David Hume e as origens do solipsismo moderno

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Universidade Catolica Portuguesa
From the SelectedWorks of Mendo Castro Henriques
December 6, 2001
David Hume e as origens do solipsismo moderno
- Conferência de 6 dezembro 2011.doc
Mendo Castro Henriques
Available at: https://works.bepress.com/mch/8/
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Colóquio David Hume - Universidade Católica Portuguesa
6 de Dezembro 2011
Comunicação inaugural
David Hume e as origens do solipsismo moderno
Mendo Castro Henriques
Abstract: David Hume é um protagonista da revolta contra os sistemas de metafísica da
modernidade. A sua arma é reduzir a consciência a um eu. Mediante o que chama impressões
sensoriais e ideias, o eu conhece um mundo exterior de onde desapareceu o horizonte do ser.
Existe uma razão forte para relacionar David Hume e o solipsismo: os utilitaristas,
pragmatistas e neo-positivistas que constituem a sua posteridade, têm defendido que o solipsismo
não pode ser refutado de forma racional; que a nossa afirmação sobre outras pessoas e o mundo
deve repousar num certo tipo de crença; ou que é apenas uma afirmação conveniente, ou uma
linguagem prática sobre a experiência. Aqui tentarei desvendar alguns dos equívocos nestes
debates, e esboçar as insuficiências destas várias posteridades de que é originador David Hume, o
grande solipsista.
Keywords: eu, solipsismo, experiência, conhecimento
1. Celebração e historiografia
Evocamos hoje e aqui o terceiro centenário do nascimento de David Hume. Estas
evocações ao ritmo dos centenários, uma proposta de Auguste Comte para consolidar a “religião
da humanidade”, foram assimiladas pela cultura contemporânea como modo de organizar a
informação e, também, de alimentar a indústria cultural. Seria desejável que os colóquios que
celebram a filosofia não obedecessem tanto a este ritmo historicista, mas sim a uma dinâmica de
um pensamento mais ousado e mais radical, que não espera pelo arrancar das folhas dos
calendários para se afirmar, porquanto emana do mais profundo da filosofia: ousar saber.
Evoquemos, pois, David Hume, mas em jeito crítico, como apela o colóquio. Eu assumo o
pressuposto que todos os filósofos, se o são efetivamente, dizem o mesmo, pelo que as suas
afirmações têm um ar de família. Mas esse mesmo não é a mesmidade do discurso. Precisamente
porque têm pontos de partida e chegada diversos, proferem afirmações muito diferentes.
A tarefa de uma perspetiva crítica sobre David Hume, creio eu, não é tentar isolar e destilar
a sua verdade última, com os problemas inerentes ao círculo hermenêutico, mas sim ajudar a fixar
a conversação entre a grande família filosófica de que ele faz parte. E, se me é permitido
continuar esta metáfora, eu diria que, nessa família, David Hume ocupa a posição do “garoto
rebelde” que sem saber bem o que faz, “partiu a louça” da metafísica velha, obrigando a filosofia
à procura de novas verdades.
2. O solipsismo
Procurarei nesta conferência correlacionar David Hume e o solipsismo moderno. O
solipsismo é a estranha posição de que só o eu existe. Todos os restantes elementos do universo
seriam invenções da mente, a única entidade real. É quase o mesmo que pensar que somos Deus;
e possivelmente, nunca houve um solipsista autêntico fora de uma instituição para doentes
mentais. Bertrand Russell recebeu uma carta de uma Sra. Christine Ladd-Franklin, uma lógica
muito respeitada que se afirmava solipsista. Até aqui, tudo bem. Só que a certeza exclusiva do eu
lhe parecia tão irrefutável, que ela escrevia indignada por não entender por que motivo os outros
filósofos não eram também solipsistas!
2
A que vem, então, o solipsismo?
O solipsismo implica uma perda do concreto relativamente ao reconhecimento, ou seja, às
experiências fundamentais em que afirmamos a participação na comunidade de ser e
relativamente aos conceitos e símbolos com que exprimimos uma orientação para a existência.
Vemo-lo, por um lado, crescer com a materialização do mundo externo na modernidade. Alfred
North Whitehead denunciou a falácia de só considerar como real a estrutura do mundo apontada
pela física matemática newtoniana.
O solipsismo cresce com a conversão do eu, o “self”, em entidade psicológica que, ao
reflectir sobre o fluxo da consciência, conheceria a natureza humana. Quando aquilo a que
chamamos humano deixa de se experimentar inserido num cosmos; e a unidade de criação fica
cindida num mundo e num eu, surgem os sistemas da metafísica racionalista clássica de
Descartes, Malebranche, Espinoza e Leibniz.
David Hume é um protagonista da revolta contra esses sistemas de metafísica. A sua arma
é reduzir a consciência a um eu. Mediante o que chama impressões sensoriais e ideias, o eu
conhece um mundo exterior de onde desapareceu o horizonte do ser. Desde o século XVIII, o
“self” adquiriu na cultura anglo saxónica um lugar central e não por acaso. Self esteem, self-knowledge,
self-government, self-made man são algumas das fórmulas com que essa cultura indica que o homem
“se faz a si próprio” sem referência a um outro, seja humano, divino ou natural.
Existe ainda uma razão sistémica mais forte para relacionar David Hume e o solipsismo: é
que os utilitaristas, pragmatistas e neo-positivistas que constituem a sua posteridade, têm
defendido que o solipsismo não pode ser refutado de forma racional; que a nossa afirmação
sobre outras pessoas e o mundo deve repousar num certo tipo de "crença"; ou que é apenas uma
afirmação conveniente, ou uma linguagem prática sobre a experiência. Aqui tentarei desvendar
alguns dos equívocos nestes debates, e esboçar as insuficiências destas várias posteridades de que
é originador David Hume, o grande solipsista.
3. New Scene of Thought
David Hume nasceu em Edimburgo em 1711. A sua família, tinha algumas posses, sendo
seu pai dono de "Ninewells", uma pequena propriedade perto de Berwick. O jovem David fez
estudos na Universidade de Edimburgo, onde se matriculou em 1723 e onde permaneceu dois ou
três anos. Não há registo de sua formatura, e alguma incerteza quanto aos temas que estudou;
provavelmente incluíam língua Latina e Grega, Metafísica, Logica, Filosofia Natural, Matemática
e Ética.
Após deixar Edimburgo passou cerca de sete anos em casa, alegadamente a estudar
Direitomas, de facto, a ler vorazmente sobre outros temas, em particular filosofia. Hume foi um
dos muitos que no final da adolescência estava convencido que tinha obtido uma nova visão da
verdade, e que a deveria dar a conhecer ao mundo. E foi um dos poucos que conseguiu. Em uma
carta de 1734 ao médico Henry Home, fala de sua longa busca por um "novo meio, pelo qual a
verdade possa ser estabelecida" e as “disputas intermináveis dos filósofos resolvidas”.
Nessa carta afirma que, aos dezoito anos, "parece que se abriu para mim um novo cenário
do pensamento, que me transportou além das medidas e me levou, com o ardor natural dos
jovens, a abandonar fora qualquer outro prazer ou negócio para me aplicar inteiramente a essa
tarefa." Hume foi assim o que hoje os adolescentes chamam um geek, ou os maus estudantes, um
“marrão”. A carta, dirigida a um médico, fala da sua luta prolongada com as doenças por que
passou, no esforço para exprimir o seu novo sistema de filosofia. Finalmente, mudança salutar,
Hume aposentou-se por três anos para La Flèche, em Anjou, onde compôs o Tratado da Natureza
Humana, publicado em Londres, em 1738.
O tratado é o produto de oito anos de intenso trabalho para tornar credível uma filosofia
nova, revolucionária e paradoxal. É lançado com a emoção da descoberta, e a antevisão de uma
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recepção intensamente hostil. Conforme a moda, Hume quer ser o Newton da natureza humana
e o Tratado tem por subtítulo “Uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos
morais”
O que seria essa "New Scene of Thought" iniciada por Hume aos dezoito anos? O que seria o
"New Medium" de estabelecer a verdade? Talvez nunca saibamos ao certo. Mas na carta referida,
falando da filosofia moral a "transmitida pela Antiguidade" como "inteiramente hipotética", e em
que "todos consultavam a sua fantasia para criar esquemas de virtude e felicidade, sem considerar
a natureza humana, da qual todas as conclusões deveriam, portanto, depender …” afirma que
“resolvi fazer da natureza humana o meu estudo principal, e a fonte de que extrairia toda a
verdade e Critica, bem como a moralidade." Na Introdução ao Tratado, esta atitude é aplicada à
filosofia e às ciências. Os filósofos partem de hipóteses arbitrárias e enredam-se em discussões
intermináveis. Um estudo da natureza humana é a única maneira de criar um alicerce seguro, uma
pedra de toque para as hipóteses serem testadas. É razoável supor que o estudo da natureza
humana fosse a “nova cena de pensamento” referida pelo jovem Hume.
O Tratado sobre a Natureza Humana1 ocupa assim, um lugar primordial na obra de um autor
que, depois, se tornou prolífico não só na filosofia como em historiografia e economia. Hume
apenas modificou a sua epistemologia inicial, em aspectos menores.
A sua obra mais conhecida, a Investigação sobre o Entendimento Humano foi concebida para
remediar os defeitos na apresentação e estilo do Tratado, defeitos a que Hume atribuía o fracasso
junto ao público. A distinção entre relações de ideias e questões de facto tornou-se mais clara, e o
tratamento da causalidade segue as linhas da exposição de um Abstract. Desapareceram alguns
sofismas das Partes II e IV do Tratado, sobre o espaço e o tempo; alguns aspectos da percepção
sensorial e a identidade pessoal foram cortados ou omitidos e surge o notório capítulo com a
denúncia dos milagres, ausente do Tratado.
Quanto à filosofia moral e religiosa de Hume, pouca novidade apresenta. O Inquérito sobre o
Princípios da Moral (1751) modifica algumas alegações do Livro III do Tratado, e os Diálogos sobre a
Religião Natural, postumamente publicados, mas escritos na década de 1750, seguem a mesma
linha.
4. Erros alheios e receitas próprias
Quais, então, as principais características da filosofia de Hume que é razoavelmente
conhecida de todos, tal o seu simplismo?
Considera o grande solipsista que séculos de pensamento metafísico usaram o conceito de
causa para argumentar sobre a liberdade da vontade, a imortalidade da alma, a existência de Deus,
a relação entre mente e matéria e a realidade ou irrealidade do mundo físico. Esses argumentos
metafísicos tentavam demonstrar que uma coisa x só pode ser, ou não ser, a causa ou a coisa
causada por outra coisa y. Todos assumiam que nada existe sem uma causa.
O resultado foram as disputas intermináveis entre metafísicos, onde a certeza era inatingível
devido à atitude dogmática dos contendores e dos sistemas rivais.2 Para firmar a conexão entre as
ideias da mente e as supostas causas externas, Descartes invocou a veracidade de Deus: os
seguidores argumentaram que a matéria não pode afectar a mente, e supuseram que Deus
intervém para estabelecer uma correspondência entre as nossas sensações e os eventos
externos. Malebranche negou qualquer poder às coisas materiais, atribuindo este atributo a
Deus. Leibniz, para evitar as dificuldades da divisibilidade infinita da matéria, supôs um mundo
que consiste em almas, cujos pensamentos, segundo uma harmonia pré-estabelecida, apresentam
a aparência de um mundo material no Espaço e no Tempo. Para Berkeley, a matéria era uma
David Hume, A Treatise On Human Nature being an attempt to introduce the experimental method of reasoning into moral
subjects, Fontana/Collins, London, 1978
2
A Treatise…,, Introduction, 37
1
4
suposição ininteligível, que não poderia causar as ideias em nossas mentes. Deus seria a única
causa inteligível da experiência, e, uma vez que ser é perceber e ser percebido, todas as coisas existem
apenas na mente de Deus ou das suas criaturas. Metafísicos e teólogos não foram os únicos
infratores. Cientistas e matemáticos deixaram-se envolver em disputas sobre a possibilidade de
vácuo, a divisibilidade infinita do espaço e a matéria, e relação entre mente e corpo. E os
moralistas tentavam demonstrar os nossos deveres mediante argumentos puramente teóricos.
Hume quer ser o Newton da natureza humana e, conforme o subtítulo do Tratado “Uma
tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais”, ele tem uma “receita” para
todos os erros.
(1) O primeiro erro é supor que questões de facto sobre a existência de Deus ou a
imortalidade da alma, por exemplo, podem ser demonstradas dedutivamente. Não, diz Hume. As
demonstrações dependem de relações de ideias, e não das coisas, e apenas provam o que é
conceptível ou inconcebível, não o que é de facto, ou que é o caso.
(2) O segundo erro é pensar que as demonstrações podem ser realizadas sem analisar a
origem das ideias na experiência. Esta falha em analisar ideias como espaço, tempo, existência e
mente, cria disputas absurdas e os sistemas ditos “fantasiosos” de Leibniz, Malebranche e
Berkeley.
(3) O terceiro erro é pensar que a “causa” é um vínculo real entre as coisas, e que pode ser
demonstrada pela experiência, ou inferida de observações. A noção de “causa”, tão central desde
que Platão no Fédon a examinou para decidir se alguma coisa poderia destruir a alma, não tem
fundamento.
(4) O quarto erro é supor que o raciocínio demonstrativo é o único válido. Ao invés de
entender a crença como acto voluntário da mente, Hume define-a como um sentimento com que
somos forçados a considerar algumas ideias ao invés de outras, porquanto são o que estamos
acostumados por experiências passadas.
Os quatro erros fixam a "determinação habitual da mente" a que se refere a suposta
"conexão necessária" entre causa e efeito. Os raciocínios sobre matérias de facto são, portanto,
regidos pelo instinto e hábito, e não pela lógica.
Dos filósofos que menciona, Hume está sobretudo em dívida para com John Locke e
Francis Hutcheson. Este sustentava, com argumentos simplistas, que a natureza dotou os
homens com mais de cinco sentidos, entre eles, o sentido moral. Assim como o leite fresco tem
um cheiro doce e o leite estragado um sabor azedo, também as acções tendentes à felicidade e à
infelicidade provocam sentimentos opostos na mente. São estes sentimentos que nos permitem
classificar as ações em "boas" e "más".
No Livro III do Tratado, Hume denuncia o erro de considerar a bondade e a maldade moral
como propriedades demonstráveis e intrínsecas de pessoas e acões. Pelo contrário, diz, esses
termos apenas exprimem os sentimentos de aprovação e reprovação quando consideramos o
comportamento humano à luz das consequências. Este ponto de vista é justificado por uma
elaborada teoria da máquina psicológica das paixões.3
5. Onde está o empirismo?
Embora os resultados do Tratado de 1738 sejam radicais - liquidação de toda a metafísica e
ética racionalistas e definição do pensamento e da ação humanas como processos imanentes
naturais - a sua força disruptiva não foi reconhecida pelos contemporâneos. A recepção foi
Kemp Smith em The Philosophy of David Hume argumenta que Hume extraiu a sua teoria do conhecimento da
teoria moral de Hutcheson. Para este a crença é o sentimento do que é experimentado usualmente, e exprime-se em
fórmulas como "eu acredito que… ", "deve ser que ...", "eu acho provável que...". As ideias representam o que estamos
acostumados e têm o “cheiro e sabor” da verdade.
3
5
negativa, mesmo, sendo as vendas baixas. Após sete meses, surgiu uma recensão longa, abusiva e
paternalista em A História das Obras do Sábios. Em desespero, Hume escreveu e publicou
anonimamente um resumo do Tratado, explicando a tese central do Livro I. Pouca gente ligou ao
“garoto rebelde”. A concorrência era grande no empirismo britânico.
O empirismo de Hume é frequentemente representado como um desenvolvimento de
Locke e Berkeley: Nada de mais enganador. Hume e Berkeley rejeitam completamente o conceito
de substância segundo Locke mas herdam dele a visão da percepção sensorial como awareness, um
mosaico de impressões simples, espelhado por imagens na memória e imaginação. Com base
nisto, passam às suas respetivas narrativas sobre o conhecimento humano.
Hume tentou encontrar nas “associações de palavras” as “impressões dos sentidos”
("ideias" na terminologia de Berkeley), que dão sentido às palavras. Berkeley, contudo, acreditava
no poder da razão para construir uma metafísica espiritualista. Era um metafísico e um teólogo
que pretendia colocar a ciência natural num lugar subordinado e demonstrar que o materialista
era uma concepção absurda. Hume pretendia ser o Newton da mente humana e considerava
Berkeley um cético e um metafísico e não um filósofo empírico, a ponto de não o incluir nos
"empiristas britânicos".
Hume propôs-se aplicar o método experimental às coisas morais, e "recolher as nossas
experiências a partir de uma observação cuidadosa da vida humana".4 Mas é patente que não está
interessado em observar o comportamento humano. Existe uma única passagem no Tratado que
registra uma experiência genuína com uma mancha de tinta no papel.5 Hume não sabia conduzir
uma investigação científica, e se soubesse, o resultado seria psicologia empírica, que não resolve o
problema.
Que alguém tão inteligente pensasse que estava a realizar o que não realizava, só tem uma
explicação: e essa explicação chama-se cientismo.
O entusiasmo de Hume pelo método experimental foi inspirado pelos trabalhos de Sir
Isaac Newton. James Gregory, professor de Matemática em Edimburgo até 1725, foi, segundo
Reid, o primeiro que ensinou Newton em uma universidade escocesa, e foi sucedido por Colin
Maclaurin. Hume também pode ter lido a observação de Francis Bacon, que aplica o método
indutivo não só às ciências naturais, mas a todas as ciências.6
Por vezes Hume fala da “ciência do homem”, o fundamento da sua filosofia, como uma
novidade.7 Outras vezes, mais conciliador, representa-se a seguir os passos dos filósofos ingleses
Locke, Shaftesbury, Mandeville e Hutcheson.8 Considera que estes, em oposição aos racionalistas
continentais, tentaram fundamentar as teorias em factos empíricos, mas não alcançaram uma
ciência empírica do homem, nem encontraram princípios gerais. Agora, tal como a Mecânica fora
unificada pela lei da atracção de Newton, a ciência da mente ia ser unificada pela “lei de
associação de ideias”, aplicada por Hume.
Os resultados alcançados parecem seguir a descrição do método científico. Mas há uma
diferença radical. Os cientistas observam com o auxílio de instrumentos, havendo factos que só
podem ser estabelecidos pela reflexão. O vigor da filosofia de Hume é que ele usa os seus
excepcionais poderes de reflexão para obter um novo olhar sobre as coisas. Mas ao reduzir a
consciência ao eu, e o ser a um objecto, e a filosofia a uma analítica das impressões sensoriais e
dos sentimentos, está a caricaturar o método científico que aplicava fora de contexto. Na
verdade, Hume nem é um empirista. O seu cientismo degenera em solipsismo.
A Treatise…, Introduction, 44. Para Hume, "experiência" significa qualquer tipo de observação empírica.
A Treatise…, Parte II, Secção. I & IV.
6
Novum Organum, Aforismo 79
7
A Treatise…, 41. Sobre a influência de Newton, consulte a Parte I, Secção. IV, 56
8
A Treatise…, 42.
4
5
6
6. O pretenso método empírico
Segundo David Hume, a nossa mente ("eu" ou self) é uma série de percepções, e a nossa
crença na existência independente de coisas consiste no facto de haver na mente séries de
impressões de sentidos que formam uma imagem coerente. Da mente, não temos impressão e
Hume tem a ingenuidade de considerar esta última proposição como uma descoberta da
psicologia empírica.9 Na Seção VI, § 3, finge admitir que outras pessoas podem ter impressões de
si próprios, mas ele não tem de si. Apenas quer afirmar que a mente é o tipo de ente que não
pode ser visto, ouvido, cheirado, provado, ou mesmo sentido, como se fosse uma dor ou uma
paixão.
A sua anunciada tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais”
consiste apenas numa série de analogias entre investigações filosóficas e científicas. Os factos
empíricos são descobertos através da análise de coisas, os factos de reflexão são descobertos
através da análise de "ideias"… Sobre a "ideia" de causa e efeito diz: "Vamos, portanto, lançar o
nosso olhar sobre dois objetos, que chamamos de causa e efeito, e virá-los de todos os lados, a
fim de encontrar essa impressão, que produz uma ideia de consequências prodigiosas".10
Descobre que a ideia de causa implica contiguidade, sucessão, e uma conexão necessária, que não
pode ser percebida pelos sentidos, nem dedutivamente inferida
A ingénua convicção de que esta abordagem tinha grande valor é chocante à luz dos
conhecimentos atuais das neurociências.11 Mas mesmo dentro do contexto da época, o simplismo
de Hume é confrangedor. Ouçamo-lo: "É impossível entender perfeitamente qualquer ideia, sem
a rastrear até à sua origem e examinar a impressão primária de que provêm. O exame da
impressão dá clareza sobre a ideia; e o exame da ideia confere clareza ao nosso raciocínio."12 E
ainda : "E por este meio, podemos, talvez, atingir um novo microscópio, ou espécie de óptica,
pelo qual, nas ciências morais as ideias mais pequenas, e mais simples podem ser tão aumentadas
de modo a cair rapidamente sob nossa observação."13
E como funciona este "microscópio" de Hume? Uma ideia é uma imagem mental. Os
elementos de que é composta são cópias reais de impressões dos sentidos ou sentimentos. A
análise de uma ideia faz-se em duas etapas. Em primeiro lugar. a divisão da ideia complexa em
componentes simples, e depois a identificação das impressões simples do que as ideias simples
são cópias. A doutrina das ideias gerais, oriunda de Locke, é rejeitada. Para ter uma ideia geral de
vício, por exemplo, devemos ser capazes de formar um número indefinido de imagens de ações
particulares, associadas pelo costume devido à sua semelhança. "Considere uma ação viciosa;
homicídio doloso, por exemplo; examine-a sob todas as luzes (….) o vício, desde que considere o
objecto nunca pode encontrá-lo até virar a reflexão para o seu íntimo e encontrar um sentimento
de desaprovação”. 14
O intérprete de Hume pode deixar passar e entender expressões metafóricas como "lançar
o nosso olhar", "ver de todos os lados", "examinar à luz de". Mas também "encontrar um
sentimento de desaprovação no seu íntimo", e encontrar “uma impressão de que uma ideia é
derivada”, são expressões metafóricas, conquanto Hume as entenda como provas genuínas.
A Treatise , Parte IV, Secção II, § 6
A Treatise Parte III, Secção II
11
Michio Kaku, Os poderes da mente, Gradiva, Lisboa, 2014
12
A Treatise Parte III, Secção II, §12
13
An Enquiry, Secção VII, Parte I, n º. 49
14
A Treatise Livro III, Parte I, Secção II.
9
10
7
10. A reductio ad absurdum do empirismo
A filosofia de David Hume, tem sido muitas vezes descrita como a reductio ad absurdum do
empirismo. Mais exatamente, o que nela se deve ao empirismo não é absurdo, mas o que nela é
absurdo deve-se a este tipo de doutrina simplista e completamente ultrapassada sobre a origem
das ideias em impressões sensoriais, bem como a outros erros e solecismos que encontrou a sua
expressão moderna na expansão do “self” como termo central da cultura anglo-saxónica.
Tal como se apresenta já no Tratado da Natureza Humana, o principal legado de Hume
reside na distinção entre questões de lógica, de facto e de valor. As questões de lógica são
resolvidas mediante as relações lógicas entre ideias, sendo as respostas proposições analíticas. A
questão de facto é resolvida pela experiência e pela inferência indutiva, sem qualquer justificação
lógica, sendo as respostas proposições sintéticas. A questão de valor, resolve-a Hume mediante
os sentimentos e as avaliações. Dois e dois devem ser quatro. Metais aquecido devem expandirse. As promessas devem ser cumpridas. Usamos sempre a palavra “deve” ou equivalente. Mas são
três casos distintos de necessidade, lógica, causal e moral.
Existe alguma verdade em identificar a necessidade como uma impressão interna na
mente. Se dissermos que algo acontece, estamos a descrever o mundo, de um modo que pode ser
falsificado pelo curso dos acontecimentos. Mas se dizemos que algo deve acontecer,
provavelmente irá acontecer, ou que deve ser feito, adicionamos termos que não podem ser
falsificados pelos acontecimentos. Estes termos não são descritivos. Grosso modo, a sua função é a
de expressar a nossa atitude mental para com o curso dos acontecimentos. Segundo Hume, são
nomes dos sentimentos. Contudo, este legado interessante nada tem a ver com a teoria das
impressões e ideias. O uso do microscópio para detectar a impressão de que a ideia de conexão
necessária é derivada é um exercício mal orientado para salvar a hipótese de impressões e ideias.
11. Os sucessores de Hume
O pensamento anti-metafísico de Hume tem um valor iniciático. Ele quer-nos pôr a
pensar concretamente, como qualquer filósofo. Para ele, pensar concretamente o conceito de
causa, seria refletir sobre o que fazemos e dizemos quando decidimos que uma coisa é a causa de
outra. Encontrar conexões causais para alargar a nosso conhecimento do curso dos
acontecimentos, é algo que todos nós fazemos. Dizer claramente o que fazemos é elucidar o
conceito de causa.
Kant apreciou devidamente a revolução de Hume que o levou a negar a metafísica
racionalista e suas pretensas verdades sobre o universo, e exigir um exame crítico dos nossos
poderes cognitivos. Mas uma vez desperto do sono dogmático, Kant ultrapassa Hume, ao
descobrir que as proposições sintéticas a priori podem ser estabelecidas mediante pressupostos
do conhecimento empírico, ou mediante a consciência das nossas escolhas. Ultrapassa também
os argumentos medíocres de Hume sobre a impotência da moral, argumentos depois reciclados
por Jeremy Bentham.
Pensar concretamente, segundo Kant, exige estabelecer categorias, distinguir entre o a
priori e a posteriori. Mas ao negar que a metafísica pode demonstrar verdades sobre o universo,
conforme o exame crítico dos nossos poderes intelectuais, Kant revelou o que Hegel, numa
expressão deliciosa, chamou de “demasiada ternura pelas coisas”
A afirmação de Kant de acordo com a qual Deus, ou Homem ou Mundo são objectos
incognoscíveis, manifesta os limites da sua crítica. Todo o pensamento de Kant é dirigido para o
objecto. E como só examina a razão em referência aos objectos, não opera uma verdadeira
reflexão da razão sobre si mesma. Descobre a contradição na razão e expõe-na, mas não
considera isso um problema da razão.
Esta "teoria do conhecimento" é ultrapassada pela filosofia do idealismo alemão. Para Hegel
pensar concretamente é aceitar que a contradição não se realiza à margem das coisas.
8
Apresentando Kant nas suas Lições sobre a história da filosofia, Hegel diz então: "Este idealismo
transcendental deixa subsistir a contradição, mas não até ao ponto que o em si seja contraditório,
de tal modo apenas que a contradição reside no nosso espírito […]. revela demasiada ternura pelas
coisas; seria efectivamente pena que se contradissessem..15 O idealismo alemão teve como tarefa
tematizar esta contradição da razão em si mesma, descoberta por Kant. É a origem do que
Schelling chamou a “filosofia negativa” de Hegel a ser substituída pela sua “filosofia positiva”.
12 John Stuart Mill e o utilitarismo
Entretanto, o solipsismo e o empirismo britânico seguiram o seu curso.
Se considerarmos o dito de Berkeley que nada pode existir sem ser percebido e se
mudarmos Deus para “ser impessoal”, chega-se à teoria do conhecimento de Mill. Porque
dispensa uma divindade pessoal, esta teoria atraiu pragmatistas, positivistas e fenomenólogos.
A mais clara defesa de Mill é no capítulo II do seu livro sobre A filosofia de Sir William
Hamilton. Uma vez aceite o phaneron (do grego φανερός [phaneros] visível, manifesto) o mundo que
nos aparece, não nos devemos incomodar com o que está por detrás. Basta definir o mundo
externo como o conjunto de todos os objetos que não pode ser influenciado pela nossa
vontade. Uma vez que estas regularidades, sejam pessoas ou coisas, são o que todos julgam ser o
mundo exterior, o problema de um substrato torna-se pseudoproblema. Não há necessidade de
postular qualquer substrato material ou divino. A matéria é a "possibilidade permanente de
sensação." Uma árvore existe, fora de nós no sentido de que permanece lá, quer olhemos para
ela ou não. Ela continua a existir, não porque Deus a percebe, mas porque é parte da
phaneron. Para quê dizer mais? Falar de um substrato, matéria ou mente, que faz a árvore existir
nada adiciona ao que já sabemos. Não há necessidade de provar o mundo externo, porque ele
está "lá" por definição. A maioria dos filósofos, admite um substrato material ou espiritual por
trás do phaneron. Tal crença não é errada, mas supérflua. Afirmar a existência de um substrato ou
substância nada acrescenta à linguagem do fenomenalismo.
13 William James e o Pragmatismo
Esse tipo de empirismo de Stuart Mill influencia o pragmatismo. Numa carta que William
James, escreveu em 1907, quando a controvérsia sobre o pragmatismo estava no auge e os
críticos o acusavam de negar um mundo independente da mente, ele considera-se chocado com
essa acusação. "Eu sou", escreve ele, "um realista natural", como F.C.S. Schiller e John Dewey.
Imagine-se, James diz, um punhado de feijões arremessado sobre uma mesa. Cada pessoa
nota diversos padrões, conforme os seus interesses. O reconhecimento desses padrões é o que
William James chama verdade.
Este esforço para redefinir a verdade era essencialmente um programa de linguística e não
uma mudança fundamental na doutrina aristotélica de que a verdade é uma correspondência de
ideias com um mundo estruturado. Em "O Significado da Verdade, James acusa os críticos que o
acusam de não admitir a existência de objetos fora de mentes humanas. Não é assim, James
diz. "Nós todos estamos de acordo em admitir a transcendência dos objetos ...." Mais uma vez,
ele escreve que a epistemologia de Dewey é sem sentido a menos que se postula "entidades
independentes".
15
HEGEL, Lições sobre a
história da filosofia, ed. Glockner, t. XIX, 582.
9
14. A abordagem de Carnap e dos neo-positivistas
Que não faz sentido perguntar se existe um substrato por trás do phaneron também foi
defendido por membros do Círculo de Viena, nomeadamente Rudolf Carnap. No seu opus
magnum, A estrutura lógica do mundo, Carnap pretende que, com base em uma única relação
primitiva, a semelhança, pode-se construir uma linguagem consistente solipsista em que é
possível replicar com afirmações empíricas sobre o mundo qualquer afirmação que possa ser feita
em linguagem realista. Como as duas linguagens são duas formas de dizer o mesmo, a decisão a
tomar é sobre qual a linguagem mais prática, a mais conveniente. Carnap optou pela linguagem
"coisa", a linguagem da ciência, não porque seja mais verdadeira, mas porque a considera mais
eficiente para falar sobre a experiência.8
Nem todos os membros do Círculo de Viena aceitaram esta abordagem. Quando
estudante de Filosofia na Universidade de Chicago, Martin Gardner participou de um seminário
de Bertrand Russell a que assistia Carnap, então professor em Chicago. Numa ocasião, entraram
em discussão sobre se a ciência deve afirmar, como tese ontológica, a realidade de um mundo por
trás do phaneron. Carnap procurou manter o argumento técnico, mas Russell ironizou sobre se as
respectivas esposas (a segunda mulher de Russell fazia tricô e sorria numa fila de trás) existiam
em sentido ontológico ou deviam ser consideradas como meras ficções lógicas com base em
regularidades das aparências aos seus maridos.
Nenhum filósofo saudável dúvida da existência de pessoas e objetos fora da sua
mente. Mas já existe um problema de linguagem em dizer que os objetos continuam no seu lugar,
mesmo que ninguém os veja. E existe um problema ontológico se quisermos aclarar o que essas
palavras significam
Se o realismo é tomado como uma tese ontológica, Carnap não é realista. Se o realismo for
entendido como preferência por uma linguagem realista na ciência, então Carnap é realista.16
15. Onde está a realidade?
O realismo tem tido tantos significados diferentes na história da filosofia que se tornou um
conceito quase inútil, a menos que seja definido com extrema precisão. Cada escola de realismo
tem uma terminologia preferida para descrever a complexa cadeia de eventos causais que vão
desde um objeto "lá fora" até à percepção do objeto por uma mente.
“Há metafísica bastante em não pensar em nada” escreve Alberto Caeiro Fernando Pessoa.
Fugir ao ser é impossível: fugir ao pensar, só não pensando. E parece-me estar aqui a raiz do
heterónimo Alberto Caeiro. Em alternativa à metafísica, recusa o pensar, porque o pensamento é
uma doença. Em vez do pensar que lança o homem na vertigem do impossível da transcendência,
devemos mergulhar no sentir, sentir as coisas na sua presença insubstituível.
Alberto Caeiro Fernando pessoa concordaria com Alfred North Whitehead: "Os poetas da
natureza estão totalmente equivocados. Deveriam dirigir os versos a si próprios, e transformá-los
em odes de auto.congratulação sobre a excelência da mente humana. A natureza é um assunto
maçador, silencioso, inodoro, incolor, apenas uma pressa material, sem detença, sem sentido”.
O vestido de uma senhora é feito de átomos, que por sua vez são formados por protões,
eletrões e neutrões. E estes? De que são feitos? A ciência física, necessariamente, atinge um
ponto em que a natureza da matéria mergulha na escuridão. Algumas partículas podem ser feitas
de quarks: mas de que são feitos os quarks? Um cão conhece a seu modo a estrutura de uma
árvore, mas nada sabe sobre átomos. Um físico moderno sabe muito sobre átomos, mas há
sempre aquele momento em que a árvore continua a iludir a compreensão. Será a realidade das
coisas conhecidas por um deus? Quem pode dizer? Poderemos sequer compreender a questão?
16
Willard Van Orman Quine tem a mesma posição de neutralidade metafísica no seu famoso ensaio "Sobre o
que há."
10
Realismo no sentido amplo, é a crença de que existe uma realidade por trás do phaneron, e
que gera as regularidades. Esse algo é independente da mente humana no sentido de que existe
antes de existirem as mentes humanas.
16. O argumento de conveniência empírica
Regressando a David Hume, existem duas grandes linhas de argumentação para afirmar o
realismo e refutar o solipsismo. A primeira pode ser aceite por Hume, Mill, Dewey e Carnap, mas
a segunda não.
Todos nós somos realistas ingénuos que supõem ao olhar uma pedra, que vemos a pedra
real. Também não é difícil compreender segundo as modernas teorias quânticas que ondas e
partículas, independentes de nossas mentes, fazem da pedra, uma pedra.
GE Moore, no decurso de uma palestra, deu uma prova do mundo exterior acenando uma
mão e dizendo: "Aqui está uma mão". De seguida, acenou a outra mão e afirmou: "Aqui está a
outra mão". Moore sabia que não estava a dar provas lógicas, mas apenas a insistir que nenhuma
pessoa sã duvida da existência das coisas. Mas não é por isso que deixamos de julgar que a pedra
existe como um todo.
A linguagem solipsista não consegue explicar por que acredita que o universo existe. O
subjetivista pode dizer: "Há um cêntimo na carteira", se tem a certeza que o pode ver na carteira
aberta. O mecanismo do relógio analógico faz mover os ponteiros. Mas estas "declarações
contrafactuais" são complicações desnecessárias. A pessoa de senso comum, seja cientistas ou
filósofo, não hesita em afirmar o mundo. A linguagem do realismo é necessária à comunicação.
17 O cubo de Reichenbach
Outro dos argumentos que o realismo é a hipótese que melhor representa as regularidades
do phaneron foi formulado por Hans Reichenbach que imagina que o nosso universo consiste em
uma enorme caixa cúbica com lados translúcidos. Fora da caixa, as aves voam, e podemos ver as
suas sombras nas faces do cubo e pensamos que as sombras são as únicas realidades. Depois ao
observar repetidamente as sombras, formulamos a hipótese de que são causadas pelas aves que
existem fora da caixa.
Imagine-se agora que o cubo encolheu até se tornar a pele do nosso corpo. Temos, diz
Reichenbach, uma analogia com a experiência humana. É óbvio que tudo o que sabemos sobre o
mundo fora de nós, é o que podemos inferir a partir do que está dentro de nós. Mas as
regularidades das impressões sensoriais, tais como os padrões nas nossas retinas, sugerem a
hipótese de que existe um mundo independente. Esta hipótese tem grande poder
explicativo. Além disso, é uma teoria de extrema simplicidade e, segundo o princípio da lâmina de
Occam, é preferível a explicações mais complexas. Não podemos dizer que a hipótese é
absolutamente certa, mas é a mais próxima da certeza.
Com o Cubo, Reichenbach deu à tese do realismo uma interpretação em termos científicos,
afirmando a possibilidade de indução e de previsão, semelhante à proposto por Feigl. Com base
nessas interpretações, a tese é uma declaração sintética, empírica sobre as propriedades estruturais
do mundo.
18. Realismo e reconhecimento
Enquanto o Realismo reflete uma atitude saudável, e uma humildade diante do mistério de
ser, o subjetivismo reflete um narcisismo que em forma extrema pode levar à loucura. Há uma
diferença radical entre pensar outra pessoa como ontologicamente real, e pensá-la com base em
padrões de regularidade. Mas há também uma enorme diferença entre a emoção do realista e a
visão cinzenta de Carnap, que não vê diferença entre as linguagens de realismo e
fenomenalismo. E se os pragmatistas como William James enaltecem o papel dos significados
11
emocionais, os sentimentos valem como indícios de uma outra ordem que é o reconhecimento, a
relação entre sujeitos.
Surge, então, esta palavra fundamental do reconhecimento, com que quero concluir a
apreciação sobre David Hume. Na esteira de David Hume a consciência foi reduzida a um eu,
um self, e assume uma posição perante as coisas em que deixa de se unir ao outro, seja pelo
encontro, seja pelo confronto. Examina informações, como quem usa um microscópio para um
exame minucioso, ou um telescópio para ter uma visão de conjunto. Os objectos surgem
isolados, ou em conjunto, mas sem sentimento de exclusividade nem de união
Mas quando a consciência alcança a relação com as coisas em que estas se afiguram não como
objetos, mas como sujeitos, relação de um eu com um tu, experimenta as coisas como agregados
de qualidades que permanecem na nossa memória após cada encontro. O eu revela-se apenas
como um fenómeno na consciência, sem se esgotar no fluxo. E a consciência revela-se capaz de
reconhecimento do outro, como natureza, como humano ou como divino.
Estas coisas, a serem explicadas aos miúdos, não seriam percebidas, tal como David Hume,
o “miúdo rebelde” da filosofia, não quis perceber. O “eu” deixou de ser o veículo com que a
consciência humana se encontra ao descobrir o outro. A sua afirmação do self levada até às
últimas consequências desemboca no solipsismo, com a absorção de toda a realidade no fluxo de
consciência.
Tendo chegado aqui, devemos também dizer que um mundo com regularidades não é todo o
mundo. Há momentos eternos. É como se escutássemos os sons de uma partitura que não nos
era acessível. São momento únicos e, num certo sentido, imortais. Momentos de uma vida eterna.
São terrivelmente evanescentes. Não deixam um conteúdo que possa ser plenamente conhecido.
Mas a sua força penetra o conhecimento e a acção humanas, e a radiação de sua força penetra na
ordem do mundo. São momentos de reconhecimento.
Só então a consciência oferece às coisas um lugar no espaço, e formula um momento no
tempo, e atribui a cada coisa, uma medida, e uma condicionalidade. De facto, como explicou
Martin Buber, não conseguiríamos viver no puro presente do mundo do ser: ele iria consumirnos como um incêndio com que se não toma cuidado. De facto, só conseguimos viver no tempo.
Só aí podemos organizar a vida. Só aí preenchemos todos os momentos que a experiência nos
permite, sem que o puro presente nos queime.
Os filósofos sempre disseram com toda a gravidade a quem verdadeiramente escuta: sem o
conhecimento do phaneron, o ser humano não pode viver. Mas quem vive só com esse
conhecimento não experimentou o que há de mais plenamente humano que é reconhecer o
outro.
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