsky. The first five years of the Communist international. Londres: New Park, 1973, v. 2, p. 261. 2 Leon Trtosky. Aonde vai a França? São Paulo: Desafio, 1994, p. 64. Lenin e Trotsky e o debate marxista sobre as tarefas da revolução na Rússia Carlos Zacarias F. de Sena Júnior Em janeiro de 1905, uma multidão de operários de diversos ramos da indústria, 200 mil pessoas segundo estimativas da época, entre homens, mulheres e crianças, haviam marchado para o centro da cidade de São Petesburgo, na Rússia, com o objetivo de protestarem frente ao todo poderoso Tzar, Nicolau II, contra as duras condições de vida e trabalho que se abatiam sobre a maioria da população. Sob a liderança do padre George Gapon, a multidão caminhava pacificamente e sem armas (os que estavam armados, tinham tido suas armas recolhidas por ordens de Gapon), com muitos levando imagens de Nicolau II e entoando cantos religiosos e o “Deus salve o Tzar”. Os trabalhadores, que reivindicavam jornada de oito horas, salário mínimo de um rublo por dia, abolição da hora extra compulsória sem pagamento e liberdade de organização, não tinham idéia de que os acontecimentos que protagonizariam em seguida dariam ensejo a um processo histórico de transformações que ganhariam a Rússia e o mundo. Não obstante, marchavam pacificamente levando consigo as décadas de atraso de um país semi-feudal, oprimido por séculos de autocracia, miséria e fome. No texto da petição que a multidão pretendia entregar a Nicolau II, constava muito mais do que meras reivindicações por melhorias nas condições de vida da classe trabalhadora, pois a Rússia era um dos países mais atrasados da Europa e um dos países em que as hierarquias da sociedade nobiliárquica, onde apenas na segunda metade do século XIX os servos se haviam libertado, prevaleciam sobre a maioria da população das cidades e dos campos. Desta maneira, ficava evidente que ao lado da Rússia moderna do proletariado que pretendia emergir com as suas reivindicações e manifestações de massa, repousava ainda um bocado de passado de um país arcaico, mergulhado no obscurantismo que dialeticamente vinha sendo superado, como aparece no texto da petição: “Senhor – Nós, operários residentes da cidade de São Petesburgo, de várias classes e condições sociais, nossas esposas, nossos filhos e nossos desamparados velhos pais, viemos a Vós, Senhor, para buscar justiça e proteção. Nós nos tornamos indigentes; estamos oprimidos e sobrecarregados de trabalho, além de nossas forças; não somos reconhecidos como seres humanos, mas tratados como escravos que devem suportar em silêncio seu amargo destino. Nós o temos suportado e estamos sendo empurrados mais e mais para as profundezas da miséria, injustiça e ignorância. Estamos sendo tão sufocados pela justiça e lei arbitrária que não mais podemos respirar. Senhor, não temos mais forças! Nossas resistências estão no fim. Chegamos ao terrível momento em que é preferível a morte a prosseguir neste intolerável sofrimento.”1 Apesar de sua marcha pacífica e ordeira, Nicolau II parecia não ter interesse em conhecer o teor das reivindicações dos trabalhadores e terminou não tendo o privilégio de ler o texto da petição, talvez o último de uma longa era, pois a multidão conduzida pelo Padre Gapon nem chegou a se aproximar do imponente Palácio do Tzar. Cercada por “cerca de 20 mil soldados fortemente armados”, que atiraram indiscriminadamente nos trabalhadores a uma distância mínima de poucos metros, centenas ou talvez mais de um milhar de mortos levaram consigo para as sepulturas parte das cinzas de uma Rússia que começava a desaparecer. Foi um massacre e apesar de não se saber quantos haviam sido mortos naquele “domingo sangrento”, sabiase, por certo, “que uma época da história russa havia concluído abruptamente e uma revolução começara”. 2 Em fevereiro de 1905, uma onda de greves varreu toda a Rússia em resposta ao massacre do dia 9 de janeiro em São Petesburgo. Envolvendo cerca de um milhão de trabalhadores e atingindo mais de cento e vinte cidades, paralisando minas, ferrovias e inúmeras fábricas, o conteúdo das greves que sacudiram a Rússia em 1905 produziu muito mais do que algumas simples transformações nas relações entre a sociedade e a autocracia, ou entre os trabalhadores das fábricas e os patrões. Foi uma verdadeira revolução no sentido estrito do termo, pois a Rússia semi-feudal e majoritariamente camponesa deixava para trás toda uma era de obscurantismo e arcaísmo nas relações entre as classes e a história assistia, pela primeira vez, o nascimento de uma experiência inédita produzida pelos trabalhadores urbanos, os modernos proletários. Com efeito, os sovietes foram o resultado mais importante do ensaio de 1905, como organismos de duplo poder que dirigiram a revolução e produziram as transformações qualitativas exigidas pela maioria da população. Não obstante o novo ainda estivesse por nascer, o velho havia sido superado pela história, assim como o fora o Padre Gapon que dali por diante teria um papel muito menor do que o de outras lideranças emergentes da velha Rússia. Os acontecimentos ocorridos no dia 9 de janeiro de 1905, que os historiadores passaram a chamar de “ensaio geral” da Revolução Russa de 1917, inauguraram um longo processo de entrada em cena da classe trabalhadora daquele país, que viveu momentos de fluxo e refluxo das suas lutas, até que pudessem tomar o poder em Outubro de 1917. Mais do que um “ensaio geral”, entretanto, os significados da revolução de 1905 na Rússia iriam além das transformações que ela produziu na terra dos Urais, pois daria oportunidade a que as principais lideranças dos posteriores acontecimentos de 1917, Lenin e Trotsky, produzissem reflexões que redimensionariam o marxismo esterilizado dos gabinetes da social-democracia européia. As tarefas da revolução na Rússia Falando dos acontecimentos daqueles anos, Trotsky se referiu ao uso que a história fez do “fantástico plano de Gapon” que culminou na conclusão revolucionária de 1905 e na formação dos sovietes.3 Trotsky, que em 1905 havia presidido o soviete de São Petesburgo, o mais importante de toda o país, esteve empenhado em estudar a fundo as implicações de uma revolução num país tão atrasado como a Rússia. Em função disso, travou uma das mais profícuas polêmicas do interior do marxismo, polêmica esta que culminou na elaboração da teoria da “Revolução Permanente” que, curiosamente nas suas origens, opôs o futuro comandante do Exército Vermelho, ao líder máximo do Partido Bolchevique. Os termos do debate ocorrido em torno dos acontecimentos de 1905 remontam a um dos principais postulados do materialismo histórico que defende que uma “organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter”. 4 Neste sentido, quais as possibilidades de uma revolução socialista triunfar num tão atrasado como a Rússia que sequer tinha desenvolvido completamente relações sociais de produção do tipo capitalistas? Para Lenin, que no curso dos acontecimentos de 1905 desenvolveu um texto em polêmica com os mencheviques, a conquista do poder pelo proletariado, colocada na ordem do dia, não implicava numa imediata transição para o socialismo, haja vista a impossibilidade de se saltar etapas.5 Lenin tinha em mente que o que estava em jogo na Rússia era a revolução burguesa e suas tarefas democráticas e por isso propunha a consigna de “ditadura revolucionária e democrática do proletariado e do campesinato”. Mas Lenin advertia aos mencheviques que, apesar de suas tarefas democráticas, portanto burguesas, as forças sociais que se opunham ao tzarismo, e que, portanto, deveriam se perfilar para a “vitória decisiva” sobre a autocracia, não poderiam contar com a presença da grande burguesia e dos latifundiários, visto “que eles nem sequer desejam uma vitória decisiva”. Para o líder bolchevique, a burguesia russa era incapaz, “pela sua situação de classe”, de empreender uma luta decisiva contra o tzarismo, justamente porque “a propriedade privada, o capital e a terra”, eram um lastro demasiadamente pesado para esta classe. Neste sentido, Lenin entendia que a “única força capaz de obter ‘vitória decisiva sobre o tzarismo’”, só podia ser o “povo, isto é, o proletariado e o campesinato, se se tomar as grandes forças fundamentais e se se distribuir a pequena burguesia rural e urbana (também ‘povo’) entre um e outro”. Não obstante, a vitória da revolução na Rússia, para Lenin, não converteria “ainda, de forma alguma”, a revolução russa de burguesa a socialista. De acordo com o líder russo, que antevia os profundos significados das transformações que se começavam a produzir na Rússia, a “revolução democrática” não ultrapassaria “diretamente os limites das relações econômicossociais burguesas”, e embora se fizesse apesar da burguesia, teria “importância gigantesca para o desenvolvimento futuro da Rússia e do mundo inteiro”.6 O fato é que em 1905, enquanto combatia os primeiros passos do reformismo no seu país, representado pela corrente menchevique, Lenin raciocinava rigorosamente dentro dos limites das proposições do materialismo histórico de Marx e Engels que pressupunha que as transformações profundas nas sociedades só poderiam ocorrer em meio a condições materiais concretas, de maneira que “a humanidade só levanta problemas que é capaz de resolver”. Em todo caso, se a humanidade havia levantado o problema da tomada do poder pelo proletariado, não era o caso de as condições estarem efetivamente colocadas para uma revolução socialista na Rússia? Com efeito, caberia se perguntar sobre os limites e possibilidades de um outro postulado do materialismo histórico, também central da formulação marxiana e engelsiana e intimamente articulado com as condições objetivas legadas pelo passado, que dizia que eram os homens que faziam a história. Desta forma, foi justamente Trotsky que descobriu o caminho que traria a revolução das suas tarefas democráticas, para o socialismo, através da teoria da Revolução Permanente, contribuindo de forma original e inovadora para superar a letargia do formalismo que pesava sobre o pensamento marxista europeu. Sobre o assunto, Trotsky se dedicou a estudar o desenvolvimento do capitalismo na Rússia no início do século XX e as forças motrizes da revolução, para propor, que no que se referia às suas tarefas diretas e indiretas, a revolução russa seria uma “revolução ‘burguesa’, porque se propõe libertar a sociedade burguesa das correntes e grilhões do absolutismo e da propriedade feudal”. Contudo, pensava Trotsky, se a principal força condutora da revolução russa era a classe operária, a revolução era “proletária no que diz respeito ao seu método”. 7 (p. 66) Ou seja, se em 1905 o proletariado russo havia avançado em nome dos seus próprios objetivos, quase todos eles contrapostos aos objetivos da própria burguesia que se limitava às tarefas democráticas da transformação, a revolução não poderia fazer retornar a “unidade da nação burguesa”, de maneira que, na “revolução burguesa sem uma burguesia revolucionária”, o proletariado seria conduzido “pelo desenvolvimento interno dos acontecimentos”, a assumir a hegemonia sobre o campesinato e à luta pelo poder do Estado”. Não obstante, Trotsky não ignorava que o atraso do desenvolvimento russo poderia dificultar, ou mesmo impedir, o sucesso completo da revolução naquele país. Ou seja, para aqueles que apressadamente poderiam dizer “voluntarista” a formulação trotskiana, cabe mencionar que no seu estudo mais importante sobre o assunto, Balanços e Perspectivas, Trotsky partiu das forças da necessidade histórica, para propor que, apesar das condições objetivas legadas pelo passado, são os homens que fazem a história.8 Desta maneira, o presidente do soviete de São Petesburgo defendia a possibilidade de que a Rússia pudesse “saltar etapas”, tendo em vista que, de nenhuma maneira, uma sociedade atrasada, tendo diante de si um modelo histórico já pronto e desenvolvido, precisaria necessariamente percorrer o mesmo caminho da sociedade avançada. De acordo com Trotsky, isso ocorria em virtude da existência de uma outra lei histórica do desenvolvimento da sociedade descoberta pelo marxismo, qual seja, a lei do desenvolvimento desigual e combinado que aparece enunciada plenamente no seu texto sobre a História da Revolução Russa: “As leis da História nada têm em comum com os sistemas pedantescos. A desigualdade do ritmo, que é a lei mais geral do processus histórico, evidencia-se com maior vigor e complexidade nos destinos dos países atrasados. Sob o chicote das necessidades externas, a vida retardatária vê-se na contingência de avançar aos saltos. Desta lei universal da desigualdade dos ritmos decorre outra lei que, por falta de uma denominação apropriada, chamaremos de lei do desenvolvimento combinado, que significa aproximação das diversas etapas, combinação das fases diferenciadas, amálgama das formas arcaicas com as mais modernas. Sem esta lei, tomada, bem entendido, em todo o seu conjunto material, é impossível compreender a história da Rússia, como em geral a de todos os países chamados à civilização em segunda, terceira ou décima linha.”9 Neste sentido, quando pensava nas possibilidades de uma vitória do socialismo num país atrasado, Trotsky respondia a questão apenas de forma condicional, remetendo a outros aspectos que diretamente influenciariam nas possibilidades do socialismo vingar na Rússia. Com efeito, dizia Trotsky, caso o proletariado tivesse êxito em conquistar a hegemonia política sobre o campesinato, cujos interesses democráticos poderiam levá-los para o campo da burguesia, e dessa forma exceder “os limites nacionais da revolução russa, então essa revolução pode tornar-se o prólogo de uma revolução socialista mundial”.10 Ou seja, para o dirigente russo, as possibilidades de o socialismo vingar na Rússia nas condições em que uma revolução proletária tomasse novamente aquele solo diziam respeito ao fato de que nenhum país poderia ser pensado isoladamente e nenhuma revolução poderia triunfar plenamente nos marcos e nos limites de uma só nação. 1917: a revolução permanente Os resultados dos acontecimentos históricos que se abateram sobre a Rússia em 1917, deram razão aos postulados e vaticínios de Trotsky. Contudo, sem o gênio político de Lenin, a revolução de Outubro, muito dificilmente, teria logrado sucessor, isto porque se os resultados do embate entre Lenin e Trotsky em 1905-1907, não devem ser considerados como os mais importantes nos desdobramentos da Revolução de Outubro, não deixa de ser importante o fato de que foi da convergência de posições dos dois grandes líderes revolucionários que se produziu a melhor síntese que permitiu ao marxismo russo superar dialeticamente seus congêneres europeus. Trotsky parece ter sido vitorioso no que tange a efetividade prática de sua teoria da Revolução Permanente, mas sem a teoria do partido de Lenin, que lutara arduamente para edificar a ferramenta indispensável do Partido Bolchevique, inicialmente criticada por Trotsky, a revolução muito dificilmente teria tido sucesso na Rússia. E se Trotsky reconheceu a superioridade da formulação leniniana do partido já em 1917, quando aderiu à organização bolchevique e dirigiu, junto com Lenin, a Revolução de Outubro, Lenin, à sua maneira, aderiu a formulação trotskiana da Revolução Permanente em abril de 1917, através das famosas Teses de Abril. Estas colocaram a tomada do poder pelos sovietes na ordem do dia para os bolchevques, que também passaram a ser exortados por Lenin a fazerem transitar a revolução da sua etapa burguesa para a etapa socialista.11 Para o líder bolchevique, após a revolução de fevereiro e os acontecimentos que se produziram na consciência dos trabalhadores russos em poucos meses, colocar a conclusão da revolução burguesa nos marcos de uma longa etapa, como havia pensado originalmente em 1905, seria esterilizar o marxismo que é, antes de tudo, “análise concreta de situação concreta”. Neste sentido, pensava Lenin, na circunstância em que uma guerra atingia a Europa e as possibilidades do socialismo na Rússia se ligavam umbilicalmente a vitória da revolução mundial, a revolução russa seria, apenas, “a primeira etapa da primeira das revoluções proletárias geradas inevitavelmente pela guerra”. Por isto, a tarefa urgente dos bolcheviques era lutar pelo papel dirigente do proletariado na revolução e “explicar ao povo a urgência de uma série de passos praticamente maduros em direção ao socialismo”. 1 2 O sucesso da Revolução de Outubro de 1917, na Rússia, foi o resultado de um longo processo de amadurecimento de condições históricas que, de maneira desigual e combinada, prepararam o mundo para o socialismo. Evidentemente, que os desdobramentos daquela experiência que produziram a contra-revolução stalinista e a ascensão da burocracia, também estiveram relacionados a condições históricas muito particulares. Não obstante, como a nenhum marxista é dado o direito de raciocinar apenas sobre os termos em que os fatores objetivos criam as condições para a emergência das subjetividades, deve- se afirmar que ao lado das condições produzidas pela necessidade histórica, caminharam sempre os fatores da vontade e da agência humana. Sendo assim, da mesma forma que as derrotas posteriores da revolução mundial foram provocadas pela presença de direções stalinistas que estiveram à frente dos diversos processos, sempre a serviço da teoria do “socialismo num só país”, a vitória da revolução russa em 1917 deveu-se a existência de gênios políticos da estatura de Lenin e Trotsky, que estudaram a fundo as leis da necessidade histórica e os significados das revoluções para que pudessem incidir a fundo sobre a política de maneira a mudar o rumo da História. Notas: 1 Apud BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. 9 ed., São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 236. 2 Idem, ibidem, p. 237. 3 TROTSKY, Leon. A revolução de 1905. São Paulo: Global, s/d, p. 90. 4 MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983, p. 25. 5 LENINE, V. I. “Duas táticas da social-democracia na revolução democrática”. In: Obras escolhidas. 3 ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1986, p. 406, v. 1. 6 LENINE, “Duas táticas…”, in: Obras escolhidas, Op. cit., p. 410-411, v. 1. 7 TROTSKY, A revolução de 1905. Op. cit., p. 72. 8 TROTSKY, Leon. 1905: resultados y perspectives. Madrid: Ruedo Ibérico, 1971. Alguns capítulos desta importante obra de Trotsky, ainda não traduzida em sua íntegra para o português, aparecem na edição brasileira da A revolução de 1905, da global citada anteriormente. 9 TROTSKY, Leon. História da revolução russa. A queda do tzarismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 25, v. 1 (grifos no original). 10 TROTSKY, A revolução de 1905, Op. cit., p. 291. 11 Cf. LENINE, V. I. “Sobre as tarefas do proletariado na presente revolução”. In: Obras escolhidas. São Paulo: AlfaOmega, 1988, p. 14, v. 2. 12 LENIN, V. I. “VII Conferência (de abril) de toda a Rússia do POSDR(b)”. In: Id., ibid., p. 98. (Texto publicado originalmente no site do PSTU (www.pstu.org.br), em 2007, por ocasião da passagem dos 90 anos da Revolução Russa.) Trotsky fala sobre “Processos de Moscou” 1936-1938 (Vídeo) os de Discurso de Leon Trotsky, em inglês, para a Comissão Dewey, na Cidade do Mexico. http://www.youtube.com/watch?v=DzNPXQo3_DY Discurso de Leon Trotsky, em abril de 1919 (Vídeo) Discurso pronunciado por Leon Trotsky em abril de 1919 sobre a União das Repúblicas Soviéticas. Trata-se de uma das raras gravações do dirigente do Exército Vermelho. A tradução e a legenda do vídeo são de Erick Fishuk. Discurso sobre a união das repúblicas soviéticas Leon Trotsky [ A união fraternal das repúblicas soviéticas. Discurso do Comissário do Povo para Assuntos Militares e Navais, camarada Trotsky. ] Camaradas! A velha Rússia tsarista era um todo firmado pelos aros férreos da violência e do despotismo. Em meio à brutalidade da última guerra mundial, esses aros foram rebentados, bem como se fez em pedaços o antigo regime monárquico. E muitos pensaram que os povos da velha Rússia tsarista se apartariam para sempre. Mas eis que às nossas vistas se dá um grande prodígio histórico: o Poder Soviético está os dispondo numa sólida e harmoniosa união. As tropas soviéticas libertaram Khárkov e Kíev. Mas e daí? O povo ucraniano quer afinal conduzir sua existência à parte do restante da Rússia Soviética?! Não, ele quer uma união fraternal comum mantida por laços indissolúveis. Os regimentos vermelhos libertaram Riga e Vilno. Mas e daí? O povo letão, o povo lituano e o povo bielo-russo desejam afinal que uma muralha de pedra os separe de nós?! Não, eles querem uma união fraternal estreita. E o mesmo ocorrerá amanhã à Estônia, ao Cáucaso, à Sibéria e a todos os territórios do antigo império tsarista ainda hoje desmembrados. Isso mostra que no coração dos povos trabalhadores reside um desejo inabalável de combinar suas forças. Onde o ferro e o sangue firmavam o império tsarista, aí também o povo, no íntimo de sua consciência, desejava uma existência fraternal e livre, sem guerras, disputas ou hostilidades de uma nação com outra. Hoje, tendo recebido a direção do Estado em suas mãos por intermédio do Poder Soviético, o povo trabalhador está edificando uma nova Rússia, soviética e federativa. E essa Rússia Soviética estende suas mãos à nova Alemanha em surgimento, para que todos os povos transformem o mundo numa república soviética unida! Outros Outubros virão Valério Arcary Hoje celebramos noventa e cinco anos da revolução russa. A efeméride oferece a ocasião para o ressurgimento da interpretação liberal sobre o seu significado: seus arautos nos recordarão, em um exercício manipulado de história contrafactual, que o século XX teria sido o palco de uma luta titânica da democracia contra os totalitarismos comunista e fascista. Esquecerão, convenientemente, que sem a revolução de outubro e, portanto, a existência da URSS, seria pelo menos duvidoso a introdução de regulações no capitalismo como a experiência do New Deal de Roosevelt nos EUA na sequência da crise de 1929, ou a seguridade social na Escandinávia nos anos trinta. A vitória da luta contra o nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial teria sido imensamente mais difícil. Argumentarão, pomposos e solenes, que as revoluções seriam processos de transformação, historicamente, superados: teriam sido, afinal, terremotos convulsivos característicos de nações com baixos níveis de instrução. O que não permitiria explicar o Maio de 1968 na França: um dos países centrais com escolaridade média mais elevada do mundo. Descuidarão, portanto, que a história é um processo em aberto. Ininterrupta, a história voltou a nos surpreender com revoluções políticas, como nos recordam os últimos dois anos na Tunísia, Egito, Líbia, Síria, enfim, no Magreb e Oriente Médio. O século do encontro da revolução com a história A revolução política e social foi o fenômeno decisivo da história contemporânea, deslocando o lugar que, no passado, era ocupado pela guerra. A desigualdade social foi e continua sendo o maior problema da civilização. Revoluções aconteceram e continuarão acontecendo porque há injustiça e tirania no mundo. A disparidade de condições materiais e culturais de existência humana precipitaram, recorrentemente, crises sociais que transbordaram em crises políticas. Quando as crises políticas não encontram uma solução no limite das relações sociais dominantes, abre-se uma situação revolucionária. A revolução russa de outubro não foi uma excepção. Ao contrário, a revolução bolchevique estabeleceu um dos paradigmas mais longevos do século XX e inspirou várias das gerações de socialistas que vieram depois. Mudanças eram – e continuam – sendo necessárias. Nenhuma sociedade permanece imune à pressão por mudanças. Mas, as forças da inércia histórica são proporcionais à força social reacionária de cada época. Um atraso significativo e, muitas vezes, terrível, é inevitável entre o momento da manifestação de uma crise social, e o tempo que a sociedade precisa para que seja capaz de enfrentar as mudanças que são indispensáveis. Revoluções não acontecem quando são necessárias, mas quando a pressão pela transformação se demonstrou inadiável. A história confirmou que as transformações podem ocorrer por via de reformas, ou seja, por lutas que resultam em negociações e acordos transitórios que mantém, na essência, a ordem econômica, social e política, ou por via de revoluções. Significado das derrotas históricas A velha máxima que assegura que as revoluções tardias são as mais radicais não deixou de se confirmar. Ao final da Primeira Guerra Mundial ruíram na Europa Central e Oriental três Impérios – o russo, o austro-húngaro e o prussiano – que tinham atravessado, incólumes, o século XIX, desde a Santa Aliança anti-republicana e o Tratado de Viena de 1815. As formas monárquicas mais ou menos arcaicas de cada um deles – expressão de uma transição burguesa negociada sob as cinzas da derrota das revoluções democráticas de 1848 – foram destruídas pelo desenlace da guerra, mas, também, pela maior vaga revolucionária que a história tinha até então conhecido: de Petrogrado a Budapeste, de Viena a Berlim, milhões de homens e mulheres, trabalhadores e soldados, atraíram para o seu lado setores das camadas médias, artistas, intelectuais e professores, e lançaram-se na obra de destruir os velhos regimes de opressão que os tinham mergulhado no turbilhão do genocídio que acabou consumindo algo próximo a dez milhões de vidas. Aonde as revoluções democráticas de 1848 foram derrotadas pelas velhas monarquias – fortalecidas na época da restauração depois de 1815- como na Alemanha prussiana e no Império dos Habsburgos, a tarefa de pôr fim à guerra uniu-se à proclamação da República, mas as forças sociais que impuseram, pelos métodos da revolução, a derrota do governo – o proletariado e os camponeses arruinados que constituíam a maioria do exército – não se contentaram somente com as liberdades democráticas, e lançaram-se na vertigem da conquista do poder com suas esperanças socialistas. As revoluções atrasadas da Europa Central e Oriental transformaram-se em revoluções proletárias pioneiras ao final da Primeira Guerra Mundial, mas, à excepção da Rússia, foram desbaratadas. Derrotas históricas, contudo, têm conseqüências trágicas e duradouras. O custo histórico, para os alemães, da derrota de seus jacobinos em 1848 foi o militarismo nacionalista do II Reich, o imperialismo do Kaiser, e a Primeira Guerra Mundial. O preço que a nação alemã pagou pela derrota do seu proletariado – o triunfo do nazismo, a Segunda Guerra e os seis milhões de vidas da juventude alemã – foi ainda maior. Ditadura do proletariado ou ditadura fascista Aonde as formas tirânicas do Estado revelaram-se mais rígidas, como na Rússia, a revolução democrática radicalizou-se, muito rapidamente, em revolução socialista, confirmando que revoluções não podem ser compreendidas somente pelas tarefas que se propõem resolver, e menos ainda pelos seus resultados, mas, sobretudo, pelos sujeitos sociais, ou classes, que tiveram a audácia de fazê-las, e pelos sujeitos políticos, ou partidos, que foram capazes de dirigi-las. O substitucionismo histórico – de uma classe por outra – e a centralidade da política – com a redução das margens de improviso da liderança – demonstraram-se as chaves de explicação dos processos revolucionários contemporâneos. Não foi a burguesia russa que se lançou à insurreição para derrubar o Estado semi-feudal dos Romanov em fevereiro de 1917, mas foi ela quem impediu o governo provisório do Príncipe Lvov de fazer a paz em separado com a Alemanha: os capitalistas russos demonstraram-se demasiado frágeis para, por um lado, romper com seus parceiros europeus, e por outro, para garantir a sua dominação através de métodos eleitorais na República que nascia pelas mãos da insurreição proletária e popular. Não foi a burguesia quem mandou os seus filhos para as trincheiras da guerra serem massacrados, mas era ela quem apoiava Kerensky, quando este insistia em lançar os camponeses fardados em ofensivas suicidas sobre o exército alemão. A pressão de Londres e Paris exigia a manutenção da frente oriental, mas a pressão de um proletariado poderoso e combativo – proporcionalmente a uma burguesia com pouco “instinto de poder” pela submissão à monarquia – exigia o fim da guerra; as forças mais fortes da esquerda socialista – mencheviques e esseristas – se recusavam a assumir o poder sozinhos, porque não queriam romper com a burguesia, porém os bolcheviques, minoritários até setembro, recusavam a integração no governo de colaboração de classes, porque não admitiam romper com as reivindicações populares. Quando Kerensky perdeu o apoio nas classes populares, a burguesia russa apelou ao general Kornilov para resolver com as armas, o que não podia ser resolvido com argumentos. A hora das eleições para a Constituinte tinha passado. A burguesia russa perdeu a paciência com Kerensky e rompeu com a democracia, dois meses antes de o proletariado perder a paciência com os seus líderes, e recorrer a uma segunda insurreição para terminar com a guerra. O fracasso do putsch selou o destino da burguesia russa. O proletariado e os soldados encontraram nos bolcheviques, nas horas terríveis de agosto, o partido disposto a defender com a vida as liberdades conquistadas em fevereiro. Sem o apoio da burguesia e sem o apoio das massas, suspenso no ar, o governo de Kerensky – e seus aliados reformistas – procurou socorro no pré-parlamento, mas a legitimidade da democracia direta dos sovietes superava a representação indireta de qualquer assembléia: o tempo para as negociações com a Entente tinha se esgotado, a oportunidade histórica para a república burguesa tinha sido perdida. Era tarde demais. A engrenagem da revolução permanente empurrava os sujeitos sociais interessados no fim imediato da guerra – a maioria do Exército e dos trabalhadores – para uma segunda revolução e operava a favor dos bolcheviques que, no espaço de poucos meses, viam sua influência se agigantar. O proletariado e os camponeses pobres precisaram dos meses que separaram fevereiro de outubro para perderem as ilusões no governo provisório, onde os partidos em que depositavam suas esperanças, mencheviques e esseristas, eram incapazes de garantir a paz, a terra e o pão, e entregar sua confiança aos sovietes onde a liderança de Lênin e Trotsky se afirmava. Martov, líder dos mencheviques internacionalistas e Kautsky, líder da social-democracia alemã, insistiram, nos anos seguintes, que Outubro teria sido uma aventura voluntarista. Acusaram os bolcheviques de golpistas por terem feito a revolução: queriam que os bolcheviques construíssem o regime democrático-liberal quando a burguesia russa tinha apoiado os métodos da guerra civil para defender a propriedade privada. Quis a ironia da história que, na Rússia de 1917 – antecipando um movimento histórico que depois se generalizou à Europa – os partidos menchevique e SR, que nasceram como organizações operárias e populares, transfiguraram-se nos porta-vozes da pequena-burguesia e das incipientes classes médias urbanas: um colchão de amortecimento da luta de classes entre o Capital e o Trabalho, e os últimos advogados de um regime democráticoliberal, mesmo depois que a burguesia tinha abraçado o plano da ditadura fascista, que poderia ser adornada com uma coroa monárquica. Mais razoável, entretanto, seria concluir que uma hesitação bolchevique em outubro, ou a sua derrota na guerra civil entre 1918/1920, teria levado ao poder – apoiado pelas democracias de Washington e Londres – um fascismo russo, e ninguém deveria querer imaginar o que poderia ter sido um “Hitler” no Kremlin. A alternativa de outubro: capitalismo ou socialismo O balanço que a história deixou parece irrefutável: se até a Alemanha, a mais desenvolvida e educada das nações européias não escapou da ditadura nazista, seria superficial e até, talvez, ingênuo, imaginar que a atrasada Rússia semi-asiática poderia ter consolidado um regime democrático-liberal ao final da Primeira Guerra Mundial. São variadas as razões que explicam essa impossibilidade na Rússia, ao contrário do que aconteceu, posteriormente, na Europa do Mediterrâneo em 1945, em Portugal e Espanha entre 1975 e 1978, ou na América Latina entre 1982 e 1985. Nas condições da Rússia depois da queda do Czar, em fevereiro, a burguesia não estava disposta a romper suas relações com Londres e Paris e iniciar um processo de paz em separado com Berlim, porém, sem a paz, a burguesia não poderia imaginar a convocação das eleições para a Constituinte. Ao chegar mais de meio século atrasada ao processo de industrialização, e ao ter se inserido no sistema internacional como potência semiperiférica – imperialista em relação às suas colônias no Cáucaso e na Ásia, mas sub-metrópole em relação à França e à Inglaterra – a burguesia russa tinha se associado aos capitais estrangeiros para financiar a implantação de seu parque industrial. A consolidação de uma democracia-liberal pressupunha a convocação de eleições em uma situação em que a legitimidade da vontade popular tinha encontrado representação nos sovietes, onde o principal partido burguês, o Kadete, não tinha expressão. A força do proletariado em movimento impunha uma forte presença dos partidos socialistas moderados, mencheviques e esseristas, nos variados Governos provisórios, mas, assim como Miliukov não estava disposto a romper com a Entente, estes partidos não estavam dispostos a romper com a burguesia, levando primeiro o Príncipe Lvov, e depois Kerensky, ao impasse crônico. Ao exigir das massas que fizeram a revolução contra o Czar para se libertar da guerra, que prolongassem a guerra para conseguir a Constituinte (e a promessa secular de terra e libertação nacional para ucranianos, bálticos, caucasianos e asiáticos) sucessivas crises políticas foram se precipitando em vertigem até à crise revolucionária, depois da derrota do golpe de Kornilov. Referências bibliográficas COLLETTI, Lucio. El marxismo y el derrumbe del capitalismo. México: Siglo XXI, 1985. DRAPER, Hal. Karl Marx’s theory of revolution. v. 2. Nova York: Monthly Review Press, 1978. FURET, François. Siciliano, 1995. O passado de uma ilusão. São Paulo: HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. XX, TROTSKY, Leon. Historia de la revolución rusa. Bogotá: Pluma, 1982.