NAVEGAR É PRECISO, VIVER NÃO É PRECISO(972) E EDUCAR

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NAVEGAR É PRECISO, VIVER NÃO É PRECISO(972) E EDUCAR
PODE SER INTERESSANTE
BAGGIO, André(973)
Universidade de Passo Fundo
RESUMO
O reencantamento da educação acontece porque não temos mais ideologias ou
utopias exclusivistas, não temos mais centros, não temos mais alunos iguais, não temos
mais professores iguais, não temos mais certezas; não temos mais como objetivo a
formação da consciência crítica para assim, quem sabe, pensarmos em pessoas críticas,
por inteiro... livrarmo-nos da mesmice... e o enigma é mais embaixo, acima, ao lado, à
frente, atrás...
O romantismo acabou: as mulheres também peidam!
Oswald de Andrade
Este texto é um convite aos que se interessam em pensar a educação na
complexidade de novos conceitos oriundos das ciências e da semiótica. A complexidade
nos desafia a superar o idealismo do paradigma homo sapiens, das dicotomias e das prédeterminações metodológica e comportamental.
Até o início deste século, vocábulos como mutações, aleatoriedade,
indeterminação, ruído, acaso, azar, jogo, acontecimento, acidente, desordem,
mutabilidade, dissipações, relatividade, universo curvo, interferência e construção
subjetiva, afetividade, inconsciente, incerteza, fractal, criatividade não faziam parte
significativa da linguagem acadêmica, lógica e racional, exceto como elementos a serem
evitados e eliminados na qualidade de anticientíficos. Segundo Morin, a razão que
ignora os seres, a subjetividade, a afetividade, a vida, é irracional. É preciso levar em
conta o mito, o afeto, o amor, a mágoa, que devem ser considerados racionalmente.(974)
Mas, talvez, ainda hoje, muitos pesquisadores e educadores tenham dificuldade de
realizar suas atividades, e viver considerando que a natureza joga dados, que a natureza
da natureza e da antropologia comporta todos esses conceitos e que ela é assim, não só
com eles, mas também por causa deles. Que são significativos e deixaram de ser um
estorvo na investigação científica. E que nesta perspectiva é possível entendermos a
ligação entre o físico-químico com o biológico e com o antropológico, sem a
necessidade da introdução de forças sobrenaturais e de compreendermos o enigma do
homem.(975)
Com relação à educação, ela precisa ser pensada e realizada, na inter-relação
com esses novos aspectos considerados pelas ciências, pela filosofia e pela arte, para
superar a visão maniqueísta, dual, das hegemonias, e chegar a uma praxis Aquém da
Identidade e da Oposição,(976) pois A unidade do universo é a unidade complexa. Este
universo não exclui o singular pelo geral, não exclui o geral pelo singular: pelo contrário,
um inclui o outro: o universo produz as suas leis gerais a partir da sua própria
singularidade. É um universo enriquecido: a matéria não é a essência última deste
universo, é um aspecto, que adquire consciência com a organização. É um universo
reanimado, em movimento, em ação, em transformação, em devir. Não existe nada no
universo que não seja temporal, não existe nenhum elemento, desde a partícula até o
componente mais estável dum sistema estável, que não possa ser concebido como
acontecimento, isto é, algo que advém, se transforma e desaparece. O próprio cosmo é
um acontecimento que prossegue em cascatas de acontecimentos onde surgiram as
partículas, se formaram os átomos, onde se incendeiam os sóis, morrem as estrelas, nasce
a vida...O universo da antiga física não podia suportar o tempo, ou, melhor, este não
podia trazer-lhe nada além da degradação. O novo universo é consubstancial com o
tempo rico e complexo: não é nem o tempo simples da degradação, nem o tempo simples
do progresso, nem o tempo simples da seqüência, nem o tempo simples do ciclo
perpétuo. É de modo simultaneamente complementar, concorrente e antagônico, todos
estes tempos diversos, embora permanecendo o mesmo.(977)
Nessa relação com a natureza é possível perceber a criatividade como sua
marca, sua assinatura,(978) é possível perceber que tudo que não traz a marca da
desordem elimina a existência, o ser, a criação, a vida, a liberdade...Que toda a
eliminação do ser, da existência, do si, da criação, é demência racionalizadora...Que a
ordem sozinha é a subjugação absoluta....Devemos temer, não a desordem, mas o medo
da desordem, não o sujeito, mas a subjetividade débil que julga ser a objetividade... As
teorias mais ricas e audaciosas, mais altamente portadoras de complexidade inclinaramse para o seu contrário porque tinham recaído na órbita gravitacional do paradigma de
simplificação.(979)
E é esse tipo de relação, desafiadora e sedutora, com o mundo (do físico ao
social) que nos permite entender quando Prigogine fala em reencantamento da natureza,
e isso é possível porque ela reintroduz a diversidade, e conseqüentemente o
inesperado.(980) Reencantamento, agora, não mais no sentido de perfeição, mas sim na
relação com aquilo que se modifica, que se faz diferente , com o inacabado e inacabável,
com o que nos atrai... coisas interessantes. Se queremos pensar em paixão de aprender,
de ensinar, de educar, de pesquisar etc., precisamos compreender que a paixão é a grande
artesã do conhecimento(981) e acontece num emaranhado de encantamento e sedução,
num mundo introdutor de incerteza e imprevisão, onde os envolvidos perdem a
arrogância do sujeito que mantém sua atividade e o mundo que o cerca sob seu domínio,
pois, como afirma Baudrillard, não existe na sedução um sujeito dono de uma estratégia,
e esta, mesmo quando se desdobra na plena consciência de seus meios, ainda está
submetida a uma regra do jogo que a ultrapassa.(982)
Esses novos paradigmas (paradigmas não são mais modelos fixos, mas
indicativos de abrangência ampla) nos trazem também questionamentos sobre aspectos
metodológicos. O rigor metodológico, previamente definido, quando também se prédefinem possibilidades e limites, entrou em crise, porque a fragmentação da realidade
(coerente com um conceito de realidade) como estabelecimento da verdade é
simplificação e reduz as possibilidades de pesquisa. Para que uma pesquisa seja
criatividade é preciso extrapolar o estabelecido, entender que o humano possui um
cérebro altamente aberto ao aleatório, com possibilidades de organizar de maneira
diferente os milhares de milhões de sinapses,(983) pois qualquer princípio assumido, que
não suporte modificações, será sempre inibidor, exceto o colocado por Feyerabend: tudo
vale.(984) A heurística têm mostrado que o pensamento criador geralmente funciona
segundo regras diferenciadas da prova formal e que, para esse mesmo pensamento
criador, um abuso de rigor esteriliza mais a descoberta, certamente, do que qualquer falta
de método.(985)
Esse tudo vale, ou o indeterminado, não facilita o trabalho do pesquisador, ou a
prática educativa. Contrariamente ao que pode parecer, as exigências são maiores,
exigem-se qualificação teórica e disposição para perceber o diferente, imaginar os
possíveis (um dos traços da inteligência humana(986), sobre o que poderia ou poderá
acontecer e simultaneamente tomar decisões com base em fenômenos indetermináveis na
sua totalidade. Requer-se ainda maior responsabilidade de quem decide, pois todas as
decisões são igualmente incertas. Isso não é calamidade, é riqueza e complexidade,
desafio, oportunidade para novas elaborações, relações, construções etc., ou, como diz
Morin: paradoxos, incertezas, imprecisão, no limite contradições, surgem da descrição e
da explicação complexas. A complexidade traz uma nova ignorância.(987)
Com as ciências e com a antropologia do século XX abrem-se novas questões
pedagógicas. Estamos educando humanos diferentes, porque nossa concepção mudou e
porque a espécie homem transforma-se ininterruptamente, ainda que tenha tempos
redundantes, que continue a existir enquanto mesma espécie e ainda sendo diferente.
A educação, a partir dessas questões, que comportam mutações incertas,
aleatórias, onde não há transmissão do conhecimento automatizada, mas rompimento,
interação, adaptação, transformação e criatividade constantes, aproxima-se não só das
ciências, mas de questões estéticas e semióticas.
Semiótica, porque nos encontramos diante de carência de linguagem
apropriada. Exemplo disso é falarmos, ainda, de paradigma (quando historicamente é
conceito fechado), da natureza do homem (tradicionalmente como sinônimo de essência,
de imutável), de ontologia (do ser que é), só que agora atribuindo-lhes outro significado.
Este é um desafio, criar e utilizar nova linguagem, mas também reconceituar
terminologia existente e incorporar, na educação, conceitos de outras áreas, para, quem
sabe, mudarmos nossa tradição dicotômica de que para superar a idéia de natureza, de
psiquiatria, de pedagogia etc., criamos o anti, o negativo, o contrário, assim como:
antinatureza, antipsiquiatria, antipedagogia.
O desafio é atuar na complexidade cruzando para além, com e aquém da lógica
da oposição, diferentes das dualidades, também distinto das univocidades. Até mesmo
em relação à natureza somos desafiados a pensar em caosmo e pluriverso(988), quanto
mais em relação à realidade biológica e antropológica ou social. É perceber que os
ordenamentos e o caótico, o equilíbrio e o desequilíbrio, a simetria e a quebra da
simetria, a coordenação e a descoordenação, o controle e o descontrole etc. coexistem na
natureza e sobretudo nos seres vivos e nos processos-culturais.(989) Com esses
parâmetros poderemos evitar a pureza cristalina da lógica do Tractatus(990), que levou o
próprio Wittegenstein a reconhecer que com ela caímos numa superfície escorregadia
onde falta o atrito, onde as condições são, em certo sentido, ideais, mas onde, por esta
mesma razão, não podemos mais caminhar; necessitamos então do atrito. Retornemos ao
solo áspero!(991)
Questão estética, porque abre a possibilidade de um reencantamento(992)
pedagógico. Depois de a educação passar por considerações do romantismo
enciclopedista, como aquela que iria levar o conhecimento a todos, camponeses,
burgueses, marginais..., e com isso, racionalmente, pela aquisição de conhecimento iria
resolver os problemas sociais, redimir a sociedade; depois de pensar em poder não
interferir na natureza humana das crianças; depois de criticar a alienação, depois de se
comprometer ideologicamente, de pensar que a revolução aconteceria pela educação
como ato político e de anunciar a educação transformadora, veio a crítica dos
reprodutivistas que evidenciava tais impossibilidades, mostrando que, além de a
educação não redimir a sociedade, ela, ainda, reproduzia o sistema de discriminação e de
privilégios, reforçando a estrutura social etc. No dizer de Paulo Freire: a educação já foi
tida como mágica, podia tudo, e como negativa, nada podia. Chegamos à humildade: ela
não é a chave de transformação da sociedade.(993) Depois de tudo isto, caberia
parafrasear Oswald de Andrade trazendo-o para o pedagógico: as professoras também
peidam(994), os professores mijam fora do vaso, professores (as) (para aqueles que
exigem a linguagem inclusiva) cagam fora do penico, também exploram as mulheres,
filhos, empregados, também desejam viver da renda do capital, votam na burguesia,
tornam-se burguesia... e a burguesia fede.(995) Todos fedemos, aquele encantamento
acabou. Tudo já estava preestabelecido. Os métodos, nossos servos, agora nos
dominavam. O reencantamento vai acontecer com a introdução de nova concepção da
natureza, corporeidade e das relações sociais mutantes, indetermináveis, cheirosas,
fedosas e que sempre trazem a possibilidade do acaso, da surpresa e do inesperado.
Nota-se que mesmo quando os eternos espiritualistas e idealistas falam de corporeidade,
como discurso novo e interessante, falam de corporeidade sem merda, sem odor, sem
entropia, sem morte e, conseqüentemente, sem vida e a neguentropia torna-se
irrelevante, algo que não fede e não cheira. Se já não há mais lugar para a Terra
enquanto centro, também não há mais esse lugar privilegiado para o Sol. Se o professor
deixou de ser o centro, o aluno também, também a ideologia, o conhecimento, a política,
a cultura, o social etc. Vivemos no pluriverso, o universo não só perdeu a sua ordem
soberana, mas também já não tem centro. Einstein retirara-lhe todo o centro de
referência privilegiado. Hubble retira-lhe todo o centro astral ou galáctico...O universo é,
portanto,
simultaneamente
policêntrico,
acentrado,
descentrado,
disseminado,
diasporizante...(996)
Semelhante se pode falar do homo-complexus, que deixa de ser só um animal
racional e da educação, que é forçada a acontecer neste novo contexto, tornar-se
interessante, para quem ousar seguir o bom conselho do Chico, e brincar com o fogo, ir
prá rua e beber a tempestade.(997)
Interessante,
enquanto
aspecto
antropologicamente
constituinte,
por
conseqüência, estético. Quantas vezes já ouvimos alguém dizer: usei uma metodologia
monótona e interessante, assisti a uma aula maçante e interessante, repetitivo etc. e
interessante? Não é sem motivos que a palavra interessante não aceita qualquer
companhia. Interessante é aquilo que existencialmente nos atrai, nos dá tesão, aquilo que
nosso aspecto serpente deseja, isto acontece com o fractal, com o ainda-não, com o fruto
proibido, com o inesperado, com o jogo, com o descomedimento, com possibilidade de
fantasia, prazer, com o belo, com aquilo que nos permite interação. Serão os conceitos de
beleza, que apresentam o fractal a nos exigir co-participação na obra de arte, pura
imposição de artistas, de teóricos e da mídia, ou será que nisso tudo há alguma
característica da espécie que evolui desmedidamente para o diferente?
Para os físicos deus joga dados, e pela natureza da educação o professor
também joga, queira ou não, saiba ou não, tenha consciência ou não. Seus dados são
conteúdos, são relações que envolvem a complexidade do homo sapiens/demens. Seu
problema é, talvez, mais complexo, pois seus dados (aluno, conhecimento, escola,
relações) são mutantes incontroláveis e imprevisíveis, as combinações possíveis são
infinitamente maiores que a proporção de 1/6, e o próprio dado se altera no meio do
jogo, como se de repente aparecesse um número 9 (nove) no dado e, com isso, até as
regras do jogo deverão sofrer alterações. É processo e isso significa, também, que o ato
de jogar modifica, de certa maneira, as regras.(998) As seqüências não cabem mais na
lógica newtoniana das ligações diretas entre dois fatos, pois, aqui, os fatos se farão a
posteriori. Essa era a dificuldade de Einstein, com relação à teoria quântica, pois com
esta foi dado um xeque-mate à causalidade determinista e que até hoje não encontrou
saída.
A educação enquanto processo envolve mudanças, indeterminação. Processo
não é um contínuo caminho fácil, rápido ou retilíneo, em que se vai eliminando o erro e
retendo o certo (até porque não se tem segurança sobre o certo e, mesmo quando se tem,
se é que se pode ter, nada indica que na próxima relação com o aluno, ou outros alunos, a
coisa possa funcionar tal e qual). Não funciona, não é máquina(999), a educação se faz
quase sempre de modo sui generis. O erro e a verdade permanecem noções lógicas.
Deixam de ser essências ontológicas inalteráveis. Tornam-se biodegradáveis, mas
também biotransformáveis.(1000) O erro torna-se mais interessante por representar uma
possibilidade, é ele que se torna essencial e o certo, virtual, temporário. Neste ponto, a
física moderna nos faz lembrar de velha sabedoria: aquele que insiste em jamais dizer
algo errado deve permanecer em silêncio.(1001) A educação é jogo da complexidade,
cada vez que a realizamos, outra é a configuração. Iniciar uma aula não é entrar num
software.
O reencantamento da educação acontece porque não temos mais ideologias ou
utopias exclusivistas, não temos mais centros, não temos mais alunos iguais, não temos
mais professores iguais, não temos mais hegemonias, não temos mais certezas; não
temos mais como objetivo a formação de consciência crítica para assim, quem sabe,
pensarmos em pessoas críticas, por inteiro... livramo-nos da mesmice... e o enigma é
mais embaixo, acima, ao lado, à frente, atrás... INDICAÇÕES
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Em:WEBER,Renée.Diálogos com cientistas e sábios. Trad.
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