MODERNIZAÇÃO DO BRASIL NOS ANOS 60: MOVIMENTOS

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MODERNIZAÇÃO DO BRASIL NOS ANOS 60: MOVIMENTOS SOCIAIS E CONFLITO
INSTITUCIONAL
Gustavo Rodrigues Mesquita
Universidade Federal de Goiás
I. INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é dimensionar as funções representadas pela insurgência do
movimento negro, bem como pela constatação da necessidade de modernização do
trabalho técnico-científico nas universidades no momento em que se adota a ideologia de
dinamização sócio-econômica, no embate travado entre Gilberto Freyre e escola paulista de
sociologia, localizada na Universidade de São Paulo. O embate teve início, ainda de modo
oscilante, nos anos 50, quando os principais sociólogos uspianos empreenderam uma
pesquisa cujo objetivo residia na investigação das formas de interação racial em São Paulo,
de modo que pesquisariam as relações raciais entre brancos e negros a fim de definirem se
havia ou não o preconceito racial.
Os anos 50, portanto, demarcam o início do embate Freyre/USP em torno da
explicação das relações raciais. Enquanto o sociólogo nordestino deduzia que a formação
histórica do povo brasileiro condicionou o contato harmônico entre as etnias, os sociólogos
paulistas reafirmavam que os negros sofriam discriminações na vida social moderna.
Localizar os sentidos escondidos desse embate é o objetivo deste artigo.
****
Rigorosamente, o texto de Como e porque sou e não sou sociólogo é explicativo de
toda a atividade intelectual de Gilberto Freyre até 1968, sendo explicativo inclusive de suas
escolhas por outros métodos de interpretação da realidade social brasileira. Neste livro
Freyre sintetizou as duas concepções de ciência social que se digladiavam na década de
1960. Vejamos:
2
•
Concepção marxista, de estatuto científico concebido como o fundamento para a
interpretação sociológica da realidade social brasileira (ACADÊMICOS DA USP).
•
Concepção humanística, não apenas científica, da arte-ciência de ser sociólogo,
antropólogo, historiador e, sobretudo, escritor (GILBERTO FREYRE).
Ressalve-se que esta formulação comporta algum reducionismo, decorrente do
embate que se travava no campo intelectual.
A concepção marxista combatida pelo
sociólogo pernambucano visava, sobretudo, o pensamento de Florestan Fernandes e de
Octavio Ianni. Nesta direção, Gilberto afirma que sua filosofia de ciência é multidimensional
e multidisciplinar e que a filosofia dos acadêmicos uspianos é unívoca e, por isso mesmo,
limitada. De todo modo, note-se a cristalização do embate entre os dois ideais acima
explorados. Esta foi efetivamente a discussão central na recepção de Casa-grande &
senzala entre as décadas de 1950, 1960 e 70.
Octavio Ianni, diga-se logo, é unanimemente considerado um discípulo de Florestan
Fernandes, que, por sua vez, fora um discípulo de Roger Bastide, sociólogo francês, seu
mentor intelectual na Universidade de São Paulo. O fato é que Ianni deu continuidade, ao
menos durante toda a década de 1960, às pesquisas empreendidas por Florestan,
permanecendo sob a mesma matriz teórica: a marxista. A concepção de ciência social
também possuía convergência entre os dois: a análise sociológica em perspectiva histórica.
A crítica de Ianni contra Freyre centra-se no plano das ideologias. Para Ianni, a
interpretação freyriana da sociedade escravocrata é muito mais uma técnica de dominação
do que uma base exemplar para a redemocratização do país. Técnica de dominação é a
categoria-chave com que Ianni pauta sua reflexão acerca do passado nacional. De qualquer
maneira, o que importa é assinalar que Ianni se ocupa com a refutação sistemática do
empreendimento histórico-sociológico do autor pernambucano: “Assim, as representações
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ideológicas surgem nitidamente como técnicas de dominação, ou seja, de preservação de
estruturas estabelecidas, geralmente arcaicas” (IANNI, 1966, p. 9). 1
Há uma importante crítica de Ianni a ser explorada aqui, pois ela é mais um marco na
recepção de Casa-grande & senzala. Para Ianni, Freyre foi o idealizador do mito da
democracia racial. O mito seria mais uma técnica de dominação que, por sua vez, impedia a
instauração do processo de democratização no país. Processo composto primeiro pela
conscientização da população nos níveis de raça e de classe; por via do abandono das
práticas clientelistas e por último pela dinamização socioeconômica. O mito é entendido
como uma condição impeditiva para a autoconsciência das relações raciais.
Joaquim Falcão (2001) de fato conseguiu delinear a macroestrutura do embate
acima explicitado. Para Falcão, a luta pelo trono de “Imperador das Idéias” ou de “Intérprete
do Brasil” entre Gilberto e a USP percorreu muitas etapas: os adversários primeiro
estabeleceram as regras da competição: a imposição de um método de pesquisa para as
ciências sociais: “Agora, a sociologia voltava-se contra o direito. Os sociólogos, arautos da
modernidade, contra os bacharéis, sócios do passado [...] A disputa era por explicar o
Brasil, os juristas cediam terreno” (idem, 2001a, p. 134-135). Falcão afirma que a
intelectualidade paulistana congregou a mudança a partir de Caio Prado Júnior publicando
em 1933 o livro Evolução política do Brasil.
A construção do adversário foi a segunda etapa do confronto, na qual combater era
ao mesmo tempo que construir o adversário. Por conseguinte a filiação do adversário a um
paradigma teórico preexistente ou a uma postura político-ideológica passou a ser o cerne
da questão. Finalmente, alcançando uma conclusão, Falcão constata que a busca por um
árbitro imparcial para a definição do trono de “Imperador das Idéias” encontrou apenas
estagnação: Gilberto buscou apoio no reconhecimento científico e na boa recepção provida
pelos intelectuais de países estrangeiros, bem como no antropólogo Darcy Ribeiro. Os
sociólogos da USP encontraram nas novas gerações de cientistas sociais marxistas reforço
1
Em Raças e classes sociais no Brasil há inúmeras críticas contra Freyre, por exemplo: na extensa bibliografia
listada pelo autor constam apenas três trabalhos do autor pernambucano: Sobrados e mucambos, Ordem e
progresso e Sociologia. Não consta sequer uma referência a Casa-grande & senzala, o que nos parece indicar o
desprezo pelo livro.
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para a luta. Fato que fez com que o confronto prosseguisse. Durante o regime militar, Casagrande & senzala passou a significar apologia à política colonial portuguesa, ao pacto
oligárquico e ao autoritarismo. Gilberto fora desqualificado, anatematizado até. Lançaramlhe uma pesada cortina de silêncio. Portanto, o embate continuou a existir de um modo
inconciliável. Ninguém, conclui Falcão, ganhou o trono de “Imperador das Idéias”.
II. IDEIA DE DESENVOLVIMENTO VOLTADA PARA A TECNOCRACIA
Em um artigo emblemático, intitulado Investigação sociológica na América Latina,
Florestan Fernandes interpreta as bases de sustentação do desenvolvimento técnicocientífico das universidades latino-americanas que, para ele, caso passassem com êxito por
um processo de readequação financeira, conduziriam as nações do continente latinoamericano rumo ao progresso social e material. O argumento de Fernandes considera
ineficaz a contribuição de outros intelectuais cujos análises não pertenciam a mesma ordem
de preocupações. Neste sentido, portanto, a priori Gilberto Freyre não fazia sociologia
científica, apenas apologia à condição de subdesenvolvimento do Brasil (FERNANDES,
1962).
Para Fernandes, o desenvolvimento da economia e da sociedade de toda a América
Latina só poderia ser alcançado pelo intermédio direto da pesquisa de bases científicas:
progresso e ciência seriam sinônimos. Formar adequadamente cientistas sociais e
estadistas, enfim, técnicos de alto nível: eis o programa pensado por Fernandes para o
progresso social e científico nos países latino-americanos, que conseguiriam superar a
condição secular de atraso. As universidades, em especial a Universidade de São Paulo,
seriam os responsáveis pela empreitada.
A transcrição de alguns trechos do artigo de Fernandes, longos é certo, mas
também reveladores da caracterização do projeto dos paulistas ilustrará o exposto.
Está em curso uma revolução social e cultural que alterará de forma
crescentemente mais profunda a participação relativa dos povos latino-americanos
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na civilização baseada na ciência e na tecnologia científica (FERNANDES, 1962, p.
15) (Grifo meu).
Em um mundo em mudança, como o da América Latina, tais influências tendem a
alterar, simultaneamente, a capacidade do homem comum de entender e de
desejar a civilização baseada na ciência e na tecnologia científica, as
potencialidades do meio de assimilar produtivamente as instituições científicas
(colocando-as à serviço efetivo de suas necessidades materiais, educacionais e
morais), e a vitalidade dessas instituições, crescentemente beneficiadas pelos
efeitos reflexos do desenvolvimento econômico, cultural e social [...] Esse é o
“toque de mentalidade” que requer atenção imediata, se aspirarmos a concorrer,
como cientistas, simultaneamente, para o desenvolvimento da sociologia e o
“progresso social” da América Latina (idem, 1962, p. 25-32) (Grifos do autor).
Dentro do contexto histórico da ideologia do naiocnal-desenvolvimentismo urbanoindustrial da economia brasileira, e de modernização da ciência, o ex-reitor da USP, Alípio
Netto, ainda julgou que...
...a Universidade [de São Paulo] é uma instituição cultural, sujeita, como a própria
cultura, a modificações constantes, para poder acompanhar e influir no
desenvolvimento das conquistas da inteligência [...] No esforço que fazem os
povos para conseguir a sua autonomia, cabe à universidade o papel mais
afirmativo, por isso que só se concretiza esta mesma autonomia quando ela é
conquistada no terreno espiritual [...] [Enfim], cabe à universidade, na luta pela
civilização, papel primordial (NETTO, 1957, p.231).
Como bem se sabe, Gilberto Freyre se declarou um profissional anti-acadêmico, tendo
por poucas vezes e por pouco tempo ocupado o cargo de professor ou pesquisador em
universidades brasileiras, norte-americanas ou européias. Sendo assim, torna-se válido
indagarmos: qual foi a contribuição mais efetiva do intelectual pernambucano dentro deste
programa de desenvolvimento técnico-científico no Brasil? Além das proximidades que o
intelectual possuía com as universidades do mundo inteiro (palestras, conferências, cursos
de pequena duração etc.), não se deve esquecer que ele ainda publicou em 1943 o livro
Problemas brasileiros de antropologia e em 1945 o livro Sociologia. Livros que buscavam
sistematizar a ciência e a investigação sócio-antropológica para as novas gerações de
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cientistas sociais e historiadores que acabavam de se formar por meio das – também
recentes – universidades brasileiras (MEUCCI, 2006).
A publicação de Sociologia em 1945 pode muito bem ser entendida como meio
estratégico de sistematização não apenas da ciência sociológica no país, mas do próprio
projeto intelectual de seu autor, uma vez que, cabe ressaltar, as obras de Freyre adquiriram
um sentido político de influência na realidade imediata do Brasil. O texto de Sociologia foi
escrito da mesma forma como os outros textos de Freyre, ou seja, linguagem pessoal,
informal ou coloquial (nada burocrática ou acadêmica).
No entanto, para Octavio Ianni (1961) a sociologia pensada por Gilberto Freyre não
possuía o rigor científico para a solução de um problema estrutural: o déficit teórico no qual
a disciplina se encontrava durante a década de 1950. Nesta perspectiva, a obra teórica de
Florestan Fernandes, Ensaios de Sociologia Geral e Aplicada, teria sido, para Ianni, ao
contrário de Sociologia de Freyre, a que conquistou a mais profunda expressão nacional em
duas direções: 1º) pela profissionalização da disciplina como campo de produção na
academia e 2º) pela adoção do rigor teórico para a estimulação do pensamento sociológico
geral (IANNI, 1961) (FERNANDES, 1962). Deste modo, Ianni argumenta que “no plano
teórico, o ‘Manual’ de Gilberto Freyre representa menos para a moderna Sociologia
brasileira do que, no terreno empírico, as suas investigações para as modernas pesquisas
empíricas sistemáticas que aqui se realizam” (IANNI, 1958, p. 358). Chega a afirmar ainda
que o livro Sociologia “não apresenta os requisitos exigidos pelo estado presente das
preocupações dos especialistas brasileiros” (idem, 1958, p. 358). E toda esta crítica é
justificada pelo intelectual paulista, pois...
...o defeito fundamental da obra reside no fato do autor ter utilizado nela o mesmo
método expositivo e a mesma linguagem que desenvolveu na elaboração de suas
investigações empíricas. A fluência, a versatilidade, a flexibilidade da linguagem, a
multiplicidade dos ângulos, que não prejudicam as suas análises da sociedade
patriarcal, não são adequadas a uma obra em que são examinados conceitos,
idéias e problemas teóricos” (ibidem, 1958, p. 356).
7
Já não se pode esquecer que nesta crítica de Octavio Ianni há outra crítica, esta
mais implícita, obscurecida pela preocupação do autor reservada a resenhar a obra
Sociologia, finalmente a crítica feita poderia estender-se facilmente em direção ao livro
Casa-grande & senzala. Ao criticar a obra Sociologia, Ianni estava também criticando Casagrande & senzala, visto que a linguagem coloquial característica do autor em questão era
entendida pelo paulista como inapropriada para a interpretação real tanto do passado
quanto do presente moderno da nação brasileira. Tanto Casa-grande & senzala quanto
Sociologia, para os sociólogos paulistas, não detinham o rigor científico para operar uma
interpretação eficaz acerca da realidade social deste país. Enfim, estavam, para eles,
ultrapassados.
Deste modo é oportuno recorrermos à teoria de Theodor Adorno (1995), acerca da
educação e autonomia do indivíduo, para reforçar as razões da rejeição por parte de Freyre
ao programa de desenvolvimento latino-americano pautado, sobretudo, no apego à
tecnologia e ao instrumento. Para Adorno, o homem moderno, no sentido universal da
terminologia, tende a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si
mesmo ou uma força própria. É por esta razão que a educação, o pensamento e o trabalho
excessivamente técnicos conduziriam o homem à tecnologização de si mesmo e dos
outros: a consciência coisificada, isto é, o entendimento de que os outros são, eles
mesmos, coisas. Adorno ainda entende que “os meios – e a técnica é um conceito de
meios dirigidos à autoconservação da espécie humana – são fetichizados, porque os fins –
uma vida humana mais digna – encontram-se encobertos e desconectados da consciência
das pessoas (ADORNO, 1995, p. 132-133). Outro fator explicativo, e este é mais
importante, é que as “pessoas tecnológicas” tenderiam a renunciar as relações libidinosas
intra-humanas em prol da acepção técnica de suas vidas. Neste sentido, a capacidade de
amar, que de alguma maneira sobrevive nas pessoas, precisariam ser aplicadas aos meios
e não às outras pessoas.2
2
É preciso deixar bem claro que o estabelecimento de um diálogo entre Freyre e Adorno torna-se legítimo a
partir da crítica a ciência dominada pela técnica e pelo instrumento. No limite, ambos afirmam que a dependência
da técnica conduziria à artificialização, desumanização do trato social; tenderia à semiformação (uniformização
não-emancipatória do sujeito), em prol exclusivamente da expansão do capitalismo tardio, na acepção
8
Ora, Freyre deixa explícito no livro Interpretação do Brasil, publicado originalmente
em 1945, seu descontentamento para com o mundo da tecnologia, pela concepção
quantitativa da vida e, consequentemente, pela artificialização das relações humanas.
3
E
não seria um erro lembrarmos que a argumentação já de Casa-grande & senzala possui o
signo freudiano da libido: a miscigenação só obteve êxito no Brasil devido o excesso de
intercurso sexual entre senhor e escravo: o mestiço, portanto, o resultado (ARAÚJO, 2005).
Enfim, do ponto de vista culturalista, o programa de Freyre para o Brasil não pode ser
enquadrado em uma concepção de desenvolvimento, mas sim no de preservação do que é
adequado e consagrado pela tradição.
Mas retornando a discussão para o ambiente acadêmico da USP, resta assinalar
que o sociólogo francês Roger Bastide não aderiu à postura da sociologia uspiana, portanto
nem sempre partilhou da execração da obra de Gilberto Freyre. O posicionamento de
Bastide, portanto, não pode ser classificado do mesmo modo como o posicionamento de
seus discípulos. A postura de Bastide frente os estudos de Freyre deve ser classificada de
modo diferente, pois ele não se fixou a uma corrente filosófico-ideológica contemporânea às
exigências de modernização das Ciências Humanas. Tendo deslocado de uma para outra:
dos críticos-revisionistas para os enaltecedores do trabalho de Freyre, e vise-versa. Um dos
motivos que comprovam esta afirmação é o fato de que foi Roger Bastide o tradutor de
Casa-grande & senzala para a edição francesa publicada em 1952. Outro fator
comprobatório da afirmação está em evidência neste depoimento do próprio Bastide:
Gilberto Freyre tentou ao contrário criar, e é o que o distingue de Oliveira Viana,
uma sociologia sem << a priori >> de << importação >>. E a prova está em que
não sabemos como classificá-lo, se entre os historiadores, entre os sociólogos,
na geografia humana. É que, para estudar as relações inter-humanas no Brasil,
empregada por Adorno, e capitalismo imperialista, na acepção empregada por Freyre.
3
Neste sentido, o livro Nordeste também é paradigmático: o modo de produção moderno do açúcar por via das
usinas é acidamente criticado por Freyre porque os grandes capitalistas usineiros não se preocupavam com o
meio ambiente, com a ecologia; portavam-se indiferentes com relação à poluição dos rios. Isto, em verdade, para
benefício próprio: a maximização do lucro. A maioria das águas nordestinas, na visão de Freyre, foram
degradadas, extinguidas por ação dos capitalistas usineiros da virada do século XIX para o XX. Outro ponto que
deve ser analisado refere-se às condições de vida do próprio trabalhador nordestino. Nisto Freyre é ainda mais
categórico: o meio (a técnica) moderno de trabalho, por via da tecnologia e automação, conduziria à
precarização da vida do trabalhador não apenas nordestino, mas o brasileiro como um todo. Portanto, o apego à
tecnologia, na acepção gilbertiana, resultaria no trabalho cada vez mais exigente.
9
ele foi obrigado a criar um método próprio, uma espécie de sociologia
proustiana; essa novidade foi bem recebida em França. Se ler[mos] as críticas
da tradução de << Casa-grande e Senzala >> verá que o que impressionou os
franceses não foi o pitoresco, mas, como disse << Lês Temps Modernes >>, o
fato de ter o autor inventado uma sociologia humanista. Com ele, é a ciência
brasileira que se apresenta como modelo a seguir aos europeus (BASTIDE,
1953, p. 524) (Grifos do autor).
É conclusivo que Bastide não se fixou em uma vertente pré-estabelecida do
pensamento sociológico brasileiro. Entretanto é o fato de ter liderado juntamente com
Florestan Fernandes uma pesquisa sobre as relações raciais em São Paulo (cuja
justificativa para sua realização residia no exercício de revisão do mito da democracia racial
no Brasil) é o tema que mais nos interessa.
A pesquisa intitulada Relações raciais entre brancos e negros em São Paulo,
liderada por Fernandes e Bastide, com a participação de outros sociólogos, foi financiada
pela UNESCO (como todos sabem, um órgão vinculado a Organização das Nações Unidas)
e teve todos os seus resultados publicados na revista Anhembi. A pesquisa atendia as
novas demandas sociais decorrentes do fim da 2ª Guerra Mundial e, em especial, a questão
do racismo que ganhou relevo quando as agências internacionais se viram obrigadas a se
defrontar com a memória do holocausto (ADORNO, 1995).
De fato, Relações raciais entre brancos e negros em São Paulo foi uma pesquisa
arrojada e muito bem planejada tanto teorica quando empiricamente. Diversos sociólogos
cooperaram para a concretização da pesquisa: Richard Morse, Alfred Metreaux e Roger
Bastide foram alguns dos estrangeiros cooperadores. Cabe ainda ressaltar a importância
que essa pesquisa possuía (e ainda possui) para um diagnóstico preciso acerca das causas
e dos efeitos do racismo sobre a vida dos negros na São de Paulo de então.
Com a concretização dos inquéritos, como uma espécie de síntese do conhecimento
adquirido, Roger Bastide (1953) constatou que nas relações sociais entre brancos e negros
em todo o território nacional o fator preponderante para a ascensão dos últimos era apenas
um: a política de enbranquecimento. Os negros brasileiros, caso quisessem alguma
prosperidade financeira, ascensão ou status na vida, deveriam primeiro passar a rejeitar
10
suas origens étnico-culturais africanas e depois deveriam congregar o mundo de
negociação e competição da economia política capitalista do mundo burguês. Deveriam
adequar-se às condições impostas pelos brancos, aqueles que conseguiam se livrar da
discriminação racial devido fatores históricos múltiplos.
Outro fator que funcionou como motivação para os sociólogos da USP revisarem a
estrutura das relações raciais na cidade de São Paulo, estava dentro da leitura que eles
próprios fizeram de Gilberto Freyre, ou seja, que foi ele, o pensador pernambucano, o maior
fomentador do mito da democracia racial brasileira. Esta foi a premissa fundamental para a
execução da pesquisa. A partir de então, esta nova geração de cientistas sociais
começaram a estimular inúmeras pesquisas sócio-antropológicas visando denunciar o mito.
E mais uma vez, Gilberto Freyre era o alvo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Terra.
BASTIDE, Roger. (1953) Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo: efeitos do
preconceito de cor. Revista Anhembi, São Paulo: Vol. 11, nº. 33, ano 3, p. 434-467.
CANO, Wilson. (1977) Raízes da concentração industrial em São Paulo. São Paulo: Difel.
FALCÃO, Joaquim; ARAÚJO, Rosa Maria Barbosa. (2001) O imperador das idéias: Gilberto
Freyre em questão. Rio de Janeiro: Topbooks.
FERNANDES, Florestan. (1953) Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo: a
luta contra o preconceito de cor. Revista Anhembi, São Paulo: Vol.12, nº. 34, ano 3, p. 3971.
______. (1962) Investigação sociológica na América Latina. Revista Anhembi, São Paulo:
Vol. 44, nº. 130, ano 11, p. 14-35.
FREYRE, Gilberto. (1968) Como e porque sou e não sou sociólogo. Brasília: Editora da
Universidade de Brasília.
______. (2007) Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob regime da
economia patriarcal: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - I. 51ª edição.
São Paulo: Global.
IANNI, Octavio. (1966) Raças e classes sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira.
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