as possíveis implicações da ambivalência

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AS POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES DA AMBIVALÊNCIA
ENTRE AMOR/ÓDIO NO DISPOSITIVO TRANSFERENCIAL
Rafaela Santos Kamaroski1
Nadja Nara Barbosa Pinheiro2
No tratamento psicanalítico, as comunicações do analista ocorrem após o
estabelecimento
da
transferência,
afirmou
Freud
(1913/1996).
Deduz-se
da
recomendação freudiana que a transferência pode ser catalisadora da confiança do
paciente no analista. Entretanto, as possibilidades de manifestar-se como amor ou ódio a
configura, paradoxalmente, como motor e obstáculo do tratamento psicanalítico. Resta
discutir se as vinculações amor/motor e ódio/obstáculo podem ser realizadas.
A transferência foi definida por Freud (1912a/1996), como um modo de
conduzir-se na vida erótica. Freud especifica que esta se consolida nas condições que o
indivíduo estabelece para apaixonar-se e nas pulsões que satisfaz os objetivos
estabelecidos.
Tais
condições
constituem
“clichês
estereotípicos”
repetidos,
reimpressos, na medida em que as circunstâncias externas e a natureza dos objetos
permitam. Freud (1912a/1996) afirmou também que a transferência não está presente
apenas no tratamento psicanalítico e que sua intensidade e dimensão erótica são
atribuídas às neuroses.
Nas neuroses, os sintomas resultam dos conflitos na dimensão das pulsões que,
impedidas de encontrar descarga e como conseqüência do recalcamento, entrelaçam-se
em uma trama sintomática, conforme descreveu Freud (1905/1996). A partir do
processo de estabelecimento das relações afetivas pode-se compreender a vinculação
entre as neuroses e a transferência. Freud (1905/1996) descreveu dois tempos na escolha
de objetos. No primeiro tempo, presente na infância, apesar da primazia das pulsões
parciais e das zonas erógenas, existem componentes que envolvem relações com outras
pessoas como objetos sexuais:
... com freqüência ou regularmente, já na infância se efetua uma escolha objetal como a que
mostramos ser característica da fase de desenvolvimento da puberdade, ou seja, o conjunto das
1
Psicóloga e Bacharel em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná, Mestranda em Psicologia pela
UFPR. Membro do Laboratório de Psicanálise (UFPR). E-mail: [email protected].
2
Mestre e Doutora em Psicologia, Profª adjunto da graduação e do Mestrado em Psicologia da
Universidade Federal do Paraná – UFPR. Coordenadora do Laboratório de Psicanálise.
2
aspirações sexuais orienta-se para uma única pessoa, na qual elas pretendem alcançar seus
objetivos. Na infância, portanto, essa é a maior aproximação possível da forma definitiva
assumida pela vida sexual depois da puberdade. (FREUD, 1905/1996, p.188)
Freud (1905/1996) afirma também que, em determinada medida, as pulsões do
prazer de olhar, de se exibir e de crueldade, presentes na infância, expressam as relações
com outros como objetos sexuais. Estes são, frequentemente, os membros da família e
aqueles que cuidam da criança, Freud (1912b/1996). O segundo tempo da escolha
objetal está separado do primeiro pelo período de latência e sua amnésia característica.
Ocorre na puberdade e é influenciado pela barreira do incesto que exclui a possibilidade
de escolher como objetos sexuais os parentes consanguíneos. O incesto se impõe e
perante tal impedimento o investimento é destinado a um objeto sexual distinto, mas
semelhante, conforme afirmou Freud (1912b/1996). As escolhas do primeiro tempo
influenciarão as do segundo, pois a amnésia do período de latência significou sua
assunção para o inconsciente.
A transferência ocorre quando a libido encontra frustração no mundo exterior e
regride aos pontos de fixação, Freud (1912a/1996), que se consolidaram como tal por
proporcionarem satisfação pulsional no primeiro tempo da escolha objetal. A parte da
libido que é consciente, assim como a que está inconsciente consolidam os “clichês
estereotípicos”.
No que diz respeito à transferência no tratamento psicanalítico, Freud
(1912a/1996) distinguiu nos fenômenos transferenciais uma dimensão que denominou
“positiva” e outra como “negativa”. Segundo ele, a transferência “positiva” abrange: i)
sentimentos amistosos ou afetuosos, admissíveis à consciência; ii) impulsos eróticos
reprimidos. Em contrapartida, a transferência “negativa” é constituída por sentimentos
hostis. Positivo e negativo atrelam-se, respectivamente, ao bom e ruim, pois o afeto e a
dimensão erótica são comumente relacionados com a felicidade, em oposição à
hostilidade atrelada ao sofrimento. Tais sentimentos são direcionados ao analista. É
possível compreender, então, a transferência positiva como motor da análise e a
negativa como obstáculo?
Perante o uso da associação livre, Freud se deparou com forças contrárias ao
tratamento: as resistências. Constatou também que a própria transferência pode
consolidar-se como resistência por meio da hostilidade e até mesmo do amor
exacerbado ao analista. O amor transferencial, com características eróticas intensas,
pode ser expresso por meio de declarações ou em atuações características de um
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enamoramento, conforme descreveu Freud (1915 [1914] /1996). Em substituição ao
recordar durante o tratamento, o paciente repete uma relação amorosa ou hostil,
conforme descreveu Freud (1914/1996). A dimensão de resistência evidencia-se, pois a
repetição não é percebida, sendo a transferência vivenciada como um sentimento atual.
Freud denominou este processo de “compulsão a repetição”.
A classificação dos fenômenos transferências em positivo/negativo se distancia,
portanto, da vinculação motor/obstáculo da análise. Amor, atrelado a transferência
positiva, pode consolidar-se tanto como motor quanto como obstáculo ao tratamento
psicanalítico. Do mesmo modo, o ódio como obstáculo pode ou não ocorrer, conforme
demonstra o caso abaixo.
Um caso clínico
T. discutiu em tom de voz elevado, com sua professora, nos corredores da
faculdade. Na ocasião, não atendia aos apelos constantes para que conversassem
posteriormente e, em virtude da sua insistência, o serviço de Psicologia e um
representante da Direção foram chamados. T. afirmou, então, que a professora o
prejudicou ao permitir que o colega, com quem havia combinado de realizar um
trabalho em dupla, constituísse um grupo com outro aluno no dia em que T. não estava
presente na aula. A professora esclareceu que os alunos possuem tal autonomia e que
ela orientou o referido colega a procurá-lo para informar a mudança e apresentar as
devidas justificativas. T. permaneceu inconformado e respondeu novamente aos gritos
que não iria conversar com ninguém do Serviço de Psicologia. O representante da
Direção informou que a professora deveria se deslocar até a sala em que ministraria aul
e. T. foi encaminhado para a sala da Direção.
Transcorrido algum tempo, a professora compareceu no local em que T. estava
e apresentou novamente a sua perspectiva sobre o ocorrido. T. afirmou, aos gritos, que
está se esforçando para concluir a disciplina, já que está cursando-a pela terceira vez.
Relatou também a dificuldade que sempre encontrou para se aproximar dos colegas.
Chorando, perguntou se a professora realmente não quis prejudicá-lo. Esta repetiu que
não e se propôs a mediar a sua relação com o referido colega. Ao final da conversa, T.
concordou em comparecer nos atendimentos da Psicologia.
T. descreveu nos atendimentos as discussões que teve com a professora e
também com o Coordenador de Curso. Disse saber que eleva o tom de voz nestas
situações. Realizou tratamento psiquiátrico por um ano na tentativa de “se acalmar”.
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Entretanto, em virtude da sonolência, lentidão no raciocínio e diminuição do apetite
sexual causados pelos remédios, abandonou o tratamento. Afirmou ter percebido que
pode controlar sua agressividade e que em uma discussão opta por elevar o tom de voz
para que seja ouvido. Ao longo dos atendimentos, descreveu também que é visto por
seus colegas como “diferente” e que fracassa nas tentativas de aproximação.
Compreende que, assim como seus amigos, faz parte do grupo dos “diferentes”, em
oposição aos “normais” que se preocupam com futilidades, tais como roupas de marca.
Perante questionamentos sobre o andamento da disciplina, T. relatou minuciosamente as
atividades que estava desenvolvendo em sala de aula: apresentou os pensamentos que
permeavam as suas produções e as justificativas para as escolhas que realizava.
Nos atendimentos, T. não elevou o tom de voz, nem iniciou uma discussão. Pelo
contrário, a minúcia dos relatos sobre o que estava desenvolvendo na disciplina e os
relatos sobre como, em diferentes situações, não foi aceito como é parecem expressar
um pedido de amor. A agressividade, que no início alarmou todos à sua volta, foi
substituída por uma postura tranqüila. Paradoxalmente, o pedido de ser ouvido se fez
presente pelos gritos, pela agressividade. Amor e ódio entrelaçados, caracterizando a
ambivalência de sentimentos e a impossibilidade de vincular as díades amor/ódio e
motor/obstáculo.
Referências Bibliográficas
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Strachey, Trad. pp. 120- 219, vol. VII). Rio de Janeiro: Imago.
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Em: S. FREUD. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard
brasileira (J. Strachey, Trad. pp. 167- 180, vol. XI). Rio de Janeiro: Imago.
FREUD, S. (1912a/1996) A dinâmica da transferência. Em: S. FREUD. Obras
psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira (J. Strachey,
Trad. pp. 111- 123, vol. XII). Rio de Janeiro: Imago.
FREUD, S. (1912b/1996) Sobre a Tendência Universal à Depreciação na Esfera do
Amor. Em: S. FREUD. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição
standard brasileira (J. Strachey, Trad. pp. 181- 196, vol. XI). Rio de Janeiro: Imago.
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FREUD, S. (1913/1996) Sobre o início do tratamento. Em: S. FREUD. Obras
psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira (J. Strachey,
Trad. pp. 130-160, vol. XII). Rio de Janeiro: Imago.
FREUD, S. (1914/1996) Recordar, repetir e elaborar. Em: S. FREUD. Obras
psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira (J. Strachey,
Trad. pp. 159-172, vol. XII). Rio de Janeiro: Imago.
FREUD, S. (1915 [1914]/1996) Observações sobre o amor transferencial. Em: S.
FREUD. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard
brasileira (J. Strachey, Trad. pp. 177-190, vol. XII). Rio de Janeiro: Imago.
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