existência humana e responsabilidade - Latec-UFRJ

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EXISTÊNCIA HUMANA E RESPONSABILIDADE
Definindo uma ética heideggeriana a partir de Ser e Tempo
Elizabeth da Costa Ribeiro
Rio de Janeiro
2000
EXISTÊNCIA HUMANA E RESPONSABILIDADE
Definindo uma ética heideggeriana a partir de Ser e Tempo
Elizabeth da Costa Ribeiro
Dissertação apresentada ao Programa de Pós
Graduação em Filosofia da Universidade Gama
Filho como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Filosofia.
Orientador:
Prof. Dr. André Martins
Rio de Janeiro
2000
EXISTÊNCIA HUMANA E RESPONSABILIDADE
Definindo uma ética heideggeriana a partir de Ser e Tempo.
Elizabeth da Costa Ribeiro
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Filosofia da Universidade Gama
Filho, submetida a aprovação à Banca
Examinadora composta pelos seguintes membros:
_____________________________________
Prof. Dr. André Martins  Orientador
_____________________________________
Prof. Dr. Flávio Beno Siebeneichler  UGF
_____________________________________
Profª. Dra. Creuza Capalbo  UERJ
Rio de Janeiro
2000
DEDICATÓRIA
A todos que celebram o valor da existência
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador Prof. André Martins, que soube captar sensivelmente minha
intenção de pesquisa viabilizando-a, e com gentil sabedoria encaminhou-me até a sua
consecução.
Ao Prof. Simon, mestre fundamental nas primeiras orientações.
À Prof. Zenilda, que me iniciou na filosofia de Heidegger.
Aos meus filhos Allan e Luana, amores incondicionais.
Ao Paulo, que me renovou e me inspirou inundando-me de carinho e amor.
À minha mãe Izabel e tia Norma pela incansável dedicação e carinho.
Ao meu pai Américo, presente como referência de integridade e determinação.
À minha irmã Eliane, e à amiga Jackeline, que me auxiliaram nas revisões de texto.
À Profª e amiga Márcia Godinho, “cantando” e ensinando que o melhor da vida é
viver...
À amiga Maria Arminda, fonte de inteireza e sabedoria.
Aos meus alunos da UGF que me impulsionam a querer sempre aprender.
RESUMO
RIBEIRO, Elizabeth da Costa. Existência Humana e Responsabilidade: Definindo uma
ética heideggeriana a partir de Ser e Tempo. Orientador: Prof. Dr. André Martins.
Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Programa de Pós Graduação em Filosofia da
Universidade Gama Filho, 2000/1º semestre. 82 p.
O presente estudo objetiva destacar uma ética da responsabilidade inscrita em Ser e
Tempo. A analítica existencial de Heidegger desvela uma existência propriamente humana
(Dasein). Nesta o homem encontra-se sempre referido às suas possibilidades. Isto é o que o
distingue dos demais entes que se encontram no mundo, e o que o determina como um ser
responsável em sua existência.
O homem é ser-no-mundo situado de maneira dinâmica, na forma de projeto,
sempre numa relação de referência e de significação em meio aos entes em geral e aos coexistentes. Assim o homem é, essencialmente, cuidado (Sorge), envolvendo-se de maneira
peculiar com seu mundo, numa convivência que tanto pode ser própria e responsável, como
imprópria e irresponsável.
No modo de ser próprio, o homem, motivado pela angústia existencial, decide-se e
assume, responsavelmente, todas as implicações de sua existência, principalmente sua
finitude. Esta consciência promove no homem a possibilidade de um se dar conta de si
como singularidade e um se dar conta do mundo, dos entes em geral e dos co-existentes de
uma forma autêntica e responsável.
ABSTRACT
The present study aims at emphasizing the ethic of responsibility inserted in Being
and Time. Heidegger's existencial analysis reveals a true human existence (Dasein). Man
finds himself constantly related to his possibilities. This is what distinguishes man from all
other beings in the world, and what makes him responsible in his existence.
Man is Being-in-the-world in a dynamic way, in the form of project. Dasein keeps a
relation of reference and importance among other beings and co-existing beings. Therefore
man is essentially care (Sorge), and he has his own peculiar way of getting involved in his
world, either living suitably and responsibly, or unsuitably and irresponsibly.
Man, motivated by existential anxiety, in his own way of being, assumes all the
implications of his existence, mainly his finite life. So, man becomes well aware of
himself as singularity and also aware of other beings and co-existing beings in the world in
a true and responsible way.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................pg. 09
CAPÍTULO I - Existência Humana e Dasein.......................................................pg. 14
CAPÍTULO II - Ser-no-Mundo...........................................................................pg. 22
CAPÍTULO III - A Cotidianidade.........................................................................pg. 29
3.1 Ser-com...............................................................................................pg. 33
3.2 O Impessoal.........................................................................................pg. 45
CAPÍTULO IV - Compreensão e Abertura ...........................................................pg. 54
CAPÍTULO V - Angústia e Disposição..................................................................pg. 60
CAPÍTULO VI - Existência Humana, Cuidado e Responsabilidade........................pg. 68
CONCLUSÃO.......................................................................................................pg. 73
BIBLIOGRAFIA...................................................................................................pg. 81
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo abordar a analítica existencial de Heidegger
com vistas a demonstrar a possibilidade de definirmos uma ética da responsabilidade em
Ser e Tempo.
Cabe aqui situar o ponto de partida de Ser e Tempo. O problema que orienta o
questionamento na obra é o “sentido do ser” Para tanto o filósofo empreende a análise
fenomenológica do Dasein (ser-aí), como via de acesso à sua questão guia. Dasein é a
estrutura ontológica do homem. Portanto, o homem existe como Dasein.
O eixo da indagação de Heidegger refere-se ao fato de utilizarmos “ser” para
designarmos tudo e, mesmo sem termos uma compreensão prévia de seu significado, todos
os entes tornarem-se por ele revelados. Com tal problematização o filósofo quer resgatar
aquilo que compreende como a tarefa específica e inconfundível da filosofia no que se
refere à sua fonte grega: o espanto original em se pensar tudo o que “é”, e ainda, pensar o
próprio “é” que determina todos os entes, e fundamentalmente, pensar o homem como
aquele que pronuncia o “é” iluminando todos os entes e a si mesmo. Esse esforço é o que o
filósofo designa por “pensamento do ser” e que, segundo ele, recoloca a filosofia em seu
caminho próprio e fecundo.
O filósofo demonstra entretanto que a "questão do ser", questão central dos présocráticos, foi trivializada em sua originalidade pela filosofia tradicional ou metafísica. Esta
a suprime, considerando-a uma questão supérflua, o que gerou, segundo o filósofo, três
principais preconceitos, a saber: “o ser é o conceito mais universal”, “o conceito de ser é
indefinível” e “o ser é o conceito evidente por si mesmo”. Desta forma a "questão do ser", é
pressuposta através de uma apreensão pré-conceitual e óbvia, e tomada como resolvida.
Daí, segundo Heidegger, a urgência em se retomá-la, pois teria ficado em aberto.
Para o filósofo, a metafísica colocaria de lado o que é a questão central, passando a
versar sobre os entes, desenvolvendo um pensamento baseado em definições, numa
contínua elaboração de conceitos e explicações. A questão do ser fica encoberta, e o
homem, como sujeito, tende a esquecer esse velamento. Porém o esforço de Heidegger não
é o de chegar a um conceito definitivo do “ser”  o que seria expô-lo à luz de uma
objetivação tornando-o um ente como o fez a metafísica , mas sim pensar seu processo de
velamento e desvelamento, o que os gregos chamavam de alethéia. O filósofo empreende
assim uma desconstrução da filosofia tradicional, e intenciona fundamentar uma nova
ontologia investigando a questão do “sentido do ser”.
Heidegger afirma que a história do pensamento no ocidente se caracteriza pela
obscuridade em relação à questão que motivava todo o pensar em sua origem. Esta
obscuridade levou a uma perda de sentido a qual chama de esquecimento do ser,
culminando na tecnologia. Esta passa a tomar o lugar central deixando de ser meio de
proporcionar qualidade de vida e passando a ser fim, gerando com isto uma supervaloração
da técnica em detrimento da vida. Heidegger assinala que nossa história é uma história do
esquecimento de nossas raízes, e em decorrência disto, encontramo-nos em débito conosco
mesmos e doentes, por vivermos uma falta de sentido ontológico. Daí a necessidade
urgente de uma ética de respeito e responsabilidade com a existência, tanto em relação à
existência particular como à da coletividade humana, como valor precípuo e fundamental.
Em Ser e Tempo, a reflexão acerca da "questão do ser" torna-se uma reflexão do
próprio existente humano, pois é aquele que se dá a conhecer em seu ser imediatamente. O
caminho que leva ao ser passa pelo homem na medida em que este interroga a si mesmo,
coloca-se em questão e reflete sobre seu próprio sentido. Heidegger descobre que o ser do
existente humano é o mais acessível. Portanto, para chegar ao ser em geral, Heidegger
passa pela existência humana.
Assim, a analítica do existente humano mobiliza uma tarefa tão urgente para a
filosofia quanto a questão do "sentido do ser", pois torna visível uma questão fundamental e
que também permanece em aberto na filosofia  “o que é o homem?"
Ao analisar a existência humana, Heidegger abarca as questões que sempre
nortearam a filosofia e que geraram suas várias disciplinas, como metafísica, moral,
teologia etc.. Verifica-se também que, assim, o filósofo muda a perspectiva da filosofia de
uma investigação de questões como razão, sentimento, conhecimento, verdade e liberdade
para uma investigação do ser humano em sua totalidade, mais precisamente, em seu
fundamento, ou em termos heideggerianos, o Dasein em seu ser.
É neste ponto que se situa a presente pesquisa. Mesmo que Heidegger não tenha
explicitado em Ser e Tempo uma ética, observa-se que a investigação das estruturas da
existência humana indicam sua afirmação.
Nossa hipótese é a de que a análise do existente humano, aberto a si mesmo,
podendo tanto assumir-se quanto deixar de fazê-lo e, a perspectiva que ele é sempre
convocado para si mesmo, indicam uma ética do engajamento e da responsabilidade.
Sem dúvida o homem é um ente que está sempre buscando e inventando. Devido a
seu caráter de aberto à existência, é que ele vem construindo as culturas e as civilizações,
conquistando progressos ao longo das épocas e, em nossos tempos, tantos progressos
tecnológicos. Entretanto estamos nos deparando cada vez de forma mais contundente com
problemas éticos no campo tecnológico, o que, inclusive, vem ameaçando a qualidade de
vida no planeta. No início do século não vislumbrava-se tantas descobertas, nem tampouco
tantos problemas. Por exemplo: a engenharia genética, o esgotamento dos recursos naturais,
a poluição. Mas o ser humano, como verifica-se à luz de Heidegger, encontra-se
constantemente se transformando, inovando e buscando. A complexidade à qual a
humanidade chegou e caminha a passos largos, tanto em nível científico-tecnológico quanto
em nível sócio-político-econômico, exige uma reflexão ética compatível e cada vez mais
efetiva. Deve-se portanto pensar uma bioética, uma ética para a internet e para a mídia, uma
ética nuclear, uma ética da economia e da política, etc.. Mas deve-se sobretudo situar-se o
homem responsavelmente diante de seu rumo e do destino do mundo. Heidegger nos
fornece os elementos para refletir nesta direção, colocando o compromisso inexorável que o
homem tem diante dele mesmo e dos demais.
A presente dissertação consta de seis capítulos nos quais se tratará de demonstrar o
fundamento e construção de uma ética heideggeriana.
No primeiro capítulo se abordará a constituição fundamental da existência humana
 “Dasein”  com todas as suas implicações, o que irá desembocar no conceito
heideggeriano de "ser-no-mundo" e na análise da existência cotidiana, abordados
respectivamente nos capítulos dois e três. Na análise da "cotidianidade" se revelará o
existente humano mais próximo e imediato, como ele se dá com todos os seus
envolvimentos no dia a dia.
No quarto capítulo se demonstrará o fenômeno da “compreensão”, que irá se revelar
na analítica existencial, como o modo da “abertura” do existente humano para ele mesmo e
para o mundo, o que o possibilita envolver-se “própria” ou “impropriamente” no mundo,
tomando sua responsabilidade ou deixando de fazê-lo.
No quinto capítulo se abordará a “angústia existencial” que se desvela em Ser e
Tempo como um sentimento radical, pois coloca o existente humano diante dele mesmo e
de sua condição de ter de assumir-se ou abrir mão de si mesmo, dissolvendo-se na massa. O
conceito de angústia em Heidegger é que situa o existente humano como um ser ético e
responsável, pois é na angústia que ele escolhe propriamente.
No sexto e último capítulo se tratará de analisar o conceito heideggeriano de
“cuidado” ou “cura” ("Sorge"), princípio que abarca toda analítica e revela-se como o
“eidos” da existência humana. A cura é o que faz o existente humano se comportar como se
comporta, tanto na impropriedade fugindo da angústia, quanto numa propriedade
assumindo-a.
Na conclusão faremos uma síntese do percursso da dissertação, destacando a
questão da responsabilidade nos conceitos discutidos e, ainda, analisaremos os conceitos de
“finitude”
e
“resolução”,
responsabilidade.
questões
que
definem
uma
ética
heideggeriana
da
CAPÍTULO I
EXISTÊNCIA HUMANA E DASEIN
Dasein é um termo alemão que, traduzido literalmente, significa ser-aí. Encontra-se,
entretanto, na tradução brasileira, a opção pela expressão "pre-sença".1 Segundo esta
tradução pre-sença (“pre” correspondendo a “Da” e “sença” a “sein”) permite a perspectiva
de processo e mobilidade tal qual evidenciada em Ser e Tempo, evitando a concepção de
localização, distante da idéia original do texto, que poderia ser suscitada pelo termo ser-aí.
No presente trabalho, entretanto, adotaremos o termo original Dasein. Mas, chamando a
devida atenção para o fato de que as citações, extraídas da tradução brasileira, deverão ser
fiéis ao termo que foi escolhido pela mesma.
Em Heidegger, Dasein é, precisamente, o modo peculiar de ser do homem, sua
constituição essencial. Dasein, não pode ser confundido com um sinônimo de ser humano;
contudo, é acertado afirmar: o homem é fundamentalmente Dasein. Portanto, segundo
Heidegger, Dasein é o processo de constituição ontológica do homem, o que lhe possibilita
ser tal qual é, conferindo-lhe uma primazia em relação aos demais entes que se encontram
no mundo.
Entretanto, não encontra-se em Heidegger tal primazia do homem equivalendo a um
lugar de poder e dominação, mas encontra-se a constatação de sua possibilidade própria, ou
seja, seu acesso ao sentido de ser. Afirmar, pois, que o existente humano é o
1
Cf. Heidegger. Ser e Tempo, vol.I, nota 01, p.309. (nos referiremos a Ser e Tempo pela sigla ST.)
ente que tem acesso ao sentido de ser, significa dizer que o mesmo tem acesso ao sentido de
si mesmo, a possibilidade de compreensão em relação ao sentido de um outro ser humano,
ao sentido dos entes e das coisas de uma maneira geral. Esta seria, segundo o filósofo, a
primazia do existente humano por sua constituição ontológica (Dasein), que se revelaria,
fundamentalmente, na sua possibilidade em questionar.
Cabe ressaltar aqui que, em Heidegger, “ente” se refere a tudo, de uma maneira
geral e em sentido diverso. Por exemplo: as pedras, animais, casas, obras de arte, etc.
Também: o que lemos, falamos, entendemos, como nos comportamos, etc.. E igualmente o
homem. Segundo o filósofo, os entes em geral, estão no mundo no modo de "ser
simplesmente dado" ("Vorhandenheit")2. Já o homem, encontra-se numa posição
privilegiada. Ele é essencialmente Dasein, e sendo assim, engloba os demais entes em
estruturas de referências, e o faz questionando.
...visualizar, compreender, escolher, aceder a são atitudes constitutivas do
questionamento e, ao mesmo tempo, modos de ser de um determinado ente,
daquele ente que nós mesmos, os que questionam, sempre somos... Esse ente
que cada um de nós somos e que, entre outras, possui a possibilidade de
questionar, nós o designamos com o termo ‘pre-sença’.3
Questionar é, pois, uma maneira de ser exclusiva do existente humano. As ciências,
a filosofia, a ética, a cultura, as artes e a linguagem por exemplo, constituem-se como
modos de ser do homem que busca, investiga, compreende, interpreta, cria, enfim,
questiona. Portanto, a constituição ontológica do homem (Dasein) é que torna possível a
2
3
Cf. ST, nota 8, p. 311.
ST, p. 33.
este construir a si mesmo em sua trajetória existencial, e o que possibilita à humanidade
edificar sua história.
Vimos que, segundo Heidegger, o existente humano, não é mais um ente no meio de
outros entes. Isto significa que à medida que existe ele “é”. Lidando e questionando a si
mesmo, ele se compreende e se revela, revelando assim, aos demais entes. É próprio ao
existente humano “ser” na medida que existe:
A pre-sença não é apenas um ente que ocorre entre outros entes. Ao
contrário, do ponto de vista ôntico, ela se distingue pelo privilégio de, em
seu ser, isto é, sendo, estar em jogo seu próprio ser. Mas também pertence à
constituição de ser da pre-sença a característica de em seu ser, isto é, sendo,
estabelecer uma relação de ser com o seu próprio ser. Isto significa,
explicitamente e de alguma maneira, que a pre-sença se compreende em seu
ser, isto é, sendo. É próprio deste ente que seu ser se lhe abra e manifeste
com e por meio de seu próprio ser, isto é, sendo. A compreensão do ser é em
si mesma uma determinação do ser da pre-sença. O privilégio ôntico que
distingue a pre-sença está em ser ela ontológica.4
Cabe aqui esclarecer sobre os termos “ôntico” e “ontológico” utilizados pelo
filósofo. Em Heidegger o primado ôntico e o primado ontológico são possibilidades do
existente humano de compreensão e entendimento de si mesmo, do mundo, dos fenômenos
e das coisas em geral. Ônticamente o homem conhece de forma imediata, e
ontologicamente tem o acesso ao sentido de ser. Portanto, para Heidegger, o homem tem a
possibilidade de conhecer sob estes dois aspectos, porque ele mesmo é um ente
determinado ônticamente pela existência (suas raízes "existenciárias"  "Existenziell")5 e
4
5
ST, p. 38.
Cf. ST, nota 3, p. 310.
ontologicamente pelo ser (suas raízes "existenciais"  "Existenzialität")6. É tal
determinação, portanto, que possibilita ao existente humano um entendimento ôntico da
realidade (por exemplo: as ciências em suas especulações, hipóteses e teorias acerca dos
entes em geral) e um entendimento ontológico (uma reflexão sobre os conceitos, uma
compreensão do sentido de ser).
Assim, Heidegger afirma que sob o ponto de vista de um conhecimento imediato
(ôntico), o existente humano se distingue dos demais entes. Este encontra-se numa situação
de sempre ter de ser, e existindo, revelar o sentido de ser. O existente humano, compreende
a si mesmo, compreendendo também o sentido das coisas em geral. Tal é a sua condição
essencial (Dasein). Isto o diferencia dos outros entes que se encontram instalados no
mundo. É o existente humano, por sua vez, que encontra um sentido para si mesmo e
compreende um sentido para as coisas em geral.
Encontra-se em Heidegger a concepção de singularidade do homem. O homem é
sempre ele mesmo. Existir, e existência em Heidegger refere-se à existência humana,
significa um compromisso em ter de ser.
O ser que está em jogo no ser deste ente, é sempre meu. Nesse sentido, a presença nunca poderá ser apreendida ontologicamente como caso ou exemplar
de um gênero de entes simplesmente dados. Pois, para os entes simplesmente
dados, o seu ‘ser’ é indiferente ou, mais precisamente, eles são de tal
maneira que o seu ser não se lhes pode tornar nem indiferente nem não
indiferente. A interpelação da pre-sença deve dizer sempre também o
pronome pessoal, devido a seu caráter de ser sempre minha: ‘eu sou’, ‘tu
és’7
6
7
Cf. ST, nota 4, p. 310.
ST, p. 78
Segundo Heidegger, o homem, não pode ser considerado como um objeto, um fato
acabado. Neste sentido o homem nunca poderá ser classificado, tomado como caso ou
exemplar de um gênero como fazemos por exemplo com as coisas em geral  as pedras, as
plantas e os animais. O existente humano, no sentido que lhe dá Heidegger, distingue-se
das pedras, das plantas, dos animais e dos entes em geral. Uma cadeira, por exemplo, não
tem em si mesma nenhum sentido; é o homem que descobre sua necessidade idealizando-a,
fabricando-a, dando-lhe uma utilidade e um sentido. Uma cadeira apenas desempenha seu
papel dentro da vida do existente humano, porque é ele que lhe atribui um papel,
englobando-a numa rede de relações. A cadeira por si mesma não toma nenhuma iniciativa.
Já os animais estão inscritos num âmbito instintivo como parte integrante de um
ecossistema. Não que o existente humano esteja fora desse ecossistema, ao contrário, é
também parte integrante dessas interconexões, mas tem a possibilidade de compreender e
interpretar a rede dessas relações
favorecendo-a ou até, como temos presenciado,
conspirando contra ela. Para o animal, seu sentido de ser, e sua participação nesse
ecossistema, lhe passa desapercebido. O animal, assim como os demais entes da natureza,
simplesmente vive, está cumprindo despreocupadamente seu destino. Já o existente humano
não é indiferente a si mesmo. A partir do instante em que ele se encontra no mundo vê-se
na tarefa de ser. Na tarefa de escolher, de buscar, de enfrentar ou se retrair frente a uma
situação, de se alegrar ou se entristecer etc.. O homem ou existente humano, pelo fato de
estar imerso no Dasein, e constituir-se ontologicamente como Dasein, está-no-mundo.
Mundo aqui, entendido como um espaço de dominação temporal, no qual o homem,
percorre as etapas do caminho que o leva até o seu próprio ser.
O que constitutivamente caracteriza o homem, portanto, é sempre seus modos
possíveis de ser. É próprio à ele fazer relações, atribuir significados, fazer referências,
simbolizar. Em termos heideggerianos: articular o “é”. Os entes em geral, “simplesmente
são”, precisamente, por não terem acesso ao sentido de ser. O carro “é” mas não existe,
uma rosa “é” mas não existe. Os entes simplesmente dados vivem circunscritos às suas
realidades previamente definidas sem a possibilidade de interrogar tal condição. Passam a
vida
inadvertidamente,
não
interrogam
e
não
buscam,
vivem
simplesmente
desempenhando um papel determinado dentro do mundo. Pelo fato do Dasein possibilitar
a maneira peculiar do ser humano existir, é que este pronuncia, articula e revela o mundo.
Cabe aqui chamar atenção para o uso que Heidegger faz do termo “existência”
(“Existenz”)8. A tradição filosófica ou metafísica concebe um dualismo entre essência e
existência. Na metafísica, essência refere-se a origem, possibilidade, subjetividade,
interioridade, idéia ou causa. Já existência tem o sentido de reflexo, realidade, objetividade,
exterioridade, manifestação ou efeito. Na filosofia tradicional existência tem um sentido
bem distinto daquele da filosofia de Heidegger. Naquela fala-se de existência como
determinação de uma condição a priori, enquanto que nesta, existência refere-se a uma
peculiaridade do ser humano. Na acepção tradicional pode-se falar da existência de uma
mesa ou um beija-flor, assim como de Maria e Pedro.
Entretanto, Heidegger toma o termo existência, não em contraposição a essência,
como na tradição metafísica, mas em sua acepção etimológica de eksistere (preposição ek +
o verbo sistere), que tem o sentido de abertura, um movimento de dentro para fora.
8
Cf. ST, nota 2, p. 310.
Portanto, existência em Heidegger, diz respeito, especificamente, à existência humana,
relativa ao Dasein:
A ‘essência’ da pre-sença está em sua existência. As características que se
podem extrair deste ente não são, portanto, ‘propriedades’ simplesmente
dadas de um ente simplesmente dado que possui esta ou aquela
‘configuração’. As características constitutivas da pre-sença são sempre
modos possíveis de ser e somente isso. Toda modalidade de ser deste ente é
primordialmente ser. Por isso o termo ‘pre-sença’, reservado para designalo, não exprime a sua quididade como mesa, casa, árvore, mas sim o ser.9
O homem é o único ente dentre todos os entes que, em sua existência, encontra-se
sendo, essencializando-se, criando-se, entretanto, nunca de forma definitiva. Na existência
do homem está sempre em jogo o seu próprio ser. Isto quer dizer que o existente humano
nunca está completamente definido, como por exemplo, uma mesa. A mesa é criada e tem
seu destino e uso pré-determinados. Já o existente humano, a partir do momento que nasce,
nunca estará completamente acabado. Ao contrário, estará sempre na tensão de seu próprio
porvir, de fazer a si mesmo ou deixar de se fazer, de escolher ou não escolher, enfim, de
viver.
Segundo Heidegger, por estar no Dasein, o homem encontra-se sempre diante de si
mesmo. E sempre diante de uma possibilidade, um risco. Portanto, existir significa
encontrar-se no Dasein, e nesta aventura, o homem encontra-se na condição de assumir ou
não assumir responsabilidade.
9
ST, p. 77-78.
A pre-sença é sempre sua possibilidade. Ela não ‘tem’ a possibilidade
apenas como uma propriedade simplesmente dada. E porque a pre-sença é
sempre essencialmente sua possibilidade que ela pode, em seu ser, isto é,
sendo, ‘escolher-se’, ganhar-se ou perder-se ou ainda nunca ganhar-se ou só
ganhar-se ‘aparentemente’. A pre-sença só pode perder-se ou ainda não se
ter ganho porque, segundo seu modo de ser, ela é uma possibilidade própria,
ou seja, é chamada a apropriar-se de si mesma.10
Segundo Heidegger, o ser humano enquanto Dasein, terá sempre o caráter de ser ele
mesmo, ainda que escolha não escolher, fugindo de si mesmo numa impropriedade. Tanto
no modo de ser da propriedade (assumindo sua responsabilidade enquanto existente),
quanto no modo de ser da impropriedade (não assumindo responsabilidade enquanto
existente), é o homem em seu ser que está em jogo. Para o filósofo, é esta condição do
homem, a de ter de ser sempre ele mesmo, que possibilita o modo de ser da propriedade e
da impropriedade. O homem existe como Dasein, portanto, sempre existe num destes dois
modos, mesmo quando numa indiferença para com eles.
O homem é o ente que encontra-se numa condição de sempre ser convocado a si
mesmo. Pode-se afirmar que este é seu “lugar”  o “ethos”. O contexto ético que verifica-se
em Heidegger, portanto, refere-se a uma ética da responsabilidade, do engajamento, de um
dar-se conta do homem diante de si mesmo, do outro e do mundo circundante. A ética em
Heidegger encontra-se inscrita na apreensão da peculiaridade do homem (Dasein). Em
comprometer-se diante de sua própria condição humana, assumindo-a responsavelmente
com todas as suas implicações.
10
ST, p. 78
CAPÍTULO II
SER-NO-MUNDO
Tradicionalmente utiliza-se a palavra “mundo” para exprimir o conjunto de “coisas
existentes”. Mundo também pode se referir à Terra e outros planetas, ou numa acepção
geográfica mais restrita, à Terra e seus continentes. Platão, por exemplo, fala de dois
“mundos”: o “mundo sensível” (mundo material) e “mundo inteligível” (mundo das idéias).
Já em Descartes encontra-se o conceito de “mundo interior” (a consciência) e “mundo
exterior” (a realidade material).
Entretanto, para Heidegger, a palavra “mundo” diz respeito à existência humana,
condição na qual o homem estabelece significados e adquire sentido próprio. Em uma
palavra: “mundo” em Heidegger é o “mundo humano”:
Do ponto de vista ontológico, ‘mundo’ não é uma determinação de um ente
que a pre-sença em sua essência não é. ‘Mundo’ é um caráter da própria
pre-sença.11
Assim, em Heidegger, mundo não é uma “caixa” que contenha tudo o que existe.
Um espaço onde estariam inseridas as pessoas, animais, veículos, contruções, etc.,
existindo por si mesmas, e passíveis de serem associadas em conjuntos de entes.
11
ST, p. 105.
O filósofo critica a concepção de justaposição que agrega os entes a um “espaço” chamado
de “mundo”. Para ele, mundo, tampouco, diz respeito a um mundo interno ou subjetivo do
homem.
Em Heidegger, não é possível excluir homem e mundo, visto que o homem é,
fundamentalmente, seu mundo. O filósofo denomina este fenômeno de "ser-no-mundo".
Ser-no-mundo é sua “constituição necessária e a priori”. Ser-no-mundo quer dizer ser-emum-mundo, ou seja, o homem encontra-se implantando em seu mundo, como as raízes de
uma árvore que adentram a terra. O homem encontra-se vivencialmente em seu mundo,
tecendo relações, atribuindo significados. Homem e mundo formam um único fenômeno,
indissociável. Portanto, o Dasein como constituição ontológica do existente humano revelase como “ser-no-mundo”.
...nos vemos tentados a compreender o ser-em como um estar ‘dentro de...’
Com esta última expressão, designamos o modo de ser de um ente que está
num outro, como a água está no copo, a roupa no armário. Com este
‘dentro’ indicamos a relação recíproca de ser de dois entes extensos ‘dentro’
do espaço, no tocante a seu lugar neste mesmo espaço. Água e copo, roupa e
armário estão igualmente ‘dentro’ do espaço ‘em’ um lugar...
Esses entes, que podem ser determinados como estando um ‘dentro’ do
outro, têm o mesmo modo de ser do que é simplesmente dado, como coisa
que ocorre ‘dentro’ do mundo. Ser simplesmente dado ‘dentro’ de um dado,
o ser simplesmente dado junto com algo dotado do mesmo modo de ser, no
sentido de uma determinada relação de lugar, são caracteres ontológicos
que chamamos de ‘categorias’. Tais caracteres pertencem ao ente não
dotado do modo de ser da pre-sença.12
Na fala cotidiana é habitual dizer-se que um objeto está “dentro” de outro ou que
uma coisa encontra-se “em” algum lugar, caracterizando assim, a localização de objetos no
12
ST, p. 91-92.
“espaço”, no “mundo” ou na “vida”. Segundo Heidegger, os entes em geral são passíveis de
serem
categorizados
desta forma. Daí
o
filósofo denominar
de
“categorias”
("Kategorien")13 sua constituição ontológica, ou seja, sua maneira de ser ou se dar no
“mundo”. Os entes simplesmente dados podem ser apreendidos e definidos em função de
serem separados ou tomados em conjunto, ou ainda, em relação a classe, hierarquia, espécie
ou gênero. Entretanto, o “ser-em” é de uma outra ordem. O existente humano como ser-em
pressupõe o mundo, ou seja, ele não ocupa simplesmente um lugar no espaço. Ele encontrase “em-um-mundo”, não à maneira dos objetos, mas, propriamente, em seu mundo. Em
Heidegger não se pode pensar mundo sem a existência e existente humano sem mundo. A
estrutura “ser-no-mundo” designa o modo peculiar do homem dar-se no mundo. E a
expressão composta, caracteriza a relação homem-mundo como um fenômeno de unidade.
O ser-em significa uma constituição ontológica da pre-sença e é um
‘existencial’. Com ele, portanto, não se pode pensar em algo simplesmente
dado de uma coisa corporal (o corpo humano) ‘dentro’ de um ente
simplesmente dado. O ser-em não pode indicar que uma coisa simplesmente
dada está, espacialmente, ‘dentro de outra’ porque, em sua origem, o ‘em’
não significa de forma alguma uma relação espacial desta espécie; ‘em’
deriva de ‘innan’  morar, habitar, deter-se; ‘an’ significa: estou
acostumado a, habituado a, familiarizado com, cultivo alguma coisa; possui
o significado de colo, no sentido de habito e diligo. O ente, ao qual pertence
o ‘ser-em, neste sentido, é o ente que sempre eu mesmo sou.14
13
14
Cf. ST, nota 9, p. 312.
ST, p. 92.
Em Heidegger, o ser-em expressa a relação constitutiva do homem com o mundo. O
ser-em é um “existencial” ("Existenzial")15 e não uma “categoria”, porque constitui
ontologicamente o homem. O homem encontra-se “instalado” no mundo, envolvido numa
trama dinâmica de sentidos. Ser-no-mundo não é um estar situado em um mundo de coisas,
mas uma relação que indica um envolvimento de significação, uma inexorável intimidade.
Não é possível excluir homem e mundo, porque o homem, se constitui essencialmente,
como ser-no-mundo. Homem e Dasein estão imbricados numa relação vital. E existir em
um mundo é uma experiência propriamente humana.
Como existencial, o “ser-junto”ao mundo nunca indica um simplesmente
dar-se em conjnto de coisas que ocorrem. Não há nenhuma espécie de
‘justaposição’ de um ente chamado ‘pre-sença’a um outro ente chamado
mundo. Por vezes, sem dúvida, costumamos exprimir com os recursos da
língua o conjunto de dois entes simplesmente dados dizendo: à mesa está
junto à porta, a cadeira toca a parede. Rigorosamente, nunca se poderá falar
aqui de um tocar, não porque sempre se pode constatar, num exame preciso,
um espaço entre a cadeira e a parede, mas porque, em princípio, a cadeira
não pode tocar a parede mesmo que o espaço entre ambas fosse igual a zero.
Para tanto, seria necessário pressupor que a parede viesse ao encontro ‘da’
cadeira. Um ente só poderá tocar um outro ente simplesmente dado dentro
do mundo se, por natureza, tiver o modo do ser-em, se, com sua pre-sença, já
se lhe houver sido descoberto um mundo. Pois a partir do mundo o ente
poderá, então revelar-se no toque e, assim, tornar-se acessível em seu ser
simplesmente dado. Dois entes que se dão simplesmente dentro do mundo e
que, além disso, são em si mesmos destituidos de mundo, nunca se podem
tocar, nunca um deles pode ser e estar junto ao outro.16
15
16
Cf. ST, nota 5, p. 311.
ST, p. 93.
O existente humano encontra-se numa relação de proximidade com o mundo, ele se
acha “junto” ao mundo. Por “ser-junto”, o homem, tem a possibilidade de “tocar” o mundo.
Esse “tocar”, tem em Heidegger, o nexo de dar sentido, e assim, revelar o mundo. Um
mundo de valores, idéias, sentimentos, linguagem, atributos e conceitos. O existente
humano faz o mundo surgir como mundo, um mundo propriamente humano, pois é ele que
o descobre, e assim, os entes vêm ao seu encontro num envolvimento significativo e
vivencial. Por um outro lado, ao desvelar o mundo, o existente humano sobretudo descobre
a si mesmo, mostrando o seu modo de ser, sua peculiaridade como descobridor e criador,
realizando-se como tal. Assim, o homem vem ao seu próprio encontro no mundo.
Em Heidegger, entretanto, o desvelamento não é da ordem do “conhecimento”
(conhecimento aqui no sentido usual do termo de apropriação intelectual ou função
psíquica que tem como efeito tornar um objeto presente aos sentidos), mas da natureza de
um “ter-a-ver” com as coisas e lidar com elas, um procedimento efetivo que ocorre na
relação diária.
Ao dirigir-se para... e apreender, a pre-sença não sai de uma esfera interna
em que antes estava encapsulada. Em seu modo de ser originário, a presença já está sempre ‘fora’, junto a um ente que lhe vem ao encontro no
mundo já descoberto. E o deter-se determinante junto ao ente já conhecido,
não é um abandono da esfera interna. De forma alguma. Neste ‘estar fora’,
junto ao objeto, a pre-seça está ‘dentro’, num sentido que deve ser entendido
corretamente, ou seja, é ela mesma que, como ser-no-mundo, conhece. E,
mais uma vez, a percepção do que é conhecido não é um retorno à ‘cápsula’
da consciência com uma presa na mão ,após se ter saído em busca de
apreender alguma coisa. De forma alguma. Quando em sua atividade de
conhecer, a pre-sença percebe, conserva e mantém, ela, como pre-sença,
permanece fora. Tanto num mero saber acerca do contexto ontológico de um
ente, num ‘mero’ representar a si mesmo, num ‘puro’ pensar em alguma
coisa, como numa apreensão originária, eu estou fora no mundo junto ao
ente. Mesmo o esquecimento de alguma coisa em que, aparentemente, se
apaga qualquer relação de ser com o que antes se sabia, deve ser concebido
como modificação do ser-em originário, da mesma maneira que todo engano
e erro.17
Segundo Heidegger, o “conhecimento”, não é uma “capacidade psíquica para
conhecer”, nem tampouco, uma “necessidade em conhecer” , na forma da relação sujeitoobjeto. Entendendo-se tal relação como o sujeito saindo de sua “esfera interna”, indo a uma
“esfera externa” apropriar-se do objeto. Para Heidegger, a “relação sujeto-objeto”, não
coincide com a “relação existente humano-mundo”. A relação existente humano-mundo é
tão original que o filósofo a expressa pelo termo ser-no-mundo, evidenciando assim, um
fenômeno de totalidade. O conhecimento em Heidegger diz respeito a uma cumplicidade
homem-mundo. Portanto, para o filósofo, “conhecer” é um modo de ser do homem que se
funda previamente no ser-no-mundo. Na acepção heideggeriana, conhecer, supõe o mundo.
...o ser-no-mundo não é uma’ propriedade’ que a pre-sença às vezes
apresenta e outras não, como se pudesse ser igualmente com ela ou sem ela.
O homem não ‘é’ no sentido de ser e, além disso, ter uma relação com o
mundo, o qual por vezes lhe viesse a ser acrescentado. A pre-sença nunca é
‘primeiro’ um ente, por assim dizer, livre de ser-em que, algumas vezes, tem
gana de assumir uma ‘relação’ com o mundo. Esse assumir relações com o
mundo só é possível porque a pre-sença, sendo-no-mundo, é como é. Tal
constituição de ser não surge do fato de, além dos entes dotados do caráter
da pre-sença, ainda se darem e depararem com ela outros entes, os
simplesmente dados. Esses outros entes só podem deparar-se ‘com’ a pre-
17
ST, p. 101.
sença na medida em que conseguem mostrar-se, por si mesmos, dentro de um
mundo.18
Ser-no-mundo não é uma característica que o homem tenha ou possa deixar de ter.
Em Heidegger, mundo não é um fenômeno que possa ser acrescentado como posse ou
propriedade do homem. O existente humano é ser-em-um-mundo, fundamento de toda
significação. Ele é, essencialmente, ser-no-mundo, e assim existe, travando relações.
Entretanto, esta relação não se dá à maneira da relação sujeito-objeto (aqui entendida como
distanciamento ou um olhar de fora, imparcial). O homem relaciona-se, vincula-se, implicase, envolve-se e conhece à medida que os entes em geral vêm ao seu encontro “dentro” de
um mundo. O homem é a sua relação com as coisas, com as pessoas e consigo mesmo.
Cabe agora investigar como o existente humano estabeleceria tais relações no
mundo; como se daria sua ação no mundo e seu engajamento nele; quais seriam suas
implicações.
18
ST, p. 95-96.
CAPÍTULO III
A COTIDIANIDADE
Nos capítulos anteriores viu-se que Heidegger define o existente humano como o
“sujeito” de sua própria existência. O existente humano é sempre um “eu”, e não um
“outro”, ele é sua singularidade, ele é essencialmente Dasein. E ainda, o homem nunca é
dado sem um mundo, ele é ser-no-mundo. Portanto, o homem, é sempre ele mesmo em-ummundo. Assim, Heidegger determina, formalmente, a constituição fundamental do existente
humano. Mas, como ele afirma, essa determinação não esgota seu questionamento, ainda
ficam em aberto questões tais como: Qual o modo de ser do homem? Quais suas
possibilidades? Como se dá no mundo? Ser e Tempo irá desenvolver tais questões a partir
de seu quarto capítulo. Considerando a exigência de uma analítica do Dasein, Heidegger
parte da existência humana mais comum, ou seja, a existência cotidiana no mundo. Formula
então a questão : Quem é o homem em sua cotidianidade?
A evidência ôntica da afirmação de que sou eu que sempre sou a pre-sença
não deve fazer pensar que, com isso, já se delineou inequivocamente o
caminho de uma interpretação ontológica do que assim ‘é dado’. Permanece
questionável até mesmo se o conteúdo ôntico dessa afirmação reproduz, de
forma adequada, o teor fenomenal da pre-sença cotidiana. Pode ser que o
quem da pre-sença cotidiana não seja sempre justamente eu mesmo.19
19
ST, p. 165-166.
Tradicionalmente, quando se fala num “eu”, interpreta-se esse eu como um dado,
como algo que existiria em si. Tal qual a perspectiva de um eu que animaria um corpo
idêntico à consciência, alma ou psiquê que pairaria numa dimensão além do corpo, como
algo sobrejacente ou então recolhida dentro do corpo como algo subjacente. Tanto de uma
quanto de outra forma, o eu ficaria referido à parte subjetiva/imaterial e o corpo à parte
objetiva/material. Eu e corpo assim compreendidos, tornar-se-iam entidades, categorias ou
instâncias, o eu sendo da ordem do psicológico e o corpo da ordem do fisiológico. Mas e
o indivíduo? Nesta visão dicotômica a pessoa resulta do somatório desses elementos. De
um lado sua parte espiritual e de outra sua parte corpórea.
Entretanto vimos que, em Heidegger, por ser Dasein, o homem é sempre ele mesmo,
não à maneira de um ente simplesmente dado, assim como não poderia ser considerado
como uma categoria, seja física, anímica ou espiritual. O homem em sua existência não se
restringe a nenhuma dessas categorias. Ele é antes um vir-a-ser, é processo, é uma
unidade existencial, ou seja, é pessoa.
Atos são sempre algo não psíquico. Pertence à essência da pessoa apenas
existir no exercício de atos intencionais, portanto, a pessoa em sua essência
não é objeto algum. Toda objetivação psíquica, por conseguinte toda
apreensão de um ato como algo psíquico, equivale a uma despersonalização.
Em todo caso uma pessoa só é à medida em que executa atos intencionais
ligados pela unidade de um sentido. Ser psíquico nada tem a ver, pois, com
ser pessoa.20
Em Heidegger o existente humano não pode ser reduzido a explicações de ordem
psicológica, tampouco, antropológica, sociológica ou teológica. Por ser Dasein ele é
20
ST, p. 84.
original, completa e concretamente sua ação no mundo. Ele é integralmente sua vivência
no mundo, e essa corresponde a atos intencionais. Logo, uma visão parcial ou mesmo
dicotômica, não corresponde, absolutamente, à proposta heideggeriana. Fragmentar o
existente humano seria perdê-lo de vista.
Heidegger afirma que o homem em sua existência é ele próprio, é sua singularidade.
A própria condução fenomenológica de Ser e Tempo revela isto. Ora, se o método
fenomenológico revela tal peculiaridade do existente humano, revela, por conseguinte,
que ele pode também não ser ele mesmo. Isto porque todo fenômeno possui como
prerrogativa o fato de ora se mostrar, ora se ocultar. Portanto se o homem se mostra como
singularidade, há a indicação fenomenal que ele pode também deixar de sê-lo. Sua
singularidade se oculta e mostra-se uma outra ordem de fenômeno, o impessoal.
Mas se existir corresponde a experenciar, vivenciar e agir intencionalmente,
significa que se o existente humano abre mão de fazê-lo, abdica, por conseguinte, de ter
existência própria, deixando de ser si mesmo. Assim, o método fenomenológico
empreendido na analítica existencial traçada em Ser e Tempo revela as possibilidades do
homem através do Dasein, seu modo de ser-no-mundo. A possibilidade de ser si mesmo e
deixar de sê-lo.
Constata-se portanto, que a perspectiva heideggeriana derruba toda noção que
identifica o eu com qualquer idéia de coisa, compartimento ou instância. Em Ser e Tempo,
Heidegger faz críticas às visões estanques acerca do homem. Empreende uma
desconstrução do modelo dicotômico da realidade humana, tal como entendido pela
filosofia tradicional, enquanto entidade física versus espiritual e aponta para uma
“Gestalt” do existente humano. Assim, Heidegger já indica, mesmo que de forma
preliminar, o “quem” do Dasein cotidiano: o Dasein tanto possibilita ao homem revelar-se
propriamente quanto impropriamente. O homem é, portanto, seu modo de ser-no-mundo,
o que inclui tanto o modo de ser si mesmo como o modo de não ser si mesmo. Esta seria a
tessitura existencial do existente humano.
O ‘eu’ só pode ser entendido no sentido de uma indicação formal não
constringente de algo que, em cada contexto ontológico-fenomenal, pode
talvez se revelar como o ‘seu contrário’. Nesse caso, o ‘não eu’ não diz, de
forma alguma, um ente em sua essência desprovido de ‘eu’, mas indica um
determinado modo de ser do próprio ‘eu’ como, por exemplo, a perda de si
mesmo.21
Em Heidegger o “eu” refere-se à possibilidade existencial do homem ser ele
mesmo, enquanto que o “não eu” refere-se à possibilidade existencial do homem não ser ele
mesmo. O “não eu”, portanto, não indica a privação de um “eu” mas, uma modalidade de
ser. Esta seria sua compreensão ontológico-existencial. No Dasein, o eu tanto revela-se
sendo si mesmo quanto não sendo si mesmo. A existência humana implica nestas duas
possibilidades. Tanto na responsabilidade quanto na alienação de si mesmo. No Dasein, o
“eu” é sempre ele mesmo. Um "eu" próprio ou um "eu" impróprio.
21
ST, p. 167.
3.1 Ser-com
Heidegger parte de uma análise do ser-no-mundo-cotidiano no sentido de investigar
o modo-de-ser mais comum do homem, ou seja, a maneira tal qual ele se dá na maior parte
das vezes.
Segundo o filósofo, o mundo mais próximo do homem no Dasein cotidiano, é o
“mundo circundante” ("Umwelt")22. No mundo circundante, o homem, descobre os
“instrumentos”
("Zeug")23
tornando-os
relevantes
em
sua
“manualidade”
("Zuhandenheit")24 , revelando-os em sua “instrumentalidade” e uso. Para Heidegger os
entes simplesmente dados, os utensílios e as coisas em geral nunca se dão isoladamente. As
coisas vêm sempre ao encontro do homem no “mundo circundante”. O homem manuseia os
objetos, desvelando seu uso e utilidade. Heidegger denomina “ocupação” ("Besorgen") 25 o
modo do existente humano lidar numa “circunvisão” ("Umsicht")26. Ocupação é um caráter
ontológico do homem, o que lhe possibilita o trato com as coisas no mundo circundante.
Mas “mundo” não é somente mundo de instrumentos que vêm ao encontro do
homem em seu uso. O homem também encontra o “outro” no mundo. Heidegger refere-se a
este fenômeno como “Mitdasein”, e a tradução brasileira compôs o termo “co-pre-sença”27.
O outro vem ao encontro dentro do mundo diferentemente das coisas. Daí a afirmativa
heideggeriana de que o mundo circundante não se refere somente ao mundo dos entes
simplesmente dados ou das coisas em geral.
22
Cf. ST, nota 14, p. 313.
Cf. ST, nota 15, p. 313.
24
Cf. ST, nota 17, p. 314.
25
Cf. ST, nota 11, p. 312.
26
Cf. ST, nota 18, p. 314.
27
ST, Cf. nota 32, p. 318
23
...’mundo’ é também pre-sença.28
O mundo humano é uma eclosão, o encontro eu-outro (“Mitdasein”). Nesta
confluência entre o eu e o outro, este vem sempre ao encontro em suas ocupações. Eu e
outro nunca se dão à parte. Numa perspectiva heideggeriana pode-se afirmar que o homem
é as relações que trava no mundo, tanto naquilo que faz e empreende em relação às coisas
em geral, quanto no trato com o outro. Mundo em Heidegger é sempre "mundo
compartilhado" ("Mitwelt")29, como uma teia, trama ou rede de relações. Assim, ser-emum-mundo
significa
“ser-com”
("Mitsein")30.
O
ser-com,
portanto,
constitui
ontologicamente o homem enquanto ser-no-mundo.
Os ‘outros’ não significa todo o resto dos demais além de mim, do qual o eu
se isolaria. Os outros, ao contrário, são aqueles dos quais, na maior parte
das vezes, ninguém se diferencia propriamente, entre os quais também se
está. Esse estar também com os outros não possui o caráter ontológico de
um ser simplesmente dado ‘em conjunto’ dentro de um mundo. O ‘com’ é
uma determinação da pre-sença. O ‘também’ significa a igualdade no ser
enquanto ser-no-mundo que se ocupa dentro de uma circunvisão. ‘Com’ e
‘também’ devem ser entendidos existencialmente e não categorialmente. Na
base desse ser-no-mundo determinado pelo com, o mundo é sempre mundo
compartilhado com os outros. O mundo da pre-sença é mundo
compartilhado. O ser-em é ser-com os outros. O ser-em-si intramundano
desses outros é co-pre-sença.31
28
ST, p. 169.
Cf. ST, nota 36, p. 320.
30
Cf. ST, nota 32, p. 318.
31
ST, p. 169-170.
29
“Eu” e“ outro” não são sujeitos isolados, assim como elementos à parte um do
outro. O eu e o outro encontram-se de uma forma peculiar, a qual Heidegger identifica
como um fenômeno de totalidade que, como vimos, é denominado pelo filósofo de
“Mitdasein”. Em Heidegger tal fenômeno está na raíz do mundo humano. O eu não
encontra agora o outro e/ou as coisas para depois deixar de encontrá-las. O eu nunca pode
ser visto isoladamente. Ele é as relações que trava no mundo. Ele é sempre “com”. Atração
e repulsão, aproximação e afastamento, contato e retraimento, simpatia e antipatia,
concordância e discordância, todas essas formas são modalidades de “ser-com”. Existir
significa esta variedade de encontros num viver comum. Viver significa participar de um
entrelaçamento, uma uma rede imbricada que origina o tecido de relações no mundo. Viver
é, fundamentalmente, "conviver" ("Miteinandersein")32.
Entretanto, por ser fundamentalmente Dasein é que o homem descobre o outro num
contexto, numa circunvisão dentro do mundo. O fenômeno o qual Heidegger descreve
como Mitdasein ocorre no trato diário, no mundo das ocupações. É neste mundo de
“ocupações”
“junto-às-coisas”
que
nós
nos
“preocupamos”
“com-as-pessoas”,
relacionando-nos com elas. Enredando-nos com as coisas, envolvemo-nos com as pessoas e
vice e versa. Por exemplo: uma pessoa tem bom gosto para decoração e o faz na casa da
amiga, outra está tendo dificuldades para lidar com o filho adolescente e consulta um
especialista sobre formas adequadas de tratar a situação, uma mãe zelosa
com os filhos tem tendência para a arte culinária e sempre prepara quitutes para os filhos
que a elogiam, uma pessoa tendo tido experiências desagradáveis num trabalho anterior se
coloca de forma defensiva em relação às pessoas com as quais lida em sua nova função. Em
32
Cf. ST, nota 38, p. 320.
Heidegger, portanto, o encontrar, o conhecer, o conviver ocorre num fazer, numa ação, é
concreto. As pessoas não se encontram abstratamente. As pessoas descobrem-se num
compartilhar sentimentos, numa arte que uma delas desenvolve e outra quer aprender, num
conhecimento profissional que uma produz e a outra necessita, mas também, num confronto
de valores, numa admoestação no trabalho, numa agressão sofrida nas ruas...
A pre-sença encontra, de saida, a si mesma naquilo que ela empreende, usa,
espera, resguarda  no que está imediatamente à mão no mundo
circundante, em sua ocupação....
...Na maior parte das vezes e antes de tudo, a pre-sença se entende a partir
de seu mundo, e a co-pre-sença dos outros vem ao encontro nas mais
diversas formas, a partir do que está à mão dentro do mundo. Mas mesmo
quando a pre-sença dos outros se torna, por assim dizer, temática, eles não
chegam ao encontro como pessoas simplesmente dadas. Nós as encontramos,
por exemplo, ‘junto ao trabalho’, o que significa, primordialmente, em seu
ser-no-mundo. Mesmo quando vemos o outro meramente ‘em volta de nós’
ele nunca é apreendido como coisa-homem simplesmente dada.33
Pelo fato do homem viver em-um-mundo ele nunca se descobre em “si mesmo” tal
qual uma entidade isolada, considerada separadamente. O homem não prescinde do mundo.
Nas palavras de Heidegger o existente humano é “mundano”, não no sentido convencional
que se dá ao termo (mundano como o aspecto material em oposição a um aspecto
espiritual) mas no sentido de que o homem está implicado com o mundo em que vive. Ele é
o seu mundo. É em sua ação-no-mundo e em suas relações que o homem se revela,
revelando o fenômeno existencial da co-pre-sença. O encontro do eu e do outro se dá
concretamente, naquilo que lida, faz, sente e pensa. O eu nunca encontra a si mesmo ou ao
33
ST, p. 170-171.
outro como um “ser em si” abstrato, mas na consistência de uma ação e na determinação do
fazer “aqui e agora”.
A proposição fenomenológica: pre-sença é, essencialmente, ser-com possui
um sentido ontológico-existencial. Ela não quer constatar onticamente que
eu, de fato, não estou sozinho como algo simplesmente dado ou que ocorrem
outros de minha espécie. Se a frase: o ser-no-mundo da pre-sença se
constitui essencialmente pelo ser-com quizesse dizer isto, então o ser-com
não seria uma determinação existencial que conviria à pre-sença segundo
seu modo próprio de ser. Seria uma propriedade que, devido à ocorrência
dos
outros,
introduzir-se-ia
a
cada
vez.
O
ser-com
determina
existencialmente a pre-sença mesmo quando um outro não é, de fato, dado
ou percebido. Mesmo o estar-só da pre-sença é ser-com no mundo. Somente
num ser-com e para um ser-com é que o outro pode faltar. O estar-só é um
modo deficiente de ser-com e sua possibilidade é a prova disso. ... A própria
pre-sença só é na medida em que possui a estrutura essencial do ser-com,
enquanto co-pre-sença que vem ao encontro de outros.34
Vimos que o eu constitui-se no Dasein. E como na analítica do Dasein este revela-se
como ser-com, então o homem é essencialmente ser-com. O ser-com não diz respeito à
concepção de um “eu” que se encontra no mundo rodeado de outros “eus” semelhantes, que
por vezes se encontram trocando idéias e realizando coisas juntos e por outras se afastam
ficando sós. O homem constitui-se como ser-com. Esta é a estrutura que fundamenta sua
existência e o possibilita viver. O ser-com não é algo que o homem possa ter quando
relaciona-se com os outros, e estando só deixe de ter. Assim como uma característica, um
predicado ou uma qualidade latente que emergiria em determinados momentos da vida
34
ST, p. 172.
cotidiana. Por isto que Heidegger afirma que mesmo não estando em contato com alguém o
existente humano é ser-com. A fenomenologia do Dasein empreendida por Heidegger
mostra que o sentido de pertinência determina o Dasein e constitui a existência humana.
Vimos que Heidegger denomina “ocupação” o modo como o eu lida com as coisas
em geral, os instrumentos ou os “materiais intramundanos” no “mundo circundante”. Assim
ele é “ser-junto” aos entes em geral. Mas, e no que se refere ao outro, às pessoas? O outro
não é um ente como os demais entes. Assim, no modo de encontro com o outro o eu se
“preocupa” ("Fürsorge")35. Ele é essencialmente “ser-com” e, junto às coisas, o eu se
“ocupa”; já com as pessoas e consigo mesmo, o eu se “preocupa”. Ambos, modos
derivados do que Heidegger denomina de “cuidado” (“Sorge”)36, expresso pelo radical
latino “cura”. "Cuidado" é a estrutura ontológica do eu no âmbito do Dasein, o que lhe
possibilita ser-em-um-mundo ocupando-se de coisas e preocupando-se com as pessoas.
Portanto o Dasein revela-se como “cuidado”.
Heidegger aborda tal conceito à luz de uma fábula latina de Higino e desenvolve
uma fenomenologia do Dasein como “cura/cuidado”. Abordaremos mais à frente a fábula
na sua íntegra fazendo as devidas considerações. Por ora cabe situar alguns de seus
aspectos: na fábula a mítica “cura” aparece como formadora do homem, ao qual Júpter
infunde o espírito e a Terra dá o corpo. Nesta fica evidente o termo “cura” em seu sentido
de atenção, de mostrar interesse, e como atitude de desvelo e cuidado. "Cura" aparece como
a origem do existente humano.
35
36
Cf. ST, nota 11, p. 312.
Cf. ST, nota 12, p.313.
Entretanto, em Heidegger, a preocupação não se restringe a um cuidar, pressupõe
um descuidar, e isto vale para todos os modos da preocupação que pautam os
relacionamentos humanos. O encontrar-se acompanhado acarreta a solidão, o entusiasmo
faz supor a apatia, a conciliação envolve a disputa, a aproximação encerra o
distanciamento. Precisamente pelo fato do eu poder desfrutar da companhia de alguém é
que pode também sentir sua falta. Constata-se que em Heideger o ser-com implica numa
espécie de tensão, algo semelhante a uma diferença de potencial entre dois pontos
correlatos. São como dois lados de uma mesma moeda, da natureza de uma conexão lógica.
Assim, todo modo da preocupação acarreta inexoravelmente seu déficit. Isto não quer dizer
que a pessoa fique destituída do modo da preocupação. Assim como Heidegger demonstra
através de sua fenomenologia que o eu é sempre ele mesmo, e que também, tem a
possibilidade de deixar de ser ele mesmo, e este fenômeno se refere aos modos de ser-nomundo, igualmente refere-se à preocupação. A preocupação não é uma mera característica,
não é algo que o homem “tenha” em certas situações e em outras “deixe de ter” , mas sim o
que o alicerça como condição ontológica. O existente humano “é” preocupação, ele “é” sercom, ele “é” “cura”. Os relacionamentos cotidianos são sempre pautados por diferentes
possibilidades da preocupação.
... a pre-sença (pode) se manter nos modos deficientes de preocupação. O ser
por um outro, contra um outro, sem os outros, o passar ao lado um do outro,
o não sentir-se tocado pelos outros são modos possíveis da preocupação. E
precisamente estes modos, que mencionamos por último, de deficiência e
indiferença caracterizam a convivência cotidiana e mediana de um com o
outro.37
Em sua analítica do Dasein, Heidegger afirma que a convivência cotidiana é pautada
pelos modos deficientes da preocupação. No viver rotineiro revela-se sobremaneira o modo
de privação da preocupação. Assim, eu e outro passam desapercebidos um para o outro.
Desacautelam-se nos modos do descuido, do descaso, da indiferença, da competição, da
desconsideração, da dominação etc.. Todos modos deficientes da preocupação:
(A) preocupação (pode assumir) a ocupação que o outro deve realizar. Este
é deslocado de sua posição, retraindo-se para posteriormente assumir a
ocupação como algo disponível e já pronto ou então se dispensar totalmente
dela. Nessa preocupação, o outro pode tornar-se dependente e dominado
mesmo que esse domínio seja silencioso e permaneça encoberto pelo
dominado.38
Aqui Heidegger refere-se especificamente ao modo da preocupação como
dominação, na qual um sujeito toma o lugar do outro. O sujeito não percebe o outro em sua
existência e em seu fazer. Assim substitui e transpõe o outro em sua ocupação.
Heidegger afirma que na cotidianidade os modos deficientes da preocupação são os
que mais se evidenciam. Entretanto, revela-se também a possibilidade da preocupação em
37
38
ST, p. 173.
ST, p. 173-174.
seu sentido mais próprio na convivência. Mostra-se nos modos da "consideração" ("RückSicht")39, da "tolerância" ("Nach-Sicht")40 e da "transparência" ("Durch-Sicht")41.
... subsiste ainda a possibilidade de uma preocupação que não tanto substitui
o outro, mas que se lhe ‘antepõe’ em sua possibilidade existenciária de ser,
não para lhe retirar o ‘cuidado’ e sim para devolvê-lo como tal. Essa
preocupação que, em sua essência, diz respeito à cura propriamente dita, ou
seja, à existência do outro e não a uma coisa de que se ocupa, ajuda o outro
a tornar-se, em sua cura, transparente a si mesmo e livre para ela.42
Mesmo que no dia-a-dia o que se revele mais comumente sejam os modos
deficientes da preocupação, mantém-se em vigor a possibilidade da preocupação que não
“tira” nem “toma o lugar do outro” mas que lhe “facilita” em suas possibilidades enquanto
existente humano. Neste modo da preocupação o outro não passa desapercebido, mas é
captado na totalidade de sua maneira de ser. Assim o existente humano em sua preocupação
revela o outro em sua existência e, principalmente, em seu sentido mais original que é
“cuidado”.
A convivência cotidiana mantém-se entre os dois extremos da preocupação
positiva  a substituição dominadora e a anteposição liberadora.43
39
Cf. ST, nota 18, p. 314.
Cf. ST, nota 18, p. 314.
41
Cf. ST, nota 18, p.314.
42
ST, p. 174.
43
ST, p. 174.
40
Heidegger afirma portanto que a preocupação tem seus modos. E a convivência
cotidiana é guiada por diferentes possibilidades da preocupação: aquela que não reconhece
o outro em suas possibilidades existenciárias e aquela que afirma e observa tal condição.
Verificou-se que em Heidegger o homem é sempre ele mesmo, ele é sua
singularidade. Entretanto, isto não quer dizer que o homem viva encerrado em si mesmo.
Ao contrário, o homem tem um sentido de abertura para o mundo, para o outro e para si
mesmo possibilitado pelo Dasein. Viver significa estar inserido neste campo de relações
onde as implicações são mútuas e múltiplas. Viver é conviver. O homem nunca é
isoladamente, alheio ao mundo circundante, aos entes de uma forma geral ou aos outros.
Ele é sempre ele mesmo no contexto de seu mundo, e assim, o outro está sempre incluído.
O existente humano encontra-se sempre numa relação de alteridade. O ser-com possibilita
tal condição.
Enquanto ser-com, a pre-sença “é“, essencialmente, em função dos outros.
Isto deve ser entendido, em sua essência, como uma proposição existencial.
Mesmo quando cada pre-sença de fato não se volta para os outros, quando
acredita não precisar deles ou quando os dispensa, ela ainda é no modo de
ser-com.44
Em Heidegger o ser-com é tão radical que a própria compreeensão do eu já inclui a
compreensão do outro. Experenciando a si mesmo em seu sentido mais próprio o eu
compreende o outro. Tal conhecimento não diz respeito a uma mera exploração ou
44
ST, p. 175.
observação analítico/racional do outro. Refere-se antes a uma empatia, uma espécie de
tendência natural para compreender o outro em sua existência captando-lhe o sentido.
...na compreensão do ser da pre-sença já subsiste uma compreensão dos
outros porque seu ser é ser-com. Essa compreensão não é, assim como toda
compreensão, um conhecimento nascido de um reconhecimento. É um modo
de ser originalmente existencial que só então torna possível reconhecimento
e conhecimento. Este conhecer-se está fundado no ser-com que compreende
originalmente. ...
Do ponto de vista ontológico, o ser para os outros é diferente do ser das
coisas simplesmente dadas. O “outro” ente possui, ele mesmo, o modo de ser
da pre-sença. No ser-com e para os outros, subsiste, portanto, uma relação
ontológica entre pre-senças. Essa relação pode-se dizer, já
é constitutiva de cada pre-sença própria, que possui por si mesma uma
compreensão do ser e, assim, relaciona-se com a pre-sença. A relação
ontológica com os outros torna-se, pois, projeção do ser-próprio para si
mesmo “num outro”. O outro é um duplo do próprio.45
Verifica-se que em Heidegger a convivência toma um sentido bem original. A
maneira como o eu se encontra com os outros é diferente da maneira de encontrar as coisas.
Os entes em geral não têm o caráter de existentes (no sentido que Heidegger dá ao termo
existente, como condição ontológica do homem que é Dasein). No encontro com o outro
subsiste uma relação pautada pela
troca de sentidos, ou seja, ontológica. Em outras
palavras, na medida em que a pessoa sente a si mesmo e expressa emoções, pensa e enuncia
45
ST, p. 176-177.
valores, age e obtém resultados, também aproxima-se e adentra o outro em seus
sentimentos, qualidades morais, reflexões, ideologias e realizações.
É neste contexto relacional que vivem a pessoa. Presente a si mesmo no mundo,
envolvendo-se como singularidade, ou num relacionar-se anônimo, dissolvendo-se num
mundo no qual não há "rostos", mas a imposição massificante do impessoal.
3.2 O Impessoal
Viu-se que em Heidegger o Dasein é “ser-com” e, como tal, a existência humana é,
fundamentalmente, uma co-existência e um con-viver. A perspectiva heideggeriana é a de
que o homem vive sempre em um “mundo compartilhado” nas “ocupações” do “mundo
circundante”. A existência humana é, portanto, complexa e urdida por uma rede de
interações que se dão no dia a dia. Esta é, segundo o filósofo, a determinação existencial do
Dasein.
O homem nunca se dá de forma isolada. Heidegger demonstra o caráter
“colaborativo” e “cooperativo” da existência humana. Mesmo que seja um “colaborar
contra”. A pessoa está sempre necessitando de auxílio, dando auxílio ou ainda, privando-se
de dá-lo ou recebê-lo. O fato é que a auto suficiência não é própria à existência humana; há
nesta uma interdependência. Mesmo na existência cotidiana há um sentido “participativo”
que fundamenta a existência do homem na qual ele se acha “ocupado” e “preocupado”,
prevalecendo uma determinada modalidade de ser. O filósofo denomina o modo de ser que
vigora na vida diária de "Man", que encontramos na edição brasileira traduzido por
"impessoal".46
Nas ocupações do que se faz com, contra ou a favor dos outros, sempre se
cuida de uma diferença com os outros, seja apenas para nivelar as
diferenças, seja para a pre-sença, estando aquém dos outros, esforçar-se por
chegar até eles, seja ainda para a pre-sença, na precedência sobre os outros,
querer subjugá-los. Embora sem o perceber, a convivência é inquietada pelo
cuidado em estabelecer esse intervalo. Em termos existenciais ela possui o
caráter de ‘espaçamento’. Quanto mais este modo de ser não causar
surpresa para a própria pre-sença cotidiana, mais persistente e originária
será sua ação e influência.47
O existente humano emociona-se, reflete, age e encontra-se a todo tempo engajado
em tarefas no seu dia a dia. Neste engajamento num mundo de sentir, pensar e fazer, está
incluído o outro numa convivência. É, precisamente, nas relações de convivência que
surgem as diferenças  os diversos modos de se impressionar, a diversidade de pontos de
vista, a dissensão na maneira de atuar. Heidegger aponta que o homem encontra-se,
constantemente, tratando dessas desigualdades - seja aceitando e dando consentimento, seja
se opondo e criando obstáculos. Ou ainda, cuidando afim de igualar estas diferenças;
dominando o outro, para que este não o atinja; ou empenhando-se afim de alcançar alguém.
Este seria o “ritmo”, o “intervalo”  “Abstaendigkeit” (a tradução brasileira utiliza o termo
“espaçamento”)48, que se estabelece na existência cotidiana. Todavia, o filósofo afirma que
46
Cf. ST, nota 33, p. 316.
ST, p. 178.
48
Cf. ST, nota 41, p. 320.
47
o homem pode tornar-se alheio a essa realidade e sua influência se tornar cada vez mais
enraizada.
Neste espaçamento constitutivo do ser-com reside, porém, o fato de a presença, enquanto convivência cotidiana, estar sob a tutela dos outros. Não é
ela própria que é, os outros lhe tomam o ser. O arbítrio dos outros dispõe
sobre as possibilidades cotidianas de ser da pre-sença. Mas os outros não
são determinados. Ao contrário, qualquer outro pode representá-los. O
decisivo é apenas o domínio dos outros que, sem surpresa, é assumido sem
que a pre-sença, enquanto ser-com, disso se dê conta.49
O existente humano ocupa-se, preocupa-se, trata de diferenças em relação ao outro
e, assim, inexerovelmente, acaba por ficar sob seu encargo. Em Heidegger a convivência
cotidiana é pautada por uma espécie de regulação na qual um vigia o outro; um fica sempre
nas mãos do outro. Assim, a pessoa nunca é ela mesma, encontra-se sempre em função de
um outro que não é ele mesmo. Mas esse “outro” não é um alguém específico. Encontrar-se
sob a tutela do outro seria antes uma maneira de ser, uma atitude vigente da vida cotidiana.
Heidegger afirma, pois, a condição ontológica vigente na cotidianidade.
O conviver dissolve inteiramente a própria pre-sença no modo de ser dos
‘outros’ e isto de tal maneira que os outros desaparecem ainda mais em sua
possibilidade de diferença e expressão.
...Assim nos divertimos e entretemos como impessoalmente se faz; lemos,
vemos e julgamos sobre literatura e a arte como impessoalmente se vê e
julga; também nos retiramos das ‘grandes multidões’ como impessoalmente
49
ST, p. 179.
se retira; achamos ‘revoltante’ o que impessoalmente se considera
revoltante.50
Em sua existência cotidiana a pessoa é lançada num mundo que é de todos e ao
mesmo tempo de ninguém, sendo impregnada por um modo de ser comum. O filósofo
demonstra que a pessoa é inscrita num modo público e habitual que tudo regula. E por ser
habitualmente estabelecido, ela pode nem se dar conta desta sua realidade circundante e,
comportar-se como todos se comportam, e viver uma vida comum como todos vivem. É
próprio da existência cotidiana a resistência a qualquer nuance ou diferença. Esta
prontamente coloca no mesmo nível qualquer exceção. Como se o viver cotidiano se
estabelecesse como um campo de forças que exerce o movimento de puxar para o seu
centro toda e qualquer prerrogativa, afim de dominar e submetê-la às suas regras. Qualquer
diferença do que seja estabelecido como termo médio da vida cotidiana sofre uma espécie
de nivelamento ou regulação. Há na convivência um acordo imperceptível ao existente
humano que é lançado na cotidianidade, que rege os parâmetros e o modo da convivência.
A convivência tem sua medida própria que é invisível e silenciosa.
Em seu ser o impessoal coloca em jogo a medianidade. Por isso ele se atém
de fato à medianidade do que é conveniente, do que se admite como valor ou
desvalor, do que concede ou nega sucesso. Essa medianidade, designando
previamente o que se pode e deve ousar, vigia e controla toda e qualquer
exceção que venha impor-se. Toda primazia é silenciosamente esmagada.
Tudo que é originário se vê da noite para o dia, nivelado como algo de há
muito conhecido. O que se conquista com muita luta, torna-se banal. Todo
segredo perde sua força. O cuidado da medianidade desentranha também
50
ST, p. 179.
uma tendência essencial da pre-sença, que chamaremos de nivelamento de
todas as possibilidades de ser.51
Em Heidegger a interpretação do impessoal não tem um caráter de arbítrio. O fato
do filósofo referir-se ao impessoal como "decadente" ("Verfallen")52, não diz respeito a
uma crítica moralizante da vida diária. A perspectiva de Heidegger é ontológica, e seu
método fenomenológico revela o Dasein como “impessoal”, mostrando a condição
existencial do homem.
No dia a dia, ficamos com o que é mais fácil e conveniente cotidianamente. Há um
esvaziamento, um tornar banal toda diferença. A vida cotidiana não suporta aquilo que não
possa ser imputado sua regra comum. Haverá forçosamente um movimento no sentido de
dissolver toda e qualquer distinção. Pode-se afirmar que não há lugar para a liberdade e
para a criatividade na vida cotidiana. Escolha, intimidade ou inventividade, não são modos
de ser que se apliquem habitualmente, são antes maneiras que expressam uma ousadia de
ser frente à tensão da vida cotidiana.
Espaçamento, medianidade, nivelamento constituem, como modo de ser do
impessoal, o que conhecemos como ‘public-idade’. Esta rege, já desde
sempre, toda e qualquer interpretação da pre-sença e do mundo, tendo razão
em tudo. E isso não por ter construido um relacionamento especial e
originário com o ser das ‘coisas’, nem por dispor de uma transparência
expressa e apropriada da pre-sença, mas por não penetrar ‘nas coisas’, visto
ser insensível e contra todas as diferenças de nível e autenticidade. A publicidade obscurece tudo, tomando o que assim se encobre por conhecido e
acessível a todos.53
51
ST, p. 179-180.
Cf. ST, nota 57, p. 324.
53
ST, p. 180.
52
Heidegger quer afirmar que o mundo cotidiano é o termo mais imediato do existente
humano. O modo de ser ao qual tem-se acesso mais direto. A cotidianidade é a modalidade
de ser aberta e pública. Heidegger denomina este fenômeno de Oeffentlichkeit” e a
tradução brasileira usa o termo “public-idade”54, ressaltando o caráter notório e manifesto a
todos da existência humana.
Entretanto, tal abertura não denota uma acessibilidade ou transparência, fruto de
uma abrangência, alcance ou intimidade com as coisas, mas uma compreensão superficial,
que não ousa nem aprofunda.
O impessoal encontra-se em toda a parte, mas no modo de sempre ter
escapulido quando a pre-sença exige uma decisão. Porque prescreve todo
julgamento e decisão, o impessoal retira a responsabilidade de cada
presença. O impessoal pode, por assim dizer, permitir-se que se apóie
impessoalmente nele. Pode assumir tudo com a maior facilidade e responder
por tudo, já que não há ninguém que precise responsabilizar-se por alguma
coisa. O impessoal sempre ‘foi’ quem...e, no entanto, pode-se dizer que não
foi ‘ninguém’. Na cotidianidade da pre-sença, a maioria das coisas é feita
por alguém de quem se deve dizer que não é ninguém.55
Segundo Heidegger, o impessoal está sempre se eximindo e ultrapassando toda e
qualquer exigência de decisão e responsabilidade. O impessoal libera um modo de ser no
qual o existente humano tem a possibilidade de nunca assumir coisa alguma. Assim, pode
passar por tudo, saber de tudo mas, na verdade, nada apreender. O impessoal promove na
vida cotidiana a marca da facilitação e da superficialidade.
54
55
Cf. ST, nota 42, p. 321.
ST, p. 180.
...o impessoal, assim como a pre-sença, não é algo simplesmente dado.
Quanto mais visivelmente gesticula o impessoal, mais é difícil percebê-lo e
apreendê-lo e menos ele se torna um nada. Para uma visão ônticoontológica, destituida de preconceitos, o impessoal se revela como o ‘sujeito
mais real’ da cotidianidade. O fato de não ser acessível, como uma pedra
simplesmente dada, não decide em nada sobre o seu modo de ser.56
O impessoal é um fenômeno (no sentido da fenomenologia, como o que se revela, o
que se mostra em si mesmo), da cotidianidade. Por isso o filósofo afirma que o impessoal
não é um ente simplesmente dado, mas um fenômeno da cotidianidade que tem seu
movimento próprio, sua maneira peculiar de se mostrar e seu modo de ser. E quanto mais o
existente humano se envolve no movimento próprio do impessoal, mais é difícil captá-lo
como figura, porque ele está em tudo e permeia a tudo na vida cotidiana.
Quanto mais o homem vive impessoalmente menos condições tem de discernir
sobre seu movimento. Tal torna-se a realidade do existente humano, na qual o impessoal
torna seu domínio inconteste.
O impessoal não é o gênero da pre-sença cotidiana, como também não pode
ser encontrado neste ente como propriedade permanente ...
... O impessoal é um existencial e, enquanto fenômeno originário, pertence à
constituição positiva da pre-sença. A pre-sença possui em si própria diversas
possibilidades de concretizar-se. As imposições e expressões de seu domínio
podem variar historicamente.57
56
57
ST, p. 181.
ST, p. 182.
Assim como Heidegger afirma que o impessoal não tem o caráter de um ente
simplesmente dado, afirma também que tampouco seja o gênero do cotidiano. A natureza
do impessoal é existencial e, como tal, está na raiz do “ser-com” e da convivência
cotidiana, e ocorre como movimento de dentro para fora, mostrando-se. O impessoal não
tem um caráter permanente como uma pedra, por exemplo.
... o impessoal prelineia a primeira interpretação do mundo e do ser-nomundo ...
... De início, a pre-sença de fato está no mundo comum, descoberto pela
medianidade. De início, ‘eu’ não ‘sou’ no sentido do propriamente si mesmo
e sim os outros nos moldes do impessoal. É a partir deste e como este que, de
início, eu ‘sou dado’ a mim mesmo. De início, a pre-sença é impessoal e, na
maior parte das vezes, assim permanece. Quando a pre-sença descobre o
mundo e o aproxima de si, quando ela abre para si mesma seu próprio ser,
este descobrimento de ‘mundo’ e esta abertura da pre-sença se cumprem e
realizam
como
uma
eliminação
das
obstruções,
encobrimentos,
obscurecimentos, como um romper das deturpações em que a pre-sença se
tranca contra si mesma.58
O existente humano introjeta o movimento e a maneira de ser que vigora na
cotidianidade. Assim, o eu não é ele mesmo, e o outro, por sua vez, também carece de
autenticidade. No impessoal o existente humano não assume responsabilidade, é sempre
algo alheio a ele mesmo que o sustenta. Pode-se dizer, portanto, que a vida cotidiana é mais
pautada por desencontros e relações inconsistentes do que por encontros e relações
autênticas e consistentes.
58
ST, p. 182-183.
O impessoal é consistente como fenômeno da cotidianidade. Mas absolutamente
inconsistente em sua própria impessoalidade.
Segundo Heidegger, o impessoal é o fenômeno mais imediato na existência do
Dasein. A princípio o existente humano se dá no mundo de uma forma mediana. O eu
existe e encontra o outro, e ainda um mundo já pronto, com regras e valores estabelecidos.
Por viver em uma realidade previamente estabelecida, o existente humano, a princípio,
como diz Heidegger, nunca é ele mesmo, mas o que o outro imputa. E pode permanecer no
mundo de forma que não distingua tal condição, mas tem a possibilidade de se dar conta de
tal situação. E então, como diz o filósofo, romper com as obstruções, para uma
compreensão mais autêntica de si mesmo.
CAPÍTULO IV
COMPREENSÃO E ABERTURA
Em capítulos precedentes viu-se a interpretação heideggeriana sobre a constituição
fundamental do homem como ser-no-mundo. O ser-em revelou-se como uma experiência
humana fundamental, razão de toda sua vivência. O existente humano é como tal em função
de ser-em-um-mundo.
O ser-em é “abertura” ("Erschlossenheit")59. Abertura que implica no conceito que
Heidegger denomina de “poder-ser”. O Dasein, fundamento da vivência do homem, é
“abertura” e “possibilidade”. A possibilidade da “propriedade” ou da “impropriedade”.
Heidegger determina a constituição da “abertura” que é ser-no-mundo nos modos
aos quais denomina de “existenciais” ("Existencial")60. A saber: a “disposição”, a
“compreensão”, a “interpretação” e a “linguagem”. Na abertura do Dasein ocorre uma
dupla possibilidade de movimentação: a maneira própria e a maneira imprópria ou
impessoal. Esta última constitui o modo cotidiano, que Ser e Tempo revela como
“curiosidade” ("Neugier")61, “falatório” ("Das Geredete")62 e “ambiguidade”.
Foge ao escopo desse trabalho analisar cada um desses modos em particular.
Entretanto a "compreensão" e a "disposição" são modos existenciais que aqui nos
interessam. A disposição é o modo que irá conduzir ao "sentimento fundamental" da
"angústia" possibilitando a interpretação de uma ética em Ser e Tempo.
59
Cf. ST, nota 23, p. 315.
Cf. ST, nota 5, p. 311.
61
Cf. ST, nota 56, p. 324.
62
Cf. ST, nota 54, p. 323.
60
Tomemos agora a modalidade existencial que Heidegger denomina de
“compreensão”. A “compreensão existencial” implica na abertura para a significância do
ser-no-mundo. Mas a compreensão não implica numa mera atribuição de significados pelo
Dasein a si mesmo e as coisas existentes no mundo. Assim:
(A compreensão) não lança, por assim dizer, um “significado” sobre a nudez
de algo simplesmente dado, nem cola sobre ele um valor. O que acontece é
que, o que vem ao encontro dentro do mundo como tal, a compreensão já
abriu uma conjuntura que a interpretação expõe.63
A compreensão como “abertura” desobstrui o mundo circundante, revelando os
entes em geral e revelando o homem em si mesmo e para si mesmo. A compreensão como
estrutura ontológica está na raíz do poder-ser e da “abertura”.
... na compreensão subsiste, existencialmente, o modo de ser da pre-sença
enquanto poder-ser. A pre-sença não é algo simplesmente dado que ainda
possui de quebra a possibilidade de poder alguma coisa. Primariamente, ela
é possibilidade de ser. Toda pre-sença é o que ela pode ser e o modo em que
é sua possibilidade. A possibilidade essencial da pre-sença diz respeito aos
modos caracterizados de ocupação com o ‘mundo’, de preocupação com os
outros e, nisso tudo, à possibilidade de ser para si mesma, em função de si
mesma. A possibilidade de ser, que a pre-sença existencialmente sempre é,
distingue-se tanto da possibilidade lógica e vazia como da contingência de
algo simplesmente dado em que isso ou aquilo pode ‘se passar’.
...a pre-sença é a possibilidade de ser que está entregue à sua
responsabilidade, é a possibilidade que lhe foi inteiramente lançada. A presença é a possibilidade de ser livre para o poder-ser mais próprio. A
63
ST, p. 198.
possibilidade de ser é, para ele mesma, transparente em diversos graus e
modos possíveis.64
O conceito de “possibilidade” em Ser e Tempo não é uma eventualidade que ocorra
ao existente humano, tampouco uma categoria lógica. Mas o fundamento da existência
humana que é Dasein. Portanto Dasein é essencialmente “possibilidade”. Sua raíz é poderser. Possibilidade aqui não diz respeito a viabilizar as coisas, empreender ou adminsitrar. É
fato que o homem o faz, mas só o faz porque existencialmente ele é essencialmente sua
própria possibilidade, seu poder-ser. O existente humano terá portanto, seu modo singular
de possibilidade, como afirma Heidegger, seu modo para si mesmo e em função de si
mesmo, "entregue a sua própria responsabilidade" ("Ueberantwortet")65.
Compreender é o ser desse poder- ser , que nunca está ausente no sentido de
algo que simplesmente ainda não foi dado mas que, na qualidade essencial
de nunca ser simplesmente dado, “é” junto com o ser da pre-sença, nos
sentido de existência. A pre-sença é de tal maneira que ela sempre
compreendeu ou não compreendeu ser dessa ou daquela maneira. Como uma
tal compreensão, ela ‘sabe’ a ‘quantas’ ela mesma anda, isto é, a quantas
anda o seu poder ser. Esse saber não nasce primeiro de uma compreensão
imanente de si mesma, mas pertence ao ser do pre da pre-sença que, em sua
essência, é compreensão. E somente porque a pre-sença é na compreensão
de seu pre é que ela pode se
perder e desconhecer. E na medida em que a compreensão está na
disposição e, nessa condição, está lançada existencialmente, a pre-sença já
sempre se perdeu e desconheceu. Em seu poder-ser, portanto, a pre-sença já
se entregou à possibilidade de se reencontrar em suas possibilidades.66
64
ST, p. 199.
Cf. ST, nota 47, p. 322.
66
ST, p. 200.
65
A compreensão não é um evento ao acaso ou mesmo uma classificação dada ao
homem. A “compreensão” constitui o Dasein. E desse modo, possibilita ao homem ter
sempre o sentido de como anda se processando seu ser-no-mundo; perdendo-se e
desconhecendo-se, ou reencontrando-se e reconhecendo-se. Essa compreensão de si mesmo
não se dá por meio de uma análise introspectiva, mas é, segundo Heidegger, sua própria
“disposição” existencial.
Neste sentido pode-se afirmar que o homem é duplamente responsável. Responsável
por ter a possibilidade de escolher ser ou não si mesmo. E responsável porque a medida que
escolhe ser si mesmo, toma nas próprias mãos sua condição de existente, compromissado
com suas ações no mundo.
Por que a compreensão, em todas as dimensões essenciais do que nela se
pode abrir, sempre conduz às possibilidades? Porque, em si mesma, a
compreensão possui a estrutura existencial que chamamos ‘projeto’. A
compreensão projeta o ser da pre-sença para sua destinação de maneira tão
originária como para a significância, entendida como mundanidade de seu
mundo.
O projetar-se nada tem a ver com um possível relacionamento frente a um
plano previamente concebido, segundo o qual a pre-sença instalaria o seu
ser. Ao contrário, como pre-sença, ela já sempre se projetou e só é na
medida em que se projeta. Na medida em que é, a pre-sença já se
compreendeu e sempre se compreenderá a partir de possibilidades.67
“Projeto” ("Entwurf")68 aqui não diz respeito a um plano racionalmente arquitetado,
a um intento. O “projeto” é a forma que o existente humano se dá na disposição da
compreensão. É como projeto que ele se lança para a possibilidade de ser si mesmo ou
67
68
ST, p. 200-201.
Cf. ST, nota 49, p. 322.
deixar de sê-lo. Assim o existente humano se articula e destina, e isto implica em
responsabilidade.
Em seu caráter existencial de projeto, a compreensão constitui o que
chamamos de ‘visão’ da pre-sença. A visão que, junto com a abertura do
pre, se dá existencialmente é de modo igualmente originário, a pre-sença,
nos modos básicos de seu ser, já caracterizados, a saber, a circunvisão da
ocupação, a consideração da preocupação, a visão do ser como tal em
função do qual a pre-sença é sempre como ela é. Chamamos de
‘transparência’ (Durchsichtigkeit) a visão que se refere primeira e
totalmente à existência. Escolhemos esse termo para designar o
‘conhecimento de si’, em entendido, de modo a indicar que não se trata de
um exame perceptivo e nem tampouco da inspeção de si mesmo como um
ponto, mas de uma captação compreensiva de toda a abertura do ser-nomundo através dos momentos essenciais de sua constituição. O ente que
existe tem a visão de ‘si’, somente na medida em que ele se faz, de modo
igualmente originário, transparente em seu ser junto ao mundo, em seu sercom os outros, momentos constitutivos de sua existência.69
Como “projeto” o existente humano se lança no mundo e, nesse lançar-se, abre seu
ser-no-mundo. Em suas escolhas, relacionamentos, na realização de tarefas, ou nos termos
que Heidegger utiliza, na "circunvisão da ocupação" e na "consideração da preocupação", o
homem se dá conta de si mesmo e de seu próprio movimento no mundo. Ele não
compreende a si mesmo por um esforço de uma investigação de seu “mundo interior”. Ele
se compreende tão somente por suas interações no mundo, com as coisas e com as pessoas.
Agindo no mundo o existente humano percebe a si mesmo e se dá a perceber,
responsavelmente.
69
ST, p. 202.
CAPÍTULO V
ANGÚSTIA E DISPOSIÇÃO
A analítica do Dasein revela o homem como "ser-lançado" ("Geworfenheit").70 E
como tal, ele é abertura de suas próprias possibilidades, compreendendo-se a partir delas e
projetando-se para elas.
Entretanto de início, e na maior parte das vezes, essa abertura se dá num modo de
ser e numa compreensão imprópria, na qual o existente humano não é propriamente ele
mesmo. No impessoal “foge” de si mesmo se dissolvendo num modo de ser comum.
Assim, em sua cotidianidade, junto-ao-mundo e com-os-outros, encontra-se numa
decadência, na qual está em jogo seu poder-ser mais próprio.
Heidegger irá afirmar que o homem só poderia fugir daquilo que ele é
essencialmente. Assim no movimento de ser impróprio é que a análise fenomenológica
alcança o existente humano em sua propriedade. Se revela assim a "angústia" como seu
modo de ser fundamental. O existente humano foge de sua possibilidade mais própria, ou
seja, a angústia. Mas é pelo fato do existente humano só se colocar diante de si mesmo na
"disposição" da angústia, que ele tem a possibilidade de fugir numa alienação.
Do ponto de vista existenciário, sem dúvida, a propriedade do ser-próprio se
acha, na de-cadência, obstruido e fechado. Esse fechamento, no entanto, é
apenas privação de uma abertura que se revela fenomenalmente no fato da
fuga da pre-sença ser fuga de si mesma. É justamente daquilo de que foge
70
Cf. ST, nota 46, p. 312.
que a pre-sença corre ‘atrás’. Somente na medida em que, através de sua
abertura constitutiva, a pre-sença se coloca essencialmente diante de si
mesma é que ela pode fugir de si mesma. Decerto, tanto no desviar-se como
no aviar-se, próprios da de-cadência, não se apreende aquilo de que se foge
e nem se faz sua experiência. No entanto no desvio de si mesma, descortinase o ‘pre’ da pre-sença. Em razão de seu caráter de abertura, o desvio
ôntico-existeciário propicia fenomenalmente a possibilidade de se apreender
aquilo de que foge como tal, de forma ontológico-existencial. Em meio a esse
movimento ôntico de ‘para-fora de’, inerente ao desvio, pode-se
compreender e conceituar aquilo de que se foge, ‘aviando-se’ para uma
interpretação fenomenológica.71
Na vida cotidiana o homem encontra-se envolvido em suas tarefas diárias e num
modo de fazer que é comum. A rotina o absorve de tal forma que o mesmo passa a
compreender-se como todos. Esse senso comum ampara o existente humano dando-lhe um
sentido de “tranqüila estabilidade” como “estar em casa”.
Ora, se o existente humano deixa de ser ele mesmo dissolvendo-se num fazer usual,
massificado e impróprio, encontra-se implícito neste fato a possibilidade de um modo
próprio e singular. Assim Heidegger descobre no desvelar da existência comum e
“imprópria” a possibilidade de uma “propriedade” do homem.
No impessoal a propriedade torna-se obstruída e encoberta pela cotidianidade
impessoal. A analítica existencial desvela o fenômeno da impropriedade como fuga do
existente humano de si mesmo num movimentar-se diário e impessoal. O ritmo é tal que o
homem não se dá conta dele mesmo, nem da sua própria abertura essencial que é ser-nomundo, mas só compreende aquilo que se estabelece rotineiramente. Mas por que fugiria o
homem de sua propriedade? O que há de ameaçador nesta?
71
ST, p. 248.
A fenomenologia de Heidegger mostra a abertura essencial que é Dasein e ser-nomundo, como possibilidade lançada, e como tal, arremessado o existente humano ao
“nada”. Esta condição existencial torna o homem vulnerável, sentindo-se abandonado e
sem abrigo. Daí sua fuga para a rotina do impessoal. O existente humano encontra abrigo
na vida diária, no mundo do fazer coisas que todos fazem. O impessoal corta o desamparo e
a angústia existencial, pois remete o homem a uma vida comum. Assim, o homem como
ser-jogado-no-mundo encontra-se na realidade cotidiana, desviado de sua condição
essencial.
O homem foge para os entes intramundanos, a fim de que possa, na ocupação
perdida no impessoal, encontrar uma tranqüila familiaridade. A fuga decadente para
“sentir-se em casa” do mundo público esquiva-se do “não sentir-se em casa” da angústia,
isto é da estranheza inerente ao homem enquanto ser-no-mundo lançado. A existência
cotidiana se esforça em desfazer a imagem do mundo como mundo inóspito criando um
mundo de aquietada segurança. Entretanto a tranqüilidade e a segurança do viver cotidiano
encontram-se sempre ameaçadas pela angústia. Assim o “não sentir-se em casa” deve ser
compreendido, existencial e ontologicamente, como o fenômeno mais originário.
O que a analítica de Ser e Tempo demonstra traduz-se como um movimento, como
um jogo que é peculiar à existência humana. O Dasein desvela-se essencialmente como
abertura e angústia, fazendo com que o homem fuja desta numa vida cotidiana, mas ao
mesmo tempo, tendendo sempre a resgatar sua abertura constitutiva. Heidegger revela um
rítimo no qual o existente humano foge para se encontrar, e assim fugir novamente. Na fuga
de si mesmo é que o homem irá descobrir daquilo que foge - da angústia existencial.
Aqui vale a pena ressaltar que a angústia da qual fala Heidegger não se refere aos
estados descritos pela psicopatologia como sentimentos de ansiedade ou agonia. A angústia
existencial é de uma outra ordem. Trata-se de uma condição ontológica que funda e
estabelece o homem como existente. Tal condição ontológica é o que possibilita, em nível
ôntico, sentimentos tais como o temor e a ansiedade. Vejamos:
Para se compreender o que se quer dizer com fuga de-cadente de si mesma,
inerente à pre-sença, é preciso lembrar que a constituição fundamental da
pre-sença é ser-no-mundo. Aquilo com que a angústia se angustia é ser-nomundo como tal. Como se distingue fenomenalmente o com quê a angústia se
angustia daquilo que o temor teme? O com quê da angústia não é de modo
algum, um ente intramundano. Por isso, com ele não se pode estabelecer
nenhuma conjuntura essencial. A ameaça não possui o caráter de um
determinado dano que diria respeito ao ameaçado na perspectiva
determinada de um específico poder-ser de fato.O com o quê da angústia é
inteiramente indeterminado. Essa indeterminação não apenas deixa
indefinido de fato que ente intramundano ‘ameaça’ como também diz que o
ente intramundano é ‘irrelevante’. Nada do que é simplesmente dado ou que
se acha à mão no interior do mundo serve para a angústia com ele
angustiar-se.
Aquilo com que a angústia se angustia é o ‘nada’ que não se revela ‘em
parte alguma’. Fenomenalmente, a impertinência do nada e do em parte
alguma intramundanos significa que a angústia se angustia com o mundo
como tal. A total insignificância que se anuncia no nada e no em parte
alguma não significa ausência de mundo. Significa que o ente intramundano
em si mesmo tem tão pouca importância que, em razão dessa insignificância
do intramundano, somente o mundo se impõe em sua mundanidade.72
A angústia, portanto, se distingui do "temor" ("Furcht")73. A angústia não se
angústia com situações ou coisas do mundo ou entes intramundanos. A angústia não é
provocada por qualquer coisa determinada ou concreta. O temor sim, ele é sempre diante de
72
73
ST, p. 249-250.
Cf. ST, nota 48, p.322.
um perigo iminente e próximo. Por exemplo: a violência nas ruas, o desemprego, o
desempenho numa prova, etc.. O sentimento de temor alicerça-se na angústia. A angústia
existencial não é de algo, mas uma condição essencial que constitui o homem como ser-nomundo. Na angústia todas as coisas do mundo aparecem bruscamente como desprovidas de
qualquer importância.
Vimos que mundo em Heidegger não é como uma “caixa” que contenha elementos.
Mundo é o mundo humano, e todas as relações que o homem estabelece com os entes
intramundanos. Ora, quando Heidegger afirma que o homem se angustia com o mundo
como tal, isto que dizer que ele se angustia com o próprio ser-no-mundo, com sua própria
condição existencial. O que o existente humano é essencialmente, é com o que se angustia.
Portanto se angustia diante de si mesmo. Por isso é que:
O angustiar-se abre, de maneira originária e direta, o mundo como mundo.
Não é primeiro a reflexão que abstrai do ente intramundano para então só
pensar o mundo e, em consequência, surgir a angústia nesse confronto. Ao
contrário, enquanto modo da disposição, é a angústia que pela primeira vez
abre o mundo como mundo. Isso, porém, não significa que, na angústia, se
conceba a mundanidade do mundo.
Na angústia o que se encontra à mão no mundo circundante, ou seja, o ente
intramundano em geral, se perde. O ‘mundo’ não é mais capaz de oferecer
alguma coisa nem sequer a co-pre-sença dos outros. A angústia retira, pois,
da pre-sença a possibilidade de, na de-cadência, compreender a si mesma a
partir do ‘mundo’ e na interpretação pública. Ela remete a pre-sença para
aquilo pelo que a angústia se angustia, para o seu próprio poder-ser-nomundo. A angústia singulariza a pre-sença em seu próprio ser-no-mundo
que, na compreensão, se projeta essencialmente para possibilidades. Naquilo
pelo que se angustia, a angústia abre a pre-sença como ser-possível e, na
verdade, como aquilo que, somente a partir de si mesmo, pode singularizarse numa singularidade.74
A angústia existencial não se dá por um confronto do homem com “as coisas do
mundo”: injustiças sociais, violência ou miséria. Ela emerge à medida que este se percebe
como “abertura”, “possibilidade” e “projeto”. A angústia é um sentimento radical ante o
vazio da existência, ao nada, ou ao fato que estamos entregues a pura possibilidade. Como
ser-lançado o homem encontra-se no impulso da vida, suscetível às suas possibilidades, que
pode vir a encarar de frente, numa atitude de propriedade, ou não, fugindo numa
impropriedade.
Na angústia nos encontramos frente ao mundo, prescindido dos objetos que nos
distraem. Nela se acha patente o sentimento da situação original no mundo. A situação
trágica de estarmos jogados no mundo. Assim o homem se dá conta dele mesmo. E na
mesma medida que se dá conta de si, emerge a angústia. A ética de Heidegger afirma-se no
fato do homem assumir tal condição e assim construir-se humana e responsavelmente.
Cabe aqui chamar a atenção para a “circularidade” da reflexão de Heidegger, na
qual os fenômenos são desvelados de tal forma que encontram-se sempre implicados,
formando sua hermenêutica. Há em Ser e Tempo uma perspectiva de “mútuoenglobamento”. Os fenômenos se revelam numa “auto-coerência global”, não podendo ser
fragmentados. Não há lugar para quaisquer entidades fixas. Assim a totalidade da existência
humana se desvela em sua inteireza, numa interdependência e inter-relacionamento de
todos os fenômenos, tal como no movimento da propriedade e impropriedade ou no dar-se
conta de si, na angústia e na fuga.
74
ST, p. 251-252.
Na pre-sença, a angústia revela o ser para o poder-ser mais próprio, ou seja,
o ser-livre para a liberdade de assumir e escolher a si mesmo. A angústia
arrasta a pre-sença para o ser-livre para...(propensio in...), para a
propriedade de seu ser enquanto possibilidade de ser aquilo que já sempre é.
A pre-sença como ser-no-mundo entrega-se, ao mesmo tempo, à
responsabilidade desse ser.
A angústia singulariza e abre a pre-sença como ‘solus ipse’. Esse
‘solipsismo’ existencial, porém, não dá lugar a uma coisa-sujeito isolada no
vazio inofensivo de uma ocorrência desprovida de mundo. Ao contrário,
confere à pre-sença justamente um sentido extremo em que ela é trazida
como mundo para o seu mundo e, assim, como ser-no-mundo para si
mesma.75
A angústia existencial reconduz o homem ao encontro consigo mesmo. Nesta ele
toma compleição de existente, resgatando a singularidade que lhe foi retirada pela
indiferenciação à qual fica submetido na vida cotidiana.
A angústia é uma situação afetiva fundamental, uma abertura específica do homem
e pela qual o mesmo se dá conta de sua situação no mundo. Na angústia o homem sente-se
diferente dos outros entes, o que o possibilita assumir responsavelmente sua própria
existência, seu próprio projeto. Não tendo coisa alguma como causa, a angústia teria sua
fonte no mundo como um todo e em estado puro. O mundo surge diante do existente
humano, aniquilando todas as coisas particulares que o rodeiam e, portanto, apontando para
o nada. Somente à base da originária revelação do nada pode o homem chegar a um sentido
da sua própria existência.
75
ST, p. 252.
Na angústia o homem supera-se, ficando para além dos entes em geral. Sai da
medianidade do viver cotidiano para apreender o sentido dos entes. Assim, abre-se de
maneira originária ao mundo.
A solidão existencial não é um mero isolamento ou um fechar-se em si mesmo. O
“solipsismo” é um sentimento de uma situação fundamental. Este põe o homem diante de si
mesmo, confrontando-o com seu poder-ser, onde descobre seu ser-livre-para realizar suas
possibilidades em uma existência "própria" ("Selbst")76 e autêntica. A angústia arranca,
assim, o existente humano de sua queda no mundo, de sua cotidiana familiaridade onde se
encontra absorvido pelos entes intramundanos para devolver-lhe a responsabilidade de si
mesmo.
76
Cf. ST, nota 34, p. 319.
CAPÍTULO VI
EXISTÊNCIA HUMANA, CUIDADO E RESPONSABILIDADE
O existente humano é de tal forma que sendo, está em jogo o seu próprio ser. Assim
ele se projeta para seu poder-ser mais próprio. Esse poder-ser é sua destinação. O homem
nunca é completamente. Ontologicamente ele é transitório, por encontrar-se sempre
deslocando-se e antecipando-se em direção às suas possibilidades. Ele sempre “precede-asi-mesmo” ("Sich-Vorweg-Sein des Daseins")77 e, como tal, o homem é essencialmente
“cura” ("Sorge")78. Assim o fundamento da existência humana que é Dasein, revela-se na
analítica como “cuidado/cura”.
...em seu ser, a pre-sença já sempre precedeu a si mesma. A pre-sença já está
sempre ‘além de si mesma’, não como atitude frente aos outros entes que ela
mesma não é, mas como ser para o poder-ser que ela mesma é. Designamos
a estrutura ontológica essencial do ‘estar em jogo’ como o preceder a si
mesma da pre-sença.
...Esse preceder a si mesma não significa uma espécie de tendência isolada
num ‘sujeito’ sem mundo, mas caracteriza o ser-no-mundo. Pertence a esse
ser-no-mundo, contudo, o fato de, entregando-se à responsabilidade de si
mesmo, já se ter lançado em um mundo.79
O homem como ser-no-mundo encontra-se atirado às suas possibilidades, ao seu
77
Cf. ST, nota 60, p. 324.
Cf. ST, nota 12, p. 313.
79
ST, p. 256.
78
poder-ser. Assim, em Heidegger, ele é transcendência e liberdade. Ele está sempre “fora de
si mesmo”, em relação direta com o mundo que ele mesmo produz e para o qual ele se
“projeta” incessantemente, tanto na maneira de ser autêntica como inautêntica. Daí
encontrarmos a idéia de que o homem é seu futuro, entregue si mesmo. Esta é portanto sua
destinação e também seu compromisso.
Entretanto Ser e Tempo irá mostrar que todos os fenômenos revelados pela analítica
existencial tais como autenticidade, inautenticidade e todas as suas implicações, estão
ontologicamente alicerçados e condensados no “cuidado” (Sorge). O cuidado é o fenômeno
que ilumina todo o complexo da existência humana. Ela é a raíz do ser-no-mundo e é ela
que possibilita toda expressão do homem. Em Heidegger o existir humano é "cuidado” ou
“cura". Vejamos:
Enquanto totalidade originária de sua estrutura, a cura se acha, do ponto de
vista existencial a priori, ‘antes’ de toda ‘atitude’ e ‘situação’ da pre-sença,
o que sempre significa dizer que ela se acha em toda atitude e situação de
fato. Em consequência, esse fenômeno não exprime, de modo algum, um
primado da atitude ‘prática’ frente a teórica. A determinação meramente
contemplativa de algo simplesmente dado não tem menos o caráter da cura
do que uma ‘ação política’ ou a satisfação do entretenimento. ‘Teoria’ e
‘prática’ são possibilidades ontológicas de um ente cujo ser deve
determinar-se como cura.80
O homem sustenta-se no cuidado. Enquanto existir ele é mantido e dominado pelo
cuidado e todos os seus comportamentos e atitudes são originalmente guiados por este.
80
ST, p. 258.
Heidegger cita uma fábula latina de Higino, reportada por Herder e incluída por
Goethe em seu Fausto. A toma como testemunho pré-ontológico de que “cura” é a
formadora do homem. Eis a fábula:
Certa vez, atravessando um rio, ‘cura’ viu um pedaço de terra argilosa:
cogitando, tomou um pedaço e começou a lhe dar forma. Enquanto refletia
sobre o que criara, interveio Júpiter. A cura pediu-lhe que desse espírito à
forma de argila, o que ele fez de bom grado. Como a cura quis então dar seu
nome ao que tinha dado forma, Júpiter a proibiu e exigiu que fosse dado o
seu nome. Enquanto ‘Cura’ e Júpiter disputavam sobre o nome, surgiu
também a terra (tellus) querendo dar o seu nome, uma vez que havia
fornecido um pedaço de seu corpo. Os disputantes tomaram Saturno como
árbitro. Saturno pronunciou a seguinte decisão, aparentemente equitativa:
Tú, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito e tú
terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como, porém, foi a
‘cura’ quem primeiro o formou, ele deve pertencer à ‘cura’ enquanto viver.
Como, no entanto, sobre o nome há disputa, ele deve se chamar ‘homo’, pois
foi feito de hummus (terra).81
Na fábula o existente humano recebe o nome “homo” não em consideração a sua
origem mas por remeter ao elemento de que consiste  “humus”. No entanto ele nunca é
abandonado por sua origem que é cura, mas ao contrário, por ela mantido e dominado
enquanto for e estiver no mundo. Assim o ser-no-mundo tem essencialmente a cunhagem
da cura. A determinação pré-ontológica da essência do homem expressa na fábula, nos
mostra o modo de ser em que predomina seu percursso histórico-temporal no mundo.
Portanto o ser para aquilo que em sua liberdade o homem pode ser para suas
possibilidades mais próprias, ou seja, para o projeto, é um desempenho da cura. Por isso ela
81
ST, p. 263-264.
determina o modo fundamental desse ente em sua dupla estrutura essencial de projeto
lançado, tanto na autenticidade, quanto na inautenticidade.
A cura é sempre ocupação e preocupação mesmo que de modo privativo. No
querer, só se apreende um ente já compreendido, isto é, um ente já projetado
em suas possibilidades como ente a ser tratado na ocupação ou a ser
cuidado em seu ser na preocupação. É por isso que ao querer sempre
pertence algo que se quer, algo que já se determinou a partir daquilo emfunção-de que se quer. Para a possibilidade ontológica do querer são
constitutivos: a abertura prévia do em-função-de que (o preceder a si
mesma), a abertura do que se pode ocupar (o mundo como algo em que já se
é) e o projeto de compreensão da pre-sença num poder-ser para a
possibilidade de um ente ‘que se quis’. No fenômeno do querer, transparece
a totalidade subjacente da cura.82
O homem está constitutivamente fora de si mesmo, em relação direta com o mundo
que ele mesmo produz e para o qual se projeta incessantemente. Entretanto, nesse projetarse no mundo o homem nunca está sozinho por ser “cura”. Em sua constituição ontológica, o
homem como cura é um “preceder-a-si-mesmo” por já sempre estar em um mundo como
“ser-junto” e “ser-com”. A cura está na raíz do ser-no-mundo do homem e como tal
caracteriza-se como sua “abertura” original.
A cura possibilita ao homem “cuidar-de”, “preocupar-se por e com”, tomando várias
formas como cuidar dos instrumentos de trabalho, preocupar-se com os filhos, etc.. Mas
principalmente a cura refere-se a uma responsabilidade do homem consigo mesmo, com o
outro e com a existência humana em geral.
82
ST, p. 259.
A cura coloca o homem frente a sua liberdade e responsabilidade, e determina a
relação com suas possibilidades na dupla modalidade de existir, ou seja, no modo da
autenticidade ou no modo da inautenticidade. No modo de ser inautêntico do existente
humano a cura desvela-se como temor e apreensão em relação à vida e, consequentemente,
a necessidade de tranquilização através da identificação com os entes intra mundanos. No
modo de ser autêntico a cura desvela-se como angústia. E o homem sente a angústia diante
da própria condição humana de ser-lançado-no-mundo. A partir do estado de angústia,
abre-se para o existente humano uma alternativa: fugir novamente de si mesmo para a
existência anônima e impessoal ou superar a própria angústia, manifestando seu poder de
transcendência sobre o mundo e sobre si mesmo, assumindo-se como projeto. Esta é a
dupla responsabilidade do existente humano, ser próprio ou impróprio. E além disso, na
escolha da propriedade assumir seu "vir-a-ser" e suas autênticas possibilidades de
construção de si mesmo e do mundo.
CONCLUSÃO
Heidegger não tematiza a questão da responsabilidade em Ser e Tempo. Mas lança
mão do termo para explicitar a condição fundamental do existente humano  entregue a simesmo (“Selbst”).83 Contudo, mesmo que o filósofo, não torne a responsabilidade um
conceito, verifica-se que esta é essencial na existência humana. À luz de Heidegger, podese afirmar que o existente humano é responsabilidade  a responsabilidade de ser
singular.84 Assim, já com a primeira definição do homem é possível sustentar nossa tese: a
de uma ética heideggeriana baseada na responsabilidade. O que fica ainda mais evidente
com as questões da impropriedade, propriedade, cura, angústia, finitude e resolução.
Não poderíamos demonstrar nossa hipótese sem antes explicitar os principais
conceitos da analítica existencial de Heidegger. É na analítica, em que o Dasein se desvela
como a essência da existência humana, que se pode haurir uma ética da responsabilidade.
Responsabilidade em Heidegger se funda na essência do homem que é Dasein. O que
procuramos fazer foi discutir os principais conceitos desvelados pela análise
fenomenológica conduzindo à reflexão sobre a questão da responsabilidade. Cabe agora
sintetizar o percursso da presente dissertação demonstrando e corroborando a tese de uma
ética da responsabilidade em Ser e Tempo, assim como suas implicações.
Viu-se que, ao longo de Ser e Tempo, o que impulsiona e sustenta o pensamento do
filósofo é a questão do “sentido do ser”. Para tanto Heidegger faz uma crítica da
83
84
Cf. ST, nota 6, v. 2, p. 258.
Cf. supra, nota 64.
história do pensamento no ocidente e diagnostica que o que se contruiu de Platão até Hegel
foi uma “onto-teologia”. A filosofia teria esquecido seu princípio fundante, que é
questionar o “ser”, para se ocupar de uma reflexão sobre os entes. Assim, Heidegger, vê a
urgência em empreender uma desconstrução do paradigma da filosofia tradicional para
formular uma ontologia de base fenomenológica.
A questão referida (do sentido de ser) não é, na verdade, uma questão
qualquer. Foi ela que deu fôlego às pesquisas de Platão e Aristóteles para
depois emudecer como questão temática de uma real investigação. O que
ambos conquistaram manteve-se, em muitas distorções e ’recauchutagens’
até a lógica de Hegel. E o que outrora, num supremo esforço de pensamento,
se arrancou aos fenômenos, encontra-se de há muito trivializado.85
Entretanto, como vimos, a “questão do ser” é lida de forma mais adequada num ente
específico: o existente humano. É ele que em sua existência articula o “é”  questionando,
explicitando, estabelecendo conceitos. Para tanto, a ontologia heideggeriana exige uma
explicitação prévia deste ente.
Heidegger
demonstra
a
constituição
fundamental
do
existente
humano,
denominando-o Dasein. Dasein significa “ser-aí”, ser-lançado-em-um-mundo. Este é o
diferencial, a peculiaridade própria do existente humano: viver num constante exercício de
si mesmo. Por isso é que o homem é essencialmente Dasein, ao contrário de outros entes
que “vivem simplesmente”.
Assim o homem está sempre entregue a “si mesmo”, ele se encontra lançado à
responsabilidade de ser. Ninguém nem nada é responsável pelo homem a não ser ele
85
ST, p. 27.
mesmo. Em Heidegger, existir é ser responsável. Quando o existente humano se dá conta
de sua situação no mundo e, sobretudo, de sua finitude, toma nas mãos a responsabilidade
de sua própria existência singular e concreta.
Assim, com a discussão prévia do fundamento da existência humana como Dasein
se estabelece, logo no início da analítica existencial, a questão da responsabilidade.
A essência deste ente (o existente humano) está em ter de ser.86
Cabe a cada existente humano a responsabilidade de existir e ser. A
responsabilidade de amar ou ressentir-se; fazer o conflito ou a concórdia; dedicar-se a uma
causa social, deixar de fazê-lo, ou ainda, opôr-se a esta. Enfim, fazer uma coisa, outra ou
ainda uma terceira, quarta..., ou mesmo, tentar conciliar as múltiplas possibilidades. Afinal,
o homem sempre se encontra num determinado contexto existencial, tendo que escolher e,
desse modo, ser. Assim, Heidegger define o homem como sendo sua própria possibilidade
de ser, seu poder-ser, livre e responsável.
Observa-se que o filósofo resgata o sentido grego do ethos  a morada do homem.
O ethos como lugar tem o significado de recesso habitual e permanente, abrigo protetor e
seguro. A metáfora da morada e do abrigo indica que, justamente, no ethos, o mundo se
torna habitável para o homem e aí sua existência se desenrola. Assim, o ethos, abre o
domínio da phisys  o reino da necessidade. É nele que se inscrevem os costumes, as
normas, os hábitos, os interditos, os valores, os estilos de vida, enfim, toda a ação
humana. Ao contrário do ethos do animal, que lhe é dado, e que o encerra no espaço
86
ST, p. 77.
fechado do ecossistema, o ethos humano é um espaço aberto, construído e incessantemente
reconstruído por ele. Nunca a moradia do homem é uma obra acabada. Assim ele se
encontra numa condição de devir  imaginando, dispondo, escolhendo, preparando,
realizando, transformando.... O homem ilumina o mundo, fazendo-o surgir como um
mundo propriamente humano, com todas as suas implicações, contra ou a favor dele
mesmo, dos demais entes, ou da vida.
O existente humano não é um ser acabado, em seu existir ele nunca é
definitivamente. Está sempre diante de uma série infinita de possibilidades sobre as quais se
projeta. Este constante projetar-se do existente humano estabelece um estado de
permanente tensão entre aquilo que ele está sendo e aquilo que virá a ser, promovendo a
inquietação. O homem está sempre por realizar-se, numa espécie de pendência de si, numa
constante inconclusão. A ânsia do querer ser e o fazer constante (que é “cuidado”), constitui
seu modo de ser-no-mundo que caracteriza seu devir. O homem jamais encontra uma
totalidade, porque há neste uma não totalidade ineliminável que só encontra seu fim com o
próprio findar da existência.
Vimos que ao desvelar o Dasein como poder-ser, a analítica de Heidegger se depara
com o fenômeno mais comum da existência do homem, denominado como o modo da
impropriedade. Nesta modalidade de existir, o homem tenta abrir mão de sua condição
fundamental de ter de escolher. Foge de sua condição própria, de seu lugar, seu ethos;
esquiva-se da angústia existencial e da responsabilidade que é ser “si mesmo” para um não
ser si-mesmo disperso e cotidiano. Assim, tenta escapar do que lhe é a possibilidade mais
radicalmente certa, que é responsabilidade diante de sua própria finitude.
Na existência cotidiana vê-se a morte como um acidente que ocorre com os outros.
É algo indeterminado que chegará algum dia, mas que de pronto não exerce efeito
ameaçador. Assim, o homem, em sua existência imprópria, trata de tranqüilizar-se ante seu
fim que é encarado como estando em algum lugar distante. No impessoal, “morre-se” e,
assim, a morte fica nivelada a uma ocorrência, que embora atinja o existente humano, não
pertence a ninguém. O impessoal encobre o ser-para-a-morte como a possibilidade mais
própria do homem, escondendo o fato de que a mesma é possível a cada momento. O
impessoal não quer a coragem para suportar a angústia nem tampouco a responsabilidade
diante da finitude. Mas, se em Heidegger, existência e finitude encerram um ciclo coeso,
fugir da responsabilidade diante da própria finitude significa abrir mão da vida.
Em Heidegger, a mortalidade é tão fatual quanto a realidade fundamental que é a
vida. Assim, o filósofo afirma a morte como a possibilidade mais própria da existência
humana, como condição fundamental da vida. Assumir a faticidade da morte como inclusa
no projeto da existência é um grande desafio, e tomá-la sobre si é, sobretudo, compreender,
responsavelmente, a trama da existência.
A morte é uma possibilidade ontológica que a própria pre-sença sempre tem
de assumir. Com a morte, a própria pre-sença é impendente em seu poderser mais próprio. Nessa possibilidade, o que está em jogo para a pre-sença é
pura e simplesmente seu ser-no-mundo. Sua morte é a possibilidade de poder
não mais estar pre-sente. Se, enquanto essa possibilidade, a pre-sença é para
si mesma, impendente, é porque depende plenamente de seu poder-ser mais
próprio. Sendo impendente para si, nela se desfazem todas as remissões para
outra pre-sença. Essa possibilidade mais própria e irremissível é, ao mesmo
tempo, a extrema. Enquanto poder-ser a pre-sença não é capaz de superar a
possibilidade da morte. A morte é, em última instância, a possibilidade da
impossibilidade absoluta da pre-sença. Desse modo, a morte desentranha-se
como a possibilidade mais própria, irremissível e insuperável. Como tal, ela
é um impendente privilegiado. Essa possibilidade existencial funda-se no
fato da pre-sença estar, essencialmente, aberta para si mesma e isso no
modo de preceder-a-si-mesma.87
Os entes em geral simplesmente deixam de viver. Já o ente humano morre, porque
tem a possibilidade de se dar conta da finitude, de sua “situação limite”. Entretanto esse
limite é um convite a ultrapassar. Por viver na tensão e na angústia de seu limite inexorável
é que o homem pode superar-se e ousar.
A vivência da angústia abre o ser-para-o-fim do existente humano, levando-o a
compreender o sentido mais próprio de seu ser; uma experiência valiosa na qual ele toma
consciência da própria existência. O confronto com a finitude fornece uma experiência
positiva à própria vida; assim, a existência humana passa a ter vitalidade, objetividade. O
estar entregue à responsabilidade da finitude, conduz o homem a assumir sua
responsabilidade diante de seu ser-no-mundo.
A finitude reinvindica o existente humano à sua singularidade. Há um chamamento
à própria responsabilidade de ser. Esse chamamento desvela-se como um querer-terconsciência. A “consciência” (“Gewissen”)88 convoca a si-mesma, saindo de uma alienação
e “débito” (“Schuld”)89 diante de seu poder-ser. E o faz com a recuperação de uma escolha
e de uma “re-solução” ou “de-cisão” (Entschlossenheit).90
O querer-ter-consciência é, sobretudo, a pressuposição existenciária mais
originária da possibilidade do ser e estar em débito de fato. Compreendendo
87
ST, v. 2, p. 32.
Cf. ST, v. 2, nota 1, p. 257.
89
Cf. ST, v. 2, nota 9, p. 259.
90
Cf. ST, v. 2, nota 8, p. 259.
88
o clamor, a pre-sença deixa que o si-mesmo mais próprio aja dentro dela a
partir da possibilidade de ser escolhida. Apenas assim ela (pre-sença) pode
ser responsável.91
O chamamento da consciência, que é o querer-ter-consciência, Heidegger denomina
também como a “voz da consciência”. O clamor (Rufen)92 da consciência é um modo de
discurso silencioso que articula uma compreensibilidade própria. Assim o filósofo descreve
o apelo da consciência para si-mesma:
O próprio-impessoal é aclamado para o si mesmo. Esse, contudo, não é o simesmo que se pode tornar objeto de avaliação, nem o si-mesmo que se
empenha com curiosidade e sem descanso no exame de sua vida interior e
nem tampouco o si-mesmo de uma cupidez analítica de olhar os estados da
alma e suas profundezas . A aclamação do si-mesmo no próprio-impessoal
não o leva para um interior a fim de se trancar para o mundo exterior. O
clamor passa por cima de tudo isso e desfaz tudo isso para aclamar
unicamente o si-mesmo que, por sua vez, não é senão no modo de ser-nomundo...
O clamor não exprime nada, não fornece nenhuma informação sobre
acontecimentos do mundo, nada tem para contar. Muito menos pretende
iniciar, no próprio aclamado, uma conversa consigo mesmo. Nada é
declamado para o si-mesmo aclamado, mas este é conclamado em si
mesmo, ou seja, para assumir o seu poder-ser mais próprio. Correspondendo
à sua tendência, o clamor não coloca o si-mesmo aclamado numa
negociação consigo mesmo mas, enquanto conclamação de seu poder-ser
mais próprio, o clamor é uma pro-clamação (para ‘adiante’) da pre-sença
em suas possibilidade mais próprias.93
91
ST, v. 2, p. 76.
Cf. ST, v. 2, nota 7, p. 258.
93
ST, v. 2, p. 58-59.
92
A resposta ao chamamento da consciência é o reconhecimento do existente humano
de uma culpa por estar em débito com as próprias potencialidades, ou seja, por não
assumir-se como projeto. Com a decisão, o existente humano deixa a irresponsabilidade do
viver impessoal, passando à existência própria, tomando a responsabilidade de sua própria
sorte e destino.
Da decisão brota a convivência em seu sentido mais genuíno. Em Heidegger a
herança que o homem assume na autenticidade não é simplesmente sua existência particular
mas, de alguma forma, a herança de toda a humanidade. O processo de recuperar a simesmo inclui a renovação das potencialidades de ser que diz respeito à coletividade. A
situação do existente humano é um coexistir e a existência lhe confere a possibilidade de
unir-se responsavelmente ao destino da comunidade humana, ao unir-se responsavelmente
ao seu próprio destino e à sua morada.
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