O EVANGELHO DE LUCAS Prólogo 1,1-4 O evangelho de Lucas é a primeira parte da obra de Lucas que compreende o evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos. As referências iniciais o demonstram (Lc 1,14 e At 1,1-3). Lc se refere a “muitos” e a “testemunhas oculares”. As testemunhas são os apóstolos e os muitos que escreveram evangelhos, podem ser: - Marcos de quem ele copiou 2/3; - Lc tem em comum com Mt uma porção de sentenças: Logia tiradas da Q; - Evangelho de Tomé (apócrifo); - Evangelho de Filipe (apócrifo); - Evangelho de João – há motivos comuns; - Outros? Provável. 1 Lucas chama estes outros autores “muitos” de terem feito “tentativas”. Certamente ele assim fala por não achar suficientes tais obras, ou até mesmo, tendenciosas. Por isso ele mesmo fez uma “investigação rigorosa”(Lc 1,3) e, de “forma ordenada” escreve seu evangelho. Seu objetivo é pastoral, pois quer “verificar a solidez do ensino”. Assim, sua obra, antes de história, quer ser uma catequese semanal e cíclica. A obra segue em sete seções: 1) O nascimento de João e de Jesus 1,5-2,52 2) A missão de João e de Jesus (3,1-4,44 3) A chamada de Israel 5,1-6,11 4) A identidade de Jesus 6,12-9,50 5) A viagem da Galiléia para Jerusalém 9,51-19,46 6) Ensino e polêmica no templo 19,47-21,38 7) A última e definitiva Páscoa 22,1-24,53 I – O nascimento de João Batista e de Jesus 1,5-2,52 Nesta unidade João Batista (JB) é apresentado como a culminância do Antigo Testamento, enquanto que Jesus (J) é o iniciador da Nova Aliança, por isto mesmo, esta unidade deve ser vista bem mais com enfoque teológico, que histórico2. 1) JB, o não esperado 1,5-25 O relato do nascimento de JB é um belo tratado teológico, sem nexo histórico 3. Zacarias (Zc) e Isabel (Isa) são da casta sacerdotal e rigorosos observantes. Eles representam o antigo Israel, o templo, a Lei. São fiéis, mas são estéreis, já não têm mais esperança, apesar de cumprir todas as prescrições legais. Do velho Israel já não brota mais nenhuma esperança. Zc entra no templo para cumprir as funções próprias de seu estado sacerdotal. Foi oferecer incenso (a oração do povo), enquanto o povo continuava rezando na assembléia. Quando, porém, o anjo lhe aparece, Zc se choca. O rito que cumpre não o le1 RIUS-CAMPS, J. O evangelho de Lucas – o Êxodo do homem livre. p.9. Idem, p.15. 3 Com isto não se quer negar que JB não tenha existido, ou que não tenha nascido. Apenas quer se dizer que Lucas cria uma lenda teológica em vista de explicar a pessoa e a missão de JB e também de J. 2 2 vava a tanto4. Ele, sendo representante da religião oficial, não crê no que faz, mas o povo continua a rezar, pois ele ainda tem fé. Zc termina surdo, pois a palavra do velho Israel não é palavra de vida. Assim ele não interfere no novo que está por nascer. JB inicia nova fase (o limiar do Novo Testamento). Nem o nome do pai deve receber. Não age no templo, mas se torna profeta e asceta. Representa ruptura do velho Israel. O velho Israel (Zc) não podia acreditar neste novo que sai dele, que nem passa pelo templo. Lá no templo é lugar de formalidades, de incredulidade e de surdez. O novo acontecerá no deserto como no Êxodo. Uma vez que o velho Zc sai do templo e volta para sua casa, a concepção acontece (Lc 1,23-25). 2) Jesus, o esperado 1,26-38 No sexto mês da gravidez de Isa o anjo é enviado a Maria. O sexto mês, lembra o sexto dia da criação (Gn 1,26-27). Agora começa a formação do novo Adão 5. Agora começa uma contraposição entre JB e J: JB é anunciado no templo: promessa do velho Israel J é anunciado em Nazaré, na Galiléia, terra sem promessa do Antigo Testamento. JB = anunciado na Instituição: templo/sacerdócio J = anunciado para uma Moça do povo da periferia JB = anunciado para um homem casado, sacerdote J = anunciado para uma moça virgem, sem convivência com homem. JB = descendente de Aarão: linhagem sacerdotal J = descendente de Davi, mas indireta, uma vez que José não é pai de Jesus JB = filho de mãe estéril e idosa J = filho de mãe virgem, sem homem J = vem de MARIA, que é fiel à Palavra de Deus Maria é a fiel, o contrário do Povo infiel apresentado como a prostituta (Os 2,4ss; Jr 3,6-13; Ez 16). Assim, Maria é a imagem do povo dos pobres de Israel. Maria não representa a instituição, mas é fiel (cheia de graça). Isa = ruptura e continuação do antigo Israel: estéril/casta sacerdotal Maria = ruptura total: virgem. Sem concurso de homem (desc. de Davi). Há também uma contraposição entre Zc e Maria (o velho e o novo): Zc não crê, pede sinal Maria não pede nenhum sinal (Lc 1,34). Por isto se diz que Deus lhe dará o trono e não que o herdará (Lc 1,33). JB recebe o Espírito Santo no 6ºmês, no ventre da mãe J é concebido pelo Espírito Santo. “A força de Deus não tem limites: não só devolveu a fecundidade ao Israel religiosamente estéril, mas também recriou o Homem no seio de uma moça do povo quando ainda era virgem, sem concurso humano, excluindo qualquer traço de tradição paterna que pudesse pôr em perigo a realização do projeto mais querido de Deus” 6. Zc = não acreditou, ficou mudo: antigo Israel Maria = faça-se em mim...: novo Israel Zc e Isa: a nata de Israel – estéreis 4 Ibidem, p.19. Ibidem, p.22. 6 Ibidem, p.29. 5 3 J e Maria: periferia (Nazaré): povão. Virgem: imagem do povo fiel do interior7. 3) O Cântico de Maria 1,39-56 Maria visita Isabel. É o Israel fiel da periferia (Nazaré) que ajuda o judaísmo oficial a sair de sua esterilidade. Ela passa pelas montanhas (Samaria). É assim que o velho Israel se torna fecundo. A saudação de Maria leva o Espírito Santo ao velho Israel. É a nova aliança absorvendo a velha. O maior nascido de mulher (JB) recebe o Espírito Santo do iniciador do Novo Testamento. O cântico de Maria mostra a esperança de uma prática religiosa que vem da periferia. É o Israel fiel a Deus que se expressa na boca de Maria, esperando a salvação. Em Maria, começou a ação de Deus a favor da periferia. A nova aliança está começando. Os poderosos serão destronados, os humildes terão vez. 4) O nascimento de JB 1,57-80 JB é a alegria de todos, é a nova esperança. a língua de Zc se solta, pois a promessa já se cumpriu. O menino será uma ruptura , não levará o nome do pai. Zc vira profeta (Lc 1,67ss). Fazendo a experiência da fecundidade de Deus, solta a língua e age, não mais como sacerdote, mas como profeta, através da palavra. O plano de Deus se realiza no menino previsto pelos profetas, compreende a libertação do povo (1,71ss), principalmente a libertação de Israel. Zc tem visão restrita ou nacionalista. 5) O nascimento de Jesus 2,1-20 As leis (decreto do rei, José) fazem de Jesus um davidida. Ele nasce em Belém – cidade de Davi, mas Deus o concebe fora destas leis. Ele não é filho de José. Existem erros históricos: Herodes morreu no ano 4 a.C. Quirino foi governador de 6-9 d.C. Portanto, também aqui não se trata de história. O nascimento de Jesus em Belém é resultado da prepotência de César Augusto que baixou o decreto do recenseamento. Jesus nasce no anonimato – só os pastores o visitam. Diferentemente de JB - todos o visitam, Jesus fica no anonimato. Os pastores eram a escória da sociedade, como os escravos do Êxodo, recebem a luz noturna (páscoa) de sua libertação. Para eles é anunciado o que é novidade para todo Israel (2,10). Esta novidade é a criança anônima, como anônimo foi Davi quando ascendeu ao trono. Deus brilhou na história, mas só os pastores (escória) ouviram sua mensagem. Os abastados nada perceberam. Deus na manjedoura é a inversão total dos critérios do mundo. Ninguém valoriza as palavras dos pastores (2,17-18). Maria, no entanto, guarda tudo no coração. Ela representa a parte fiel de Israel. 6) Jesus na vida do povo 2,21-40 José e Maria cumprem a Lei, apresentam o menino no templo, circuncidam-no Maria se purifica. Simeão e Ana (profetas) vão ao templo (lugar oficial). Eles não são a oficialidade, mas refletem o povo que ainda acredita na religião oficial, apesar dos dirigentes estéreis (zc e Isabel). Instruídos pelo Espírito Santo, passam da instituição para o menino. Simeão profere um cântico (2,27-32) que supera o de Zc (Lc 1,67ss). Enquanto que o cântico de Zc se restringe a Israel, o de Simeão se abre a todos os povos e nações. 7 Ibidem, p.30. 4 É o Espírito Santo que move os profetas a esta universalização 8. Simeão profetiza que Jesus será a queda e soerguimento de muitos (2,34s). Faz eco a Jo 1 (aceitar a luz - não aceitar). É o conflito do velho e do novo. Ana também é figura simbólica. Ela tem 84 anos (12 x 7): 12 = tribos; 7 = globalidade. Ela permaneceu 14 anos virgem = aliança com Deus; 07 anos casada = Fiel a Deus; 9 setenas: 63 anos viúva = ruptura. Ainda tinha esperança. Ela é da tribo de Aser (norte – periferia). “De uma parte Ana está muito arraigada no passado (genealogia) e na instituição judaica (templo); de outra, por sua qualidade de viúva, diz relação com o povo de Israel, que se enviuvou de seu Deus, ao passo que, como profetisa, lança um grito de esperança diante de semelhante desastre nacional”9. Maria e Simeão têm perspectiva universal, enquanto que Zc e Ana apresentam uma perspectiva restrita ao povo de Israel. Desde o nascimento até a volta a Nazaré para a purificação (2,39) passaram-se 40 dias. Isto lembra os 40 do deserto (Êxodo e as tentações de Jesus e as aparições do ressuscitado, etc.). Aqui temos mais um paralelo com JB: Jesus nasceu no anonimato e depois vai para Nazaré JB nasce na comunidade e depois vai para o deserto. 7) Jesus e o Pai 2,41-52 O texto mostra a ruptura com a instituição judaica. Jesus está a serviço do Pai. O relato demonstra o êxodo de Jesus. Ele entra e sai da instituição judaica. Jesus questiona, interpela os mestres judeus. O questionamento de Maria é a tentativa de enquadramento no judaísmo (teu pai e eu...). Mas Jesus rompe com este enquadramento. Rompe com o templo (discute), rompe com a tradição (meu Pai). José e Maria são o Israel fiel, mas que não compreende. Maria não se fecha na sua posição. Ela é o Israel fiel, que, mesmo não compreendendo, guarda tudo. II – João e Jesus = a missão 3,1-4,44 Nesta unidade continua o paralelismo entre JB e Jesus que se verificou na unidade anterior. 1) O plano de Deus 3,1-4,13 A missão de JB está bem situada na história. Tibério é imperador, Pilatos é governador, Herodes, Lisânias e Filipe são tetrarcas. Anãs e Caifás são os sumo sacerdotes10. No ano 15 (3,1) JB, herdeiro da tradição do Antigo Testamento, recebeu uma interpelação de Deus no deserto. Ele rompeu com Israel, pois voltou ao deserto onde inicia o novo êxodo. Já o início da missão de Jesus não está bem situado na história. É nova realidade que transcende a história. Este é o ponto alfa da história do homem novo, ou seja, início do Reino de Deus. JB é o novo Êxodo. Jesus aceita o plano de Deus. A imersão lembra 8 Ibidem, p.52. Ibidem, p.54. 10 Um era sumo sacerdote e outro era o ex-sumo sacerdote, mas ainda tinha influência. 9 5 a morte. Neste assumir o céu se abre: Deus volta a se comunicar. O Espírito Santo desce: Deus acompanha a missão de Jesus. A voz confirma Jesus. Jesus tem em torno de 30 anos (3,23), enquanto que JB inicia no ano 15 (3,1). Jesus, como Davi, inicia aos 30. Pela genealogia (diferente de Mt 1,1-17) Jesus inicia a 12ª lista de sete (7 x 11=77). Jesus, o Filho de Deus se situa dentro da história de seu povo. É a mão de Deus na história humana. A cena da tentação (4,1-13) segue a história de Adão. Jesus, o novo Adão, como o velho, enfrenta a tentação, mas não cai como aquele. As tentações são a síntese de todas as tentações de Jesus, do nascimento à cruz. Os 40 dias lembram os 40 anos no deserto. O batismo preveniu Jesus diante da falsa expectativa messiânica judaica. O diabo perde, mas voltará em momento oportuno (4,13). Derruba Judas e Pedro ( o novo Israel). 2) O programa de Jesus 4,14-44 Nesta unidade Jesus se depara com Nazaré (fanatismo de Israel), Cafarnaum (zelotes) e a casa de Simão em dia de sábado (religião petrificada). Jesus age depois do pôr do sol (4,40). A cena se dá no deserto (4,1 e 4,42) e nas sinagogas da Galiléia (4,14s) e da Judéia (4,44). a) Em Nazaré 4,14-30: Nazaré tem os fanáticos, os nacionalistas. Jesus deveria se aliar a eles, mas ele não o faz. Lê Is 61,1s e não pronuncia a frase sobre a vingança de Deus. Rechaça a visão triunfalista messiânica, mas também é rechaçado por eles (4,22). Querem eliminá-lo (4,28s). b) Em Cafarnaum 4,31-37: Jesus age através da palavra eficaz. O Espírito da sinagoga (messianismo triunfalista) se opõe a ele. Jesus expulsa este espírito. Ele professa o messianismo de Jesus (4,34). Porém, nesta visão está o desvio do papel de Jesus. Ele não se deixa instrumentalizar e expulsa o espírito. Os cafarnaumitas zelotas estranham (4,36) e querem matá-lo c) Na casa de Pedro 4,38-39: a sogra febril de Pedro é o ambiente nacionalista e zelota que perpassa este lar. Jesus liberta a sogra e esta se torna serva. Servir é a nova ideologia dos discípulos de Jesus, ou seja, é a alternativa ao nacionalismo zelota. d) Do pôr-do-sol ao raiar do sol 4,40-44: o sábado petrificado se tornou um jugo opressor que deixava o povo possesso. Passado o sábado Jesus começa a agir, libertando, mas fora dos critérios triunfalistas, pois manda calar. Quando o sol raiou (4,42) Jesus inicia no deserto a missão que só culmina na cruz, quando o sol se esconde (23,5). Nesta missão, desvia-lo (4,42b) como nas tentações. III – Chamada do Israel Histórico 5,1-6,11 A terceira unidade se subdivide em duas partes: 1) Constituição do grupo israelita 5,1-26 a) Os primeiros discípulos (Pedro, Tiago e João) 5,1-11: o cenário tem como pano de fundo Ez 47,1-10. Cumpre-se a profecia, mas não mais a partir do templo, como em Ezequiel, antes, a partir de Jesus. Esta ação de Jesus modifica a missão dos dis- 6 cípulos. Agora o milagre se faz ver. Estes deixam os esforços humanos e seguem a Jesus. b) Supressão da marginalização 5,12-16: Um leproso (excomungado) busca em Jesus a solução. Tanto o leproso como Jesus violam a lei do puro e do impuro. c) Universalização da salvação 5,17-26: o paralítico é um excluído, mas seus carregadores têm uma fé muito grande a ponto de entrar pelo telhado. É a superação da exclusão. Provocam choque com os representantes oficiais. 2) Constituição do grupo Não-Israelita 5,27-6,11 a) O chamado de Levi 5,27-32: na seção anterior Jesus chama os discípulos (5,111), o leproso (5,12-16) e o paralítico (5,17-26). Agora chama o não-Israel, isto é, Levi, o cobrador, o totalmente excluído, ainda que seu nome seja Levi. Agora Jesus tem quatro grupos: 1) discípulos, 2) Leproso, 3) Paralítico e 4) Levi e os publicanos. Sendo que os três primeiros ainda são Israel, o último é o não-Israel. Os três primeiros grupos se banqueteiam com o 4º grupo. É a mesa comum das comunidades. Só os fariseus e escribas não querem participar (5,30). Jesus quebra sua lógica de exclusão. b) O jejum 5,33-39: enquanto as religiões são sacrifício e jejum, os discípulos de Jesus fazem festa. Reino é alegria. Não há nenhum motivo para jejum. Só quando ele estiver morto se fará jejum, mas por causa da maldade daqueles que matam. A prática nova de Jesus não se enquadra na velha Lei. A roupa nova e o vinho novo (novidade de Jesus) não podem conviver como enxerto no Antigo Testamento. Há uma ruptura. Quem é do Antigo Testamento, acha o velho melhor. c) A liberdade no sábado 6,1-5: os discípulos são livres. Colhem espigas no Sábado. A Lei da morte foi abolida por Jesus e os seus. d) A mão atrofiada 6,6-11: a Lei deixa os homens sem ação (mão atrofiada), isto é, inábeis. A ação de Jesus, que contraria fariseus, escribas e o sábado, devolve ao inábil as mãos. O discípulo já não é mais escravo da lei. IV – A identidade de Jesus 6,12-9,50 Depois da rejeição de Jesus (6,11), inicia a eleição do novo Israel. Mas esta eleição não é entendida. O texto se divide em duas partes. A primeira parte deste texto compreende Lc 6,12-9,17 e postula a pergunta pela identidade de Jesus. A segunda parte, que está em 9,18-50, mostra as diferentes respostas do povo e dos discípulos a Jesus e as correções que Jesus faz. 1) A palavra Eficaz 6,12-9,17 A – confirmação do novo Israel 6,12-17a B – Programa do Reino 6,17b-49 C - Agonia do paganismo 7,1-10 D – Situação limite de Israel 7,11-17 E – Batista recebe informações 7,18-33 F – O fariseu e a pecadora 7,34-50 A’ – Os Doze e as mulheres 8,1-3 B’ – Disposição dos discípulos 8,4-21 7 C’ – Rebelião dos escravos 8,22-39 D’ – Religião é o ópio do povo de Israel 8,40-56 E’ – Rumo à utopia do Reino 9,1-9 F’ – Jesus e os Doze 9,10-17 Tudo visa à pergunta capital sobre Jesus Cristo (9,18-21). Versa sobre o falso e o verdadeiro messianismo. Os Doze (6,13; 8,1; 9,1.12.17) mostram esta perspectiva . O novo Israel acontece. A – Confirmação do novo Israel 6,12-17a O novo Israel se formará pelos Doze e os outros já escolhidos (leproso, publicano, etc.). Jesus se retira de noite (dúvidas) e reza. Ao amanhecer (dissipam-se as trevas) Jesus escolhe os Doze. Os Doze se distinguem dos batistas, dos essênios, dos fariseus, etc. Não formarão um grupo fechado, mas são enviados (apóstolos). Este é o novo Israel. Porém, os Doze têm seus limites: dois “Simão”: Pedro (duro) e o Zelote (revoltoso). Tem também dois Judas: Iscariotes (traidor), o filho de Tiago (o fiel). Pedro e Judas marcam a traição do grupo. Na nova comunidade também haverá malogro. Os Doze não foram escolhidos por suas qualidades, mas como testemunhas da nova sociedade. Os discípulos (6,17a) não são os israelitas. B – O programa do Reino 6,17b-49 O texto se divide em três partes: - A ação de Jesus é para todos (6,17b-19). Seguem a Jesus, para ouvi-lo: judeus, sidônios, atormentados e deficientes. Todos recebem a cura. Antes, Jesus devolve a dignidade, depois começa a pregação. - Discurso aos discípulos (6,20-26). A prática da mensagem de Jesus é alívio para os pobres, os que têm fome e os que choram. Isto, no entanto, causa perseguição, pois mexe com os privilegiados. Da mesma forma que os sofredores são felizes, os causadores da miséria do povo, são declarados malditos, pois a Boa Nova de Jesus Cristo é uma pedra no sapato deles. Na planície está a elite injusta. Os pobres bem-aventurados são todos aqueles que não têm o dinheiro como deus (ídolo) e assim aceitam a sociedade justa, sem instrumentalizar o ser humano. - Conselhos a todos (6,27-49). Todos devem praticar o amor generoso, pois devem ser semelhantes a Deus (6,27-38). Na parábola inacabada (6,39-49) há uma mistura de temas, mas tudo aponta para: “por em prática a Palavra”. C – Agonia do paganismo 7,1-10 O paganismo vive uma situação de morte (centurião) dos fracos (servo). A ação de Jesus chega também aos pagãos. Trata-se das comunidades distantes e posteriores a quem a Palavra também chega. Um requisito é a fé. D – Situação limite de Israel 7,11-17 Duas multidões se encontram: de um lado Jesus, os discípulos e os acompanhantes; do outro lado, a multidão do cortejo fúnebre. Trata-se do filho único de uma viúva. Tudo acabou. A mãe é viúva e o filho único está morto. Naim é a sociedade israelita sem vida. A viúva é Israel que perdeu o esposos: Deus. O filho morto é o fruto da reli- 8 gião judaica. A comitiva fúnebre é a multidão que só vê a morte. Pratica ritos de morte. Jesus vem de fora como Deus outrora se aproximou do povo de Israel. Sem ser solicitado, ele devolve a vida. Neste gesto, Jesus transgride a Lei. Ele toca no esquife (Nm 19,11). Esta Lei é a causa de morte da religião, deixando Israel viúva. Só em Jesus está a esperança de vida. E – O Batista pede informações 7,18-35 JB havia anunciado um messias trágico (3,15ss), mas Jesus não era nada disto. Ele não condenava, mas antes, salvava os judeus (7,11ss) como também os estrangeiros (7,1-10). JB se alarmou: poderia este ser o Messias? Jesus não condenou, nem os dirigentes, mas iniciou algo novo: judeus e gentios juntos formam um povo. Jesus responde (7,21-22 = Is 29,18ss; 26,19). Jesus realiza as esperanças messiânicas. É bom não se escandalizar (7,23), pois a prática religiosa que se escandaliza diante da ação de Jesus a favor dos fracos, não é autêntica. Jesus define JB. Ele é mais do que um profeta. É o precursor e mensageiro (cf. Ex 23,20; Ml 3,1; Zc 1,76). Ele é o maior dos mortais (nascidos de mulher), mas não chega aos pés dos membros do Reino. Ele ainda faz parte da antiga realidade, ainda confia na instituição judaica. Israel é eternamente infiel. É como os meninos que nunca se satisfazem. Nem JB, nem Jesus servem para eles. F – O fariseu e a pecadora pública 7,36-50 Trata-se de duas atitudes contrastantes; a do fariseu e a da pecadora. Estas atitudes provocam discernimento nos leitores. O fariseu é a oficialidade. A mulher pecadora é a classe marginalizada. A mulher se converte diante de Jesus. Simão é tolerante, pois permite a entrada da mulher em sua casa, mas fica questionando. Ainda tem critérios judaicos na cabeça. A oficialidade se questiona diante do gesto de Jesus. O fariseu é desafiado pela parábola (vv.41ss). Tem certa dificuldade em perceber o agradecimento (“suponho”). Ele julga a salvação como mérito próprio. A mulher capta isto bem melhor, ela agradece. Tanto o fariseu como a pecadora é atraídos por Jesus. Porém ela agradece muito, ungindo os pés, mas o fariseu nada faz, nada tem a agradecer. Aqui, diferente de 5,1-11 e 6,12-16, onde os escolhidos são judeus, a mensagem chega de forma melhor aos de fora (cf. 5,27-32; 7,36ss). Simão é o cristão vindo do judaísmo. Sua conversão não foi profunda, por isto pouco amou. A pecadora é o cristão da gentilidade que fez conversão profunda. Muito amou. Lc contrapõe os “justos” que não precisam de conversão e os pecadores arrependidos (Lc 15). A’ - Os Doze e as mulheres 8,1-3 Agora Lc completa o que fez em A (6,12-17), mas na perspectiva de superar o exclusivismo judaico. Jesus realiza a posse da terra prometida (Gn 13,17). É a realização. O novo Abraão realiza a missão “atravessando povoados”. Nesta missão estão os Doze e as três mulheres concretas,pois até seus nomes são mencionados. Os Doze são os israelitas. As mulheres são as classes excluídas (Levi, pecadora, etc.). As mulheres são pessoas libertas de males (gentios). Os Doze, de nada são libertos (israelitas). As mulheres tornam-se servas. 9 B’ – Disposição dos discípulos 8,4-21 Como em 6,17ss, aqui se reúne novamente a multidão (8,4.19). O texto se divide em quatro partes: a) a parábola da terra boa (vv.4-8), b) explicação da parábola (vv.915), c) ensino – comparações (vv.16-18), d) a nova família (vv.19-21). a) A terra boa (vv.4-8). Não se importa como e onde semear, importa como ouvir: “quem tem ouvidos...”. b) Explicação (vv.9-15). Quem está com Jesus recebe a possibilidade de entender (v.15). Quem não está com ele, mesmo ouvindo, não entende (vv.12.13.14). c) Ensino – comparações (vv.16-18). O ouvinte deve traduzir a fé em obras para iluminar os que entram. “Cuidai, portanto, do modo como ouvis” (v.18). É possível perder tudo. d) A nova família (vv.19-21). Há uma ruptura entre Israel histórico (mãe e irmãos) e o novo Israel (aqueles que ouvem). Superam-se os laços raciais e de sangue pela observância da Palavra. Há diversos grupos frente a Jesus: - Os que só querem vê-lo: antigo Israel (cf. 8,20; 9,18s). - Os que o escutam: multidão de ouvintes (8,10). - Os que escutam e praticam: os discípulos (8,21). C’ – A rebelião dos escravos 8,22-39 O relato tem duas partes: - A Travessia (vv.22-26) inspira-se em Jn 1,1-16 e reflete a abertura ao paganismo. Jonas recebe o chamado de pregar aos ninivitas, mas ele foge e dorme no fundo do navio, quando é interpelado pelo comandante do navio (Jn 1,5). Agora é Jesus quem viaja com seus discípulos para a missão. Alguém quer impedir a missão ao estrangeiro. Trata-se dos próprios discípulos. Eles não querem ir aos gerasenos. Jesus, diferente dos de Jonas (lançado ao mar), domina o mar. Lc inverte o relato de Jonas. Cabe a pergunta: “quem é este...”? (v.25 cf.4,36). Na realidade Lc mostra as forças que querem impedir a igreja de se dirigir aos pagãos. - Jesus entre os gerasenos (vv.27-39). Jesus sai da terra prometida. Entre os pagãos ele se confronta com um pária revoltoso, um excluído que não participava da sociedade. Nem as correntes da cidade (sociedade) conseguiam evitar este marginal. Ele vivia na clandestinidade. O marginalizado reconhece Jesus como Filho de Deus Altíssimo, mas não quer sua ação. A ideologia que domina o homem possesso sabe quem é Jesus e por isto o teme. Se ele libertar o homem, ela perde seu domínio. O possesso tem uma legião de espíritos (muitas ideologias e falsos valores da sociedade pagã que impeliam o homem à marginalidade). Legião lembra as tropas romanas e aqueles que julgam que a única maneira de debela-las é o uso da violência, pois elas endemonizam o povo. Os demônios são os falsos valores da sociedade opressora que acarreta a rebelião. O espírito de rebelião sabe que Jesus não partilha da violência, teme o abismo (Jn 2,3-10) que é a derrota sem o uso da violência. Os porcos são os valores pagãos tão detestados pelos judeus. Os valores falsos querem voltar aos porcos, de onde procedem. Existem duas maneiras de resolver o problema da miséria dos marginalizados (endemoninhado): o uso da violência contra os opressores e o aniquilamento dos porcos. Jesus opta pela segunda. Ou seja, o marginalizado quer a violência, Jesus aniquila as causas, ou a encarnação dos falsos valores. Assim, Jesus combate os falsos valores, anuncia a verdade e, mesmo sem violência , acaba com os porcos. O possesso se torna livre, mas para isto, 10 os falsos valores (porcos) devem ser precipitados. Os donos dos porcos (mentores de falsas ideologias) se assustam ao ver os porcos precipitados e o homem livre. Não sabem conviver com homens livres. Pedem que Jesus se retire. Neste relato tempestade/geraseno (8,22-39) encontra-se um paralelo com o relato da sinagoga de Cafarnaum (e,34ss). No 1º relato a possessão representa a ideologia da sinagoga; no 2º relato a possessão é o nacionalismo judaico que, como no relato de Jonas, quer impedir a ação de Jesus entre os estrangeiros. Também os estrangeiros se sentem incomodados, lançam Jesus fora. D’ – Religião, ópio do povo 8,40-56 Novamente a ação de Jesus chega a pessoas excluídas: a menina de 12 anos, filha de Jairo (vv.40-42a e 49-56) e a mulher hemorroíssa (vv42b-48). Estas duas pessoas são vítimas da religião judaica. A menina é um símbolo: o povo de Israel que não chegou à maturidade (12 anos), pois está submetida à sinagoga (filha do chefe da sinagoga). O futuro casamento (após os 12 anos) estava comprometido pela morte. A instituição judaica conduz à morte. Porém, o pai se abre a Jesus, busca nele uma saída para a vida. Entre o contato com Jairo e a chegada a sua casa, onde a menina morre, Jesus se depara com a hemorroíssa (12 anos sofria de um fluxo de sangue). Ela é símbolo de Israel que marginaliza os impuros, as mulheres. Ela é vítima e não encontra nenhuma saída (ninguém a pode curar), por isto se aproxima de Jesus, mas para tanto, terá de transgredir a Lei (tocar em Jesus 8,44 é proibido). A força de Jesus livra Israel de sua opressão religiosa. Em Jesus está a força (Espírito Santo) que libera as pessoas estéreis do judaísmo. Jesus é a transgressão da Lei. A filha de Jairo (12 anos) acaba de falecer. A Lei de Israel que manteve a hemorroíssa estéril, agora acaba de matar a menina. A ação de Jesus se faz sentir neste chão de esterilidade judaica. Jesus toma consigo Pedro, Tiago e João (discípulos israelitas) e os pais da menina (comunidade familiar). Eles só vêem a morte. Jesus abre os olhos de Israel (dorme) morto. Jesus devolve a vida a Israel sufocado pela Lei. Em Jesus está a superação da religião judaica (chefe da sinagoga). As duas mulheres são duas vertentes do povo de Israel. A hemorroíssa é a marginalizada da religião por ser impura, mas que encontra o caminho na desobediência. A menina é o Israel obediente, que se encontra em situação pior, morre. As duas, Israel obediente e o Israel desobediente são estéreis. O Israel obediente morre. Jesus lhe oferece o Espírito Santo e volta a vida, a fertilidade, mas para tanto, acontece uma certa ruptura com o Israel tradicional (a impura toca em Jesus e Jesus toca na defunta). E’ – Rumo à utopia do Reino 9,1-9 O texto se divide em duas partes: - A missão dos Doze (vv.1-6): os Doze são enviados e junto levam o poder de curar e de expulsar demônios. São destinados às casas e às cidades, mas eles vão de povoado em povoado. As cidades são mais universalistas, enquanto os povoados são um ambiente mais popular onde predomina a ideologia nacionalista fanática (9,6.12; 19,30; 24,28). Jesus faz os doze extrapolar tais limites (9,10b) levando-os a uma cidade. Eles curam, mas não expulsam demônios, como o farão os 70 (10,17-20). - A preocupação de Herodes (vv.7-9): Herodes reflete a opinião do povo. Jesus seria JB, Elias, profeta... acontece que a missão de Jesus e dos seus incomoda a Hero- 11 des. O juízo que fazem é vétero-testamentário. Herodes, como outrora seus familiares, quer ver Jesus. F’ – Jesus e os Doze 9,10-17 Os Doze voltam da missão e narram tudo o que fizeram. Eles são os apóstolos que regressam e são convidados por Jesus a se retirar até Betsaida (9,10b), isto é, fora do território judaico. Jesus quer: - isola-los do fervor nacionalistas dos povoados; - separa-los das massas entusiasmadas; - ir a território neutro; - explicar o Reino de Deus; - corrigir sua mentalidade equivocada (messianismo triunfalista). O lugar deserto (cf. 4,41s e 5,16) é território neutro. O povo que segue são nãojudeus. Os Doze (judeus) querem se ver livres do povo não-judeu. Querem despedir o povo no fim do dia (9,12; 24,29). Os Doze não entendem e esta incompreensão culmina na traição de Judas (22,53). Os Doze não se sentem bem na presença desta gente. Jesus não aceita (“daí-lhes vós mesmo de comer”) esta marginalização. Eles querem comprar, mas Jesus já havia pedido que nada levassem (9,3; 22,35). É o choque judeu-gentílico. Em 8,1-3, além dos Doze, seguiam algumas mulheres que partilhavam. Aqui, os Doze não querem partilhar. Julgam isto impossível. Os cinco mil alimentados, os cinco pães (9,14 cf. At 4,4; 2Rs 2,7) sentados de cinqüenta em cinqüenta lembram o círculo dos profetas, isto é, a comunidade adulta que extrapola os limites raciais. Quando se põem a servir, sobra para todos e tal missão deverá continuar na igreja, pois sobram 12 cestos. Realiza-se, em Jesus, a promessa feita a Eliseu (2Rs 4,43-44). 3) A identidade de Jesus 9,18-50 Lc vinha seguindo Marcos de perto, mas agora omite Mc 6,45-8,26 (ida de Jesus aos estrangeiros). Isto ele conta em Atos dos Apóstolos. A segunda parte se divide em 3 seções: a) O Messias 9,18-27: depois de um sinal messiânico (pão) todos o procuram, mas Jesus se retira para rezar. Os discípulos devem se definir. O texto apresenta as idéias comuns sobre Jesus: JB, Elias, profeta, mas não o chamam de messias (rei davidida – violento e vencedor). Jesus não é nada disto, nem rei, nem violento. Os Doze têm idéias diferentes. Pedro confessa: “O messias de Deus”, aquele que libertaria Israel (23,35). Jesus não aceita tal idéia e exorciza os discípulos (9,21). Eles sabem que Jesus é o messias, mas o pensam nos moldes do nacionalismo, por isto mesmo, Jesus proíbe que o divulguem e logo começa a anunciar sua paixão, morte e ressurreição, bem como fala da cruz dos discípulos. Este fracasso, incompreendido pelos discípulos, leva à vida, mas se distancia da compreensão do messianismo exaltado. Seguir a Jesus é abdicar do sucesso (9,25). b) O Êxodo do Messias 9,28-36: agora os discípulos sabem que Jesus é o messias (9,20), porém estão na perspectiva triunfalista. Oito dias = 1º dia – nova realidade (24,1). Pedro, Tiago e João são da ideologia judaica. Jesus os toma à parte. Sobe o monte para orar. O monte é oposição ao templo (monte Sião). Enquanto Jesus reza, os discípulos dormem. Dois homens (Moisés e Elias) representam as Escrituras (Lei e Profetas). Eles também confirmam que Jesus de fato passará pela paixão, morte e ressurrei- 12 ção. Também na cena do sepulcro vazio (24,4) estão dois homens, bem como na ascensão (At 1,10), onde eles dissuadem os discípulos a esperar uma vinda iminente e clamorosa do Reino. A transfiguração visualiza o prenúncio da paixão, morte e ressurreição. Moisés e Elias confirmam . Conversam sobre o êxodo de Jesus (9,31). Pedro e os demais dormem, ou seja, não entendem o fracasso iminente. Quer fazer 3 tendas. De um lado, Moisés (Lei), no centro Jesus e do outro lado, Elias (profetas). Isto é, colocam tudo em pé de igualdade. Mas Pedro não sabe o que diz. Neste momento o céu confirma Jesus: ele está acima de Moisés e Elias. Porém, é o fracassado que os discípulos não entendem. c) O livre liberta 9,37-50: Jesus e os três descem da montanha onde os discípulos dormiram. Deparam-se com uma multidão e uma situação limite. Um homem, cujo filho único está possesso. O pai busca solução em Jesus,a quem chama de mestre. A multidão é o símbolo de quem vai a busca de Jesus. O pai suplica, pois é da multidão sofredora. O filho é a vítima de um espírito que tira a liberdade do homem. “Mediante o recurso aos maus espíritos, os evangelistas descrevem as múltiplas ideologias e forças malignas que pululam na sociedade e tentam apossar-se da humanidade”11. Os discípulos não puderam expulsar o espírito, pois eles ainda vivem a ideologia nacionalista e fanática. Sabendo que Jesus é o messias, voltam com toda a força a esta ideologia (cf. Mc 8,32ss). O povo corre atrás de Jesus em busca de solução, pois o sistema de dominação romano o deixa sem saídas. Jesus é, para a multidão, a última esperança. Jesus reage como Moisés (9,41 = Dt 33,2). O povo de Israel é igual ao povo do deserto: não crê na força de Deus, quer a violência. Jesus reintegra o menino na família sem violência, ou seja, a esperança de Israel livre passa por Jesus que liberta das ideologias nacionalistas fanáticas. Segue a este texto, o anúncio da paixão, morte e ressurreição (9,43s). É o fracasso do messianismo. Aquele que venceu o espírito mau será morto e derrotado. Com isto, a ideologia messiânica recebe forte impacto. Desta forma se supera a mentalidade viciada dos discípulos. É o fracasso messiânico mostrando a força de Deus. Mas os discípulos não conseguem entender esta nova lógica do fracasso. Seu nacionalismo se choca com a atitude de Jesus. Devem aprender que o Reino não se guia pela lógica dos poderosos, mas antes, começa com o maior fracasso. O messias Jesus não se enquadra na esperança messiânica do nacionalismo exacerbado de Israel. Diante dos sinais realizados por Jesus todos ficam perplexos: JB, o povo, os adversários. Tudo isto só faz com que mais se espere algo grandioso dele. Os Doze descobriram que Jesus é o messias (9,20), mas erraram completamente ao interpretar seu conteúdo. Por isto são proibidos de divulgar a verdade, e isto é estranho para eles. Não cabe em suas cabeças um messias fora dos moldes do poder davídico. Até já discutem quem deles será o maior. Jesus freia suas ambições. Troca o termo “messias de Deus” pelo termo “o Filho do Homem” e lhes apresenta a criança como paradigma (9,47ss). João (9,49) chama Jesus de “chefe” () e não de “mestre”, como o fez o pai (- 9,38). Chefe é palavra carregada de ideologia de quem domina. Os discípulos querem monopolizar a ação de Jesus. Pensam em poder e não em serviço. Mas na ótica de Jesus, o conta é o serviço. Quem serve está a favor. Não deve ser impe- 11 RIUS-CAPS, Op. cit. p.170. 13 dido. Com isto termina a quarta seção, onde se mostra a identidade de Jesus (6,12-9,50). Agora se iniciará o confronto de Jesus com o centro do poder (Jerusalém). V – Viagem a Jerusalém 9,51-19,46 A seção começa com a decisão de ir a Jerusalém (9,51) e termina em 19,46 com a denúncia contra o covil de ladrões no templo. Nesta seção Jesus enfrenta a instituição judaica (9,51) e denuncia a prática religiosa (19,45-46). A seção se compõe de três partes: 1) Prolegômenos 9,51-10,24 2) Traçado sinuoso 10,25-18,30 3) Desenlace 18,31-19,46 1) Prolegômenos 9,51-10,24 A primeira parte se divide em dois itens: a) Decisão firme 9,51-62: Jesus percebe que seu tempo chegou. Enfrenta a realidade abertamente. Vai a Jerusalém (9,51). O arrebatamento (ascensão) significa 2Rs 2,9-11 e também At 1,2.11ss, ou seja, a morte e ascensão. Jesus toma a decisão de ir a Jerusalém - volta o rosto para Jerusalém (), o que é uma imagem de Ez 21,7 e simboliza o enfrentamento. No caminho Jesus manda seus mensageiros à frente (9,52). Eles deviam preparar a sua chegada, porém, se deram mal. Bem provável que anunciassem um messias que iria tomar o poder em Jerusalém e iria dominar. Com estas idéias os samaritanos reagiram. A mensagem falhou, pois estava impregnada de nacionalismo. Tiago e João querem a vingança (9,54). Isto lembra Elias (2Rs 1,1ss) que fez descer fogo do céu. Esta vingança é parte de sua ideologia. Jesus repreende. Na Samaria tem alguns seguidores (9,57-62): “eu te seguirei (v.57), “segueme”(v.59), “eu te seguirei”(v.61). Trata-se de três seguidores como Pedro, Tiago e João. Deles se exige ruptura total: casa, família, pai (tradição). O primeiro personagem não deve ter nenhuma instituição - não tem onde reclinar a cabeça. O personagem do centro já rompeu com a tradição – quer enterrar o pai. Mas Jesus lhe pede mais: esquecer o passado e anunciar o Reino. O terceiro deve romper com tudo. b) Mensagem sem fronteira 10,1-24: Este texto deve ter saído das mãos de Lucas e reflete a missão entre os pagãos. Certamente é um fato pós-pascal, mas Lc o lê à luz de Jesus. Tendo a missão dos Doze (6,13ss) como pano de fundo, molda a missão dos Setenta (signo de universalidade). Os Doze simbolizam Israel, enquanto os Setenta simbolizam todos os povos (70 nações) = Samaria. Os Setenta são bem sucedidos. Sua segurança deve ser a partilha de quem os acolhe. Se não forem aceitos, devem sacudir a poeira, isto é, romper, mas sem vingança. Esta proposta encontra mais eco entre os estrangeiros (Tiro, Sidônia) do que entre os conterrâneos (Corazim, Betsaida, Cafarnaum). O retorno dos Setenta é alegria. Foram bem sucedidos. O demônio caiu do céu (10,18). Os Doze queriam fazer cair fogo (9,54), mas Jesus proibiu. Os Setenta recebem o poder de pisar escorpiões (10,19). Até Jesus se alegra e exulta (10,21) com o sucesso dos Setenta. Os pequenos são os Setenta. Eles entendem. Os arrogantes nacionalistas nada entendem, são cegos. 14 Voltando-se agora aos discípulos (v.23) Jesus tem agora uma lição aos Doze: eles devem se alegrar, pois o Reino é viável. Muitos queriam ver o que os Setenta levaram a efeito. 2 – Traçado sinuoso 10,25-18,30 Esta unidade tem um quiasmo em sua estrutura: A – A Vida eterna 10,25-37 B – Acesso a Jesus 10,38-42 C – Verdadeira oração 11,1-13 D – Chega o Reino de Deus 11,14-36 E – Puro e impuro 11,37-54 F – Instrução 12,1-13,9 F1 – Instrução aos discípulos 12,1-53 F2 – Instrução às multidões 12,54-13,9 G – Libertação e ensino: o Reino 13,10-30 H – A ruptura 13,31-35 G’ – Libertação e ensino 14,1-24 F’ – Instrução 14,25-17,10 F2 - Instrução às multidões 14,25-15,32 F1 – Instrução aos discípulos 16,1-17,10 E’ – Puro e impuro 17,11-19 D’ – Chegada do Reino 17,20-37 C’ – Verdadeira oração 18,1-14 B’ – Acesso a Jesus 18,15-17 A’ – A vida eterna 18,18-30 O desdobramento do quiasmo: A – A vida eterna 10,25-37 Os juristas e dirigentes querem saber o que fazer para herdar a vida eterna (10,25 cf. 18,18). Esta é a grande fuga. Esquecer o mundo e pensar de forma abstrata a Lei de Deus. Jesus devolve a pergunta ao legista. Ele mesmo terá de dizê-lo (Dt 6,5 e Lv 19,18): o amor a Deus e o amor ao próximo. Jesus leva isto à prática. A resposta é irônica: Um homem ia de Jerusalém para Jericó = saía do centro para o profano Um sacerdote e um levita: oficialidade = tem desprezam que sai do centro O sacerdote e o levita não encontram Deus fora do centro. Samaritano: povo odiado de periferia encontra Deus no caído. Ele se solidariza com o excluído do centro. O legista deve concluir, ao contrário de sua ideologia, que o estrangeiro cumpriu a vontade de Deus e nem se fala mais da vida eterna. B – O acesso a Jesus 10,38-42 Jesus, a caminho de Jerusalém (confronto) entra na casa de duas mulheres (só Jesus, os discípulos, não). A casa está num povoado (reduto de fanatismo nacionalista). Jesus entra no universo feminino. Ele é bem aceito por Marta, a fiel cumpridora da Lei. 15 Maria não está preocupada com a Lei, ela ouve a palavra. Marta quer que Jesus faça sua irmã cumprir a Lei. Para Jesus, a Lei é secundária. Importa a escuta da palavra. Marta está presa a Moisés, Maria adere a Jesus. Neste cenário Jesus rompe com toda a cultura judaica. Um rabino não podia entrar na casa de mulheres. Além do mais, a Palavra de Deus não podia ser anunciada para elas. Um célebre rabino dizia: “quem ensinar a Bíblia para sua mulher, prostitui as duas”. Jesus, no entanto, entra na casa de duas mulheres. Dá instrução à Maria e enfrenta Marta, que pensa como os homens. C – A verdadeira oração 11,1-13 Os discípulos querem rezar como o Batista (não como Jesus). Trata-se de formas rígidas vétero-testamentárias. Jesus contrapõe a oração compromisso, não ritualizada, mas estabelece novo relacionamento com Deus, que agora é apresentado como PAI. A oração judaica se dá principalmente no templo, onde o Deus está fora do alcance dos simples mortais. Jesus está em “certo lugar” (11,1) e é lá que ele ora. “Todas as religiões, inclusive a religião judaica, rezam a um Deus distante, a quem tentam aplacar. Jesus substitui a verticalidade pela horizontalidade: Deus é Pai” 12. Os pedidos feitos na oração, são: - santificar o Nome: nossas boas obras mostram que Deus é santo - venha o reino: o que os discípulos já experimentam, seja para todos - o pão nosso: a esperança messiânica (Isaías) já hoje - perdão dos pecados () como perdoamos as dívidas (): é a condição - tentação: nacionalismo religioso, como Jesus no deserto (4,1ss). A oração deve ser persistente (tríplice): pedir, buscar, chamar: insistência total. Deus dará o Espírito a quem o pedir. D – Chega o Reino de Deus 11,14-36 A undiade se divide: a) A expulsão de um demônio mudo vv.14-26. Há um possesso mudo, uma multidão, objetores anônimos, alguns provocadores (pedem sinal do céu), uma nacionalista que quer cooptar Jesus (certa mulher). O endemoninhado é o povo submetido que acolheu a ideologia oficial de forma passiva. O surdo-mudo representa a ideologia diabólica que deixa o povo mudo e sem ouvir. É o fechamento à palavra (Lc 1,22; 7,22). Já não tem capacidade de ouvir o clamor do povo de Deus. A libertação do surdo-mudo provoca reação. Da parte oficial acusam Jesus de agir por Beelzebu. Da parte dos ideologizados querem cooptá-lo (v.16). Jesus mostra que ambos estão errados (v. 17ss). Seu gesto é sinal de vinda do reino (v.20). A multidão é o povo livre (vv.21ss) que superou a ideologia, mas não assimila o evangelho. Outra ideologia encherá seu coração (vv.22s). Jesus está acima do forte (v.22). Não estando com Jesus, se está contra ele (v.23). Isto se torna pior do que antes (vv.24ss). É a sorte dos que se libertam da oficialidade, mas não aderem a Jesus. Tornam-se massa de manobra. 12 Idem, p.206. 16 b) O resto de Israel vv.27-28: trata-se do povo que ainda crê na reserva moral de Israel (entranhas e seios): A nova realidade não passa mais pelo sangue, mas pela observância da Palavra. c) O sinal do céu vv.29-32 (cf. 11,16): O povo se aglomera e Jesus o liberta de falsas ilusões. Não lhe dá sinais do céu, mas vai lhe mostrar o grande fracasso (paixão, morte e ressurreição) que é o outro lado do nacionalismo. Jonas é símbolo da conversão; Salomão é símbolo da sabedoria. Jesus é mais do que eles, mas é no fracasso que se deve descobrir isto. Os estrangeiros julgarão os israelitas, pois se converteram por menos do que eles. d) Conclusão vv.33-36: os cristãos deverão ser luz para todos. E – O puro e o impuro 11,37-54 Os fariseus julgavam que o Reino de Deus viria quando todos observassem todas as leis. Por isto vigiaram Jesus. Ele não cumpriu as leis. Antes, denuncia a falsidade legalista. Pronuncia “Ais” contra os fariseus e contra os legistas. A lei nem sempre leva à justiça e ao amor (v.42). F – Instrução 12,1-13,9 Esta é a maior seção. Divide-se em duas seqüências: F1 – Aos discípulos 12,1-53: dirige-se primeiro aos discípulos (12,1a). É novo cenário. O povo corre atrás de Jesus, bem diferente dos letrados (11,53s). Jesus não se intimida com as massas e cuida dos discípulos, só depois vai se dirigir às multidões (12,54: F2). A seqüência se divide em: a) Hipocrisia farisaica v.1b-12: Jesus adverte sobre a ideologia farisaica. Ela havia se infiltrado até entre os discípulos. Nos At isto é constantemente atestado. Os fariseus fazem da lei o trampolim para manter seus privilégios. Não servem, mas se servem do povo. Toda hipocrisia dita virá a público (v.2s. Não ter medo de quem prende (autoridades políticas (v.4-7), mas temer quem semeia ideologias perigosas e pode fazer a cabeça. Para vencer o medo, os discípulos devem se abandonar a Deus,q eu cuida de tudo (v.6s). O que agir a favor de Jesus diante dos homens (v.8-9) será confirmado diante de Deus. A injustiça contra o homem será perdoada, mas quem usa a Deus (fariseu) não recebe o perdão (v.10). Não é preciso se defender (v.11s), pois só quem tem algo a perder busca a defesa. O verdadeiro discípulo não precisa disto. b) Interpelação vv.13-21: Alguém do povo tem sua segurança na herança, no dinheiro (v.13). Jesus não veio remendar o sistema. Pede para se libertar da cupidez. Isto não estabiliza o ser humano (v.15). Todo o confia nisto se dá mal (v.21). c) Recomendação vv.22-40: recomendações decorrentes da riqueza (fariseus). São a parte prática. Pôr a confiança em Deus (v.33), pois isto ninguém pode subtrair. O Filho do Homem virá como o ladrão quando menos se espera (35-40). Conclusão vv.41-53: Pedro sente a participação dos não-judeus (v.41). Jesus se dirige a todos (administrador vigilante). O Senhor ressuscitado quer encontra-lo vigilante (cf. At 2,42ss; 4,32ss; 5,1-11). Jesus usa linguagem dura: “partir ao meio” (v.46) para os discípulos judeus. O que conheceu a vontade (judeu – v.47) será açoitado como o escravo. Ele veio trazer o fogo (v.49). Trata-se do Espírito como em At 2,3. Isto, no emtanto, traz a Jesus alguns problemas, inclusive a morte (v.50). A ação de Jesus rompe velhos laços (parentesco) e provoca discernimento (v.51). 17 F2 – Às multidões 12,54-13,9: Estamos no mesmo local de F1 (12,1). Depois de instruir os discípulos ele tem uma palavra para as multidões (v.54). a) O discernimento vv.54-59: nada de esperar um Messias revolucionário. “Julguem e vejam o que é justo”. Jesus não veio para agir como os poderosos. Ele veio mudar valores. b) A reação dos instalados 13,1-9: Os instalados advertem a Jesus e lhe contam a violência praticada por Pilatos contra seus opositores (v.1-5). Os fariseus assim agiam, pois estavam feridos pelas denúncias de Jesus (ai de vós, fariseus). Jesus mostra que os mortos não eram mais pecadores do que os fariseus. Todos precisam de conversão. Também os mortos da torre de Jerusalém não eram mais culpados que os fariseus. A figueira estéril (vv.6-9) é figura de Israel. Ainda haverá uma chance. G – Libertação e ensino 13,10-30 O texto se divide em três partes: a) A mulher encurvada vv.10-17: Jesus está na sinagoga (v.10) e ensina num Sábado. A sinagoga é o sinal da oficialidade judaica. A mulher encurvada é o público sinagogal. O espírito de debilidade é o ensino da sinagoga sobre o sábado. O ensino de Jesus supera este sistema e liberta o povo. A lei de Moisés (casuística) pesava sobre o povo = encurvava. A mulher estava encurvada há18 anos (3 X 6) = Em 6 dias Deus criou o mundo. O 6º dia é o dia da criação do homem e da mulher (Gn 1,26ss). O sétimo dia (v.14) era o peso dos fracos. Quando Jesus ensina, ele tropeça sobre os encurvados da lei mosaica, ou seja, os observantes cegos (cf. At 15,1ss; Gl 2,11ss). b) As parábolas da horta e da cozinha vv.18-22: Jesus se vale de Ez 17,1ss. Porém, enquanto o profeta fala do mais alto cedro, Jesus fala do grão de mostarda. Cedro é figura de Israel, a mostarda é a descontinuidade. O grão é a insignificância. Quem espera grandeza de Jesus ainda está no Antigo Testamento. O mesmo se diga com o fermento: opõe-se ao fermento dos fariseus (12,1). Trata-se de simples doutrina que não acontece a partir da força, mas age por dentro. É a força do espírito. Tanto no fermento como na semente se mostra a marcha da Palavra sem o uso da força/poder. c) Mudança de sujeito vv.23-30: Os judeus julgam que só eles se salvam (v.23). Não há privilegiados. É preciso se esforçar (v.24). Não se entra no céu por se ser próximo (judeus ou mesmo cristãos – v.26). Nenhum nacionalismo salva. H – a ruptura 13,31-35– Centro Os fariseus querem dissuadir Jesus (vai-te daqui...). Na realidade querem impedir Jesus de realizar sua missão, querem faze-lo desistir. Jesus reage. As raposas eram o símbolo do animal insignificante (diante do leão) e ao mesmo tempo era o animal astuto. Jesus tem seu tempo completo: hoje, amanhã e no terceiro dia. Sabe o que o espera, mas não desiste. Jerusalém (instituição) é assassina, por isto ficará casa abandonada (cf. Jr 22,5). G’ – Libertação e ensino14,1-24 Como seu correlativo (G 13,10-30) divide-se em três partes. A cena, igualmente gira ao redor de um doente e do sábado (cf. tb. 6,6-7). a) O doente vv.1-6 lembra 13,10-17. O chefe dos fariseus, como o chefe da sinagoga, lembra a oficialidade. O sábado (lei) está em cena. Lá está a mulher encurvada, aqui está o hidrópico. A mulher é o povo da sinagoga; o hidrópico são os participantes 18 do sábado. São os inchados, ávidos de ocupar os primeiros lugares (Lc 14,7ss). Não aceitam o convite de Jesus. O ensino da sinagoga dobra e encurva. O ensino da casa do fariseu incha. Os dois são escravos da Lei. São a caricatura do povo subjugado. O ensino de Jesus liberta esta gente, mas para isto ele transgride a lei (sábado). b) Parábolas vv.7-14 (= 13,18-21). Os ávidos buscam os primeiros lugares. Os cristãos, como é de praxe, devem buscar os últimos lugares, pois estes serão convidados a subir (14,10). O anfitrião deve convidar os que nada podem retribuir: pobres, extropiados, coxos, cegos.