PELOS CAMINHOS DO LABIRINTO: REFLEXÕES SOBRE AS

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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA
AÇÃO
DE 9 A 12 DE OUTUBRO
PELOS CAMINHOS DO LABIRINTO: REFLEXÕES SOBRE AS
TERRITORIALIZAÇÕES DO MEDO EM CANDELÁRIA, NATALRN
Hiram de Aquino Bayer1
Eugênia Maria Dantas2
RESUMO
A cidade é um labirinto complexo. Elementos simbólicos, materiais e imateriais o
compõe e condicionam as práticas daqueles que enveredam por seus caminhos.
Consideramos o medo como um importante componente desse labirinto, sendo um
agente de territorializações que influencia de forma incisiva as práticas espaciais na
modernidade. O presente trabalho tem como objetivo central analisar a dimensão
espacial do medo considerando sua territorialização, cujas manifestações adquirem
formas visíveis e discursivas, materiais e imateriais, no bairro de Candelária,
localizado na Zona Sul de Natal-RN. Ancorados em metodologias da pesquisa
qualitativa em Geografia, o medo é tramado a partir de sua capacidade de fazer
emergir muros simbólicos que condicionam as dinâmicas espaciais de Candelária.
Palavras-chave: Territorializações; Território; Medo.
ABSTRACT
The city is a complex maze. Symbolic elements, tangible and intangible
compose and condition the practices of those who seek out his ways. We
consider fear as an important component of this labyrinth, one territorializations
agent that influences starkly the spatial practices of modernity. This study was
aimed at analyzing the spatial dimension of fear considering its territorial whose
manifestations acquire visible and discursive forms, tangible and intangible, in
the Candelaria neighborhood, located in the south of Natal-RN. Anchored in
methods of qualitative research in Geography, fear is concocted from its ability
to bring out symbolic walls that determine the spatial dynamics of Candelaria.
Keywords: territorializations; territory; Fear.
1
Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. E-mail de contato: [email protected]
2
Docente do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade do Rio Grande do
Norte. E-mail de contato: [email protected].
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AÇÃO
DE 9 A 12 DE OUTUBRO
1 - Introdução
Uma imagem nos conduz ao estudo sobre a cidade: ela é um labirinto
complexo. A priori relacionada à sua configuração, seu desenho, traçado das
ruas, esse labirinto citadino cada vez mais se torna complexo. Elementos
simbólicos, materiais e imateriais o compõe e condicionam as práticas
daqueles que por seus caminhos se “aventuram”. Da gama de elementos que
compõe o labirinto urbano destaca-se o medo como um importante agente para
sua dinamização.
Nesse movimento de continuidades e descontinuidades o medo do crime
parece ser transversal ao tempo. Contudo, no contexto atual ele tem se tornado
um fenômeno urbano de grande visibilidade, seja porque tem sido amplamente
veiculado pelos meios de comunicação, seja porque tem induzido processos
que associam diferentes fatores que repercutem de forma decisiva nas
relações que caracterizam a vida na cidade. A partir de uma abordagem
geográfica sobre o medo do crime passamos a considerá-lo enquanto
importante agente de territorializações, erguendo muros simbólicos que se
associam aos muros de concreto e (re)configuram a cidade-labirinto.
O presente trabalho tem como objetivo central analisar a dimensão
espacial do medo considerando sua territorialização, cujas manifestações
adquirem formas visíveis e discursivas, materiais e imateriais. Para tanto,
utilizamos como área de estudo o bairro de Candelária, situado na zona Sul da
cidade de Natal-RN.
As discussões aqui realizadas fazem parte de um contexto mais amplo,
no qual tem como produto final a dissertação de mestrado do autor. Nesse
sentido, as reflexões aqui contidas, são como fotografias no qual o foco reside
em algumas partes de um cenário maior, onde, ainda que parciais, são
desdobramento e indicadores de onde pretende-se chegar com a pesquisa em
curso. Para a análise aqui realizada nos ancoramos em metodologias da
pesquisa qualitativa em geografia. Os procedimentos metodológicos versaram
entre: observação sistemática do bairro, no qual permitiu a visualização de sua
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paisagem e a identificação de elementos indispensáveis à reflexão, como
poderá ser visto no decorrer do texto; conversas com os moradores, onde
buscamos nos distanciar da aplicação de questionários (muito fechados para
os objetivos almejados, ao nosso ver), nas quais permitiram a identificação do
medo nos discursos; pesquisa em blogs e redes sociais que tinham como foco
os relatos de insegurança no bairro de Candelária (alguns deles retirados de
um grupo no Facebook chamado “Viver em Candelária”, criado como
instrumento para a pesquisa em desenvolvimento); aquisição de dados junto à
Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Norte referentes a crimes ocorridos
no bairro de Candelária; e, por fim, uma prática cartográfica menos rígida que
nos permitiu “manipular” parte da malha urbana do bairro para refletirmos
acerca das territorializações do medo e da formação de muros simbólicos.
O trabalho divide-se em três seções (além desta introdução e das
conclusões). Na primeira discutimos a analogia entre cidade e labirinto e o
papel das territorializações do medo nessa relação. A segunda seção aborda a
presença de uma psicoesfera do medo em Candelária, como ela aparece em
formas discursivas acerca da insegurança e como engloba algumas práticas
formadoras de territórios. A última seção destina-se a uma “aventura
cartográfica” no qual identificamos os “territórios do medo” e a emergência de
muros em parte do que designamos como a Candelária-labiríntica.
2 - O medo e na cidade-labirinto
Cidade. Campo rico para analogias, metáforas, pensamentos que
vagueiam e buscam em suas formas (e, também, em suas funções) modos de
compreendê-la melhor. Já foi pensada enquanto organismo, sistema, teia.
Depende de quem formula o discurso sobre ela: planejadores, habitantes,
turistas. A multiplicidade de olhares sobre a cidade forma um único, denso e
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complexo quadro composto pelo visível, pelo textual, pelo simbólico, sendo,
portanto, metafórica e enigmática3.
Labirinto. Referência ao infinito, à desordem, ao acaso. Caminhos,
trajetórias, que se bifurcam e que não se sabe muito bem o que irá encontrar
na próxima curva – muro, minotauro ou homens. É, senão, a esfera da
possibilidade, dos encontros e desencontros, do perder-se e do achar-se.
A cidade é um labirinto complexo. A coexistência de diferentes
caminhos, trajetórias, em seu espaço se abre, quando a visualizamos
panoramicamente, para diferentes experiências e vivências. Parece conter
todas as possibilidades de experimentação do homem com o espaço Seu
tecido é um emaranhado de roteiros, experimentados de maneiras diferentes,
pois contem a subjetividade e a percepção daqueles que se arriscam em seus
caminhos.
E é justamente por toda essa sua multiplicidade e possibilidade que a
cidade-labirinto
emerge,
também,
como
esfera
da
contingência.
A
impossibilidade de se prever o que possa vir a acontecer, inerente à própria
condição humana e a seu fazer-se enquanto sociedade4, ganha potência em
seu âmbito. A ineficiente (por não ser absoluta) tentativa de previsão dos
perigos futuros – catástrofes naturais, crises econômicas, violências de todos
os tipos - enche os homens de medo e, na cidade-labirinto, um em especial
tem se tornado protagonista: o medo do crime.
Diante desse protagonismo do medo5, vislumbramos sua condição de
importante agente de territorializações. Nesse sentido, por territorialização
compreende-se a ação, o movimento, o processo, responsável pela construção
e apropriação de espaços que se tornam territórios. O processo de
territorialização é produto socioespacial do movimento e das contradições
sociais, sob as forças econômicas, políticas e sociais6. As “territorializações do
3
SILVA, Valéria Cristina da. A Cidade no Labirinto: descortinando metáforas da pósmodernidade. Sociedade & Natureza, Uberlândia, 21 (1): 147-158, Abr. 2009.
4
BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
5
De agora em diante utilizaremos “medo” para designar o “medo do crime”.
6
SAQUET, M. A. As Diferentes Abordagens do Território e a Apreensão do Movimento e
da (I)materialidade. Geosul, Florianópolis, v. 22, n. 43, p. 55-76, jan./jun. 2007.
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medo” dizem respeito as práticas espaciais que indicam a tentativa de
indivíduos ou de grupos em mitigar ou evitar o perigo de ser alvo de uma ação
criminosa por parte de outros indivíduos ou grupos. E, a partir dessas práticas,
criam-se o que temos chamado de “territórios do medo” - territórios que
englobam relações de poder em sentido amplo (materiais e simbólicas) que
emergem da relação conjunta entre dominação e apropriação7.
Traçamos um corte determinado nesse labirinto urbano e passamos a
considerar o bairro de Candelária, localizado na zona Sul da cidade de Natal,
como área de estudo.
4 – Psicoesfera do medo em Candelária
A emergência de uma psicoesfera do medo no bairro de Candelária tem
se tornado parte integrante e relevante em sua constituição. Compreendemos
essa psicoesfera do medo enquanto “imaterialidade ativa, pois condiciona
ações e altera formas”8, composta por uma esfera de ideias relacionadas
diretamente a uma sensação de segurança e a um medo, sobretudo, do crime 9.
A percepção inicial dessa psicoesfera pode ser vista em formas discursivas que
tem como mote a insegurança no bairro, como consta no compilado retirado de
algumas redes sociais abaixo (figura 1).
7
HAESBAERT, Rogério. Da. O Mito da Desterritorialização: do "fim dos territórios" à
multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
8
MELGAÇO, Lucas. Securização Urbana: psicosfera do medo à tecnosfera da segurança.
Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2010.
9
Melgaço, op. cit., p. 106.
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Figura 1: Discursos em redes sociais acerca da insegurança no Bairro de Candelária.
Fonte: https://pt.foursquare.com; https://facebook.com
Percebam como os relatos acerca de crimes no bairro condicionam a
visão que se tem dele e, de certa forma, constroem uma imagem de Candelária
como lugar perigoso, onde há muitos assaltos, em suma, um bairro inseguro. A
tônica dos discursos circunscreve-se a deficiência do poder público em garantir
segurança, entregando-lhe, portanto, a “bandidagem”, a “criminalidade. Apesar
de
não
precisar
haver,
necessariamente,
uma
relação
direta
entre
acontecimento (no caso, de crimes) e criação da psicoesfera do medo – a
mídia, por exemplo, pode ser um propagador desse medo -, diversos discursos
dos moradores de Candelária ressaltam essa relação, como pudemos ver no
compilado acima.
Esses discursos além serem um indicativo dessa
psicoesfera, também funcionam como seus “alimentadores”.
O discurso do medo e a criação de sua psicoesfera estão na base, são a
essência, das territorializações do medo. A partir deles é que se começa a
alterar práticas, estratégias, ações na vida cotidiana. Dentre elas destacamos
duas, em especial, que aparecem constantemente em Candelária e auxiliam
em sua (trans)formação: a presença de uma tecnosfera da segurança e o
surgimento dos “locais perigosos” no bairro.
A tecnoesfera da segurança consiste em “toda forma de materialidade
técnica em torno do ideal de segurança e inclui, obviamente, os processos de
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securização”10. A incorporação de equipamentos de segurança - como as
câmeras de vigilância, as cercas elétricas, e toda sorte de parafernálias
tecnológicas que tem como objetivo a manutenção da segurança ou, pelo
menos, da diminuição da sensação de insegurança - faz emergir uma forma
visível do medo em Candelária, compondo fortemente sua paisagem.
Na dialética entre psicoesfera do medo e tecnoesfera da segurança
percebemos uma das utopias mais fortes das cidades pós-modernas: a
“segurança com liberdade”11. Na impossibilidade de prevermos o futuro reside
a improvável segurança plena. E quando o desejo da segurança plena associase ao desejo concomitante pela liberdade, a equação torna-se ainda mais difícil
de chegar a um denominador comum: segurança e liberdade parecem ser
inversamente proporcionais e possuírem uma dose significativa de utopia.
Nesse sentido, umas das práticas que é motivada pelo medo é o
enclausuramento. E não apenas em formas de moradias como os condomínios
fechados, mas também, e cada vez mais, nas casas “comuns”. Esses
enclausuramentos, normalmente, vêm acompanhados de uma securitização
das residências, incorporando a elas equipamentos de segurança dos mais
variados, formando os territórios (ou enclaves) fortificados12.
A psicoesfera do medo também acaba por condicionar as próprias
trajetórias dos indivíduos pelos espaços do bairro. Para tanto, as pessoas
partem de uma ideia do que tornaria uma dada localidade “perigosa”. Por mais
subjetivo e individual que os pressupostos para tal são, é possível elencar
alguns que aparecem com maior frequência na fala dos moradores de
Candelária, no qual destacamos três: áreas com ocorrências de crimes, áreas
escuras (com déficit de iluminação pública) e locais com a presença de
“indesejáveis” (geralmente moradores em situação de rua e usuários de
drogas).
10
MELGAÇO, op. cit., p. 106.
BAUMAN, Zygmunt. Vigilância Líquida: diálogos com David Lyon. Rio de Janeiro: Zahar,
2013.
12
SOUZA, Marcelo Lopes de. Fobópole: o medo generalizado e a questão da militarização
urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
11
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A partir desses pressupostos as topofobias13 - “medo do lugar”, a grosso
modo - tornam-se recorrentes. Elas emergem da situação de conflito e de
alguma experiência negativa que se tem em relação a um dado espaço – ou
“lugar”, como circunscrevia Yi-fu Tuan. A experiência, nesse sentido, não
necessariamente retoma a uma experiência pessoal, objetiva, mas também
pode vir a reboque da experiência de terceiros. Em relação ao medo do crime,
por exemplo, é comum observarmos que os discursos de muitos moradores
estão repletos de menções a fatos que ocorreram com outras pessoas.
Vizinhos que foram feitos reféns em suas casas, familiar que transitava por
aquela rua e foi vítima de um assalto. Essas informações passam a compor o
imaginário de muitos indivíduos levando-os a identificar espaços perigosos
sem, necessariamente, terem sido vítimas de atos criminosos neles.
As topofobias em Candelária -
e também em outras localidades –
vinculam-se a fatores que caracterizam um dado espaço. Um deles é a
presença do que convencionamos chamar de “indesejáveis”. Como vimos, são
geralmente moradores de rua ou usuários de drogas que utilizam os espaços
públicos para fins diversos. Esses indivíduos são identificados por muitas
pessoas como potenciais praticantes de atos criminosos, sobretudo na prática
de roubos e furtos. Em uma das praças do bairro de Candelária – a “Praça dos
Eucaliptos” - nos deparamos com um grupo de senhores que se reúnem
praticamente todos os dias no final da tarde para um “bate-papo”. Indagados
sobre a “periculosidade” da praça (muito citada pelos moradores em se
tratando dos “lugares perigosos” do bairro), logo um deles responde: “ah, aqui
nós não ficamos muito tempo. Daqui a pouco vamos embora. Mais tarde
chegam os maconheiros por aqui e aí fica perigoso”. A associação é clara entre
o perigo e o uso de drogas, onde o pensamento de que o usuário necessita
furtar para “sustentar o vício”, impera. Além deles emerge também a figura dos
carroceiros e moradores em situação de rua como “merecedores de uma
atenção especial”. Estes indivíduos estão, sobretudo, presentes nas praças e a
13
TUAN, Yi-fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio
ambiente. Londrina: Eduel, 2012.
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eles são imputados (segundo alguns moradores) parte dos furtos e roubos que
ocorrem no bairro.
A seguir, retomamos a ideia da cidade labirinto e inserimos Candelária
nessa lógica, tornando-a a Candelária-labiríntica. Em sua configuração, muros
concretos e simbólicos emergem. A partir das territorializações do medo que
dissertamos anteriormente sua paisagem é alterada, bem como os caminhos
possíveis tornam-se mais “perigosos” e, por isso, muitas vezes evitáveis. A
partir das territorializações chegamos a constituição dos “territórios do medo”,
dando-lhe novos contornos.
5 - Erguendo novos muros: o medo na candelária-labiríntica
A Candelária-labiríntica vem sendo construída e constantemente
reformulada desde o seu surgimento na década de 1970 ainda sob a forma de
conjunto habitacional. A partir de então diversos agentes atuam no sentido de
cria-la incessantemente, dando-lhe os contornos que conhecemos na
atualidade. Contudo, um labirinto urbano não é formado apenas por
materialidades, pelos traçados de suas ruas e pelos muros das construções
variadas que emergem em seu território e lhe dá forma. Para além dessa
materialidade surgem também imaterialidades que são capazes de levantar
muros simbólicos e alterar significativamente sua paisagem, condicionando as
trajetórias daqueles que nele adentra.
Se entrar no labirinto é uma aventura, o que pretendemos realizar
adiante também se constitui enquanto tal. Diríamos que, talvez, seja uma
“aventura cartográfica”. Isso porque nos permitirmos traçar um recorte na
malha urbana de Candelária afim de identificarmos possíveis “territórios do
medo” e como estes atuam no sentido de criar possíveis muros simbólicos que
se associam aos muros concretos. Para tanto, nos valemos da analogia da
cidade-labirinto e “brincamos” (por que não?) com o tecido urbano de uma
parte de Candelária transformando-a em um labirinto.
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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA
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Em um primeiro momento (figura 2) realizamos o corte que desejávamos
e a partir dele passamos a identificar os “territórios do medo”, relacionando-os
a discursos sobre a insegurança no bairro de Candelária que encontramos em
blogs e redes sociais. O primeiro diz respeito aos territórios fortificados –
marcados pela incorporação de equipamentos de segurança14. O segundo tipo
de territórios são aqueles formados a partir das Topofobias. São, portanto,
áreas do bairro em que o medo extrapola o indivíduo e se territorializa em
espaços que passam a serem tidos como “perigosos”. A partir dos relatos dos
moradores, elencamos como pressupostos para essa identificação os espaços
escuros do bairro, áreas em que houveram a ocorrência de crimes e locais
onde há a presença do que chamamos de “indesejáveis” 15.
Figura 2: Mapa do recorte espacial realizado em Candelária e a identificação das
topofobias.
Fonte: Elaboração própria com base na pesquisa de campo e dados da Polícia Civil do RN.
14
Se fôssemos um pouco mais rigorosos nos arriscaríamos a dizer que praticamente em todas
elas há a incorporação de dispositivos de segurança – grades, muros altos etc. Focamos nos
dispositivos mais “extremos” (cercas elétricas e câmeras de vigilância), por assim dizer - apesar
de que a despeito de uma “estética da segurança”, como apontara Caldeira (2000), esses
equipamentos têm se tornado tão comum quanto portões ou grades.
15
Os dados acerca da ocorrência de crimes no bairro foram obtidos junto à Polícia Civil do
Estado do Rio Grande do Norte. Os demais pressupostos foram observados a partir de
pesquisa de campo.
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Após identificarmos nessa área os pressupostos que elencamos
anteriormente nesse espaço do bairro, passamos a refletir sobre eles enquanto
formadores de “territórios do medo” no qual há uma emergência de muros
simbólicos ao seu redor. Nesse sentido, por exemplo, uma pessoa que
interiorize algum desses fatores como potenciais perigos irá evitar transitar ou
permanecer nesses lugares – com exceção dos territórios formados pela
tecnoesfera da segurança, que não necessariamente alteram trajetórias
(exceto no caso dos condomínios fechados) que são, no nosso caso, um
componente da paisagem da localidade, que é um indicador do fenômeno do
medo.
Com essa identificação “atuamos” sobre o tecido urbano desta parte do
bairro, transformando-a em um labirinto (figura 3) onde constam os novos
muros erguidos a partir dos “territórios do medo”. Assim, há uma nova
configuração desse espaço no qual os trajetos possíveis não são mais os
mesmos. Idealmente nos perguntamos: uma pessoa que parta do ponto A, que
tenha como prática não transitar por locais com as características que
elencamos, chegaria ao ponto B por quais caminhos?
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Figura 3: O labirinto e seus novos muros.
Fonte: Elaboração própria (Bayer, 2015).
O que realizamos aqui nada mais é que uma provocação para
refletirmos acerca de muros simbólicos que emergem na cidade e que passam
a condicionar as práticas dos citadinos. O medo foi um dos fenômenos
possíveis para essa formação, mas vários outros poderiam ser elencados. O
labirinto funcionou como um dispositivo para a reflexão, onde sua analogia com
a cidade torna-se quase que perfeita. Apesar das generalizações necessárias
para realizarmos essa “aventura”, acreditamos que ela pode nos dizer muito
sobre as práticas na cidade motivadas e balizadas pelo medo, nos permitindo
visualizar como ela pode ocorrer, mesmo que idealmente.
6 - Conclusão
O medo do crime tem se constituído em um importante agente de
territorializações no contexto urbano atual. Sua capacidade de condicionar
práticas espaciais têm possibilitado que os indivíduos, a partir dele, criem
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estratégias de mitiga-lo, tendo esse fato importantes rebatimentos na vida
cotidiana dos citadinos. Dentre essas estratégias destaca-se a incorporação
cada vez maior de equipamentos de segurança às residências - tornando-as
verdadeiros territórios fortificados – e o ato de evitar transitar e permanecer em
determinados espaços tidos como perigosos.
Essas territorializações fazem parte de uma crescente psicoesfera do
medo que tem se estabelecido na modernidade-líquida, e que entre outros
fatores tem contribuído para o esfacelamento não apenas da relação pessoapessoa, mas também da relação pessoa-ambiente, através das topofobias.
Nesse sentido, para refletirmos, principalmente, acerca da relação pessoaambiente, matizadas nas trajetórias que elas percorrem na cidade (nosso
exemplo, no caso, residiu em Candelária e, posteriormente, em uma parte de
seu tecido urbano), decidimos nos “aventurarmos” com a identificação de
territórios do medo que fazem emergir muros simbólicos que se associam aos
muros de concreto das cidades.
O labirinto se apresentou como importante dispositivo para a reflexão
sobre como as trajetórias dos indivíduos podem ser alteradas mediante as
territorializações do medo e dos territórios que delas advém. Nesse sentido, um
processo de mapeamento menos rígido emerge como uma provocação a fim
de que possamos visualizar a formação desses territórios e as possíveis
alterações da relação dos indivíduos com o espaço.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
_____. Vigilância Líquida: diálogos com David Lyon. Rio de Janeiro: Zahar,
2013.
CALDEIRA, T. P. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São
Paulo. São Paulo: Ed.34/Edusp, 2000.
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HAESBAERT, Rogério. Da. O Mito da Desterritorialização: do "fim dos
territórios" à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
MELGAÇO, Lucas. Securização Urbana: psicosfera do medo à tecnosfera da
segurança. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
SAQUET, M. A. As Diferentes Abordagens do Território e a Apreensão do
Movimento e da (I)materialidade. Geosul, Florianópolis, v. 22, n. 43, p. 55-76,
jan./jun. 2007.
SILVA, Valéria Cristina da. A Cidade no Labirinto: descortinando metáforas
da pós-modernidade. Sociedade & Natureza, Uberlândia, 21 (1): 147-158, Abr.
2009.
SOUZA, Marcelo Lopes de. Fobópole: o medo generalizado e a questão da
militarização urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
TUAN, Yi-fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio
ambiente. Londrina: Eduel, 2012.
364
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