SEMINÁRIO INTERNO SIAF: COMO TRATAMOS CASOS DIFÍCEIS? Para que o grupo se reunisse em torno deste tema, foi necessário, a princípio, que pensássemos juntos o que nos orienta quando classificamos um caso clínico como difícil. Vários exemplos com diferentes características nos vieram à cabeça, podendo ser agrupados em alguns tipos de situações mais freqüentes: pacientes psicóticas graves refratárias aos antipsicóticos e ao tratamento como um todo; pacientes que reinternam com grande freqüência; outras em que a psicose não fica clara e geralmente são, até por isso, difíceis de lidar; pacientes que permanecem por grandes períodos internadas, seja por questões ditas “sociais”, seja por questões judiciais, seja pela própria gravidade do caso. Diante dessas situações vimos algo em comum: todas impõem algum entrave a nossa necessidade de resolutividade. Conversando com a equipe de enfermagem, percebemos que a dificuldade, para eles está em outro ponto: na abordagem diária. Eles consideram difíceis, principalmente, aquelas pacientes que são negativistas, com as quais não conseguem avaliar o que se passa e que recusam os cuidados. Ressaltam ainda a dificuldade das pacientes que deliram constantemente, deixando a eles a dúvida entre concordar com o delírio ou contradizê-lo. Com essas disparidades de opiniões, sobre o que caracteriza os casos como difíceis, percebemos que, muitas vezes, a dificuldade pode estar do lado de quem trata e não do lado das pacientes. Outra coisa que ficou evidente foi que gravidade do caso e dificuldade no manejo não são sempre concomitantes. Resolvemos ilustrar alguns de nossos impasses com casos em que encontramos dificuldades, seja no manejo diário, seja nos encaminhamentos ou no trabalho de alta. 1. Alessandra: Difícil no que diz respeito a ser refratária ao tratamento como um todo, a ter internações freqüentes e de longa permanência pela gravidade do caso e por questões sociais. Encontra-se internada no SIAF desde Dezembro de 2008, contando com um ano de internação; teve uma recente licença com vistas a alta, o que não diminui nossa preocupação com uma provável reinternação. Como sabemos, atualmente, uma enfermaria de agudos visa uma internação de curta permanência e uma internação prolongada se coloca como algo discrepante, mas, no entanto, nesse caso, se faz fundamental à clínica da paciente. Há mais ou menos cinco meses atrás Alessandra protagonizou um impasse institucional: em conseqüência de sua “gravidez” a paciente sentia necessidade de estar na intercorrência, pois ali estaria mais próxima da equipe e principalmente dos médicos, cuja palavra tem muito efeito sobre a mesma, vide o prontuário de 25 de agosto de 2009 onde a paciente diz “Se o médico disser que eu posso comer eu como.” (sic). A questão que se colocou naquele momento foi uma demanda do SRI por vagas na intercorrência em detrimento da palavra da paciente que claramente estava querendo dizer algo sobre sua clínica com tal atitude. O fato de Alessandra estar durante um período bastante prolongado e por muito tempo restrita ao leito, indiferente às atividades do Hospital e da Enfermaria, é um ponto que mobiliza a equipe e não raro vemos alguns técnicos empenhados em fazê-la engajar-se em alguma atividade, Alessandra, porém, não participa de nenhuma atividade coletiva e somente conseguimos fazê-la interessar-se por algo quando isto diz respeito, de alguma forma, ao seu corpo. A relação que Alessandra estabelece com os técnicos que se implicam com o seu caso é também problemática, podemos reconhecer em sua história clínica um rompimento com os técnicos que se tornam mais próximos de seu caso. Parece que qualquer investimento mais amiúde por parte da equipe será, em algum momento, rechaçado por Alessandra, a conseqüente convocação resultante da implicação, parece ser insuportável para ela. A questão que se coloca é como fazer um tratamento com Alessandra sem que a implicação do técnico no trabalho não seja insuportável para ela? Outra dificuldade é lidar com a questão delirante de maneira paradoxal. Alessandra diz estar grávida, ter uma “gravidez especial”, é sua construção delirante mais pública. Quando o delírio de gravidez começa a remitir, “Xana” ganha lugar, evidenciando um comportamento mais agressivo e uma relação diferente com sua imagem e seu corpo, apresentando-se de forma mais bizarra, com roupas curtas e justas e maquiagem excessiva. Como lidar com isso então? Como se dirigir a Alessandra de forma a não negar seu delírio, mas também a não compactuar com ele? A remissão total dos sintomas parece não ser interessante neste caso. Alessandra abre o quadro há oito anos e desde então tem vivido inteiramente o seu delírio. Como sabemos, quando a medicação começa a fazer efeito Alessandra imediatamente deixa de tomá-la, pois não se reconhece fora da atividade delirante, em outras palavras, além do delírio não há Alessandra. Se a proposta terapêutica visar a remissão dos sintomas, o que restará de Alessandra? A partir desses apontamentos perguntamos, quando e como dar alta para Alessandra? 2. Marli: Difícil pela longa permanência em decorrência de questões judiciais. Marli chegou à enfermaria em fevereiro de 2008 após ter ateado fogo a sua mãe com acetona. Na época ela apresentava alterações psicopatológicas como pára-respostas e afrouxamento de nexos associativos. Sobre o ato cometido, só dizia que foi um acidente. As primeiras dificuldades da equipe apareceram aí: como implicar Marli neste ato que cometeu? Como manter no HPJ uma paciente que havia acabado de cometer um crime? Como tratar de alguém com medo de que algo semelhante pudesse ocorrer dentro da enfermaria contra alguém da equipe? (sendo que isso inclusive se anunciou algumas vezes...) A família e a Justiça foram acionadas, mas até hoje aguardamos uma sentença. Marli não tem nenhuma determinação judicial para permanecer internada, mas a questão para sua alta é mais do que clínica: há como garantir que outro ato como o cometido contra a mãe não ocorrerá? Esse é um papel de competência da Justiça, a avaliação de cessação de periculosidade. Mas como sustentar a permanência de alguém que já não está aguda numa enfermaria deste tipo, mesmo sem ordem judicial? Esses quase dois anos de internação tiveram repercussões para o quadro clínico e para os cuidados de Marli. Estamos todos em espera por essa decisão judicial e acabamos descansando do acompanhamento dela; existem diversos depoimentos de pessoas da equipe dizendo que se esqueciam de chamá-la para atividades ou para saídas individuais. Conseqüência disso ou não, neste período Marli teve algumas reagudizações com comportamentos estranhos, como quando jogou desodorante em Dra. Monaliza ou, como há pouco tempo, quando ficou com folhas secas na boca e fazendo Johrei para a TV. Apesar de não ter recebido nenhuma sentença e por vezes dizer que foi absolvida, desde que Dra Vanessa começou a acompanhar Marli, uma frase virou seu bordão: “Não tá fácil não, doutora.” Esse sofrimento, por estar internada sem previsão de alta, além do abandono pela família, tornou-se cada vez maior, e, mais recentemente, Marli começou a falar em morrer e até atear fogo a si mesma. Dizia ter se esquecido de todas as músicas que havia composto, algo que normalmente a animava (apesar de que uma música em particular já havia sido prenúncio de quando Marli iria atear fogo a alguém) e, assim, negava que pudéssemos ajudá-la de qualquer forma. Já não fazia mais os planos de voltar para a terra natal Uma nova dificuldade apareceu: como acolher o sofrimento dela, sem “dispensá-la” do motivo de estar aqui? Ainda que Marli seja uma paciente de “longa permanência”, as dificuldades de quando chegou ainda estão postas e, a estas, novas se somaram. Ficaremos à espera da decisão judicial e também à espera de novas dificuldades para se somarem às antigas? 3. Maria Martha: Difícil porque a psicose não se apresenta claramente, por ter internações freqüentes e de longa permanência por complexidade do caso e questões “sociais”. Martha é uma paciente que nos convoca muito ao trabalho, tanto no sentido de estar lado a lado com ela durante a internação quanto em criar estratégias para seu tratamento. Chega para as internações feito um “furacão”, tumultua a enfermaria, fala aos gritos, destitui toda a equipe, cria situações constrangedoras que nos fazem pensar se o que Martha nos apresenta é maluquice, um modo louco e esquisito de anunciar seu sofrimento ou maucaratismo. Parece que nos espaços onde Martha permanece por períodos longos, como o albergue, a residência terapêutica e a própria enfermaria, a convivência com os outros se coloca como insuportável. Ao contrário desses lugares, a convivência no CAPS, por curtos períodos parece não ser tão complicada para Martha. O que faz Martha suportar mais um lugar que outro? Seria a intensidade do limite que o outro lhe impõe? O que na convivência convoca Martha a criar tantas “confusões”? Será que isso não passa justamente por essa falta de reconhecimento por nossa parte da psicose dela, coisa que não ocorre no CAPS? Martha, por exemplo, é muito diferente diante de quem ela reconhece alguma autoridade e afetividade e diante de quem reconhece sua maluquice, como é o q acontece no CAPS. Será q não é isso q está equivocado conosco? Nossa posição diante dela? De fato, Martha nos convoca a uma exaustão de trabalho, nos convoca o tempo todo. Muitas vezes nós dissemos “coisas de Maria Martha”, coisas de quem mostrou pouco seus delírios, mas muito seu comportamento constantemente inadequado. Será que nossa dificuldade nesse caso é por estar em primeiro plano a questão comportamental que a questão psicótica propriamente dita? 4. Úrsula: Difícil por ser uma psicose grave e refratária aos antipsicóticos e ao tratamento como um todo; internações freqüentes. Durante dez anos de tratamento ambulatorial, com algumas internações ao longo desse período, muito pouco se sabia sobre Úrsula, apenas que no momento de reagudização do quadro apresentava episódios de agitação psicomotora agressividade dirigida à mãe, fugas de casa e quebras de objetos domésticos. Há pouco tempo uma produção delirante/alucinatória foi anunciada por Úrsula: a existência de dois mundos (o mundo da fé e o mundo da razão), a presença de macacos e homens, de Josué (nome dado para um comando alucinatório), do anticristo e que tudo isso irá acabar um dia. Úrsula fala que gosta de ouvir a voz de Josué, que ele a orienta, é seu companheiro. De outro lado, há um problema na convivência de Úrsula com sua mãe. Apesar de Úrsula referir que sua mãe não a quer mais em casa e relutar em sair de alta para retornar à sua casa, com sua mãe, ela pede licenças para ver como a mãe está. Ultimamente Úrsula chega mais comprometida para as internações, em intensa atividade alucinatória, onde nada mais parece existir, somente vozes. Nesta internação pudemos observar Úrsula tão invadida pelas alucinações a ponto de não conseguir falar, nos responder quando nos dirigíamos a ela. Apesar disso, conseguia se dirigir a funcionárias da limpeza antes mesmo de conseguir falar com a equipe assistente... Essa relação que não pede nada dela, não lhe convoca nada não poderia nos ensinar algo? Ou simplesmente nossa posição como técnicos é, por si só, convocatória para Úrsula? Nada temos a fazer senão esperar essa fase inicial mais negativista passar? Várias medicações foram tentadas, mas Úrsula abandona o tratamento. Então, seria um caso refratário ao uso de medicação e ao tratamento? O que impede Úrsula de sustentar um tratamento? Será que essa recusa ao tratamento tem relação com um pedido de sua mãe, para que seja novamente a filha saudável de antes? Úrsula não suporta este pedido? 5. Ana Paula: Difícil por ser um caso psicose não clara e pela questão da comorbidade. Esta é a quinta internação de Ana Paula no HPJ, fora as demais internações em outros hospitais psiquiátricos. Uma das primeiras dificuldades no caso é a definição do diagnóstico. No momento seu diagnóstico é esquizofrenia, porém, constam em seu prontuário diagnósticos de retardo mental, episódios depressivos, transtorno mental e comportamental devido ao uso de múltiplas drogas e substâncias psicoativas. Será que importa tanto para o tratamento de Ana Paula durante a internação sabermos se sua questão psicótica é primária ou secundária ao uso de drogas? Por que nos fixamos nesse ponto e o que essa fixação nos traz de limitação ao cuidado com Ana Paula? Além disso, a apresentação silenciosa de Ana Paula na enfermaria nos impõem dificuldades, no sentido de que reconhecemos que nos chamam mais atenção aquelas pacientes que fazem barulho, que nos chamam insistentemente para fazer pedidos variados, que exigem uma hora marcada para serem atendidas e ouvidas por nós. Mesmo que haja o risco eminente de suicídio, nos poupamos em recolher o que Ana Paula pode nos dizer de suas passagens ao ato em direção à morte, e apenas nos restringimos em vigiá-la. Cabe a pergunta: qual é o papel da internação para Ana Paula e se o objetivo de sua internação vai além de evitar o uso abusivo de drogas e as tentativas de suicídio? Por que não a chamamos, ficamos sempre a espera de um pedido de Ana Paula, se ela já nos deu notícias de que espera por nós ( nos referimos aqui ao encontro de Syla com Ana Paula: quando Syla combina de chamar Ana Paula pra estar com ela nos dias em que estiver na enfermaria e Ana Paula responde “Ah, quero só ver!”)?