Pós-Graduação Lato Sensu Serviço Social, Justiça e Direitos Humanos Trabalho de Conclusão de Curso REFLEXÕES SOBRE O PROJETO ÉTICO POLÍTICO DO SERVIÇO SOCIAL E AS FUNÇÕES INSTITUCIONAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO Autora: Natália Mashiba Pio Orientadora: Dra. Luciana Alvares Brasília – DF 2015 de Castro NATÁLIA MASHIBA PIO REFLEXÕES SOBRE O PROJETO ÉTICO POLÍTICO DO SERVIÇO SOCIAL E AS FUNÇÕES INSTITUCIONAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO Artigo apresentado ao curso de especialização Lato Sensu em Serviço Social, Justiça e Direitos Humanos da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para obtenção do Título de especialista em Serviço Social, Justiça e Direitos Humanos. Orientadora: Dra. Luciana de Castro Alvares Brasília – DF 2015 DEDICATÓRIA Dedico a todos os trabalhadores, sobretudo aos assistentes sociais, que mantém o desejo de uma sociedade justa, igualitária e sem exploração de um ser em relação a outro ser. AGRADECIMENTOS Agradeço a graduação de Serviço Social que trouxe as repostas para minhas incompreensões sobre a sociedade capitalista. A professora de graduação Dra. Olegna de Souza Guedes que me ensinou tudo que sei sobre ética e projeto ético político do Serviço Social. A minha orientadora e colega admirável de profissão professora Dra. Luciana de Castro Alvares. Agradeço também a professora Msc. Ludmila Weizmann Suaid Levyski cuja dedicação a esta especialização foi exemplar. Aos meus colegas de profissão e de curso. Ao professor Msc. Marcos Francisco de Souza pela disponibilidade e zelo. Ao universo por me proporcionar a oportunidade de instrução acadêmica e ampliação de conhecimento. EPÍGRAFE A crítica arrancou as flores imaginárias que enfeitavam as cadeias, não para que o homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou consolação, mas para que se liberte das cadeias e apanhe a flor viva. (KARL MARX). 9 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ................................................................................................... 10 2. O CONCEITO DE PROJETO SOCIETÁRIO ...................................................... 11 3. CONCEITO DE PROJETOS PROFISSIONAIS.................................................. 15 4. O SERVIÇO SOCIAL NO BRASIL: SUA VINCULAÇÃO COM OS PROJETOS SOCIETÁRIOS E A PREOCUPAÇÃO COM A CONSTRUÇÃO DO ATUAL PROJETO ÉTICO POLÍTICO ................................................................................... 17 5. A ESTRUTURA BÁSICA DO ATUAL PROJETO PROFISSIONAL DO SERVIÇO SOCIAL NO BRASIL. ............................................................................................... 24 6. REFLEXÕES SOBRE O PROJETO ÉTICO POLÍTICO DO SERVIÇO SOCIAL E AS FUNÇÕES INSTITUCIONAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO ................................ 25 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 33 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 35 10 REFLEXÕES SOBRE O PROJETO ÉTICO POLÍTICO DO SERVIÇO SOCIAL E AS FUNÇÕES INSTITUCIONAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO NATÁLIA MASHIBA PIO RESUMO O artigo em questão propõe analisar a interlocução entre o projeto ético político do Serviço Social e as funções institucionais do Ministério Público, conforme constam na Constituição Federal do Brasil de 1988. Para esta reflexão conceituou-se o entedimento de projetos societários, mostrando a diferença entre o hegemônico e o revolucionário. Buscou-se o entedimento de projetos profissionais e seu alinhamento com os diferentes projetos societários. A trajetória histórica do Serviço Social em diferentes projetos profissionais. Aprofundou-se no atual Código de Ética Profissional do Assistente Social de 1993, sobretudo em seus principios. Estes foram detalhados para o diálogo com as funções institucionais do Ministério Público. Notou-se que existe uma interlocução entre o projeto ético político do Serviço Social e o Ministério Público, porque ambos possuem referências sobre: direitos humanos, democracia, cidadania, defesa de direitos e respeito à diversidade humana. Contudo, as vinculações dessas mesmas categorias pertencem a projetos societários diferenciados. O primeiro visa uma nova ordem societária, sem dominação e exploração de um ser humano sobre outro. O segundo não almeja ultrapassar a ordem societária hegemônica, ele é funcional ao capitalismo e limita-se aos ditames jurídicos deste sistema econômico e social. No entanto, o Ministério Público, apesar de limitar-se a manter o status quo, é uma instituição que formalmente possui a atribuição de manter e defender categorias favoráveis à classe trabalhadora, para subsidiar um novo projeto societário. Palavras-chave: Projeto ético político do Serviço Social; projeto societário, projeto profissional, Ministério Público. 1. INTRODUÇÃO Este artigo visa analisar a interlocução entre o Projeto Ético Político do Serviço Social e as funções institucionais do Ministério Público, conforme constam na Constituição Federal do Brasil de 1988. A relevância desta temática é trazer a discussão do projeto profissional do Serviço Social na esfera socio-ocupacional jurídica brasileira. As publicações em Serviço Social, no contexto sociojurídico, geralmente demonstram que é uma profissão de defesa e garantia de direitos. No entanto, elas não aprofundam suas análises com base no projeto societário almejado pelo projeto ético político da profissão. Neste projeto profissional, a defesa e garantia de direitos são apenas mediadores do exercício profissional visando uma outra forma de sociabilidade. Dentre os epaços sócio-ocupacionais de defesa e garantia de direitos escolheu-se o Ministério Público por se tratar de uma instituição cujas funções constitucionais dialogam explicitamente com alguns princípios do projeto profissional do Serviço Social. A metodologia utilizada neste projeto foi norteada pelo método qualitativo, 11 através de pesquisa bibliográfica de cunho analítico. A estrutura deste estudo se apresenta da seguinte forma: o tópico inicial tem como eixo central a reflexão sobre o atual projeto ético político profissional do Serviço Social, para o que foi necessário mostrar a diferença entre projetos societários e projetos profissionais. Em seguida mostra-se que o Serviço Social, historicamente, se propõe a defender e construir projetos profissionais vinculados, em última instância, à manutenção do capitalismo e que, na contemporaneidade, associa o projeto profissional à defesa de um projeto específico de sociedade: uma sociedade sem classes sociais. Para viabilizar esta associação, o Serviço Social entre outras mediações - elenca no atual Código de Ética de 1993 uma série de princípios norteadores para a reflexão dos direitos e deveres dos assistentes sociais. No detalhamento dos princípios norteadores do Código faz-se a interlocução e análise com as funções institucionais do Ministério Público. 2. O CONCEITO DE PROJETO SOCIETÁRIO Netto (2001), à luz de uma teoria social crítica, define a existência da sociedade como factual, isto é, sua existência não é de caráter intencional. Por outro lado afirma que, diversamente da sociedade, os membros que a compõem sempre agem teleologicamente para satisfazerem suas necessidades. Considera, a partir disso, que toda ação humana – individual ou coletiva - para satisfação de suas necessidades, pressupõe um projeto que antecipa suas finalidades, ou teleologia 1. Assim, diz o autor (Netto, 2001, p.12): A ação humana, seja ela individual, seja coletiva, tendo em sua base necessidades e interesses, implica sempre um projeto, que é, em poucas palavras, uma antecipação ideal da finalidade que se quer alcançar, com a invocação dos valores que a legitimam e a escolha dos meios para atingi-la. Esta reflexão que Netto (2001) faz sobre o conceito de teleologia encontra-se, a priori, nas reflexões que Lukács (1997) fez sobre o legado teórico deixado por Karl Marx. Segundo Lukács, a diferenciação dos homens em relação aos outros animais se dá pelo fato de que os homens possuem uma capacidade teleológica. Dito em outras palavras, a partir do momento em que os homens começam a pensar formas de satisfazer suas necessidades através do trabalho - ou seja, antecipando na consciência a finalidade de seu trabalho – há a essencial diferença com os demais seres vivos. Essa capacidade, inerente ao ser social, de antecipar o resultado de seu trabalho para a satisfação de suas necessidades se denomina teleologia. Em palavras de Lukács (1997, p. 15): A essência do trabalho consiste em ir além dessa fixação dos seres vivos na competição biológica com seu mundo ambiente. O momento essencialmente separatório é constituído não pela fabricação de produtos, mas pelo papel da consciência, a qual, precisamente aqui, deixa de ser um mero epifenômeno de reprodução biológica: o produto, diz Marx, é o resultado que no início do processo existia “já na representação do trabalhador”, isto é, de modo ideal. Talvez surpreenda o fato de que, exatamente na delimitação materialista entre o ser da natureza orgânica e o ser social, seja atribuído à consciência um papel tão decisivo. 1 Discorre-se à diante sobre teleologia. 12 Lukács (1997) portanto, entende que o ser social (homem genérico) é guiado por uma finalidade (teleologia) e tem a capacidade de transformar em perguntas seus próprios carecimentos, generalizando-os. O mesmo pensador ressalta que o homem, além de dar respostas às suas necessidades através do trabalho – elemento ontologicamente primário – também formula questões em sua consciência que estarão guiando suas atividades (LUKCÁS, 1997, p. 17): (...) De modo que não apenas a resposta, mas também a pergunta é um produto imediato da consciência que guia a atividade; todavia, isso não anula o fato de que o ato de responder é elemento ontologicamente primário nesse complexo dinâmico. Esta leitura que Lukcás (1997) faz de Marx, identificando a importância da teleologia na ontologia social, é incorporada em referenciais teóricos do Serviço Social contemporâneo, sobretudo nas reflexões que Netto e Barroco fazem com relação ao atual projeto ético-político do Serviço Social. Estas reflexões tornam-se centrais, por exemplo, na análise que Netto (2001) faz acerca da legitimidade de projetos individuais e coletivos. Embora considere-se tanto a existência de projetos individuais quanto coletivos, para fins deste estudo atenta-se apenas aos projetos coletivos. Dentre estes, há os projetos societários e os profissionais, os quais serão abordados com mais detalhes. Os projetos societários, como o próprio nome já faz referência, são projetos de uma sociedade a ser construída, ou a ser mantida, envolvendo a sociedade como um todo, bem como valores e meios para essa construção e/ou legitimação. A partir desta definição, Netto (2001), tendo como pano de fundo a teoria social de Marx, considera que o sistema capitalista funda a sociedade em classes sociais antagônicas; assim, os projetos societários são também projetos de classe. A fim de exemplificar a afirmação de Netto sobre o caráter de classe dos projetos societários, recorre-se ao primeiro volume de “Ideologia Alemã 2 ”. Nesta obra, Marx e Engels (1999) elaboram as principais teses do materialismo histórico, além de criticar 3 os neo-hegelianos 4 . Consideram que o materialismo histórico fundamenta-se sob pressupostos materiais e históricos, vinculados à tese intransigente da existência de homens vivos. Para Marx e Engels (1999), os homens reais se distinguem dos animais quando começam a produzir seus meios de vida e a consequência indireta deste ato é a reprodução de sua própria vida material. Este primeiro pressuposto histórico, “Escrita em 1845 e 1846 pelos dois pensadores em conjunto, A Ideologia Alemã foi dividida em dois volumes: o primeiro voltado para a elaboração das teses fundamentais do materialismo histórico e para a crítica dos princípios filosóficos de Feuerbach, Bruno Bauer e Max Stiner, filósofos neohegelianos alemães; e o segundo dedicado à crítica dos pontos de vista de alguns representantes do “verdadeiro” socialismo, corrente filosófica e política então existente na Alemanha.” (MARX; ENGELS, 1999, p.07). 3 Nesta crítica, Marx e Engels elaboram as onze teses contra o pensamento idealista, abstrato, intuitivo de Feuerbach. 4 Segundo Marx e Engels (1999, p.19), os neo-hegelianos, até mesmo os considerados mais críticos, não superaram o idealismo de Hegel, de acordo com os neo-hegelianos, os limites e obstáculos que aprisionavam os homens decorriam apenas da consciência, pensamentos e representações “No sistema de Hegel, as idéias, os pensamentos e os conceitos produzem, determinam, dominam a vida real dos homens, seu mundo material, suas relações reais. Seus rebeldes discípulos tomam-lhes isso de empréstimo.” 2 13 ressaltam os autores, é contrário a todo idealismo defendido pelos filósofos alemães, uma vez que “(...) O primeiro ato histórico destes indivíduos, pelo qual se distinguem dos animais, não é o fato de pensar, mas o de produzir seus meios de vida.” (MARX; ENGELS, 1999, p. 27). A partir desta tese, os autores concluem que o que os homens são, corresponde àquilo que eles produzem e ao modo como produzem. Dito nas palavras dos autores: “O que os indivíduos são (...) depende das condições materiais de sua produção.” (MARX; ENGELS, 1999, p. 28). Os homens, ao produzirem a vida material, estabelecem entre si relações sociais e políticas. Nessa afirmação, os autores expressam que a base sob a qual se erigem as relações sociais e políticas advém das condições materiais existentes, que independem da vontade dos indivíduos. A partir das condições materiais postas – estrutura - cabe aos homens, através do trabalho, atuarem e produzirem sua vida material. Ergue-se, assim, uma superestrutura como consequência dessa estrutura material, mas estabelecendo entre si uma relação dialética. A estrutura social e o Estado nascem constantemente do processo de vida dos indivíduos (...) mas tal e como realmente são, isto é, tal e como atuam e produzem materialmente e, portanto, tal e como se desenvolvem suas atividades sob determinados limites, pressupostos e condições materiais, independentes de sua vontade. (MARX; ENGELS, 1999, p. 36). De acordo com os autores, as relações sociais e políticas expressam-se através da forma como a sociedade se organiza, na configuração do Estado, na produção de ideias, na consciência e nas representações que os indivíduos, grupos e classes sociais fazem sobre si mesmos e sobre a realidade social. Todos esses aspectos da superestrutura são posteriores às condições materiais. A produção de idéias, de representações, da consciência está, de início, diretamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. (MARX; ENGELS, 1999, p. 36). Defendem os autores que uma sociedade dividida entre os detentores dos meios de produção e os destituídos dos mesmos, apresenta diferentes leituras da realidade social, visto que as representações a respeito do mundo advêm das condições materiais. Portanto, seguindo essa linha de raciocínio, as representações, leituras de realidade têm necessariamente um caráter de classe. Marx e Engels (1999, p. 70) exemplificam esta situação na comparação entre o idealismo de Feuerbach - idealismo burguês - e o materialismo histórico: [Feuerbach] (...) Não consegue, nunca (...) conceber o mundo sensível como atividade sensível, viva e total, dos indivíduos que a constituem, razão pela qual é obrigado, ao ver, por exemplo, ao invés de homens sadios um bando de pobres-diabos, escrupulosos, esgotados, e tísicos, a recorrer a uma “concepção superior” e à ideal “igualização do gênero”; ou seja, por conseguinte, a reincidir no idealismo presente ali onde o materialista comunista vê a necessidade e simultaneamente a condição de uma transformação, tanto da indústria como da estrutura social. Devido ao fato de que as condições materiais geram uma forma de consciência e ideias, segundo Marx, no capitalismo, a classe detentora dos meios de produção (a burguesia) detém também a força de produzir as ideias; sendo assim, os não possuidores desses meios de produção ficam submetidos às representações da classe dominante. Por este prisma, Marx e Engels (1999, p. 72) explicam que: 14 As idéias (...) da classe dominante, são em cada época, as idéias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante na sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante (...) o que faz com que a ela sejam submetidas, (...) as idéias daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual. Em um sistema desigual como o capitalismo, a classe detentora dos meios de produção e das ideias, para manter seu status quo frente à luta de classes, generaliza e idealiza as relações materiais dominantes. Dessa forma, para a manutenção desse status, esta classe estende seu projeto societário a toda a coletividade, através de pessoas que, à luz da ideologia dominante, são caracterizadas como detentoras de conhecimentos e, por isso, têm o status de estarem aptas para pensar o resto da coletividade, configurando a divisão do trabalho entre os que pensam e os que executam. Dando continuidade, para exemplificar o exposto acima se tem a concepção de um Estado que serve aos interesses apenas da classe dominante, mas que é posto à coletividade como algo comum a todos os interesses. Nas palavras de Marx e Engels (1999, p. 48): (...) contradição de interesse particular e o interesse coletivo que o interesse coletivo toma, na qualidade de Estado, uma forma autônoma dos reais interesses (...) e ao mesmo tempo, na qualidade de uma coletividade ilusória. Esta contradição, a que se referem Marx e Engels (1999), não aparece na propagação dos projetos societários dominantes que se impõem sobre toda a sociedade, como se estes fossem universais. Cabe ainda ressaltar que, para Netto (2001), os projetos societários têm indiscutivelmente caráter de classe e, por isso, apresentam também uma dimensão política. Em outras palavras, o fato de que o projeto societário configura-se necessariamente como um projeto de classes, implica em um posicionamento político inerente a essa relação de poder antagônico. “(...) nos projetos societários (...) há, necessariamente, uma dimensão política, envolvendo relações de poder.” (NETTO, 2001, p. 13). Esta afirmação, entretanto, não significa que os projetos societários sejam perpétuos. Ao contrário, a relação materialista histórico-dialética que põe em constante movimento a sociedade e, consequentemente, as classes sociais antagônicas, faz com que estes sejam mutáveis, incorporando as demandas advindas das necessidades sociais postas nas distintas conjunturas sociais. Por terem essa característica de flexibilidade e essa dinâmica, os projetos societários têm maior expressividade na democracia, sistema político em que há espaço para um maior debate, expressão e adesão dos sujeitos sociais aos diferentes projetos éticos políticos. Porém, por razões econômicas, políticas e culturais, mesmo na democracia política: (...) os projetos societários que atendem aos interesses das classes trabalhadoras e subalternas sempre dispõem de condições menos favoráveis para enfrentar os projetos das classes possuidoras e politicamente dominantes. (NETTO, 2001, p. 13). Após a explicação sobre projeto societário, conceituar-se-á projetos profissionais, que também são projetos coletivos. Eles contêm uma orientação de projeto societário, no entanto, estão restritos a uma determinada profissão. 15 3. CONCEITO DE PROJETOS PROFISSIONAIS Netto (2001) assinala que, dentre os projetos coletivos, há os projetos profissionais. Estes não têm o mesmo nível de abrangência que os projetos societários (proporções macro, ou seja, para toda a sociedade), portanto seu âmbito de proposição é menor que os projetos societários. Assim como os projetos societários, os profissionais também devem ser dinâmicos, pois devem responder às alterações e necessidades sociais. A resposta a ser dada pelos projetos profissionais a essas transformações sociais efetiva-se a partir do seu desenvolvimento teórico-prático e com a própria transformação da categoria profissional. Este fato faz com que os projetos profissionais, para estarem em conexão com transformações histórico-sociais, se renovem e se modifiquem constantemente. Outro traço subjacente aos projetos profissionais é a dimensão política, quer pelo seu sentido mais abrangente, vinculado-se a um projeto societário, quer pelo mais restrito, que se refere aos traços mais particulares da profissão. Netto (2001) ressalva que nem sempre essa dimensão política está explicitada, como é o caso das perspectivas mais conservadoras, reacionárias, que negam sua dimensão política. Os projetos profissionais, de acordo com Netto: (...) apresentam a auto-imagem de uma profissão5, elegem os valores que a legitimam socialmente, delimitam e priorizam os seus objetivos e funções, formulam os requisitos (teóricos, institucionais, e práticos) para o seu exercício, prescrevem normas para o comportamento dos profissionais e estabelecem as balizes da sua relação com os usuários de seus serviços, com as outras profissões e com as organizações e instituições sociais, privadas e públicas. (NETTO, 2001, p.14). A construção do projeto profissional, como sinaliza Netto (1999), deve ser coletiva. Entende-se por coletividade, neste contexto, a categoria profissional: os profissionais em atividade, suas instituições, pesquisadores, docentes, estudantes, organismos corporativos e sindicais. Esta categoria é quem elabora o projeto profissional. Entretanto, compete à categoria não apenas elaborar o projeto profissional, mas zelar para a manutenção e legitimação de uma base bem organizada, a fim de que tal projeto se firme na sociedade de forma respeitável frente às demais profissões, instituições privadas/públicas e usuários dos serviços para os quais a profissão se volta. No caso do Serviço Social no Brasil, o sistema CFESS/CRESS, ABEPSS e ENESSO 6 , os sindicatos e demais associações dos assistentes sociais conformam a organização de sua categoria profissional. A categoria profissional, um sujeito coletivo, é composta por diferentes membros, isto é, indivíduos com distintos referenciais teóricos, políticos, ideológicos, origens e expectativas sociais diversas, como explica Netto (1999, p.96): A categoria profissional é uma unidade não-identitária, uma unidade de elementos diversos; nela estão presentes projetos individuais e societários diversos e, portanto, ela é um espaço plural do qual podem surgir projetos 5 Entende-se por profissões as que devem estar juridicamente regulamentadas e com formação acadêmica de nível superior (formação teórico e/ou técnico-interventiva). 6 Essas siglas são respectivamente: Conselho Federal de Serviço Social; Conselho Regional de Serviço Social; Associação Brasileira de Ensino de Serviço Social e Encontro Nacional de Estudantes de Serviço Social. 16 profissionais diferentes. Tendo em vista que a categoria profissional é formada por uma heterogeneidade, ela é um espaço de lutas e tensões. Isso quer dizer que em um projeto profissional essas divergências não são suprimidas; mesmo que esse projeto seja legitimado pela categoria hegemônica7, sempre haverá dissidências. Netto faz referência à existência desse pluralismo8 profissional na construção, afirmação ou negação de um projeto profissional como espaço para confronto de ideias “(...) o pluralismo é um elemento factual da vida social e da profissão mesma, cabendo o máximo respeito a ele, respeito, aliás, que é um princípio democrático.” (NETTO, 1999, p. 96). A importância do pluralismo na relação entre projeto societário e projeto profissional, por exemplo, se deve à posição de alinhamento ou não do projeto profissional em relação ao projeto societário hegemônico. No pluralismo há a possibilidade do projeto societário vigente ser questionado pelos projetos profissionais, ou ocorrer o contrário. Por este prisma, a categoria profissional que representa o Serviço Social Brasileiro aproxima-se dos interesses da classe trabalhadora e tende a contestar o status quo. Essa relação contraditória entre projeto societário sob o ideário burguês e o projeto profissional contestatório, que se delineia no Serviço Social brasileiro, tem suas limitações colocadas no mercado de trabalho dado pelo sistema capitalista, incidindo diretamente nas condições institucionais. Após o exposto, como aponta Netto (1999), vê-se claramente que o projeto profissional implica em vários constitutivos articulados, tais como: teleologia profissional – imagem ideal da profissão – seus valores legitimadores; normatização; funcionalidade social; objetivo; conhecimentos teórico-metodológicos e instrumentos de intervenção na prática profissional. Para que esses elementos estejam articulados são necessários fomento a debates, investigações – processo que só acontece se existir pluralismo – bem como recursos políticos organizacionais – categoria profissional organizada – para se ter um projeto ético-político hegemônico. Netto (1999), na reflexão sobre o pluralismo profissional no Serviço Social, refere-se a um pacto entre os membros da categoria profissional em torno do projeto profissional hegemônico. Mostra que, para defender tal projeto, levantam-se componentes imperativos e indicativos. Os primeiros são os componentes compulsórios, postos para todos profissionais; geralmente são objeto de regulamentação estatal – formação acadêmica reconhecida pelo Ministério da Educação seguindo diretrizes curriculares determinadas; inscrição do profissional no CRESS e o Código de Ética Profissional do Assistente Social. Os segundos, os indicativos, são aqueles que não exigem um consenso tão rigoroso para o seu cumprimento, por parte de todos os profissionais. O autor explica que, mesmo entre os componentes imperativos, há divergências e menciona, no caso do Serviço Social brasileiro, o atual Código de Ética Profissional. Essa menção intencional se deve ao fato de que os projetos 7 A categoria hegemonia foi desenvolvida por Gramsci e incorporado no Serviço Social brasileiro a partir da década de 80. Uma análise sobre esta categoria bem como sua incorporação no Serviço Social Brasileiro pode ser encontrada em PIRES, Sandra Regina Abreu. Serviço Social: função educativa e abordagem individual. 2003. Tese (doutorado em Serviço Social) – Pontífica Universidade Católica de São Paulo. São Paulo e tem SIMIONATTO, Ivete. Gramsci: sua teoria, incidência no Brasil, influência no Serviço Social. Florianópolis: Ufsc, 2004 8 O mesmo autor enfatiza que pluralismo é distinto de ecletismo - degradação teórica - e liberalismo – degradação política. 17 profissionais necessitam de uma fundamentação ética, sendo esta explicitada nos Códigos, mas que não se limita a estes. Em palavras de Netto “(...) a valoração ética atravessa o projeto profissional como um todo, não constituindo um mero seguimento particular dele.” (NETTO, 1999, p. 98). A importância do Código de Ética Profissional como um imperativo para as profissões de caráter liberal se deve também ao seu objetivo de fiscalizar e normatizar o exercício profissional: “Para normatizar e fiscalizar o exercício profissional, todas as profissões consideradas “liberais”, são portadoras de uma deontologia no sentido de regular as ações operativas da profissão.” (SILVA, 1996, p.139). Outro fato apontado por Netto (1999) como motivo de discordâncias entre os elementos éticos dentro do projeto profissional é que, além do seu caráter normativo (direitos e deveres), há também as escolhas teóricas, ideológicas e políticas da categoria profissional. É por esta razão, reitera Netto, que se utilizam projetos profissionais como sinônimos de projetos éticos-políticos. (...) por isto mesmo, a contemporânea designação dos projetos profissionais como projetos éticos-políticos revela toda a sua razão de ser: uma indicação ética só adquire efetividade histórico-concreta quando se combina com uma direção político-profissional. (NETTO, 1999, p. 99). O Serviço Social brasileiro se vinculou, ao longo de sua história, a diferentes projetos societários, e consequentemente deu origem a diferentes projetos profissionais. No tópico seguinte, será demonstrado essa construção histórica da categoria profissional e seu alinhamento aos diferentes projetos societários. 4. O SERVIÇO SOCIAL NO BRASIL: SUA VINCULAÇÃO COM OS PROJETOS SOCIETÁRIOS E A PREOCUPAÇÃO COM A CONSTRUÇÃO DO ATUAL PROJETO ÉTICO POLÍTICO Pretende-se trazer à tona, neste estudo, que o Serviço Social brasileiro, historicamente, apresenta uma prática profissional vinculada a um projeto societário. Desde os primeiros assistentes sociais brasileiros – período da gênese profissional – passando pelo período de institucionalização da profissão e renovação do Serviço Social, esta profissão sempre vincula seu projeto profissional às reflexões de diferentes projetos societários. Neste sentido, Guedes (2003) aponta em seus estudos acerca dessa temática que, nos primórdios da profissão, o projeto societário assumido pela profissão coadunava-se com a ordem social estabelecida, o capitalismo: [...] a relação entre formação profissional e projeto societário, um dos eixos centrais nas atuais diretrizes curriculares do Serviço Social, já estava presente nas reflexões do Serviço Social em gênese (1938/1940) e institucionalização (meados da década de 40 até início dos anos 60). Contudo, neste período, as reflexões convergiam para a formação de profissionais aptos à manutenção da ordem do capital. (GUEDES, 2003, p. 79). A mesma autora enfatiza que, naquele período, o projeto societário ligava-se ao projeto defendido pelo humanismo cristão, que compreendia os ajustes e 18 equilíbrios como necessários, na realidade social, para que a pessoa humana 9 tivesse garantida a sua dignidade e conseguisse viver em conformidade com o bem comum. Tendo como pano de fundo a perspectiva do humanismo cristão, recorrendo principalmente ao neotomismo e às encíclicas sociais católicas 10 , os assistentes sociais acima referidos tinham uma forte formação doutrinária com o intuito de intervir junto às pessoas bem como à compreensão da sociedade, haja vista que a questão social era concebida como uma questão moral. Nos estudos sobre o humanismo cristão, Guedes (2003) aponta que o filósofo neotomista mais incorporado pelo Serviço Social brasileiro foi Jacques Maritain. Para este filósofo, é na sociedade que a pessoa humana exerce sua natureza voltada para o bem. É nesta lógica de pensamento que os primeiros assistentes sociais engendram a defesa de uma sociedade na qual as pessoas exercitem o bem comum, opondo-se a qualquer outra forma de sociedade que não tenha como eixo central a dimensão atemporal da pessoa humana. Em vista do exposto, Guedes (2003) faz referência à recusa, dos primeiros assistentes sociais, aos ideários vinculados a dois outros projetos societários - o comunismo (a perspectiva marxista) e o próprio capitalismo (na expressão do liberalismo). Ao mesmo tempo, estes assistentes sociais, segundo a autora, optam por uma sociedade em que o sistema capitalista é permitido, desde que não avilte a dignidade da pessoa humana e que a mesma consiga exercer na sociedade o bem comum, com a finalidade de aperfeiçoar-se. A partir [do] pressuposto neotomista, os primeiros assistentes sociais idealizavam um projeto societário que contemplasse as duas dimensões da pessoa humana, o corpo e a alma, e servisse como “meio posto ao homem para colimar livre e plenamente sua destinação” (Mancini, 1940 a: 4). Entendiam que as alternativas societárias que se punham naquele momento – o comunismo e o liberalismo – não tinham qualquer preocupação com a pessoa humana e por isto suas propostas que partiam, respectivamente, de uma base materialista e de uma perspectiva individualista, deveriam ser refutadas (...) Sem poder apoiar-se nos modelos sociais postos pelo liberalismo e o comunismo, o Serviço Social, segundo Telles (1939) incorpora o modelo societário defendido pela Igreja Católica: uma sociedade capitalista em que as classes sociais se relacionam harmonicamente sobre o ideário do bem comum. (GUEDES, 2003, p. 81). Os apontamentos de Guedes (2003) mostram que, no início do Serviço Social e até mesmo no período de institucionalização, engendra-se um alinhamento ao conservadorismo, pois os fundamentos filosóficos da profissão pressupunham a legitimação da ordem estabelecida, defendendo o direito natural, o qual atribui a cada pessoa capacidades, habilidades e inteligência, instaurando a naturalização das desigualdades. O trabalho dos primeiros assistentes sociais nessa perspectiva é educativo, cujo objetivo central visa à reconstrução de valores morais, respeitando as liberdades individuais. Mesmo no período de institucionalização do Serviço Social brasileiro, em que a incorporação da técnica do Serviço Social norte americano se fez presente, De acordo com Guedes (2003, p. 80) entende-se por pessoa humana aquilo cuja “dimensão existencial obedecia a duas esferas de vida: uma temporal e outra atemporal, sendo esta última determinante sobre a primeira”, seus atributos são a perfectibilidade e inteligibilidade. 10 As encíclicas sociais que mais embasaram a formação e prática profissional dos assistentes sociais foram a Rerum Novarum (papa Leão XII) e Quadragésimo Anno (papa Pio XI). 9 19 Guedes (2003) mostra que as bases filosóficas neotomistas continuaram evidentes. Estes princípios neotomistas, bem como o projeto societário voltado ao bem comum, foram incorporados nos códigos de ética profissionais dos assistentes sociais brasileiros dos anos de 1947 e de 1965: A necessária reconstrução dos valores morais necessários à instauração de condições de vida adequadas às necessidades da pessoa humana, base filosófica da ação profissional do Serviço Social, deveria ser viabilizada com as técnicas e as premissas metodológicas do Serviço Social norte americano. O Serviço Social incorpora os referenciais norte americanos, mas não rompe com pressupostos neotomistas e com o projeto societário que o inspirava em sua gênese. (GUEDES, 2003, p. 84). Em vista do exposto, Guedes (2003) mostra que na história do Serviço Social brasileiro sempre houve uma vinculação do projeto profissional a algum projeto societário: ora conectado a projetos societários conservadores – pertinentes à manutenção do sistema capitalista, ora ligado a perspectivas mais questionadoras, voltadas a alguma forma de superação desse sistema explorador. O período que Netto (2004) aponta como Renovação do Serviço Social 11 abrange as perspectivas políticas e teórico-metodológicas, norteadoras da prática profissional, que são: a perspectiva modernizadora, renovação do conservadorismo e intenção de ruptura. Esta última alavancou o início do questionamento crítico das práticas e perspectivas tradicionais do Serviço Social brasileiro e deixou como herança para o projeto ético-político na contemporaneidade, um saldo positivo que será explicitado mais a frente. O debate sobre o atual projeto ético-político no Serviço Social brasileiro, de acordo com Netto, é mais intenso a partir da década de 1990. No entanto, suas raízes remontam desde a metade dos anos 1960 com o Movimento de Reconceituação na América Latina. Sua construção está na transição da década de 1970 a 1980, período no Serviço Social brasileiro de recusa e crítica ao conservadorismo profissional. Esse último período é marcado por uma conjuntura política econômica de crises causadas pela ditadura militar (em vigor desde 1964 até 1985). No âmbito político, as resistências à ditadura militar foram diversificadas, abrangendo desde a classe operária composta por trabalhadores rurais e urbanos (estes aparecem com mais força entre os trabalhadores metalúrgicos do ABC paulista, principalmente através dos sindicatos), até mesmo alguns setores da burguesia, descontentes com o regime. O descontentamento político quanto ao regime militar não se restringiu apenas aos setores das classes sociais citadas. Para endossar essa oposição, fizeram parte os setores progressistas da Igreja Católica (principalmente os orientados pela Teologia da Libertação), as minorias e a imprensa. As transformações na realidade social e o questionamento desses sujeitos sociais contribuíram para pressionar a ditadura militar, demandando uma abertura política ruma à democracia. O contexto descrito resumidamente acima contribuiu para abalar o histórico conservadorismo12 no Serviço Social brasileiro, cujas balizas não podiam mais ser 11 A Renovação do Serviço Social brasileiro teve seus primórdios em meados da década de 60 permanecendo na contemporâneidade. Ver estudos de Netto a respeito desse período em: Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64. 7ed. São Paulo: Cortez, 2004. 12 O histórico conservadorismo no Serviço Social brasileiro remonta desde sua gênese, marcado pela estreita vinculação com a Igreja Católica, com práticas assistencialistas guiadas pelo humanismo cristão. 20 sustentadas devido às crescentes exigências políticas e sociais opositoras à ditadura militar, bem como a tudo que a sustentava. A primeira condição para ruir o monopólio conservador no Serviço Social e construir um novo projeto profissional, diz Netto (1999), foi a condição política criada (a luta pela democracia). A luta pela democracia, na sociedade brasileira, fazendo-se ecoar na categoria profissional, criou o quadro necessário para quebrar o quase monopólio do conservadorismo no Serviço Social: no processo da derrota da ditadura inscreveu-se a primeira condição, a condição política, para a constituição de um novo projeto profissional. (NETTO, 1999, p. 100). O regime ditatorial – alinhado ao grande capital internacional – causou crises no âmbito social, econômico e político da sociedade brasileira, criando condições que forjaram sua ruptura, demandando a emergência de um regime democrático. Esta conjuntura incidiu diretamente no Serviço Social, abrindo espaço para instaurar o pluralismo político na profissão e a quebra do monopólio conservador no Serviço Social; assim, as vanguardas ligadas aos movimentos sociais dos trabalhadores e à luta pela democratização do país, em 1979 realizaram o III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais13 (ou Congresso da Virada). Guedes (2005) aponta que no redimensionamento de setores do Serviço Social brasileiro, em um contexto de transição democrática 14 , os profissionais posicionavam-se criticamente em relação à política econômica vigente, da seguinte maneira: (...) a concepção de que medidas de desenvolvimento econômico produziriam por si só o desenvolvimento social tende a ser abandonada já que se tem demonstrado que ao contrário, o aceleramento econômico não só, não produz necessariamente o desenvolvimento social, como pode 13 Este foi realizado no período de 23 a 28 de setembro de 1979, em São Paulo, no III Congresso Brasileiro de Serviço Social organizado pelo CFAS e pelo CRASS de São Paulo, segundo nota de Guedes (2005). 14 No período de transição democrática (década de 1980), com muita efervescência política, a sociedade – principalmente os trabalhadores e parte da classe média brasileira - cansada das medidas “de cima para baixo” e de esperar o “bolo crescer”, começa sua mobilização e reivindicação. Em vista desse contexto político, social, econômico, as medidas imediatistas burguesas e repressivas não foram suficientemente fortes para a institucionalização de seus interesses. Konder descreve bem o conflito desse período que “[...] Hoje, vivemos uma situação diferente e os liberais tratam de se adaptar aos novos tempos. Porém se defrontam, nesse esforço de adaptação, com o desafio da cidadania: a nova Constituição exige decisões concretas, opções definidas.” (KONDER, apud, COVRE, 1986, p. 114). A autocracia burguesa, devido ao adensamento das refrações da questão social; o fim do milagre econômico; aumento da desigualdade social e da ineficiência de legitimação ditatorial por meio da repressão teve que ceder substancialmente aos seus próprios interesses. A crescente mobilização social, na transição democrática e posterior regime democrático foram respaldados pela Constituição Federal de 1988. Esta, instrumento de exercício de cidadania e democracia, é um documento que “condensa a idéia dos direitos e da cidadania [e se apresenta como] instrumento não-violento para a segurança dos cidadãos, que não podem ser tratados arbitrariamente. Os homens de uma sociedade mantêm-se como cidadãos à medida que partilham as mesmas normas e podem lançar mão delas para se defender. Constituição violada significa cair na tirania e no arbítrio dos que têm o poder econômico e/ou político.” (COVRE, 1997, p.20). Em seu primeiro artigo, a Constituição de 1988 concebe a cidadania como o segundo princípio fundamental do Estado democrático de direito e “Estabelece para sua garantia: a necessária construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais; a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça sexo, cor idade ou quaisquer outras formas de discriminação. Elenca uma série de direitos para a garantia destes objetivos.” (GUEDES, 2003, p.14). 21 agravar problemas sociais existentes ou fazer eclodir outros igualmente sérios. (CFAS apud GUEDES, 2005, p. 148). Para exemplificar o questionamento que aparece no III CBAS, não só com relação ao regime autocrático brasileiro, mas também com relação à direção política das práticas profissionais alinhadas aos interesses das classes trabalhadoras, a presidente do CRASS - 9ª Região, Maria Cecília Ziliotto, na abertura dos trabalhos deste Congresso, faz a seguinte colocação: Aqui viemos para saber qual é a proposta, o que o Serviço Social se propõe a fazer, com quem o Serviço Social está comprometido e com ele deve se comprometer (...) que esse Congresso não se traduza em meras formulações teóricas para o Serviço Social, mas que represente um comprometimento profissional com a realidade, que nesse Congresso os profissionais não venham ouvir posicionamentos de colegas que já tenham pensado e representado teoricamente o Serviço Social, mas que nós, em conjunto, assumamos perante a nossa profissão e para que essa profissão mereça a legitimação da sociedade civil brasileira, para que tenha reconhecimento que nós assumamos o nosso compromisso histórico. (CFAS apud GUEDES, 2005, p. 148-149). As mudanças ocorridas na sociedade brasileira repercutiram no Serviço Social, levaram ao redimensionamento da organização da categoria profissional e abriram possibilidades de confrontar projetos societários e profissionais antagônicos aos interesses da classe social dominante e do grande capital. Neste sentido Barroco (2001) afirma que: As profissões são expressões particulares do movimento de (re)produção da vida social, onde se desenvolvem os projetos sociais e as tendências éticas. O Serviço Social tem sua trajetória marcada pela presença do conservadorismo ético que predomina até à década de 1960, quando são abertas as possibilidades de expressão de outros projetos profissionais que rearticulam a ética conservadora ou se apresentam como alternativas a ela [...]. (BARROCO, 2001, p. 41). Netto (2001) expõe que a condição política foi a primeira e necessária condicionante para a construção de um novo projeto profissional, mas que ela não foi suficiente para que esse novo projeto se adensasse. Os demais componentes que contribuíram para esse adensamento foram, nos anos 1970, a Reforma Universitária, quando o Serviço Social é legitimado na academia com os cursos de pós-graduação (a priori os títulos de mestrado e na década de 1980, de doutoramento e especializações). Nesse período houve um progressivo acúmulo teórico15 e um maior diálogo com as ciências sociais, propiciado pela massa crítica de assistentes sociais. Nota-se claramente que a abertura para o pluralismo na profissão repercutiu também na produção de conhecimento, nas concepções teóricas e metodológicas que se identificavam com a crítica ao status quo e apoio a projetos societários da classe trabalhadora. As atividades prático-interventivas tradicionais foram resignificadas e houve uma maior abertura de áreas e campos de intervenção, dando continuidade à ampliação da prática profissional até a 15 Ressalva-se que apesar do Serviço Social ser uma profissão que não têm em si mesma um caráter eminentemente científico e nem uma teoria própria, nada impede que sejam realizadas pesquisas, produzam conhecimento de natureza teórica, haja vista que o Serviço Social tem o aval do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) como área de produção de conhecimento. 22 contemporaneidade. A preocupação com a formação dos assistentes sociais culminou em 1982 na reforma curricular, cujos desdobramentos, depois de um amplo debate da categoria profissional, resultaram no redesenhamento da ABESS e CEDEPSS16 em ABEPSS (Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social). Além disso, sua proposta era de adequação da formação acadêmica (graduação) através de um novo perfil profissional (crítico, competente e eficaz) frente às demandas tradicionais da profissão e da questão social agravada pela ditadura militar. Outro componente importante rumo ao novo projeto profissional, segundo Netto (1996), foram as conquistas dos direitos civis e sociais advindos do período de redemocratização do país, na década de 1980. Neste momento, o Serviço Social aprofunda a perspectiva de ruptura com suas práticas tradicionais, num movimento que o aproxima das forças progressivas presentes no debate democrático e, entre elas, as organizações das classes trabalhadoras. Cumpre ressaltar que todos os processos de mudança que vinham ocorrendo na sociedade brasileira e no Serviço Social na década de 1970 e, em especial na de 1980, culminaram em 1986 na redação de um novo Código de Ética, a partir das conquistas da categoria profissional, já mencionadas, tal como: rompimento com o monopólio conservador e afirmação de um compromisso político com a classe trabalhadora. Segundo Netto (1999), foi no Código de 1986 que se colocou o debate sobre a ética profissional em pauta privilegiada. Até então, diz o autor: O debate da Ética no Serviço Social nunca fora um tema privilegiado – é na seqüência do Código de 1986, e até a sua reivindicação, concluída em 1993, que esta preocupação ganhará um relevo significativo. (NETTO, 1999, p. 103). O mesmo autor ressalta que a bibliografia sobre a temática da ética é reduzida no Serviço Social, sendo Maria Lúcia Barroco uma grande referência nesse assunto. Essa falta de acumulação e amadurecimento acerca da reflexão ética resultou em alguns equívocos prejudiciais no Código de Ética profissional de 1986 que só puderam ser corrigidos no Código de Ética de 1993. Este código, como já sinalizamos, é um dos componentes do atual projeto ético-político que conquistou a hegemonia no Serviço Social brasileiro nos anos 90. Netto (1999) afirma que este fato concretizou-se devido à vontade político-organizativa das vanguardas emergentes sintonizadas com as demandas dos movimentos sociais brasileiros – das classes trabalhadoras - que souberam dar uma direção social estratégica às questões postas. Esse posicionamento, ressalta o autor, a categoria profissional assume desde o Código de 1986, mas apenas no Código de 1993 o mesmo é explicitado de forma contundente na direção de uma prática profissional transformadora. Pontua-se que as contribuições mais relevantes no debate sobre o projeto ético-político e sobre o atual Código de Ética, na década de 1990, estão arroladas na publicação “Serviço Social e Ética: convite a uma nova práxis17”. Adianta-se que houve, por parte das representações profissionais e estudantis, um amplo debate em busca de um compromisso coletivo acerca da ética profissional. 16 Associação Brasileira de Ensino de Serviço Social (ABESS) e seu organismo acadêmico Centro de Documentação e Pesquisa em Políticas Sociais e Serviço Social (CEDEPSS). 17 Organizadores: Dilséa A. Bonetti; Marlise Silva; Mione Sales e Valéria Gonelli. 23 O CFESS, entidade jurisdicional da profissão, introduz o debate ético através de uma breve análise conjuntural, citando o acirramento na contradição das classes sociais, e o aumento nas crises nacionais e internacionais – inclusive com relação à crise dos projetos de transformação social, trazendo à tona as demandas crescentes da sociedade na discussão da ética. Nesse sentido, a ética não é entendida como um princípio abstrato e idealista. Ela é uma construção histórica do ser social e que por isso, encontra-se sempre na tensão dever-liberdade, permitindo uma reflexão de um dever ser, com a concepção de homem/mundo livres, enquanto sujeitos histórico-sociais. O Serviço Social é uma profissão liberal que deve ser normatizada e fiscalizada através de um Código de Ética, elaborado por uma entidade representativa – CFESS – para regulamentar as ações operativas profissionais. Por ter essa característica, o debate acerca da ética profissional, e consequentemente do Código de Ética, é fundamental para reforçar ações conservadoras e de ajustamento ou, ao contrário, para buscar uma prática profissional crítica e transformadora. A ABEPSS destacou a importância da discussão da questão ética em diferentes âmbitos da categoria, dentre eles: a docência, as entidades e os profissionais em exercício. Criticou o modo como foi posto no Código de 1986 a adesão ao projeto das classes trabalhadoras como se coubesse somente à profissão a transformação social, não levando em conta seus limites profissionais. Uma saída apontada para esses limites é o esclarecimento de que para a transformação social e adesão das classes trabalhadoras (composta por todos aqueles que não possuem meios de produção, encontrando como única solução para a sobrevivência vender sua força de trabalho) existem instâncias tais como: sindicatos, partidos políticos e movimentos sociais. Outra preocupação da ABEPSS diz respeito ao enclausuramento da ética apenas no âmbito normativo do Código, pois a falta de compreensão e debate ético, abrangendo concepções de sujeito/sociedade faz com que surjam leituras hegemônicas da realidade em que as heterogeneidades nascidas de históricas lutas e tensões não tenham relevância. (...) a visão de sociedade/indivíduo, não podemos considerar a ética profissional como monolítica, como uma definição universal para toda a categoria de assistentes sociais. Esta seria uma atitude de negação do movimento social e da diversidade desse movimento. Agora, como essa heterogeneidade não se dá por acaso, mas sim no bojo de lutas e tensões sociais concretas, em cada movimento histórico uma posição se apresenta como hegemônica e representativa do movimento social. (MOREIRA, 1996, p.147). Na discussão sobre o atual projeto ético-político Mourão (1996), representando a direção sindical da categoria, a Associação Nacional dos Assistentes Sociais (ANAS) 18 ressalta a importância do debate com relação à formação e ao exercício profissional perante a crise ética e moral vivida. Partindo dessa análise, a ANAS aponta para uma reforma curricular e um exercício profissional comprometido com as discussões das questões éticas e políticas, para que a categoria profissional tenha clareza sobre a sua significação perante a sociedade. Outra pauta posta em discussão pela ANAS na construção do projeto ético18 A ANAS foi extinta na década de 1990. 24 político, diz respeito ao enfrentamento da estrutura corporativista rumo a uma nova organização por ramo de atividades: reorganização enquanto trabalhadores – reorganização sindical - implicando em uma ética social ou ética do trabalhador. Essa proposta advém da contribuição da Central Única dos Trabalhadores (CUT), junto a qual a ANAS foi filiada. Assim, a ANAS está remetendo o debate dessa proposta da CUT a toda categoria, sobre como vamos nos reorganizar enquanto trabalhadores, não perdendo de vista nosso papel na sociedade enquanto assistentes sociais. Esse debate está lançado para que a categoria toda se envolva. Não é cada entidade cuidando separadamente de sua responsabilidade, mas as entidades reunidas para discutir a profissão, enquanto um todo, em suas várias dimensões. (MOURÃO, 1996, p. 152). A organização estudantil, representada pela SESSUNE 19 , expressa sua preocupação para a construção do projeto ético-político no sentido de uma formação profissional crítica, cuja contribuição da ética profissional é de substancial importância. Esta preocupação, apontada no período de formação do Código de Ética de 1993, em nível de graduação, diz respeito à constatação da falta de crítica e reflexão da disciplina de ética, causada pela maciça importância normativa em detrimento de seu âmbito teórico-metodológico, prático e político. Este mesmo movimento se posiciona quanto à utilização do referencial teórico-metodológico crítico e dialético para a análise social e do comprometimento com a classe trabalhadora, tanto a nível profissional quanto de estágio em Serviço Social: Compreendemos a importância de se garantir uma formação crítica e a necessidade de nos organizarmos e ocuparmos os espaços das unidades de ensino onde é discutida a formação profissional. (OLIVEIRA, 1996, p. 155). 5. A ESTRUTURA BÁSICA DO ATUAL PROJETO PROFISSIONAL DO SERVIÇO SOCIAL NO BRASIL. Netto (2001) aponta que, no final dos anos 1980 até a década de 1990, o projeto ético-político do Serviço Social no Brasil segue uma estrutura básica20: o seu núcleo é a liberdade21 como valor central. A referida liberdade é aquela cujas balizas são históricas, dando a possibilidade de escolhas dentre alternativas concretas. Assim, partindo-se desse conceito de liberdade, há necessariamente a vinculação do atual projeto profissional a um projeto societário que tem como fundamento uma 19 A SESSUNE foi criada em 1988 pela UNE (União Nacional dos Estudantes), sendo denominada como uma subsecretaria de Serviço Social. Seus principais objetivos são: articular o movimento estudantil para uma maior aproximação com a categoria profissional; debate acerca da formação política e dos estudantes; coordenar os encontros nacionais, estaduais e regionais; promover os eventos culturais e incentivar a comunicação alternativa do movimento estudantil bem como o incentivo aos Centros Acadêmicos e Diretórios Acadêmicos. 20 Ressalva-se que o termo estrutura básica, aqui usado, refere-se a eixos que são fundamentais, sendo o projeto profissional concebido como um processo histórico e portanto tem a característica de absorver novas demandas e ser flexível (Nota refere-se à reflexão do próprio autor). 21 O conceito de liberdade aqui empregado é contrário àquilo referido pelo liberalismo que a concebe como sendo sinônimo de individualismo, traduzida pela frase “a minha liberdade termina onde começa a do outro”. O termo liberdade, aqui empregado, refere-se a uma construção histórica coletiva, ou seja, não haverá de fato liberdade se ela não se estender a todos os indivíduos sociais “a plena realização da liberdade de cada um requer a plena realização de todos” (PAIVA; SALES, 1996, p. 182). 25 nova ordem societária sem qualquer tipo de exploração/dominação, seja ela de classe, etnia ou gênero. Tendo como valor central a liberdade construída historicamente por homens/sujeitos históricos, o compromisso com a autonomia, a emancipação e a plena expansão dos indivíduos sociais é essencial para a construção do projeto societário acima referido. Este compromisso está explicitado no primeiro princípio do Código de Ética de 1993 que, em sua íntegra, estabelece que o assistente social deve pautar sua prática no “reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas políticas a ela inerentes – autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais”. (CFESS, 1996). As escolhas concretas, isto é, a possibilidade de exercer a liberdade plena, referida neste princípio central, para tornar-se operativa, no âmbito de um projeto profissional, deve ser respaldada por outros princípios complementares e interligados. Nesta perspectiva, têm-se mais onze princípios concatenados com a liberdade, sendo os mesmos explicitados a seguir (BRASIL, 2012): I. Reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas políticas a ela inerentes - autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais; II. Defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo; III. Ampliação e consolidação da cidadania, considerada tarefa primordial de toda sociedade, com vistas à garantia dos direitos civis sociais e políticos das classes trabalhadoras; IV. Defesa do aprofundamento da democracia, enquanto socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida; V. Posicionamento em favor da equidade e justiça social, que assegure universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, bem como sua gestão democrática; VI. Empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das diferenças; VII. Garantia do pluralismo, através do respeito às correntes profissionais democráticas existentes e suas expressões teóricas, e compromisso com o constante aprimoramento intelectual; VIII. Opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, sem dominação, exploração de classe, etnia e gênero; IX. Articulação com os movimentos de outras categorias profissionais que partilhem dos princípios deste Código e com a luta geral dos/as trabalhadores/as; X. Compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população e com o aprimoramento intelectual, na perspectiva da competência profissional; XI. Exercício do Serviço Social sem ser discriminado/a, nem discriminar, por questões de inserção de classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade, orientação sexual, identidade de gênero, idade e condição física. Apesar de todos os princípios do Código de 1993 estarem concatenados, neste trabalho, escolheu-se somente alguns destes para análise, por possuírem mais interlocução com as funções institucionais do Ministério Público. No próximo tópico, serão apresentadas as referidas funções e a análise delas com os princípios éticos de 1993. 6. REFLEXÕES SOBRE O PROJETO ÉTICO POLÍTICO DO SERVIÇO SOCIAL E AS FUNÇÕES INSTITUCIONAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO No artigo 127 da Constituição Federal do Brasil de 1988, consta que o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos 26 interesses sociais e individuais indisponíveis. A Carta Magna prossegue com a descrição das funções institucionais, contidas no artigo 129. Neste artigo, foram selecionadas somente as funções interlocutoras diretas com o Projeto Ético Político do Serviço Social, quais sejam (BRASIL, 2015): II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia; III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; IV - promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição; V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas; Após a transcrição dos incisos constitucionais selecionados neste trabalho, far-se-á a citação de cada princípio do Código de Ética de 1993 os quais mantém diálogo. No segundo princípio do Código de Ética do Serviço Social de 1993, “a defesa intransigente dos direitos humanos 22 e recusa do arbítrio e do autoritarismo” (CFESS, 1996), é importante na medida em que o contexto político vivido em décadas anteriores (principalmente na ditadura militar), e até mesmo na contemporaneidade brasileira, foi exatamente o oposto do que está contemplado neste princípio. Este processo histórico de aviltamento dos direitos humanos que tem como expressão maior o desrespeito à vida, de acordo com Paiva e Sales (1996), deve ser combatido pelo Serviço Social que se orienta por postulados básicos de humanização e sociabilidade igualitária. Esse segundo princípio do Código possui interlocução explícita com as funções institucionais do Ministério Público contidos nos incisos II e III, pois eles demonstram mecanismos jurídicos para garantia dos direitos humanos contidos na Constituição Cidadã de 1998. Os direitos humanos nascem sob a égide do ideário burguês, o qual está restrito à igualdade apenas perante a lei, o que mascara uma realidade econômica, social e política violadora desses mesmos direitos quando se trata da grande maioria da humanidade. O Ministério Público nasce e pertence a este ideário, o que pode dificultar sua atuação no sentido de ampliar os direitos humanos para além do âmbito jurídico. No entanto, Paiva e Sales (1996) acreditam que os direitos humanos positivados, defendidos (pelo menos no discurso) no sistema capitalista, figuram como forma jurídica a ser empreendida pelos assistentes sociais para combater e criticar as facetas do rebaixamento do gênero humano, através de situações ou práticas (em âmbito físico ou moral) humilhantes, degradantes, causadoras de dores e sofrimentos. 22 A formulação e normatização dos direitos humanos nasceu em 1789, no ideário da Revolução Francesa, em um contexto político francês em que burguesia ascendente precisava legitimar a ordem burguesa nascente. Esta formulação é retomada no contexto do pós Segunda Guerra Mundial, estando à frente desse processo a ONU (Organização das Nações Unidas). Compreende-se que esta organização, apresenta-se no discurso como neutra, mediadora de conflitos mundiais, mas a história têm demonstrado que na prática ela apresenta um posicionamento claro em favor dos principais países que formam uma burguesia industrial forte a tal ponto que exerce sua hegemonia sob os países chamados de capitalistas periféricos. 27 Seguindo esse mesmo raciocínio, o Ministério Público mesmo fazendo parte da engrenagem capitalista, pode engendrar a ampliação, defesa e garantia dos direitos humanos, tendo em vista a previsão disto nas suas funções institucionais. Paiva e Sales (1996) lembram que o direito mais transgredido pela lógica capitalista é a própria privação desses direitos humanos básicos - essenciais à vida e é neste contexto que os assistentes sociais devem utilizá-los como instrumento na prática profissional, conectando-os à reflexão que Marx faz sobre a liberdade plena dos indivíduos sociais. Em outras palavras, cabe aos profissionais de Serviço Social utilizarem-se dos direitos humanos em sua prática, pois estes ampliam o espaço de realização dos indivíduos sociais e, portanto, do gênero humano. Isto requer que os mesmos ultrapassem a preocupação em garantir as necessidades mínimas de sobrevivência e convivência e conecte às discussões que vislumbrem uma sociedade em que o homem possa ser plenamente livre. Sem isto, não é possível abrir-se para possibilidades de escolhas históricos–materiais compatíveis com a emancipação humana. O terceiro princípio refere-se à “ampliação da cidadania 23 , considerada tarefa primordial de toda a sociedade, com vistas à garantia dos direitos civis, sociais e políticos 24 das classes trabalhadoras” (CFESS, 1996). Ele possui diálogo com todos os incisos, elencados neste trabalho, das funções institucionais do Ministério Público. Na interpretação desse princípio, Paiva e Sales (1996) salientam que a ampliação da cidadania25 sugere que se ultrapasse a restrição deste conceito no que 23 De acordo com Covre (1997), a concepção de cidadania tal qual se conhece atualmente, aparece na Carta de Direitos das Nações Unidas (ONU), em 1948, tendo com influência a Revolução Francesa em 1789, cuja as Cartas Constitucionais se opõe as normas feudais e defende os interesse de uma nova classe: a burguesia. A cidadania, no capitalismo, é proposta como igualdade formal para todos, no entanto, sabemos que é um sistema de exploração e dominação, e por ter esse caráter a cidadania é constantemente aviltada. A cidadania sob a óptica burguesa, é aquela cuja sua legitimidade está na propriedade privada e a igualdade (de capacidade de trabalho, liberdade, racionalidade, etc) entre os homens é usada de forma a justificar o individualismo e competição uns com os outros. 24 O sociólogo britânico T. H. Marshall, em seu livro: Cidadania, Classe Social e Status (1967), no capítulo IIIl, lembra que os direitos de cidadania dividem-se em: civis, políticos, e sociais. Segundo este autor, os direitos civis surgiram no século XVIII, na Inglaterra com a Revolução Gloriosa de 1688, consolidando a monarquia constitucional. Marshall, de acordo com Coutinho (1997), partilha da mesma noção de direito civil em Locke (são os direitos naturais: direito à vida, de ir e vir, de propriedade, liberdade de expressão) que serviram para justificar as aspirações da burguesia em ascensão. Direitos esses para serem usufruídos na vida privada, limitando o poder estatal sobre o indivíduo (impedia a tirania estatal). Os direitos políticos, para Marshall referem-se ao “direito de participar no exercício do poder político, como membro de um organismo investido de autoridade política ou como eleitor dos membros de tal organismo” (MARSHALL, 1967, p. 63). Em outras palavras, o direito de votar e ser votado é um dos principais meios de assegurar a participação nas importantes tomadas de decisões que refletem no conjunto da sociedade. O direito a organização e a associação consideram-se juntamente com o direito de votar e ser votado de grande valia no que concerne à luta pelos direitos. Os direitos sociais, segundo Marshall (1967, p. 64) “se referem a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem a sociedade”. Além disso, de acordo com ele, as instituições intimamente ligadas a esses direitos são as de serviços sociais e a educacional. 25 A cidadania é ter direito a vida no seu sentido pleno: “Cidadania é a capacidade conquistada por alguns indivíduos, ou (no caso de uma democracia efetiva) por todos os indivíduos, de se apropriarem dos bens socialmente criados, de atualizarem todas as potencialidades de realização humana abertas pela vida social em cada contexto historicamente determinado” (COUTINHO, 1997, p. 146). 28 diz respeito a sua funcionalidade ao sistema capitalista – uma pseudo cidadania política e civil. A cidadania, dizem as autoras, deve garantir o pleno acesso aos direitos sociais, civis e políticos, bem como ao seu exercício. No artigo 127 da Constituição de 1988, prevê que o Ministério Público defenda os interesses sociais e individuais indisponíveis, tratando da garantia dos direitos de cidadania. No entanto, sabe-se que na prática o Ministério Público fica restrito ao conceito de cidadania admitida pelo capitalismo. O princípio da cidadania é pertinente à categoria profissional, pois os assistentes sociais trabalham diretamente no sistema de garantia de direitos, através da formulação e/ou execução de políticas sociais, programas e projetos institucionais, cotidianamente, junto à classe trabalhadora. Neste sentido, para a sua ampliação, faz-se necessário empenhar-se para que a prática profissional seja, constantemente, uma luta para a universalização dos direitos sociais, civis e políticos, tal como aponta Paiva e Sales (1996, p. 187): “[...] A cidadania, de acordo com a nova acepção ético-política proposta, consiste na universalização dos direitos sociais, políticos e civis, pré-requisitos estes fundamentais à sua realização”. A liberdade, posta no primeiro princípio do Código de Ética, vincula-se à ampliação da cidadania - como forma de garantir os direitos civis, sociais e políticos justamente porque a universalização desses direitos de cidadania é conflitante com o sistema econômico social explorador contemporâneo. É a partir deste aspecto que se reflete, no Serviço Social, que a cidadania é um meio para se vislumbrar uma nova ordem societária em que a liberdade e a igualdade social, política e econômica sejam possíveis. Em palavras de Paiva e Sales (1996, p. 169): A realidade do capitalismo tem se mostrado que os direitos de cidadania revelam contradições na sua realização [...] Os direitos políticos sociais, conquistados pelas classes trabalhadoras, têm se revelado potencialmente como uma ameaça ao capitalismo. A plena explicitação desses direitos contrapõe-se, portanto, aos interesses das classes dominantes, já que apontam para a possibilidade de uma nova sociedade igualitária e livre, com a qual devem ser conjugados os valores éticos que informam a prática do Serviço Social. O quarto princípio, “a defesa do aprofundamento da democracia 26 , enquanto socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida” (CFESS, 1996), é impreterivelmente ligado à ampliação da cidadania, uma vez que a concepção de cidadania e de democracia são intrínsecas e complementares uma à outra, ou seja, a democracia é uma forma de governo e a cidadania é o meio pela qual se dá a melhor forma de aperfeiçoamento, aprofundamento e garantia da democracia. Ao Ministério Público também compete à defesa do regime democrático, conforme o artigo 127 da Constituição. O significado de democracia, do ponto de vista político, refere-se à capacidade da sociedade de se organizar “assegurando a participação dos indivíduos em todas as decisões que lhes dizem respeito, em todos os aspectos de sua vida – é a real distribuição do poder” (SILVA, 2001, p. 10). A democracia seria o acesso e/ou distribuição de riqueza, renda e cultura para a elevação da qualidade de vida das pessoas, através do desenvolvimento de uma cidadania plena. Em outras palavras, do ponto de vista sócio-econômico e cultural, é a possibilidade da efetivação, através do exercício da cidadania, da garantia dos direitos civis, políticos e sociais para todos. 26 O significa etimológico da palavra democracia é “governo do povo” ou “governo da maioria”. 29 A cidadania é uma construção histórica, bem como a democracia (pois são pensadas articuladamente), porque ambas são construídas pelos homens e estes são concebidos como os protagonistas de sua história. Portanto, tendo em vista que a democracia e a cidadania não são dadas ou naturais à sociedade, porém são de caráter histórico e socialmente construídas, cabe a todos não só contentarem-se com os direitos já garantidos, pela atual conjuntura, mas lutar pela ampliação dos mesmos ou até mesmo a superação de alguns deles na busca de algo mais amplo, efetivo e igualitário, que é a emancipação humana. Nesta perspectiva, Coutinho (1997, p.146) lembra: “A cidadania não é dada aos indivíduos (...) mas é resultado de uma luta permanente, travada quase sempre a partir de baixo, das classes subalternas, implicando um processo histórico de longa duração”. Com base no que foi explicitado, entende-se que a ampliação e a consolidação da democracia e da cidadania têm como resultado potencializar as possibilidades de escolhas para que os indivíduos sociais possam, inclusive, vislumbrar que a realização do gênero humano exige uma nova sociedade: sem classes sociais. Cumpre lembrar que este pensamento se compartilha com Ivo Tonet (2005), a respeito das limitações da cidadania. Esta tem sido considerada como sinônimo de plena liberdade humana, por isso é necessário ressaltar a substancial diferença entre as categorias cidadania, democracia – enquanto liberdades parciais, permitidas pelo capitalismo e vislumbradas pelo Ministério Público - e a liberdade do ser social – emancipação plena27. Ivo procura demonstrar que: [...] a diferença que existe entre as categorias da cidadania e da emancipação humana. Procura demonstrar que a primeira é uma forma de liberdade essencialmente limitada porque está ligada, indissoluvelmente, à sociabilidade fundada no capital, e que a segunda é uma forma de liberdade ilimitada, que abre a perspectiva de autoconstrução infinita para o gênero humano. (TONET, 2005, p. 01). Por este prisma, entende-se que as categorias de democracia e de cidadania postas no atual projeto ético-político não são um fim em si mesmas, mas figuram como mediações com vistas à emancipação plena do gênero humano, que tem como fundamento o trabalho 28, realizado em sua plenitude, em uma nova ordem societária. Por isso Tonet (2005, p. 07) ressalta que: [....] cidadão é, “por sua natureza, sempre homem parcial. O homem em sua plenitude está necessariamente para além da cidadania [...] Ela poderá ser uma mediação, junto com outras, mas jamais o fim maior da humanidade Em palavras de Tonet “[...] aspectos positivos que a emancipação política trouxe para a humanidade, em sua essência ela é uma expressão, e uma condição de reprodução da desigualdade social. O que significa dizer que ela certamente e uma forma da liberdade humana, mas uma forma essencialmente limitada, parcial e alienada de liberdade. O que também significa dizer que, por mais plena que seja a cidadania, ela jamais pode desbordar o perímetro da sociabilidade regida pelo capital. Isto é muito claramente expresso pelo fato de que o indivíduo pode, perfeitamente, ser cidadão sem deixar de ser trabalhador assalariado, ou seja, sem deixar de ser explorado.” (TONET, 2005, p. 07). 28 “[...] na esteira de Marx (...), trabalho é entendido como uma síntese entre teleologia (prévio estabelecimento de fins e escolha de alternativas) e causalidade (o ser natural, regido por leis de tipo causal).” (TONET, 2005, p. 03). 27 30 Pretende-se deixar claro neste estudo que defesa, aprofundamento e consolidação da democracia e cidadania, no Código de Ética de 1993, tornam-se necessários, pois abrem possibilidades, dentro do sistema capitalista, de vislumbrar uma liberdade humana plena. Ou seja, dá-se a devida importância à contribuição que a defesa dos direitos de cidadania – inclui-se as funções institucionais do Ministério Público - exercem na atual sociedade para atingir, em uma nova ordem societária, o gênero humano. Porém, ressalta-se que para instituições funcionais ao capital, incluindo o Ministério Público, categorias de democracia e cidadania são permitidas desde que não questionem a estrutura societária. O quinto princípio refere-se ao “posicionamento em favor da eqüidade e justiça social, de modo a assegurar a universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, bem como sua gestão democrática” (CFESS, 1996), selando o eixo da universalidade do acesso a riqueza material, social e culturalmente produzida pela sociedade. Esse princípio coaduna-se com o artigo 127 da Constituição, além dos incisos elencados anteriormente sobre a função institucional do Ministério Público. Netto (1999), na reflexão sobre a dimensão política do projeto profissional, vincula os princípios de equidade e de justiça social com a democracia, a cidadania e a garantia de direitos entendidos como socialização da participação política e socialização da riqueza socialmente produzida. A dimensão política do projeto é claramente enunciada: ele se posiciona em favor da equidade e da justiça social, na perspectiva da universalização do acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais: a ampliação e a consolidação da cidadania são postas explicitamente como condição para a garantia dos direitos civis, políticos e sociais das classes trabalhadoras. (NETTO, 1999, p. 105). Apesar dos princípios acima serem estruturados no âmbito do ideário burguês, vincularem-se à estabilidade da ordem social burguesa e limitarem-se ao âmbito jurídico formal – incluindo a atuação Ministério Público - faz-se necessário, na perspectiva assumida no Código atual, lutar para ampliá-los e consolidá-los com vistas a sua expansão e à construção de um novo projeto societário. Paiva (et al, 1996, p. 162). Assume, por este prisma, que: [...] a luta pela democracia, assim como pela expansão e consolidação da cidadania, continua a ser uma tarefa primordial para toda a sociedade e, como tal, também para os assistentes sociais (...) Nesse sentido, cabe considerar que um alargamento do patamar de direitos sociais depara-se inevitavelmente com limites impostos pela lógica de reprodução das relações sociais capitalistas. (PAIVA et al, 1996, p. 162-163). Defende-se que a busca constante da universalização dos direitos e serviços prestados pelos assistentes sociais e pelo Ministério Público junto aos usuários abre mais possibilidades do profissional, da instituição – Ministério Público - e dos usuários poderem optar, escolher dentre as alternativas concretas, ultrapassando os rígidos critérios de elegibilidade e lutando pela igualdade não só jurídica, mas material e social. O sexto princípio vem referendar o “empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das diferenças” (CFESS, 1996). Este princípio liga-se à liberdade porque lida diretamente com a relação de autonomia e heteronomia dos assistentes sociais (escolhas), frente às preferências e direitos 31 tanto dos assistentes sociais (individualmente), bem como com relação aos usuários. Os assistentes sociais devem seguir esse princípio em respeito aos diferentes valores culturais e sociais existentes na sociedade. O inciso V, contido na função institucional do Ministério Público, mostra claramente que cabe a esta instituição defender os direitos e interesses das populações indígenas, ou seja, defende um grupo socialmente discriminado. Paiva e Sales (1996) reforçam o caráter histórico e classista dos valores que compõem um quadro de conflitos (afirmação e negação) da moral, da cultura e dos projetos societários, sendo uma das formas para a superação de preconceitos e discriminações o processo de desalienação rumo a práxis libertária: [...] a ética é engendrada historicamente e determinada pela cultura, sendo aquele seu feixe de valores produto da luta pela afirmação da condição humana (...) no cotidiano de uma comunidade concreta, como no caso da sociedade capitalista, é preciso distinguir, dentre os vários projetos societários (...) no decurso histórico do último século, as classes trabalhadoras, por intermédio de seus movimentos e de uma militância consciente, vêm se empenhando no sentido de democratizar o produto social e de instituir a ética, de fato, como uma práxis. (PAIVA; SALES, 1996, p. 193). Neste contexto, o preconceito é a expressão de valores e atitudes cotidianas a-críticas, estereotipadas, generalizantes, irracionais, formadoras de juízos de valor sem um conhecimento mais profundo do agente discriminado. Por isso, Paiva e Sales (1996) reforçam que preconceitos e discriminações cerceiam a possibilidade da liberdade e: [...] sinaliza para a desinformação, ignorância e irracionalismo presentes no comportamento preconceituoso, os quais contribuem para tolher a autonomia do indivíduo por estreitarem as possibilidades e alternativas reais de escolhas. (PAIVA; SALES, 1996, p. 194). Uma indagação instigante de Paiva e Sales (1996) diz respeito à forma como o assistente social poderá ser ético frente às situações que envolvem preconceitos e discriminações. As mesmas autoras revelam que os princípios anteriores – democracia, cidadania, igualdade, justiça social, equidade e principalmente a liberdade – subsidiaram as reflexões e uma prática profissional ética. É importante ressaltar que o parâmetro para essas reflexões deve ser em prol dos interesses coletivos, dito em palavras de Chauí “[...] A ética, portanto não se realiza na solidão de alguns sujeitos, mas na intersubjetividade social, no mundo cultural e histórico” (CHAUÍ, apud PAIVA; SALES, 1996, p. 193-194). Paiva e Sales (1996) acrescentam que o assistente social, com seu conhecimento da realidade, deve empreitar-se no estímulo ao contínuo processo de desalienação dos diferentes sujeitos históricos, da mesma forma em que deve estimular o progressivo estímulo à participação dos grupos discriminados, incentivando o respeito para com os mesmos. A “opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, sem dominação – exploração de classe, etnia e gênero” (CFESS, 1996), esse oitavo princípio refere-se a um fim a ser buscado no cotidiano profissional para que, de fato, a ontologia social 29 possa ter 29 A Ontologia social, segundo interpretações de Lukcás a partir dos estudos marxiamos, é a origem do ser concebida de forma histórico-materialista dialética. Lukcás salienta a diferenciação entre a ontologia hegueliana e a marxiana. O primeiro afirma que a ontologia é histórica – superando a 32 sua expressão máxima na mesma via em que a liberdade, a autonomia e a emancipação plena dos sujeitos coletivos se concretizarão. É importante esclarecer que este projeto societário não é defendido pelo Ministério Público, pois este se limita aos parâmetros legais defendido pelo capitalismo. Salienta-se que não se podem desvincular classes sociais e nem os conceitos de etnia e gênero do sentido de homem genérico. O homem genérico que ora nos referimos diz respeito àquele construído historicamente, cuja teleologia se materializa a partir do trabalho livre de qualquer forma de exploração e alienação – seja pelos antagonismos de classe ou por questões ligadas a gênero e etnia. Este homem exercerá sua liberdade plena em uma nova ordem societária e é por isso que esse princípio faz alusão à opção do projeto profissional vinculado a uma nova ordem societária, sem dominação e exploração. Compartilha-se com Tonet (2005) quando este autor discorre a respeito da centralidade do trabalho enquanto fundamento do ser social, bem como considerase que é através dele que o ser social e as relações sociais se complexificam. Por este prisma, compreendem-se os aspectos da heterogeneidade e complexidade de etnia e gênero postos no oitavo princípio. A partir dele [o trabalho] e como exigência da complexificação do ser social que dele decorre, surgem inúmeras outras dimensões da atividade humana, cada qual com uma natureza e uma função próprias na reprodução do ser social [...] E que, tendo, além disso, como fundamento, o trabalho, vai se pondo sob a forma de um complexo de complexos, ou seja, de um conjunto de dimensões que interagem entre si e com a dimensão fundante. Ao longo deste processo, o ser social se torna cada vez mais heterogêneo, diversificado e multifacetado, mas, ao mesmo tempo, mais unitário. (TONET, 2005, p. 03). Essas complexificações e heterogeneidades são contempladas no atual projeto ético-político. Neste sentido é considerado um avanço, em comparação com as prerrogativas do Código de Ética de 1986, no que diz respeito à ampliação e à clarificação do conceito de classes sociais. No Código antigo, a concepção de classe trabalhadora advinha de interpretações de autores que restringiam a teoria social de Marx a um economicismo determinista. Não se tinha clareza do que de fato era a classe trabalhadora (ou seja, que em cada classe social há também contradições, advindas muitas vezes de relações de gênero e etnia), e pouco se sabia e compreendia a respeito da ontologia social e que esta implica diversas mediações. Neste sentido, o Código de Ética de 93 vem contemplar os aspectos mais ampliados da composição da classe trabalhadora, tais como gênero e etnia. Uma das principais inovações ainda na formulação ética enunciada pelo Código de 1993 é a atenção dedicada às distintas determinações do ser social – etnia e gênero - como um dos recortes explicativos e configuradores da identidade e particularidade dos indivíduos sociais. Essa nova inflexão sócio política e antropofilosófica assinalada pelo Código amplia o campo de preocupações e de proposições interventivas para o ontologia religiosa – e deve se partir dos elementos mais simples, desse modo, Hegel entende o homem como criador de si mesmo. A diferenciação do segundo, Marx, para o primeiro se deve ao fato de que Hegel partia do pressuposto do ser abstrato, e para Marx “(...) Todo existente deve ser sempre objetivo, ou seja, deve ser sempre parte (movente e movida) de um complexo concreto. Isso conduz a duas conseqüências fundamentais. Em primeiro lugar, o ser em seu conjunto é visto como um processo histórico; em segundo, as categorias não são tidas como enunciados sobre algo que é ou se torna, mas sim como formas do existir, determinações da existência” (LUKÁCS, 1997 p. 11). 33 Serviços Social, oportunizando a contemplação da perspectiva da totalidade. (PAIVA; SALES, 1996, p. 199-200). Paiva e Sales (1996) consideram que na década de 1990, consideram as consequências da exploração capitalista cada vez mais devastadoras, cabendo ao profissional posicionar-se e lutar contra essa ordem, cujas características de dominação cerceiam a liberdade do gênero humano. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo discorreu-se a respeito do entendimento dos conceitos de projetos societários, bem como de projetos profissionais, para que estes estudos subsidiassem as reflexões sobre o projeto ético-político (projeto profissional) do Serviço Social e sua relação com as funções institucionais do Ministério Público. Percebe-se que existe um diálogo entre o projeto ético político do Serviço Social e o Ministério Público, porque ambos possuem referências sobre: direitos humanos, democracia, cidadania, defesa de direitos, respeito à diversidade humana. Contudo as vinculações dessas mesmas categorias pertencem a projetos societários diferenciados. O primeiro visa uma nova ordem societária, sem dominação e exploração de um ser humano sobre outro. O segundo não almeja ultrapassar a ordem societária hegemônica, ele é funcional ao capitalismo e limita-se aos ditames jurídicos deste sistema econômico e social. É importante considerar que o Ministério Público, apesar de limitar-se a manter o status quo vigente, é uma instituição que formalmente possui a atribuição de manter e defender categorias favoráveis à classe trabalhadora, para subsidiar novo projeto societário: direitos humanos, democracia e defesa dos direitos de cidadania. ABSTRACT The article aims to analyze the interaction between the political ethical project of Social Work and the institutional functions of the Public Ministry, in accordance to the Brazilian Federal Constitution of 1988. In order to achieve it we conceptualized the meaning of models of society, showing the difference between the hegemonic and revolutionary. It sought the understanding of professional projects and their alignment with the different models of society, and the historical trajectory of Social Work in different professional projects. It analysed the current Code of Professional Ethics of Social Work of 1993, especially in its principles. These were detailed for the connections with the institutional functions of the Public Ministry. It was noted that there is an interaction between the political ethical project of Social Work and the Public Ministry, because both have references about: human rights, democracy, citizenship, advocacy and respect for human diversity. However, the linkages of these same categories belong to different social projects. The first seeks a new social order without domination and exploitation of one human being over another. The second aims not exceed the hegemonic social order; it is functional to capitalism and is limited to the legal dictates of economic and social system. However, the Public Ministry, although limited to maintaining the status quo, is an institution which formally 34 has the authority to maintain and defend categories favourable to the working class, and to subsidize a new model of society. Keywords: Political Ethical Project of Social Work; model of society; professional project; Public Ministry 35 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROCO, Maria Lúcia. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2001. BRASIL. Código de ética do/a assistente social. Lei 8.662/93 de regulamentação da profissão. 10. ed. Brasília: Conselho Federal de Serviço Social. 2012. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acessado em: 09 abril 2015. BONETTI, D; SILVA, M; SALES, M; GONELLI, V (org). Serviço Social e Ética: convite a uma nova práxis. São Paulo: Cortez, 1996. CHAUÍ, Marilena. 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