Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 - Nº 39 / 1º Semestre 2014 Relatório: Fórum Social Mundial, Participação Popular e as Manifestações no Brasil Carolina Yamada, Jéssica Cotta e Rafaela Godói Entre os dias 28 de outubro e 1° de novembro aconteceu, na Faculdade Santa Marcelina, a XVI Semana de Relações Internacionais, que teve como tema central a questão da Democracia e Deslocamentos Transterritoriais: ordens/desordens no século XXI. Após as jornadas de junho de 2013, em que uma onda de protestos iniciada pelo aumento da tarifa do transporte coletivo mudou o cenário político do Brasil, surgiram questionamentos em torno das manifestações populares, não só aqui no Brasil, mas ao redor de todo o mundo, afinal, diversos são os países que nos últimos anos experimentaram uma onda de revoltas populares. A criminalização dos protestos, a violenta repressão policial e o papel das mídias e das redes sociais são alguns dos pontos em comum dessa série de rebeliões simultâneas e contagiosas. Nesse sentido, a Semana de RI procurou trazer temas e discussões relacionados a esses movimentos que nos ajudam a compreender sua dimensão e seus impactos. E, como bem mencionam os organizadores do evento, “as reflexões no âmbito da Semana de RI da FASM podem gerar mais questionamentos do que respostas”. No dia 31 de outubro, durante a mesa sobre Fórum Social Mundial, Participação Popular e as Manifestações no Brasil, contamos com a ilustre presença dos professores doutores Wagner Romão, exprofessor da casa e atual professor da Universidade Estadual de São Paulo, e Jean Tible, professor de Relações Internacionais do Centro Universitário Fundação Santo André e diretor de projetos da Fundação Friedrich Ebert. Ambos apresentaram suas análises sobre o tema e é o que iremos expor a seguir. Jean Tible começou sua exposição citando alguns movimentos sociais antiglobalização com maior repercussão mundial, como o Movimento Zapatista (México, 1994) e as manifestações em Seattle (EUA, 1999), para traçar um breve panorama do contexto que precedeu a criação do Fórum Social Mundial. O FSM nasce em 2001 como um contraponto ao Fórum Econômico de Davos, encontro que reúne líderes da economia mundial desde 1971. A primeira edição do FSM ocorreu em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e contou com a participação de diversos movimentos e organizações sociais sob o slogan de “um outro mundo é possível”. Assim, o FSM se tornou um espaço de debate democrático e se configurou como um processo mundial permanente de busca e construção de alternativas às políticas neoliberais, segundo consta em sua Carta de Princípios. 32 O objetivo é de se constituir como um espaço de articulação política que objetiva a participação popular e o intercâmbio entre organizações e movimentos sociais para discutir a ideia de um “novo mundo”. Porém, o grande desafio é transformar essas novas propostas em práticas concretas, e é nesse 32 Fórum Social Mundial. Disponível em: <http://www.forumsocialmundial.org.br/index.php?cd_ language=1>. 48 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 - Nº 39 / 1º Semestre 2014 sentido que surgem as críticas a esse movimento, pois muitos alegam que o FSM aparece de forma anedótica e superficial e que as suas propostas são meras ideologias. Com relação às manifestações de junho, Tible menciona como esses episódios, de uma maneira geral, conectam o Brasil a outros movimentos que vem ocorrendo no mundo, as chamadas “revoltas globais”, como a Primavera Árabe no Oriente Médio, Los Indignados na Espanha, Occupy Wall Street nos EUA, as revoltas estudantis chilenas, as manifestações contra as políticas de austeridades na Grécia, as revoltas da Praça Taksim na Turquia, entre outros. Entre suas semelhanças, destacam-se principalmente a ação direta e a presença massiva de pessoas nas ruas convocadas através das redes sociais. Suas diferenças, por sua vez, estão nas causas, contexto e cenário político e econômico pelos quais passam cada país. E apesar das particularidades de cada evento, todos deixam entrever uma vontade de maior participação política. Analisando o caso do Brasil e o cenário político do governo Dilma, Tible destacou a predisposição da presidente, num primeiro momento, de tentar abrir-se às ruas. Para ele, três elementos podem ser destacados do clamor das ruas: a melhoria da vida nas cidades, melhores serviços públicos e participação política. Porém, “Dilma não consegue manter o mesmo nível de diálogo social que mantinha Lula” e as reações do governo deixaram a desejar, pois as aberturas e mudanças ficaram, principalmente, no discurso. E esse parece ser o grande desafio do PT, destaca Tible. O partido, que surgiu a partir das lutas sociais iniciadas entre os anos 1970 e 1980, assim como a CUT e o MST, agora enfrenta um esgotamento de suas políticas públicas e parece ter ficado às margens das manifestações. O professor ainda lança um questionamento sobre se “junho” seria filho legítimo ou ilegítimo do lulismo. Na última década o país testemunhou a ascensão social de milhões de brasileiros, houve queda na desigualdade e os grupos tradicionalmente mais pobres chegaram às universidades e aeroportos. Assim, o lulismo, como fenômeno político, representa o governo de Lula e suas políticas sociais de combate à pobreza e à miséria, do aumento do salário mínimo, da concessão de créditos para que essa “nova classe média e trabalhadora” fizesse a economia do país girar. Porém, ao mesmo tempo em que proporcionou grandes mudanças no cenário econômico e social, o governo de Lula, que tem agora sua continuação no governo de Dilma, não conseguiu realizar reformas estruturais nos campos das políticas agrária e tributária, nas instituições públicas e na participação política. 33 Wagner Romão, por sua vez, palestrou com base em seu artigo As Manifestações de Junho e os Desafios à Participação Institucional, publicado no Boletim de Análise Político-Institucional do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).34 A partir desse texto, o professor procura discutir as manifestações ocorridas em junho focando, principalmente, nas que ocorreram na cidade 33 Ver Jean Tible – Lulismo e o fazer-se de uma nova classe. Disponível em: <http://uninomade.net/wpcontent/files_mf/111012130143Lulismo%20e%20o%2 0fazer-se%20de%20uma%20nova%20classe%20%20Jean%20Tible.PDF>. 34 Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/participa cao/images/pdfs/livro%20bapi_4_web.pdf>. 49 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 - Nº 39 / 1º Semestre 2014 de São Paulo, e como elas impulsionaram as revoltas em outras cidades do país. Para ele, as manifestações tiveram caráter episódico e foram motivadas por pelo menos quatro fatores preponderantes: o Movimento Passe Livre, a repressão policial, a insatisfação da população quanto aos gastos do país para sediar a Copa e o descontentamento geral com o sistema político vigente. Com relação ao MPL, Romão chega a afirmar que esse “talvez seja o primeiro grande movimento social pós-Lula, póshegemonia do Partido dos Trabalhadores” e lembra que as manifestações contra o aumento da tarifa não surgiram em junho de 2013. Na verdade, o processo de formação do Movimento Passe Livre remonta ao ano de 2003, quando uma série de protestos contra o aumento das passagens tomou as ruas de Salvador e ficou conhecida como Revolta do Buzu. Um ano depois foi a vez de Florianópolis, que teve seus terminais de ônibus ocupados por manifestantes, além de ver a única ponte de acesso entre a ilha e o continente bloqueada. O episódio de 2004 ficou conhecido como a Revolta da Catraca. Foram esses episódios que serviram de base para a formação do Movimento Passe Livre no ano seguinte, durante uma plenária de fundação ocorrida durante o V Fórum Social Mundial, em Porto Alegre.35 O autor ainda ressalta o caráter apartidário do movimento e sua forma de organização, que está muito próxima das tradições do anarquismo libertário, em que as decisões são tomadas de forma horizontal e não existe espaço de negociação com o Estado. 35 Ver Movimento Passe Livre – São Paulo, Não começou em Salvador, não vai terminar em São Paulo (São Paulo, Boitempo, Carta Maior, 2013). Para Romão, as manifestações de junho foram resultado de um caldo formado pelo aumento das passagens de ônibus que ocorreram simultaneamente em diversas cidades do país; pelo descontentamento popular com os prefeitos que haviam prometido em suas campanhas eleitorais não efetuar o aumento no preço da tarifa; por um movimento social enraizado, composto, predominantemente, por estudantes; e pela utilização das redes sociais. O segundo fator apontado por ele foi a violência policial, e como a ação desmedida da polícia militar em São Paulo na quintafeira, 13 de junho, alterou o discurso da grande mídia. Vale lembrar que antes disso, outros três atos já haviam ocorrido na cidade, onde também ocorreram confrontos com a polícia, mas que até então estavam suprimidos pela mídia e divulgados apenas como violação da ordem pública e, portanto, a grande maioria da população, até então, apoiava a ação da polícia. No dia 13 de Junho, o editorial do jornal Folha de São Paulo clamou, de forma explícita, por uma ação repressiva por parte da polícia militar frente ao “vandalismo” causado por esses “jovens predispostos à violência por uma ideologia pseudorrevolucionária”.36 Porém, após ter uma de suas repórteres atingida no olho por uma bala de borracha disparada por um policial, além de dezenas de repórteres e civis atingidos, direta ou indiretamente, pela ação truculenta da polícia, a repercussão e o posicionamento no dia seguinte já resultou em 36 Disponível em: http://www1.folha.uol. com.br/ opiniao/2013/06/1294185-editorial-retomar-a-paulista .shtml. 50 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 - Nº 39 / 1º Semestre 2014 outra história.37 Além disso, a atuação truculenta e desproporcional da PM ganhou destaque em vídeos exibidos e compartilhados nas redes sociais. No dia 17 de junho, o resultado desse episódio estava nas ruas. Em São Paulo, a concentração se deu no Largo da Batata, em Brasília, em frente ao Congresso Nacional, no Rio de Janeiro, a multidão lotou a Avenida Rio Branco; “viu-se o transbordamento das manifestações” e “foi o momento da explosão das demandas”, ou seja, todos que queriam se manifestar, por qualquer causa que fosse, estavam lá. Nesse sentido, o terceiro fator apontado por Romão é o deslocamento da demanda inicial, específica, para manifestações que reuniam pautas difusas sobre temas gerais. Entre manifestações que iam contra desde a PEC 37 até contra o Pastor Marco Feliciano, o único tema que conseguiu unificar as demandas foi a questão da Copa do Mundo, que incluía a Copa das Confederações e a Fifa. A revolta estava pautada, principalmente, nos excessos dos gastos públicos na construção dos estádios, isso porque a impressão de subserviência do governo federal perante a entidade despertou o sentimento anticorrupção e a reivindicação passou a ser pautada na construção de hospitais e escolas “padrão Fifa”. O último fator apontado pelo professor foi o descontentamento generalizado com o sistema político. Segundo ele, a crise de representação dos partidos políticos no Brasil encontra-se nos chamados partidos catch all, que se caracterizam por “abrigar demandas 37 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ cotidiano/2013/06/1294799-em-protesto-seis-report e res-da-folha-sao-atingidos-2-levam-tiro-no-rosto.shtml. movidas por qualquer ou nenhuma base ideológica”, e nos partidos-cartel, que se apropriam do Estado em benefício próprio (ROMÃO, pg. 14). Com relação a essa crise de representação, Romão problematiza a forma do sistema participativo – conselhos, conferências, audiências públicas – de responder à demanda social difusa, pois, na teoria, os conselhos e conferências deveriam constituir espaços de gestão e discussão com participação do Estado e da sociedade. Porém, o que ocorre na prática é que eles acabam reunindo membros do governo e uma parcela reduzida da sociedade, deixando o chamado cidadão “comum”, de fora. Nesse sentido, o professor ressalta a importância da transparência das ações do Estado para o aperfeiçoamento da democracia e para o desenvolvimento de uma sociedade civil mais madura. Reforça ainda que as informações sobre as ações do Estado, sobre aquilo que ele produz e seus desdobramentos devem ser acessíveis a todo e qualquer cidadão. As revoltas anticapitalistas e antiglobalização nascidas a partir de Seattle, em 1999, se constituíram em importante forma de luta social e política liderada pela juventude contemporânea mundo afora. Os movimentos sociais ganharam força e destaque, principalmente, por conta da internet e das redes sociais, que desempenharam papel fundamental para a circulação das informações, dando visibilidade mundial aos movimentos, e contribuíram para o engajamento e organização dos manifestantes. Do surgimento do Fórum Social Mundial, que representa a disposição de pessoas e de grupos sociais em discutir e achar alternativas a ordem neoliberal e novas formas de participação popular, à onda de 51 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 - Nº 39 / 1º Semestre 2014 manifestações no Brasil, que escancararam a insatisfação da população e que como um terremoto perturbou a ordem de um país que “prosperava” fazendo emergir uma série de contestações, o que se pode perceber é que há uma insatisfação social em nível mundial. Mais do que falar nas consequências práticas, a exposição dos convidados sobre o tema da mesa proporcionou uma discussão calorosa e construtiva sobre o fenômeno político e social que essas “ordens/desordens” representam no campo das Relações Internacionais. Carolina Yamada é estudante do 4º ano do curso de Relações Internacionais da FASM, tendo feito intercâmbio na Universidade de Coimbra, em Portugal. Jéssica Cotta é estudante do 3º ano do curso de Relações Internacionais da FASM. Rafaela Godói é estudante do 2º ano do curso de Relações Internacionais da FASM. Referências Bibliográficas: Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013. KAZUO, Nakano. O que se discutiu no Fórum Social Mundial. Disponível em: <http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?i d=347>. Acesso em: 10 out 2013. ROMÃO, Wagner de Melo. As Manifestações de Junho e os Desafios à Participação Institucional. In: Boletim de Análise PolíticoInstitucional / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília: Ipea, 2013, p. 11-17. TIBLE, Jean. O partido em seu labirinto? – O PT e as jornadas de junho. Disponível em: <http://novo.fpabramo.org.br/content/opartido-em-seu-labirinto-o-pt-e-jornadas-dejunho>. Acesso em: 22 dez 2013. 52