O QUE É A CONSTANTE DE BOLTZMANN? Alaor Chaves O caráter da constante de Boltzmann, e também seu significado último, tem sido matéria de infindável discussão. A questão mapeia-se em outra, e assim se confunde com ela: quantas grandezas de caráter distinto e independente existem na natureza? Bem, dentro do que costumo chamar paradigma newtoniano, ou seja, o pressuposto de que as leis fundamentais da natureza são leis de movimento, são três as grandezas fundamentais e independentes: massa, comprimento e tempo. Qualquer outra grandeza dessa física mecanicista (impropriamente chamada física fundamental) como, por exemplo, carga elétrica, campo elétrico ou magnético, energia ou intensidade luminosa, pode ser quantificada em termos de massa, comprimento e tempo. Nas chamadas teorias de campos, que tratam, além da força eletromagnética, da força fraca e da força forte, aparecem constantes de acoplamento que também são grandezas que podem ser expressas em termos das três grandezas fundamentais da mecânica. Ainda segundo a visão da física mecanicista, para cada grandeza fundamental a natureza teria criado uma unidade natural. Temos assim a massa de Planck (mP), o comprimento de Planck (lP) e o tempo de Planck (tP). A formulação da física mecanicista também exige a introdução de três constantes universais: a velocidade da luz (c), a constante de Planck (h) e a constante gravitacional de Newton (G). Na verdade, falaremos não da constante h e sim de h ≡ h / 2π , pois Dirac achou a constante de Planck muito grande e resolveu dividi-la por 2π . Um fato notável é que, dados mP, lP e tP, podemos calcular c, h e G, e vice versa. Ou seja, podemos tanto dizer que a natureza tem três unidades de grandeza naturais como dizer que ela tem três constantes universais. A relação entre esses três conjuntos de entidades é expressa pelas equações: 1 ⎛ hG ⎞ lP = ⎜ 3 ⎟ = 1, 616 × 10−35 m, ⎝ c ⎠ 1 2 ⎛ hG ⎞ tP = ⎜ 5 ⎟ = 5,390 × 10−44 s, ⎝ c ⎠ 2 1 ⎛ hc ⎞ mP = ⎜ ⎟ = 2,177 × 10−8 kg. ⎝G⎠ 2 Este conjunto de equações pode ser invertido para que as constantes c, h e G sejam expressas em termos das unidades naturais das grandezas fundamentais da mecânica: c= lP ml2 l3 , h= P P , G= P 2. tP tP mP tP Na visão reducionista da física, qualquer fenômeno pode ser descrito e entendido a partir das leis mecanicistas da natureza que, com dissemos, em última instância são leis de movimento (que podem ser expressas por equações diferenciais no espaço e no tempo). Essa visão pode ser adotada com inteiro sucesso na formulação das três teorias que constituem os pilares da chamada física fundamental, a saber, a mecânica quântica, a relatividade restrita e a relatividade geral. Pode também ser adotada na investigação das quatro forças da natureza. Por exemplo, o leitor pode notar que as equações de Maxwell, que descrevem inteiramente o eletromagnetismo, são equações diferenciais no espaço e no tempo que envolvem apenas grandezas que podem ser expressas em termos de comprimento, tempo e massa. A interrogação sobre o significado da constante de Boltzmann – que, por analogia com os dois conjuntos de entidades (mP, lP, tP) e (c, h e G) pode ser trocada pelo questionamento do significado da temperatura – na verdade é o questionamento dos limites do reducionismo. Na visão dos reducionistas, que coincidentemente também costumam ser os pesquisadores ligados à física de partículas e às teorias de campos (ou, mais recentemente, os que trabalham em teorias de cordas e de outros objetos visionários), a constante de Boltzmann é apenas um fator de conversão entre temperatura e energia. Isso também implica em aceitar o pressuposto de que temperatura é uma outra maneira de medir energia. Nessa visão, a mecânica estatística é a ponte entre a termodinâmica e as leis fundamentais da mecânica; na mecânica (em latu sensu) residiria o entendimento de todos os fenômenos. A termodinâmica seria uma descrição de caráter fenomenológico dos sistemas de muitas partículas, também chamados sistemas macroscópicos ou sistemas termodinâmicos. Mas por intermédio da mecânica estatística, a termodinâmica poderia ser inteiramente descrita e justificada a partir das leis mecanicistas, sem a necessidade de se introduzir qualquer conceito essencialmente novo ou qualquer grandeza além de comprimento, tempo e massa. Essa visão foi amplamente predominante no início do século XX, logo depois que os experimentos de Perrin (1908) comprovaram as predições da teoria do movimento browniano desenvolvida por Einstein (1905) e o atomismo teve sua vitória final sobre os fenomenologistas. Mas os problemas começaram a aparecer. Na elaboração de mecânica estatística de Boltzmann, continuada por Gibbs e outros, aparece um postulado (o da igual probabilidade a priori dos microestados possíveis de um macrosistema) que as pessoas esperavam ser possível demonstrar partindo de primeiros princípios; mas o tempo mostrou que tal esperança era infundada. Não bastasse isso, ao tentar formular a termodinâmica de modo mais rigoroso, reconheceu-se a necessidade de introduzir uma nova lei, a hoje chamada lei zero da termodinâmica. Lei zero porque ela é sem dúvida a mais fundamental, e o tempo revelou que é também a mais misteriosa. A lei zero diz que se dois sistemas estão em equilíbrio térmico com um terceiro também estarão em equilíbrio térmico entre si. A lei zero é o que permite ver a temperatura como uma grandeza física: se um termômetro está em equilíbrio térmico com os sistemas A e B, esses dois sistemas estão também em equilíbrio térmico entre si. Ou seja, a lei zero da termodinâmica introduz uma nova grandeza no âmbito da física. Para ilustrar, e talvez entender melhor como uma nova grandeza emerge naturalmente da lei zero da termodinâmica, consideremos uma outra regra análoga. Consideremos uma balança de braço. Sabemos que se um corpo A ficar em equilíbrio na balança com o corpo B e também com o corpo C, o corpos B e C também se equilibrarão na balança. Dessa regra de transitividade podemos concluir que os corpos A, B e C têm em comum uma grandeza cujo valor é o mesmo para todos eles: o seu peso. Não fosse a constante de Planck (e a conseqüente física quântica), seria possível ver a temperatura como uma medida de energia associada a sistemas macroscópicos. Mas a quantização traz um fato dos mais admiráveis. Tomemos, para ilustrá-lo, dois sistemas físicos: um gás monoatômico e um corpo sólido. Postos em contato um com o outro, esses dois sistemas passarão por um processo em que o de maior temperatura cederá energia ao outro até que se atinja um estado de equilíbrio em que ambos tenham a mesma temperatura. O fato crucial aqui é que nesse estado de equilíbrio a energia associada a cada grau de liberdade no sistema sólido será muito menor que a associada ao sistema gasoso. Assim, ao termalizar entre si os sistemas não fazem a eqüipartição da sua energia, e sim de algo distinto e que não pode ser expresso em termos mecânicos. Na descrição da mecânica estatística, no processo de termalização o sistema inicialmente mais quente encolhe seu espaço de fase, enquanto o inicialmente mais frio expande o seu. O que determina quando esse processo cessa? A termodinâmica diz que ele cessa quando a entropia do sistema conjunto (gás mais corpo sólido) atinge a entropia máxima. Bem, mas afinal o que é entropia? Uma vez que a ponte entre a termodinâmica e a mecânica ainda não foi inteiramente estabelecida, temos de dar duas respostas. A termodinâmica diz: a) A variação da entropia de um sistema em um processo quase-estático (reversível) é igual ao calor que ele recebe dividido por sua temperatura. b) Na (inatingível) temperatura zero, a entropia de qualquer sistema físico é nula. Bom, pode parecer que esta é uma maneira um tanto tortuosa de definir entropia. Mas desafio qualquer colega a tentar definir energia de alguma maneira mais direta. Não digo que ele não consiga, mas se conseguir vai ensinar algo novo não só a mim, mas a toda a comunidade de físicos. Não me venham com E = mc2, pois isso seria trocar seis por meia dúzia. A mecânica estatística diz que a entropia (para um sistema em equilíbrio) é uma grandeza proporcional ao logaritmo do número de microestados acessíveis ao sistema. Pode parecer que nesse caso poderíamos escolher uma dimensão qualquer para a entropia, que fosse derivável de massa, comprimento e tempo, e aí teríamos uma constante de proporcionalidade inteiramente dependente das outras constantes universais. Mas isso não ocorre. Na verdade se alguém realizasse tal feito eu gostaria que lhe outorgassem o prêmio Nobel não em um único ano, mas por uma década inteira. O fato, inegável e incontornável, é que ao falar na lei zero da termodinâmica não é possível evitar falar em temperatura ou em entropia; essas duas grandezas são canonicamente conjugadas e por isso mencionar uma delas é mencionar ambas. Finalizando, ao defender que a formulação da física (como a entendemos hoje) requer quatro grandezas fundamentais (massa, comprimento, tempo e temperatura) ou, equivalentemente, quatro constantes universais (c, h, G e kB), estamos de fato afirmando que a física ainda não foi (talvez nunca poderá ser) formulada em termos inteiramente mecânicos. O significado último desse fato, creio que é uma questão, pelo menos no momento, de caráter filosófico para a qual cada um pode ter sua resposta. O prêmio Nobel de Física Giles Cohen-Tannoudji escreveu um livro intitulado Universal Constants in Physics (McGraw-Hill – 1993) que obviamente trata exatamente desse tema. Nele o autor defende a existência de quatro grandezas fundamentais e de quatro constantes universais. Eu pessoalmente não subscrevo a sua interpretação do significado das constantes (como a questão é filosófica, nunca se pode dizer quem tem razão). Ele aponta, e nisso estou de acordo, que h e kB são duas grandezas de algum modo entrelaçadas e de caráter quântico, e que têm um caráter distinto de c e G. Para ele, entropia é um quantum de informação. Assim, informação seria uma grandeza física com dimensão de entropia (que não tem dimensão que se possa exprimir em termos mecânicos) para a qual a natureza teria criado um quantum natural, do mesmo modo que ela criou um quantum natural para a ação. Resumindo, um programa reducionista da física, no qual todos os fenômenos possam ser descritos (e todas as grandezas possam ser expressas) em termos mecânicos, só pode ser aceito se incluir uma formulação mecânica da lei zero da termodinâmica. Postas essas considerações de cunho, científico sou ainda levado a outras, de caráter anedótico, não isentas de irreverência e de heresia. Se o colega é religioso e susceptível a brincadeiras envolvendo a religião, é melhor parar aqui sua leitura. Minha suspeita é de que Deus criou as leis da física mecanicista e depois disso o diabo criou as da termodinâmica. Veremos. Com a lei zero satã criou para si o consolo de que, embora o tempo requerido possa ser muito longo, um dia o inferno atingirá a mesma temperatura do céu, e se ela não for suficientemente amena seguramente Deus dará um jeito. Já as outras leis, ele as criou com o único propósito de prejudicar o homem. Com efeito, o mais valioso dos bens é a energia (nossa era demonstra isso dramaticamente), e a saga humana é um jogo em que o prêmio é energia. A primeira lei da termodinâmica diz que a energia do universo é constante, ou seja, nesse jogo não nos é possível ganhar (criar energia). A segunda lei diz que em qualquer processo real (e portanto irreversível), a energia utilizável do universo diminui; ou seja, estamos metidos em um jogo em que também não é possível empatar. Poderíamos sair o jogo – cessando os processos irreversíveis – indo para o zero absoluto de temperatura. Entretanto, a terceira lei da termodinâmica diz que o zero absoluto é inatingível. Ou seja, nem sequer podemos sair do jogo!