A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO PELOS CAMINHOS DO LABIRINTO: REFLEXÕES SOBRE AS TERRITORIALIZAÇÕES DO MEDO EM CANDELÁRIA, NATALRN Hiram de Aquino Bayer1 Eugênia Maria Dantas2 RESUMO A cidade é um labirinto complexo. Elementos simbólicos, materiais e imateriais o compõe e condicionam as práticas daqueles que enveredam por seus caminhos. Consideramos o medo como um importante componente desse labirinto, sendo um agente de territorializações que influencia de forma incisiva as práticas espaciais na modernidade. O presente trabalho tem como objetivo central analisar a dimensão espacial do medo considerando sua territorialização, cujas manifestações adquirem formas visíveis e discursivas, materiais e imateriais, no bairro de Candelária, localizado na Zona Sul de Natal-RN. Ancorados em metodologias da pesquisa qualitativa em Geografia, o medo é tramado a partir de sua capacidade de fazer emergir muros simbólicos que condicionam as dinâmicas espaciais de Candelária. Palavras-chave: Territorializações; Território; Medo. ABSTRACT The city is a complex maze. Symbolic elements, tangible and intangible compose and condition the practices of those who seek out his ways. We consider fear as an important component of this labyrinth, one territorializations agent that influences starkly the spatial practices of modernity. This study was aimed at analyzing the spatial dimension of fear considering its territorial whose manifestations acquire visible and discursive forms, tangible and intangible, in the Candelaria neighborhood, located in the south of Natal-RN. Anchored in methods of qualitative research in Geography, fear is concocted from its ability to bring out symbolic walls that determine the spatial dynamics of Candelaria. Keywords: territorializations; territory; Fear. 1 Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail de contato: [email protected] 2 Docente do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade do Rio Grande do Norte. E-mail de contato: [email protected]. 351 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO 1 - Introdução Uma imagem nos conduz ao estudo sobre a cidade: ela é um labirinto complexo. A priori relacionada à sua configuração, seu desenho, traçado das ruas, esse labirinto citadino cada vez mais se torna complexo. Elementos simbólicos, materiais e imateriais o compõe e condicionam as práticas daqueles que por seus caminhos se “aventuram”. Da gama de elementos que compõe o labirinto urbano destaca-se o medo como um importante agente para sua dinamização. Nesse movimento de continuidades e descontinuidades o medo do crime parece ser transversal ao tempo. Contudo, no contexto atual ele tem se tornado um fenômeno urbano de grande visibilidade, seja porque tem sido amplamente veiculado pelos meios de comunicação, seja porque tem induzido processos que associam diferentes fatores que repercutem de forma decisiva nas relações que caracterizam a vida na cidade. A partir de uma abordagem geográfica sobre o medo do crime passamos a considerá-lo enquanto importante agente de territorializações, erguendo muros simbólicos que se associam aos muros de concreto e (re)configuram a cidade-labirinto. O presente trabalho tem como objetivo central analisar a dimensão espacial do medo considerando sua territorialização, cujas manifestações adquirem formas visíveis e discursivas, materiais e imateriais. Para tanto, utilizamos como área de estudo o bairro de Candelária, situado na zona Sul da cidade de Natal-RN. As discussões aqui realizadas fazem parte de um contexto mais amplo, no qual tem como produto final a dissertação de mestrado do autor. Nesse sentido, as reflexões aqui contidas, são como fotografias no qual o foco reside em algumas partes de um cenário maior, onde, ainda que parciais, são desdobramento e indicadores de onde pretende-se chegar com a pesquisa em curso. Para a análise aqui realizada nos ancoramos em metodologias da pesquisa qualitativa em geografia. Os procedimentos metodológicos versaram entre: observação sistemática do bairro, no qual permitiu a visualização de sua 352 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO paisagem e a identificação de elementos indispensáveis à reflexão, como poderá ser visto no decorrer do texto; conversas com os moradores, onde buscamos nos distanciar da aplicação de questionários (muito fechados para os objetivos almejados, ao nosso ver), nas quais permitiram a identificação do medo nos discursos; pesquisa em blogs e redes sociais que tinham como foco os relatos de insegurança no bairro de Candelária (alguns deles retirados de um grupo no Facebook chamado “Viver em Candelária”, criado como instrumento para a pesquisa em desenvolvimento); aquisição de dados junto à Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Norte referentes a crimes ocorridos no bairro de Candelária; e, por fim, uma prática cartográfica menos rígida que nos permitiu “manipular” parte da malha urbana do bairro para refletirmos acerca das territorializações do medo e da formação de muros simbólicos. O trabalho divide-se em três seções (além desta introdução e das conclusões). Na primeira discutimos a analogia entre cidade e labirinto e o papel das territorializações do medo nessa relação. A segunda seção aborda a presença de uma psicoesfera do medo em Candelária, como ela aparece em formas discursivas acerca da insegurança e como engloba algumas práticas formadoras de territórios. A última seção destina-se a uma “aventura cartográfica” no qual identificamos os “territórios do medo” e a emergência de muros em parte do que designamos como a Candelária-labiríntica. 2 - O medo e na cidade-labirinto Cidade. Campo rico para analogias, metáforas, pensamentos que vagueiam e buscam em suas formas (e, também, em suas funções) modos de compreendê-la melhor. Já foi pensada enquanto organismo, sistema, teia. Depende de quem formula o discurso sobre ela: planejadores, habitantes, turistas. A multiplicidade de olhares sobre a cidade forma um único, denso e 353 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO complexo quadro composto pelo visível, pelo textual, pelo simbólico, sendo, portanto, metafórica e enigmática3. Labirinto. Referência ao infinito, à desordem, ao acaso. Caminhos, trajetórias, que se bifurcam e que não se sabe muito bem o que irá encontrar na próxima curva – muro, minotauro ou homens. É, senão, a esfera da possibilidade, dos encontros e desencontros, do perder-se e do achar-se. A cidade é um labirinto complexo. A coexistência de diferentes caminhos, trajetórias, em seu espaço se abre, quando a visualizamos panoramicamente, para diferentes experiências e vivências. Parece conter todas as possibilidades de experimentação do homem com o espaço Seu tecido é um emaranhado de roteiros, experimentados de maneiras diferentes, pois contem a subjetividade e a percepção daqueles que se arriscam em seus caminhos. E é justamente por toda essa sua multiplicidade e possibilidade que a cidade-labirinto emerge, também, como esfera da contingência. A impossibilidade de se prever o que possa vir a acontecer, inerente à própria condição humana e a seu fazer-se enquanto sociedade4, ganha potência em seu âmbito. A ineficiente (por não ser absoluta) tentativa de previsão dos perigos futuros – catástrofes naturais, crises econômicas, violências de todos os tipos - enche os homens de medo e, na cidade-labirinto, um em especial tem se tornado protagonista: o medo do crime. Diante desse protagonismo do medo5, vislumbramos sua condição de importante agente de territorializações. Nesse sentido, por territorialização compreende-se a ação, o movimento, o processo, responsável pela construção e apropriação de espaços que se tornam territórios. O processo de territorialização é produto socioespacial do movimento e das contradições sociais, sob as forças econômicas, políticas e sociais6. As “territorializações do 3 SILVA, Valéria Cristina da. A Cidade no Labirinto: descortinando metáforas da pósmodernidade. Sociedade & Natureza, Uberlândia, 21 (1): 147-158, Abr. 2009. 4 BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. 5 De agora em diante utilizaremos “medo” para designar o “medo do crime”. 6 SAQUET, M. A. As Diferentes Abordagens do Território e a Apreensão do Movimento e da (I)materialidade. Geosul, Florianópolis, v. 22, n. 43, p. 55-76, jan./jun. 2007. 354 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO medo” dizem respeito as práticas espaciais que indicam a tentativa de indivíduos ou de grupos em mitigar ou evitar o perigo de ser alvo de uma ação criminosa por parte de outros indivíduos ou grupos. E, a partir dessas práticas, criam-se o que temos chamado de “territórios do medo” - territórios que englobam relações de poder em sentido amplo (materiais e simbólicas) que emergem da relação conjunta entre dominação e apropriação7. Traçamos um corte determinado nesse labirinto urbano e passamos a considerar o bairro de Candelária, localizado na zona Sul da cidade de Natal, como área de estudo. 4 – Psicoesfera do medo em Candelária A emergência de uma psicoesfera do medo no bairro de Candelária tem se tornado parte integrante e relevante em sua constituição. Compreendemos essa psicoesfera do medo enquanto “imaterialidade ativa, pois condiciona ações e altera formas”8, composta por uma esfera de ideias relacionadas diretamente a uma sensação de segurança e a um medo, sobretudo, do crime 9. A percepção inicial dessa psicoesfera pode ser vista em formas discursivas que tem como mote a insegurança no bairro, como consta no compilado retirado de algumas redes sociais abaixo (figura 1). 7 HAESBAERT, Rogério. Da. O Mito da Desterritorialização: do "fim dos territórios" à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. 8 MELGAÇO, Lucas. Securização Urbana: psicosfera do medo à tecnosfera da segurança. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. 9 Melgaço, op. cit., p. 106. 355 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Figura 1: Discursos em redes sociais acerca da insegurança no Bairro de Candelária. Fonte: https://pt.foursquare.com; https://facebook.com Percebam como os relatos acerca de crimes no bairro condicionam a visão que se tem dele e, de certa forma, constroem uma imagem de Candelária como lugar perigoso, onde há muitos assaltos, em suma, um bairro inseguro. A tônica dos discursos circunscreve-se a deficiência do poder público em garantir segurança, entregando-lhe, portanto, a “bandidagem”, a “criminalidade. Apesar de não precisar haver, necessariamente, uma relação direta entre acontecimento (no caso, de crimes) e criação da psicoesfera do medo – a mídia, por exemplo, pode ser um propagador desse medo -, diversos discursos dos moradores de Candelária ressaltam essa relação, como pudemos ver no compilado acima. Esses discursos além serem um indicativo dessa psicoesfera, também funcionam como seus “alimentadores”. O discurso do medo e a criação de sua psicoesfera estão na base, são a essência, das territorializações do medo. A partir deles é que se começa a alterar práticas, estratégias, ações na vida cotidiana. Dentre elas destacamos duas, em especial, que aparecem constantemente em Candelária e auxiliam em sua (trans)formação: a presença de uma tecnosfera da segurança e o surgimento dos “locais perigosos” no bairro. A tecnoesfera da segurança consiste em “toda forma de materialidade técnica em torno do ideal de segurança e inclui, obviamente, os processos de 356 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO securização”10. A incorporação de equipamentos de segurança - como as câmeras de vigilância, as cercas elétricas, e toda sorte de parafernálias tecnológicas que tem como objetivo a manutenção da segurança ou, pelo menos, da diminuição da sensação de insegurança - faz emergir uma forma visível do medo em Candelária, compondo fortemente sua paisagem. Na dialética entre psicoesfera do medo e tecnoesfera da segurança percebemos uma das utopias mais fortes das cidades pós-modernas: a “segurança com liberdade”11. Na impossibilidade de prevermos o futuro reside a improvável segurança plena. E quando o desejo da segurança plena associase ao desejo concomitante pela liberdade, a equação torna-se ainda mais difícil de chegar a um denominador comum: segurança e liberdade parecem ser inversamente proporcionais e possuírem uma dose significativa de utopia. Nesse sentido, umas das práticas que é motivada pelo medo é o enclausuramento. E não apenas em formas de moradias como os condomínios fechados, mas também, e cada vez mais, nas casas “comuns”. Esses enclausuramentos, normalmente, vêm acompanhados de uma securitização das residências, incorporando a elas equipamentos de segurança dos mais variados, formando os territórios (ou enclaves) fortificados12. A psicoesfera do medo também acaba por condicionar as próprias trajetórias dos indivíduos pelos espaços do bairro. Para tanto, as pessoas partem de uma ideia do que tornaria uma dada localidade “perigosa”. Por mais subjetivo e individual que os pressupostos para tal são, é possível elencar alguns que aparecem com maior frequência na fala dos moradores de Candelária, no qual destacamos três: áreas com ocorrências de crimes, áreas escuras (com déficit de iluminação pública) e locais com a presença de “indesejáveis” (geralmente moradores em situação de rua e usuários de drogas). 10 MELGAÇO, op. cit., p. 106. BAUMAN, Zygmunt. Vigilância Líquida: diálogos com David Lyon. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. 12 SOUZA, Marcelo Lopes de. Fobópole: o medo generalizado e a questão da militarização urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. 11 357 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO A partir desses pressupostos as topofobias13 - “medo do lugar”, a grosso modo - tornam-se recorrentes. Elas emergem da situação de conflito e de alguma experiência negativa que se tem em relação a um dado espaço – ou “lugar”, como circunscrevia Yi-fu Tuan. A experiência, nesse sentido, não necessariamente retoma a uma experiência pessoal, objetiva, mas também pode vir a reboque da experiência de terceiros. Em relação ao medo do crime, por exemplo, é comum observarmos que os discursos de muitos moradores estão repletos de menções a fatos que ocorreram com outras pessoas. Vizinhos que foram feitos reféns em suas casas, familiar que transitava por aquela rua e foi vítima de um assalto. Essas informações passam a compor o imaginário de muitos indivíduos levando-os a identificar espaços perigosos sem, necessariamente, terem sido vítimas de atos criminosos neles. As topofobias em Candelária - e também em outras localidades – vinculam-se a fatores que caracterizam um dado espaço. Um deles é a presença do que convencionamos chamar de “indesejáveis”. Como vimos, são geralmente moradores de rua ou usuários de drogas que utilizam os espaços públicos para fins diversos. Esses indivíduos são identificados por muitas pessoas como potenciais praticantes de atos criminosos, sobretudo na prática de roubos e furtos. Em uma das praças do bairro de Candelária – a “Praça dos Eucaliptos” - nos deparamos com um grupo de senhores que se reúnem praticamente todos os dias no final da tarde para um “bate-papo”. Indagados sobre a “periculosidade” da praça (muito citada pelos moradores em se tratando dos “lugares perigosos” do bairro), logo um deles responde: “ah, aqui nós não ficamos muito tempo. Daqui a pouco vamos embora. Mais tarde chegam os maconheiros por aqui e aí fica perigoso”. A associação é clara entre o perigo e o uso de drogas, onde o pensamento de que o usuário necessita furtar para “sustentar o vício”, impera. Além deles emerge também a figura dos carroceiros e moradores em situação de rua como “merecedores de uma atenção especial”. Estes indivíduos estão, sobretudo, presentes nas praças e a 13 TUAN, Yi-fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Londrina: Eduel, 2012. 358 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO eles são imputados (segundo alguns moradores) parte dos furtos e roubos que ocorrem no bairro. A seguir, retomamos a ideia da cidade labirinto e inserimos Candelária nessa lógica, tornando-a a Candelária-labiríntica. Em sua configuração, muros concretos e simbólicos emergem. A partir das territorializações do medo que dissertamos anteriormente sua paisagem é alterada, bem como os caminhos possíveis tornam-se mais “perigosos” e, por isso, muitas vezes evitáveis. A partir das territorializações chegamos a constituição dos “territórios do medo”, dando-lhe novos contornos. 5 - Erguendo novos muros: o medo na candelária-labiríntica A Candelária-labiríntica vem sendo construída e constantemente reformulada desde o seu surgimento na década de 1970 ainda sob a forma de conjunto habitacional. A partir de então diversos agentes atuam no sentido de cria-la incessantemente, dando-lhe os contornos que conhecemos na atualidade. Contudo, um labirinto urbano não é formado apenas por materialidades, pelos traçados de suas ruas e pelos muros das construções variadas que emergem em seu território e lhe dá forma. Para além dessa materialidade surgem também imaterialidades que são capazes de levantar muros simbólicos e alterar significativamente sua paisagem, condicionando as trajetórias daqueles que nele adentra. Se entrar no labirinto é uma aventura, o que pretendemos realizar adiante também se constitui enquanto tal. Diríamos que, talvez, seja uma “aventura cartográfica”. Isso porque nos permitirmos traçar um recorte na malha urbana de Candelária afim de identificarmos possíveis “territórios do medo” e como estes atuam no sentido de criar possíveis muros simbólicos que se associam aos muros concretos. Para tanto, nos valemos da analogia da cidade-labirinto e “brincamos” (por que não?) com o tecido urbano de uma parte de Candelária transformando-a em um labirinto. 359 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Em um primeiro momento (figura 2) realizamos o corte que desejávamos e a partir dele passamos a identificar os “territórios do medo”, relacionando-os a discursos sobre a insegurança no bairro de Candelária que encontramos em blogs e redes sociais. O primeiro diz respeito aos territórios fortificados – marcados pela incorporação de equipamentos de segurança14. O segundo tipo de territórios são aqueles formados a partir das Topofobias. São, portanto, áreas do bairro em que o medo extrapola o indivíduo e se territorializa em espaços que passam a serem tidos como “perigosos”. A partir dos relatos dos moradores, elencamos como pressupostos para essa identificação os espaços escuros do bairro, áreas em que houveram a ocorrência de crimes e locais onde há a presença do que chamamos de “indesejáveis” 15. Figura 2: Mapa do recorte espacial realizado em Candelária e a identificação das topofobias. Fonte: Elaboração própria com base na pesquisa de campo e dados da Polícia Civil do RN. 14 Se fôssemos um pouco mais rigorosos nos arriscaríamos a dizer que praticamente em todas elas há a incorporação de dispositivos de segurança – grades, muros altos etc. Focamos nos dispositivos mais “extremos” (cercas elétricas e câmeras de vigilância), por assim dizer - apesar de que a despeito de uma “estética da segurança”, como apontara Caldeira (2000), esses equipamentos têm se tornado tão comum quanto portões ou grades. 15 Os dados acerca da ocorrência de crimes no bairro foram obtidos junto à Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Norte. Os demais pressupostos foram observados a partir de pesquisa de campo. 360 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Após identificarmos nessa área os pressupostos que elencamos anteriormente nesse espaço do bairro, passamos a refletir sobre eles enquanto formadores de “territórios do medo” no qual há uma emergência de muros simbólicos ao seu redor. Nesse sentido, por exemplo, uma pessoa que interiorize algum desses fatores como potenciais perigos irá evitar transitar ou permanecer nesses lugares – com exceção dos territórios formados pela tecnoesfera da segurança, que não necessariamente alteram trajetórias (exceto no caso dos condomínios fechados) que são, no nosso caso, um componente da paisagem da localidade, que é um indicador do fenômeno do medo. Com essa identificação “atuamos” sobre o tecido urbano desta parte do bairro, transformando-a em um labirinto (figura 3) onde constam os novos muros erguidos a partir dos “territórios do medo”. Assim, há uma nova configuração desse espaço no qual os trajetos possíveis não são mais os mesmos. Idealmente nos perguntamos: uma pessoa que parta do ponto A, que tenha como prática não transitar por locais com as características que elencamos, chegaria ao ponto B por quais caminhos? 361 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Figura 3: O labirinto e seus novos muros. Fonte: Elaboração própria (Bayer, 2015). O que realizamos aqui nada mais é que uma provocação para refletirmos acerca de muros simbólicos que emergem na cidade e que passam a condicionar as práticas dos citadinos. O medo foi um dos fenômenos possíveis para essa formação, mas vários outros poderiam ser elencados. O labirinto funcionou como um dispositivo para a reflexão, onde sua analogia com a cidade torna-se quase que perfeita. Apesar das generalizações necessárias para realizarmos essa “aventura”, acreditamos que ela pode nos dizer muito sobre as práticas na cidade motivadas e balizadas pelo medo, nos permitindo visualizar como ela pode ocorrer, mesmo que idealmente. 6 - Conclusão O medo do crime tem se constituído em um importante agente de territorializações no contexto urbano atual. Sua capacidade de condicionar práticas espaciais têm possibilitado que os indivíduos, a partir dele, criem 362 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO estratégias de mitiga-lo, tendo esse fato importantes rebatimentos na vida cotidiana dos citadinos. Dentre essas estratégias destaca-se a incorporação cada vez maior de equipamentos de segurança às residências - tornando-as verdadeiros territórios fortificados – e o ato de evitar transitar e permanecer em determinados espaços tidos como perigosos. Essas territorializações fazem parte de uma crescente psicoesfera do medo que tem se estabelecido na modernidade-líquida, e que entre outros fatores tem contribuído para o esfacelamento não apenas da relação pessoapessoa, mas também da relação pessoa-ambiente, através das topofobias. Nesse sentido, para refletirmos, principalmente, acerca da relação pessoaambiente, matizadas nas trajetórias que elas percorrem na cidade (nosso exemplo, no caso, residiu em Candelária e, posteriormente, em uma parte de seu tecido urbano), decidimos nos “aventurarmos” com a identificação de territórios do medo que fazem emergir muros simbólicos que se associam aos muros de concreto das cidades. O labirinto se apresentou como importante dispositivo para a reflexão sobre como as trajetórias dos indivíduos podem ser alteradas mediante as territorializações do medo e dos territórios que delas advém. Nesse sentido, um processo de mapeamento menos rígido emerge como uma provocação a fim de que possamos visualizar a formação desses territórios e as possíveis alterações da relação dos indivíduos com o espaço. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. _____. Vigilância Líquida: diálogos com David Lyon. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. CALDEIRA, T. P. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Ed.34/Edusp, 2000. 363 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO HAESBAERT, Rogério. Da. O Mito da Desterritorialização: do "fim dos territórios" à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. MELGAÇO, Lucas. Securização Urbana: psicosfera do medo à tecnosfera da segurança. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. SAQUET, M. A. As Diferentes Abordagens do Território e a Apreensão do Movimento e da (I)materialidade. Geosul, Florianópolis, v. 22, n. 43, p. 55-76, jan./jun. 2007. SILVA, Valéria Cristina da. A Cidade no Labirinto: descortinando metáforas da pós-modernidade. Sociedade & Natureza, Uberlândia, 21 (1): 147-158, Abr. 2009. SOUZA, Marcelo Lopes de. Fobópole: o medo generalizado e a questão da militarização urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. TUAN, Yi-fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Londrina: Eduel, 2012. 364