ciencias sociais ii - Amazon Web Services

Propaganda
METODOLOGIA DO ENSINO DAS
CIENCIAS SOCIAIS II
Alexandro Dantas Trindade
Simone Meucci
ValEria Floriano Machado
2010
© 2010 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por
escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.
T833
Trindade, Alexandro Dantas ; Meucci, Simone ; Machado, Valéria Floriano.
/ Metodologia do Ensino das Ciências Sociais II. / Alexandro Dantas
Trindade ; Simone Meucci ; Valéria Floriano Machado. — Curitiba : IESDE
Brasil S.A. , 2010.
116 p.
ISBN: 978-85-387-1085-1
1. Ciências Sociais - Metodologia do Ensino. 2. Ensino - Metodologia. I. Título. II. Meucci, Simone. III. Machado, Valéria Floriano.
CDD 300.72
Capa: IESDE Brasil S.A.
Imagem da capa: Jupiter Images/DPI Images.
Todos os direitos reservados.
IESDE Brasil S.A.
Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR
0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Alexandro Dantas Trindade
Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Especialista em Formação
de Quadros Profissionais pelo Centro Brasileiro de Análise
e Planejamento (Cebrap). Graduado em Ciências Sociais
pela Unicamp. Professor de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná
(DECISO/UFPR).
Simone Meucci
Doutora e Mestre em Sociologia pela Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp). Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do
Paraná (UFPR). Pesquisadora da História do Ensino da Sociologia no Brasil.
Valéria Floriano Machado
Doutora e Mestre em Sociologia pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR). Professora da Faculdade de
Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Tuiuti
do Paraná (UTP). Tem se dedicado à pesquisa sobre
intelectuais e a formação do campo educacional no Brasil.
Sumário
Sociedade e indivíduo............................................................................................9
O processo de socialização dos indivíduos........................................................................................ 9
Algumas formas de controle social.....................................................................................................11
A sociedade contra o indivíduo?.........................................................................................................16
Sociologia da educação . ....................................................................................27
Educação como “objeto” de análise da Sociologia........................................................................27
Educação como processo de socialização.......................................................................................30
Educação e instituições sociais............................................................................................................31
A escola e a organização da vida escolar..........................................................................................32
Os dilemas da escola no mundo contemporâneo........................................................................33
Ciência social e cientistas sociais:
negação, intervenção e interesse.....................................................................41
Convite à reflexão ....................................................................................................................................41
Ciências Sociais, utopia e evolução no século XIX........................................................................42
Ciência social, antiutopia e utopia no século XX...........................................................................45
Ciências Sociais, reforma e intervenção social...............................................................................47
Ciências Sociais, interesse e dúvida....................................................................................................49
Sociologia no Brasil: autores e temas.............................................................59
Perspectivas de uma história da Sociologia no Brasil..................................................................59
A Sociologia e a transição do Brasil para a modernidade..........................................................63
Identidade nacional e a “questão racial” ..........................................................................................67
Mudanças sociais e obstáculos estruturais......................................................................................73
História do ensino da Sociologia no Brasil....................................................85
Intermitência da Sociologia na escola...............................................................................................85
Limitações ao ensino da Sociologia nas faculdades de Direito . .............................................86
Sociologia nos cursos complementares...........................................................................................88
Sociologia e a formação dos educadores.........................................................................................90
Sociologia hoje no ensino......................................................................................................................93
Gabarito.................................................................................................................. 103
Referências............................................................................................................ 109
Anotações.............................................................................................................. 115
Apresentação
O recente ingresso da Sociologia no Ensino Médio
exige que mobilizemos esforços para traduzir os conteúdos clássicos e o conhecimento produzido nas universidades para o ambiente escolar.
Neste livro propomos uma reflexão acerca da natureza do conhecimento sociológico, seus principais pressupostos e os papéis que assumiu ao longo do tempo, e
em que condições apareceu no sistema escolar brasileiro.
Compreendemos que essa reflexão é fecunda para que o
futuro professor de Sociologia pense nas suas estratégias e
alternativas pedagógicas. Nosso objetivo é, pois, provocar
uma reflexão sistemática acerca do significado das Ciências Sociais não apenas na escola, mas também na vida
social.
Nessa perspectiva, no capítulo I discutimos de modo
mais próximo, a partir das diferentes vertentes teóricas,
um dos pressupostos fundamentais da Sociologia: a relação indivíduo e sociedade.
No capítulo II, apresentamos os fundamentos da sociologia da educação, entendendo que esta é uma reflexão importante para os futuros professores de Sociologia
no sistema escolar.
O capítulo III trata dos sentidos que o conteúdo das
Ciências Sociais assumiu em diferentes momentos históricos. Procuramos demonstrar que a produção do conhecimento nas Ciências Sociais está relacionada com as expectativas de cada época.
O capítulo IV traz uma síntese da produção sociológica brasileira e, por fim, no capítulo V discutimos a trajetória
da disciplina no sistema de ensino brasileiro.
Sociedade e indivíduo
Simone Meucci
Neste capítulo, propomos algumas coordenadas para a reflexão sobre um pressuposto que serve de fundamento para as Ciências Sociais. O pressuposto refere-se à
seguinte ideia: a sociedade molda os indivíduos, suas ações, seus pensamentos e até
mesmo suas maneiras de sentir. Ou seja, para as Ciências Sociais, o ambiente social
condiciona hábitos, valores e os sentimentos das pessoas. Ao longo das páginas seguintes, discutiremos de que maneira a sociedade produz e reproduz nos indivíduos
esses comportamentos.
O processo de socialização dos indivíduos
Com efeito, a Sociologia entende que somos resultado da sociedade na qual vivemos. Vejamos aqui um exemplo: um nativo criado numa distante sociedade tribal
não terá o paladar preparado para apreciar sanduíches de atum com alface e tomate,
não compreenderá a representação política parlamentar, tampouco identificará no
beijo e no abraço manifestações de carinho. Em contrapartida, nós também não conseguiremos apreciar os insetos que os nativos comem como iguarias. Será igualmente
estranho para um membro de nossa sociedade que todos os dilemas da tribo (desde
as contendas familiares até os assuntos de guerra) sejam decididos por um único líder
espiritual. E, finalmente, não nos sentiremos comovidos ao testemunhar as expressões
de afeto de um nativo para uma das suas numerosas esposas.
Todos nós, bem como os nativos do exemplo, fomos moldados pela nossa sociedade para gostar de determinados sabores, para confiar em certas instituições ou lideranças, para sentir atração ou repulsa, tristeza ou alegria em determinadas condições
e para expressar esses sentimentos de modo peculiar, conforme as convenções do
grupo ao qual pertencemos. Nesse sentido é que afirmamos que maneiras de pensar,
agir e sentir são socialmente determinadas (DURKHEIM, 1987).
Para agir, pensar e sentir de acordo com o que determina a nossa sociedade, nosso
corpo e nossa mente foram objetos de longa artesania que, em Sociologia, denominamos de socialização.
9
A socialização é um processo lento. Seu primeiro protagonista é a família. Os pais,
ainda à beira do berço de seus filhos e ao longo de toda a infância, transmitem à criança expressões da língua, gestos de despedida e afeto, maneiras corretas de sentar e
se vestir. Os pais também ensinam aos seus filhos o uso de adornos e cores, a fruição
de sabores de acordo com as convenções sociais: a fita no cabelo é adorno feminino,
o bóton do homem-aranha, masculino; azul é cor de menino, rosa é de menina; o pão,
um alimento matinal, ao passo que o bife deve ser consumido durante o almoço; já a
compota e o pudim somente após as refeições principais.
Com efeito, a educação que nossos pais nos transmitem em pequenos atos cotidianos constitui, em essência, o processo de socialização. A educação é, nesse sentido,
a transmissão dos valores e convenções da sociedade em que vivemos para as novas
gerações. Através da educação ocorre verdadeiramente a socialização, processo que
permite que regras sociais se reproduzam, se renovem e se perpetuem.
Observemos as palavras do sociólogo Émile Durkheim (1987, p. 5) acerca do que
estamos aqui denominando de processo de socialização:
Toda educação consiste num esforço contínuo para impor às crianças maneiras de ver, de sentir e
de agir às quais elas não chegariam espontaneamente. [...] Desde os primeiros anos de vida, são
as crianças forçadas a comer, beber, dormir em horas regulares; são constrangidas a terem hábitos
higiênicos, a serem calmas e obedientes; mais tarde obrigamo-las a aprender a pensar nos demais, a
respeitar usos e conveniências, forçamo-las ao trabalho etc., etc. [...] A educação tem justamente por
objeto formar o ser social. [...] A pressão de todos os instantes que sofre a criança é a própria pressão
do meio social tendendo a moldá-la à sua imagem, pressão que tanto os pais quanto os mestres não
são senão representantes e intermediários.
Sociedade e indivíduo
Os pais, com a ação de outras instituições como a escola e a mídia, transformam
a criança efetivamente num membro da sociedade. Para isso, especialmente os pais,
personificam a coerção da sociedade exercendo sua autoridade e atribuindo punições
caso as crianças não obedeçam às suas ordens. Trata-se de um processo demorado,
delicado e, também, tenso.
10
Não obstante, embora exista de fato a coerção e ela, por vezes, se manifeste de
modo notável, algumas das regras da sociedade são tão imperceptivelmente apreendidas pelas crianças que até parecem “naturais”. Vejamos aqui um exemplo: as meninas
mais delicadas e calmas e os meninos que, em geral, parecem mais levados e pouco
sensíveis. Na verdade, essa diferença entre meninos e meninas nada tem de natural.
Trata-se de uma diferença de gênero que se constituiu ao longo do processo de socialização e que foi sutilmente apreendida pelos pequenos a ponto de se pensar que
é algo próprio da natureza. A socialização que ocorre na infância é denominada de
socialização primária.
Essa socialização é, sobretudo, exercida pelos pais e pelas pessoas ou instituições
cujo contato com a criança é constante. A socialização primária constitui apreensão
das regras básicas para a circulação no mundo social. É uma etapa necessária na vida
de um indivíduo porque o torna capaz de reconhecer a si e aos outros como parte de
um grupo social que tem convenções próprias e inescapáveis.
Não obstante, quanto mais complexa a sociedade, mais complexo também o processo de socialização. Na sociedade em que vivemos, a socialização é um processo contínuo, constante, que acompanha toda a vida da pessoa. Isso ocorre porque há, em nossa
sociedade, muitas instituições e diferentes papéis sociais a serem desempenhados.
Observemos o seguinte exemplo: um jovem rapaz, pai de dois filhos, casado há
cerca de cinco anos, auxiliar de produção numa grande indústria, fiel de uma igreja
evangélica, morador da cidade de São Caetano em São Paulo. No seu cotidiano, esse
rapaz desempenha diferentes papéis sociais: de pai, marido, profissional, colega e
amigo, cidadão do Estado brasileiro, membro da igreja e da associação de moradores
do bairro, usuário do metrô, do sistema bancário e da internet etc. As funções desempenhadas, a maneira de se vestir, o modo de olhar e de se relacionar com as pessoas
é diferente em cada situação: na escola dos filhos, no ambiente doméstico, no fórum
diante do juiz, nos rituais da igreja, durante as compras ou no futebol com os amigos.
Ou seja, o que se espera do rapaz em cada situação e espaço social é diferente e houve
um aprendizado (mais ou menos evidente) para isso. Na empresa, houve o período de
treinamento que se renova a cada mudança organizacional, no banco, cartilhas orientaram para o uso das novas tecnologias e serviços, na igreja ele foi lentamente aprendendo novos cânticos, a impostar as mãos e dar testemunhos, para citar apenas alguns
exemplos. A esse processo de aprendizado damos o nome de socialização secundária.
A socialização secundária compreende, portanto, o aprendizado nos diferentes
contextos institucionais. O prerrequisito para esses sucessivos novos aprendizados
é a socialização primária que oferece fundamentos para que o sujeito reconheça as
bases do mundo social. Em sociedades onde a ossatura institucional é muito complexa e as transformações e inovações são constantes, os processos de socialização
secundária nos acompanham durante toda a vida. A rigor, estamos sendo sempre
socializados e ressocializados.
Todo processo de socialização compreende, também, sistemas de coerção social.
A sociedade exerce coerção para que os indivíduos se comportem da forma convencional. No limite, sistemas de coerção social são indissociáveis da vida em sociedade
Sociedade e indivíduo
Algumas formas de controle social
11
(DURKHEIM, 1987). Mas é importante lembrar que, além das sanções repressivas, há
também outras maneiras de se exercer a coerção social: a premiação àqueles que têm
conduta exemplar e a idolatria a certas celebridades com comportamentos socialmente admiráveis são alguns dos exemplos.
Do mesmo modo que os pais punem os filhos quando não obedecem às suas
ordens e os premiam em situações contrárias, as instituições têm possibilidades de
coagir o indivíduo a agir conforme as regras sociais estabelecidas. Há, portanto, um
sistema complexo de controle social em nossa sociedade e suas inúmeras instituições
que compreende desde homenagens públicas aos funcionários obedientes, piadas relativas ao sotaque do novo morador do bairro, reprovação do aluno que ultrapassa o
número de faltas, penalidades financeiras até o confinamento em presídios.
Observemos, portanto, que esse sistema assume tanto a uma dimensão mais
formal (com regras, punições e promoções previstas em estatutos, portarias e ofícios)
quanto uma dimensão informal (onde atos de controle social não são previstos em
nenhum regulamento, mas se expressam em cenas cotidianas aparentemente banais
e espontâneas).
Isso significa que há muitas modalidades de controle social. O sorriso, a fofoca,
a piada, o olhar debochado ou repressivo são formas de controle muito eficazes
na medida em que a sociedade e seus membros impõem ao indivíduo, através de
gestos miúdos (por vezes quase que intangíveis), as consequências da infração às
regras sociais vigentes. Quem já não debochou de um colega de trabalho que não
combinou apropriadamente (conforme as convenções sociais) as cores da camisa, da
gravata e do paletó?
Sociedade e indivíduo
A estigmatização
12
Não obstante, por vezes o sistema informal de controle social nada tem de pitoresco. Arremessa os indivíduos para a marginalidade social, deixando-os circular
apenas em lugares e condições que são limítrofes. Um exemplo disso são os homossexuais que ficaram, por muito tempo, limitados a relações afetivas e sexuais clandestinas, devido ao fato da sociedade não reconhecer a sua sexualidade. Os pontos de encontros de gays foram sempre áreas bastante degradadas das cidades, onde pessoas
consideradas “normais” não frequentavam. Atualmente, percebe-se que há movimentos importantes na direção do reconhecimento formal das relações homossexuais, a
exemplo da permissão da adoção de crianças por casais gays e do debate em torno da
institucionalização da união estável.
A estigmatização opera como poderoso instrumento de controle social. Consiste
na atribuição de certas características psíquicas a determinados grupos sociais como
se estas fossem a “natureza” dos membros que os compõem (GOFFMAN, 1982). Vejamos alguns exemplos de estigmas: os homossexuais são considerados devassos; as
mulheres, intelectualmente inferiores aos homens; os judeus, desonestos; os negros,
indolentes. Esses estigmas são geralmente revelados de modo muito informal: por
meio das tradicionais anedotas de salão, brincadeiras e expressões populares. Contados de boca em boca, provocando o riso e o escárnio, estão, na verdade, sendo poderosos instrumentos de estigmatização. Para análise sociológica, esse material (as
piadas, quadrinhas e brincadeiras supostamente ingênuas) se revela farto de pistas
acerca das formas de controle social da sociedade sobre determinados grupos e comportamentos sociais.
A estigmatização resulta na marginalização de alguns grupos e na concentração
do poder social na mão de outros.
Para os estigmatizados, a sociedade reduz as oportunidades, esforços e movimentos, não atribui
valor, impõe a perda da identidade social e determina uma imagem deteriorada, de acordo com
o modelo que convém à sociedade. O social anula a individualidade e determina o modelo que
interessa para manter o padrão de poder, anulando todos os que rompem ou tentam romper com
esse modelo. O diferente passa a assumir a categoria de “nocivo”, “incapaz”, fora do parâmetro que
a sociedade toma como padrão. Ele fica à margem e passa a ter que dar a resposta que a sociedade
determina. O social tenta conservar a imagem deteriorada com um esforço constante por manter a
eficácia do simbólico e ocultar o que interessa, que é a manutenção do sistema de controle social.
(MELO, 2009, p. 2)
A propósito, aconteceu no Brasil, no final do século XIX e início do século XX, um
processo de estigmatização cujas consequências sociais ainda estão à vista de todos
nós. Os ex-escravos, após a abolição, foram considerados inaptos para os estudos e
para o trabalho livre. As constatações acerca da incapacidade mental e da falta de obstinação dos negros ocultaram a responsabilidade do Estado de oferecer escola e formação profissional para a população. Desse modo, a elite garantiu que o mercado de
trabalho e a propriedade agrária ficassem sob seu controle.
Nessa situação, é sempre muito difícil transformar esse circuito fechado que
produz, reproduz e reforça o controle social sobre determinados grupos sociais. Observemos, portanto, que a sociedade tem mecanismos muito poderosos para reprodução
das estruturas de poder e das desigualdades.
Sociedade e indivíduo
Atualmente, no Brasil, as favelas e o trabalho informal são manifestações notáveis
de marginalização social dos negros e seus descendentes, inscritas na estrutura urbana
e ocupacional da sociedade. O mais grave disso tudo é que condições precárias de
moradia, acesso à saúde, à alimentação e ao mercado de trabalho muito frequentemente acabam reforçando a estigmatização. O menino negro faminto e sem formação
escolar acaba mesmo tendo menos rendimento escolar e perspectiva de futuro do que
o menino branco bem alimentado que goza de melhores oportunidades de estudos.
Nesse caso, confunde-se o efeito da estigmatização como sua causa.
13
Tais mecanismos se expressam em dramas pessoais muito intensos. Todos nós
conhecemos membros de grupos estigmatizados que sofrem com isso. Por vezes, conhecemos certos indivíduos que acreditam nos estigmas que a ele foram imputados,
se vitimizam ou os reproduzem na própria conduta. Outras vezes, indivíduos lutam
heroicamente contra os estigmas por meio de ações coletivas e engajamento em movimentos sociais. Nas duas possibilidades, a sociedade parece se impor de modo muito
violento sobre os indivíduos: de um lado, assume-se como inexorável a condição e o
lugar social determinado a certos grupos e indivíduos; de outro, se empreende uma
verdadeira guerra contra as forças (opressoras neste caso) da estrutura social.
A burocracia
Os sistemas formais mais conhecidos de coerção social compreendem sanções
jurídicas que vão desde multas em dinheiro ou prestação de serviços, passando pelo
aprisionamento temporário ou vitalício do indivíduo criminoso, até a pena de morte.
Deve-se lembrar que essas punições não servem apenas ao criminoso, mas também
aos membros dessa sociedade: ver algemado e preso numa cela imunda um assassino,
assistir os últimos momentos de vida de um estuprador antes de seu assento na cadeira elétrica é uma maneira de demonstrar a todos o drama e o sacrifício daqueles que
desrespeitaram as leis. As cenas figuram como um testemunho do poder coercitivo da
sociedade (representada pelo sistema judiciário) sobre os indivíduos. Por isso, pode-se
dizer que frequentemente os julgamentos e as prisões têm algo de espetáculo público.
Sociedade e indivíduo
O sistema jurídico está contido dentro da modalidade de controle formal que chamamos de burocracia. E o que é propriamente burocracia? Refere-se a um conjunto
de regras racionais e impessoais que regulamentam o funcionamento das instituições
(WEBER, 1994). Cada instituição (o banco, a faculdade e o Detran, por exemplo) tem
regras próprias de funcionamento elaboradas por um grupo de homens especializados que decidem, baseados em critérios racionais, os limites de crédito para cada faixa
de renda, de faltas de um aluno de curso presencial, de velocidade em determinada via
urbana. Os burocratas são também responsáveis pela definição dos critérios e competências profissionais necessários para o exercício de algum cargo, pela elaboração do
organograma e do estatuto de uma empresa, entre outras coisas.
14
Uma das características dos sistemas burocráticos é que o comportamento
humano é antecipado. São fixadas condições (penalidades ou premiações) para cada
uma das atitudes possíveis. Vejam, por exemplo, um contrato de compra e venda: ali
estão identificados os agentes da compra e da venda (sob a forma de números de
RG ou CPF), descritos em detalhes objetivos os objetos da transação, discriminadas
as condições em que ocorreu o negócio e previstas cada uma das penas (caso não
se cumpram na totalidade essas condições) ou o bônus (se o comprador antecipar
alguma parcela do pagamento). Um contrato é, pois, um testemunho eloquente do
modo como a burocracia antecipa o tempo e procura fixar todas as possibilidades da
ação humana e seus efeitos.
Vivemos submetidos aos sistemas burocráticos das incontáveis instituições que
nos cercam e prestam serviços. Ao teclar mensagens instantâneas no computador, ou
participar de um site de relacionamentos, estamos submetidos às normas da empresa
que fornece energia elétrica, da outra que presta serviço de acesso à internet, daquela
que hospeda o site, além das leis do Estado brasileiro. Nesse sentido, os indivíduos na
sociedade contemporânea estão presos a uma malha de regras racionais de comportamento. Muitas vezes, esta malha complexa de regras que se sobrepõe ao indivíduo se
torna incompreensível e precisamos de um profissional especializado para nos ajudar:
o advogado, um personagem imprescindível numa sociedade como a nossa.
Uma característica importante da burocracia é que suas regras, além de racionais,
são também impessoais. A burocracia não nos reconhece em nossa particularidade,
apenas objetivamente. Não é casual o fato de que, num contrato de venda de algum
bem, os onze dígitos do CPF é que permitem a nossa identificação. Do mesmo modo,
na condição de usuários do computador, somos identificados por um número de IP.
Enquanto que o Detran não nos reconhece senão por uma combinação de algarismos
e letras sob o qual está registrado nosso veículo. Ou seja, números e senhas nos identificam diante das instituições. Somos quase que desumanizados: para o lojista do
shopping não interessa nossa história pessoal, mas o número do cartão de crédito;
para o médico, o número do cartão de saúde e do prontuário; para a faculdade, o
número do registro acadêmico.
A tecnologia é uma aliada importante nesse processo de impessoalização das relações sociais na sociedade burocratizada. Ao oferecer o serviço de caixas eletrônicos
e reconhecer o cliente por meio de um chip fixado num cartão e uma senha, o banco
estabelece uma relação absolutamente impessoal entre o cliente e a empresa. O caixa
eletrônico não pode permitir a retirada de um empréstimo senão estritamente dentro
da classificação da renda do cliente. Aquilo que o gerente poderia relevar fica agora
à cargo de um software a quem não será possível sensibilizar com algum argumento pessoal. Com a tecnologia, a sociedade aprofunda a impessoalidade e o controle
sobre os indivíduos. Basta ver as câmeras, hoje onipresentes em todos os ambientes:
olhos desumanos observam seres anônimos transitando nos elevadores, corredores,
salas de aula e ruas da cidade.
Sociedade e indivíduo
Nessa perspectiva, a sociedade se impõe diante do indivíduo por diversos mecanismos (por vezes mais, por vezes menos sutis). Esses sistemas de controle social
são reveladores da exterioridade e da coercitividade da sociedade em relação ao indivíduo. Ou seja, demonstram que, de um lado, as regras de cada instituição e de cada
grupo social existem independentemente da nossa existência ou desejo particular e,
de outro, explicitam a pressão que a vida social exerce sobre o indivíduo.
15
A sociedade contra o indivíduo?
Mas a oposição indivíduo e sociedade por vezes não é tão clara. As regras da sociedade não apenas aprisionam e coagem o indivíduo, mas também produzem sua
identidade e passam a ser constitutivas de sua “natureza”.
Com efeito, em muitas situações as regras sociais se confundem com nossa percepção acerca de nós mesmos. Ou seja, as regras sociais manifestam-se como identidade e vontade do indivíduo. Observemos dois exemplos: as mulheres frequentemente
sentem-se mais femininas e sedutoras ao cruzar as pernas, usar saltos e vestidos. Do
mesmo modo, o estagiário de medicina sente-se mais “profissional”, “sábio” e “poderoso” ao usar o jaleco e o estetoscópio e transitar pelos corredores do hospital. O jaleco
branco e o instrumento de trabalho acionam algo dentro do jovem estudante que faz
com que ele, orgulhoso, já se sinta um médico e se comporte enquanto tal (BERGER,
2007, p. 109).
Conclui-se então que a sociedade não se apresenta apenas externamente, mas
se produz continuamente por meio dos atos cotidianos que executamos e que nos
conferem identidade social. Dito de outra maneira: a sociedade se produz através de
nós e dentro de nós. Pequenos atos, gestos e adereços produzem imediatamente em
nossa consciência as condições para a ocupação de posições sociais determinadas. As
normas da vida social e a nossa identidade são, pois, indissociáveis.
Certos valores sociais estão tão entranhados dentro do indivíduo que ele nem
mesmo os reconhece como “sociais”. Vejamos um caso significativo: por vezes, quando
o professor de Sociologia afirma que nossas maneiras de agir e sentir são socialmente
condicionadas, alguns alunos contestam dizendo que em suas escolhas e no modo
como se sentem e se comportam não foram influenciados pelos outros, tampouco pela
sociedade em geral. Consideram sua autonomia individual como um valor positivo e o
pressuposto da Sociologia lhes aparece como uma afronta à sua individualidade.
Sociedade e indivíduo
Esse é, pois, um valor fundamental da sociedade atual: todos os indivíduos consideram-se livres e, por isso, julgam que fazem escolhas próprias, têm rotinas diferenciadas e uma história pessoal irredutível a qualquer outra.
16
Nesse caso, especialmente interessante, é possível demonstrar para os alunos que
o individualismo é, ele mesmo, um valor social que se impõe a nós e que reproduzimos
em atos cotidianos mais ou menos sutis. Aliás, a cada dia, a positivização da individualidade torna-se mais forte em nossa sociedade.
O individualismo se manifesta no modo como se estimula certo tipo de diferenciação social entre as pessoas na sociedade contemporânea (ELIAS, 1994). Observemos
como as crianças são socializadas hoje. As orientações pedagógicas contemporâneas
orientam os pais para destacarem, em cada filho, suas características particulares, os
gostos e habilidades que lhe são próprios. Ao afirmar para seu filho caçula o gosto pelo
desenho, um casal não está fazendo apenas uma constatação: está, ao mesmo tempo,
estimulando na criança um especial prazer pela atividade a partir da qual ela é reconhecida. Da mesma maneira, quando o mesmo casal de pais diz constatar uma notável
aptidão matemática em seu filho mais velho, desenvolve as condições para a elaboração do gosto profissional do menino e nutre a diferenciação entre os dois filhos: um
voltado para as habilidades técnicas, outro para as habilidades artísticas.
Isso só é possível porque a estrutura ocupacional dessa sociedade é também altamente diferenciada. Na verdade, a complexificação da divisão do trabalho não apenas
possibilita, mas torna necessária a diferenciação sofisticada entre os indivíduos que a
compõem.
A orientação pedagógica que favorece as diferenciações individuais é muito eloquente quando há gêmeos idênticos na família: os pais são então orientados para não
vestir as mesmas roupas nos bebês, não comprar brinquedos iguais e estimular a individualidade de cada criança. Essa orientação era impensável no início ou na metade
do século passado, quando crianças gêmeas vestidas do mesmo modo representavam
uma imagem apreciadíssima por todos.
Algumas sociedades, com efeito, longe de estimularem a diferenciação entre os
indivíduos, prezam sua inibição. Serve de anedota entre nós o fato de que crianças
japonesas parecem todas iguais. Entretanto, dentro da organização tradicional japonesa, a socialização primária destina-se a ocultar as diferenças individuais entre crianças.
Ali, naquele meio social, a diferenciação dos indivíduos, sobretudo de crianças, é vista
como algo negativo.
As escolas tradicionais japonesas procuram equalizar as individualidades de
várias maneiras: exigindo o uso de uniformes escolares e de cortes de cabelo iguais,
submetendo os alunos a processos de ensino que visam repetir o conteúdo sem permitir uma apropriação criativa e particularizada do conhecimento ensinado. E ainda,
na vida adulta, quando profissionais dentro da empresa, a competitividade individual
não é tão estimulada entre os jovens (BARBOSA, 1999).
Sociedade e indivíduo
Trata-se de um fenômeno bastante diferente da sociedade americana, por exemplo, onde o individualismo é um dos valores mais fundamentais da organização social.
Lembremos, aliás, que o individualismo da sociedade contemporânea se expressa
também nos equipamentos que usamos. Há pouco mais de uma década, o telefone era
um equipamento de comunicação familiar, de uso coletivo. As casas tinham apenas um
aparelho telefônico que era colocado numa mesa especificamente para este fim que
ficava frequentemente na sala de estar. Atendia-se à chamada recitando “residência da
família tal” e a privacidade das conversas telefônicas era algo muito raro. Atualmente,
17
o telefone é um equipamento individual e portátil, que registra a rotina e a agenda de
um indivíduo apenas. O mesmo ocorreu com outros equipamentos. O carro é um dos
exemplos mais significativos disso: nas classes sociais privilegiadas, o veículo de transporte é individualizado e, para constatar isso, basta notar o número de passageiros por
veículo no trânsito de qualquer grande cidade ou observar atentamente os anúncios do
mercado imobiliário que lançam apartamentos de quatro quartos com quatro vagas na
garagem. Com o computador ocorreu algo parecido: os computadores de mesa estão
sendo, pouco a pouco, substituídos pelos equipamentos portáteis, de uso pessoal e individualizado. A redução dos micros não significa apenas um fenômeno tecnológico ou
estético, mas manifesta uma mudança importante nas relações sociais.
Cabe aqui uma ressalva: a diferenciação dos indivíduos ocorre lado a lado com
o fenômeno (já descrito acima) da impessoalização das relações. Ironicamente, a diferenciação das aptidões e dos gostos pessoais acontece numa estrutura social complexa onde os indivíduos são também igualados pelo anonimato diante das estruturas
burocráticas.
O individualismo é, portanto, um fenômeno sociológico e, ao contrário de enfraquecer o pressuposto sociológico de que as sociedades moldam os indivíduos, o
fortalece.
Texto complementar
Neste texto literário, é possível encontrar alguns elementos para refletir sobre a
relação indivíduo e sociedade, especialmente sobre o fenômeno da estigmatização.
Sociedade e indivíduo
O texto não está em sua versão integral. Recortamos pequenos trechos do romance que tem como protagonista o jovem promissor Raimundo – brasileiro criado
em Portugal, recém chegado ao Brasil. Durante sua estadia no Maranhão, Raimundo
apaixona-se por Ana Rosa, filha de Manoel Pescada, membro de tradicional família
local. O amor terá destino infeliz, pois o pai da moça impede o casamento dos dois
enamorados.
18
Dividimos os trechos em quatro partes: 1) a descrição do jovem Raimundo ao
desembarcar no Brasil; 2) a conversa de Raimundo com o pai de Ana Rosa após este
recusar-lhe a mão da moça; 3) os pensamentos de Raimundo após a revelação de sua
origem social; 4) a repercussão do rompimento do casal entre algumas pessoas da
cidade.
O mulato
(AZEVEDO, 2009)
1.
Raimundo tinha vinte e seis anos e seria um tipo acabado de brasileiro se não
fossem os grandes olhos azuis, que puxara do pai. Cabelos muito pretos, lustrosos e
crespos; tez morena e amulatada, mas fina; dentes claros que reluziam sob a negrura
do bigode; estatura alta e elegante; pescoço largo, nariz direito e fronte espaçosa.
A parte mais característica da sua fisionomia era os olhos – grandes, ramalhudos,
cheios de sombras azuis; pestanas eriçadas e negras, pálpebras de um roxo vaporoso e úmido; as sobrancelhas, muito desenhadas no rosto, como a nanquim, faziam
sobressair a frescura da epiderme, que, no lugar da barba raspada, lembrava os tons
suaves e transparentes de uma aquarela sobre papel de arroz. Tinha os gestos bem
educados, sóbrios, despidos de pretensão, falava em voz baixa, distintamente sem
armar ao efeito; vestia-se com seriedade e bom gosto; amava as artes, as ciências, a
literatura e, um pouco menos, a política.
Em toda a sua vida, sempre longe da pátria, entre povos diversos, cheia de impressões diferentes, tomada de preocupações de estudos, jamais conseguira chegar
a uma dedução lógica e satisfatória a respeito da sua procedência. Não sabia ao
certo quais eram as circunstâncias em que viera ao mundo; não sabia a quem devia
agradecer a vida e os bens de que dispunha. Lembrava-se, no entanto, de haver
saído em pequeno do Brasil e podia jurar que nunca lhe faltara o necessário e até o
supérfluo. [...]
2.
[...]
Sociedade e indivíduo
Depois da negativa de Manuel, Ana Rosa afigurava-se-lhe uma felicidade indispensável; já não podia compreender a existência, sem a doce companhia daquela
mulher simples e bonita, que, no seu desejo estimulado, lhe aparecia agora sob mil
novas formas de sedução. [...] Oh! Sim! Desejava Ana Rosa! Habituara-se imperceptivelmente a julgá-la sua; ligara-a a pouco e pouco, sem dar por isso, a todas as aspirações da sua vida; sonhara-se junto dela, na intimidade feliz do lar, vendo-a gover-
19
nar uma casa que era de ambos, e que Ana Rosa povoava com alegria de um amor
honesto e fecundo. E agora, desgraçado – olhava para toda essa felicidade, como o
criminoso olha através às grades do cárcere para os venturosos casais que se vão lá
pela rua, de braço dado, rindo e conversando ao lado dos filhos. E Raimundo antejulgava perfeitamente que aquele empenho de Manuel em negar-lhe a filha, longe
de arredá-la do seu amor, mais e mais o empurrava para ela, ligando-a para sempre
ao seu destino.
– Terá sua filha alguma secreta enfermidade, que levasse o médico a proibir-lhe
o casamento? Terá algum defeito orgânico?...
– Oh! Com efeito! O senhor tortura-me com as suas perguntas!... Creia que, se
eu pudesse dizer-lhe a causa de minha recusa, tê-lo-ia feito desde logo! Oh!
Raimundo não pôde conter-se e disparatou, fazendo estacar o seu cavalo.
– Mas o senhor deve compreender a minha insistência! Não se diz assim, sem
mais nem menos, a um homem que vem, legítima e conscienciosamente, pedir a mão
de uma senhora, que a isso o autorizou. “Não lha dou, porque não quero!” Por que não
quer?! “Porque não! Não posso dizer o motivo!...” É boa! Tal recusa significa uma ofensa
direta a quem faz o pedido! Foi uma afronta à minha dignidade. O senhor há de concordar que me deve uma resposta, seja qual for! Uma desculpa! Uma mentira, muito
embora! Mas, com todos os diabos! É necessária uma razão qualquer!
– É justo, mas...
– Se me dissesse: “Oponho-me ao casamento, porque antipatizo solenemente
com o seu caráter”. [...]
– Não! Não! Ao contrário, meu amigo! Eu até levaria muito em gosto o seu casamento com a minha filha, no caso de que isso tivesse lugar!... E só peço a Deus
que lhe depare a ela um marido possuidor das suas boas qualidades e do seu saber;
creia, porém, que eu, como bom pai, não devo, de forma alguma, consentir em semelhante união. Cometeria um crime se assim procedesse!...
Sociedade e indivíduo
– Com certeza há parentesco de irmão entre ela e eu!
20
– Repare que me está ofendendo...
– Pois defenda-se, declarando tudo por uma vez!
– E o senhor promete não se revoltar com o que eu disser?...
– Juro. Fale!
– Recusei-lhe a mão de minha filha, porque o senhor é... é filho de uma
escrava...
– Eu?!
– O senhor é um homem de cor!... Infelizmente esta é a verdade...
Raimundo tornou-se lívido. Manuel prosseguiu, no fim de um silêncio:
– Já vê o amigo que não é por mim que lhe recusei Ana Rosa, mas é por tudo! A
família de minha mulher sempre foi muito escrupulosa a esse respeito, e como ela é
toda a sociedade do Maranhão! Concordo que seja uma asneira; concordo que seja
um prejuízo tolo! o senhor porém não imagina o que é por cá a prevenção contra
os mulatos!... Nunca me perdoariam um tal casamento; além do que, para realizá-lo,
teria que quebrar a promessa que fiz a minha sogra, de não dar a neta senão a um
branco de lei, português ou descendente direto de portugueses!... O senhor é um
moço muito digno, muito merecedor de consideração, mas... foi forro à pia, e aqui
ninguém o ignora.
– Eu nasci escravo?!...
– Sim, pesa-me dizê-lo e não o faria se a isso não fosse constrangido, mas o
senhor é filho de uma escrava e nasceu também cativo.
Raimundo abaixou a cabeça. Continuaram a viagem. [...]
3.
E crescia, crescia, transformando-se em tenebrosa nuvem, que escondia todo o
seu passado. Ideia parasita, que estrangulava todas as outras ideias.
Sociedade e indivíduo
Raimundo, pela primeira vez, sentiu-se infeliz; uma nascente má vontade contra
os outros homens formava-se na sua alma até aí limpa e clara; na pureza do seu caráter o desgosto punha a primeira nódoa. E, querendo reagir, uma revolução operava-se dentro dele; ideias turvas, enlodadas de ódio e de vagos desejos de vingança,
iam e vinham, atirando-se raivosos contra os sólidos princípios da sua moral e da sua
honestidade, como num oceano a tempestade açula contra um rochedo os negros
vagalhões encapelados. Uma só palavra boiava à superfície dos seus pensamentos:
“mulato”.
21
– Mulato!
Esta só palavra explicava-lhe agora todos os mesquinhos escrúpulos que a sociedade do Maranhão usara para com ele. Explicava tudo: a frieza de certas famílias
a quem visitara; a conversa cortada no momento em que Raimundo se aproximava;
as reticências dos que lhe falavam sobre os seus antepassados; a reserva e a cautela
dos que, em sua presença, discutiam questões de raça e de sangue; a razão pela qual
D. Amância lhe oferecera um espelho e lhe dissera: “Ora mire-se!”; a razão pela qual,
diante dele, chamavam de meninos aos moleques da rua. Aquela simples palavra
dava-lhe tudo o que ele até aí desejara e negava-lhe tudo ao mesmo tempo, aquela
palavra maldita dissolvia as suas dúvidas, justificava o seu passado; mas retirava-lhe
a esperança de ser feliz, arrancava-lhe a pátria e a futura família; aquela palavra dizia-lhe brutalmente: “Aqui, desgraçado, nesta miserável terra em que nasceste, só poderás amar uma negra da tua laia! Tua mãe, lembra-te bem, foi escrava! E tu também
o foste!”
– Mas, replicava-lhe uma voz interior, que ele mal ouvia na tempestade do seu
desespero; a natureza não criou cativos! Tu não tens a menor culpa do que fizeram
os outros, e no entanto és castigado e amaldiçoado pelos irmãos daqueles justamente que inventaram a escravidão no Brasil! [...]
4.
[...]
Falou-se em toda a capital do rompimento de Raimundo com a família do
Manuel Pescada. [...] Durante aqueles dias não se falava senão em Raimundo.
– Desacreditou, para sempre, a pobre moça!... dizia um barbeiro no meio da
conversa da sua loja.
Sociedade e indivíduo
– Desacreditar quis ele! responderam-lhe, mas é que ela nunca lhe deu a menor
confiança! Isto sei eu de fonte limpa!
22
Na casa da praça, afirmava um comendador, que a saída de Raimundo da casa
do tio era devida simplesmente a uma ladroeira de dinheiro, perpetrada na burra de
Manuel, e que este, constava, já tinha ido queixar-se à polícia e que o doutor chefe
procedia ao inquérito.
– É bem feito! É bem feito!... vociferava um mulato pálido, de carapinha rente,
bem vestido e com um grande brilhante no dedo. É muito bem feito, para não consentirem que estes negros se metam conosco!
Seguiu-se um comércio rápido de olhadelas expressivas, trocadas entre os circunstantes, e a conversa torceu de rumo, indo a cair sobre as celebridades de raça
escura, vieram os fatos conhecidos a respeito do preconceito da cor; citaram-se pessoas gradas da melhor sociedade maranhense, que tinham um moreno bem suspeito; foram chamados à conversa todos os mulatos distintos do Brasil; narrou-se
enfaticamente a célebre passagem do Imperador com o engenheiro Rebouças.
Atividades
1. Explique o que é socialização e qual a sua relação com a ação educativa.
Sociedade e indivíduo
23
Sociedade e indivíduo
2. Analise a relação entre sociedade, socialização e controle social. Cite uma forma
de controle social formal e outra informal.
24
3. Por que o individualismo não contradiz o pressuposto fundamental da Sociologia de que o indivíduo tem suas atitudes, sentimentos e pensamentos condicionados pelo ambiente social?
Ampliando conhecimentos
O Processo, de Kafka.
Este livro – do importante escritor tcheco que escreveu também A Metamorfose – trata da experiência de um jovem junto à burocracia. Traços como a
impessoalidade e o anonimato são tematizados através da aventura do protagonista Josef K que, acusado de um crime, procura se defender junto às instâncias jurídicas.
Nesse filme, lançado em 2000 e indicado para o Oscar, o menino Billie quer ser
bailarino, ao passo que seu pai deseja que ele seja lutador de boxe. O aluno
pode ver, pois, através desse enredo, de que modo as convenções sociais se
manifestam.
Sociedade e indivíduo
Billy Elliot.
25
Download