Os desafios para efetivação da universalidade: a relação público-privado no Sistema Único de Saúde Aione Maria da Costa Sousa1 [email protected] Modalidade do trabalho: Eixo Temático: Palavras-chave: Resultado de Investigação Políticas Sociales y desarrollo en el contexto neoliberal y los desafíos para el Trabajo Social Sistema Único de Saúde; Universalidade; Relação públicoprivado. Introdução: O presente trabalho de investigação faz parte do projeto de tese que pretendemos desenvolver no Doutorado em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco. Este texto é resultado de estudos bibliográficos realizados no processo de elaboração do referido projeto e nosso objetivo nesse momento é realizar um breve resgate histórico da constituição do Sistema Único de Saúde no Brasil, situando a relação que tem sido estabelecida entre os sistemas público e privado, bem como levantar alguns questionamentos acerca das conseqüências dessa relação no processo efetivação da universalidade. Desenvolvimento: A trajetória do sistema de saúde brasileiro é caracterizada pela convivência de dois subsistemas, um público e outro privado, que atuam num processo em que se estabelecem relações de compra/venda de serviços/procedimentos, através de contratos ou convênios com o Sistema Único de Saúde (SUS). Durante os anos que antecederam a década de 1980, os dois sistemas que predominaram na organização dos serviços de saúde estavam assim caracterizados: o contratualista de ordem privada e o assistencial público e filantrópico. Essa realidade era formada, portanto, de uma linha divisória no processo de atenção à saúde nos quais: de um lado estavam os trabalhadores inseridos no mercado formal de trabalho, cujo direito de atenção a saúde estava garantido, através do sistema previdenciário a que estava vinculado; e de outro os desempregados, carentes, desamparados, que, sem condições 1 Assistente Social, Mestre em Serviço Social e doutoranda do Curso de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco. Professora da Universidade de Estado do Rio Grande do Norte – Brasil. Ponencia presentada en el XIX Seminario Latinoamericano de Escuelas de Trabajo Social Os desafios para a efetivação da universalidade: a relação público e privado no Sistema Único de Saúde. Universidad Católica Santiago de Guayaquil. Guayaquil, Ecuador. 4-8 de octubre 2009. 1 financeiras para pagar pelos serviços, que eram atendidos por um setor público, filantrópico, clientelista, e bastante deficitário. A previdência social, durante o período ditatorial, foi responsável pelo financiamento da construção de um complexo médico-industrial-tecnológico privado, com subvenções públicas para a construção de hospitais com tecnologia de ponta, o que acentuou profundamente a desigualdade no atendimento, fortalecendo o modelo privatista. Na segunda metade da década de 1970, no contexto de vigência da ditadura militar, com o processo de abertura política que se inicia por força da pressão popular e retomada política dos movimentos sociais, surge no âmbito da saúde o Movimento Sanitário, formado inicialmente por profissionais de saúde que aglutinou vários segmentos de outros movimentos, entidades, partidos em torno de um projeto de reforma sanitária que propunha a ocupação dos espaços institucionais e a implementação de mudanças radicais na política de saúde. Neste processo, este movimento passou a propor alternativas de construção de um novo sistema de saúde que garantisse a universalização do direito à saúde, a descentralização da gestão, que integrasse a ações preventivas e curativas e que fosse democrático, garantindo com participação popular no processo decisório. O projeto de reforma sanitária indicou um conjunto de mudanças a serem instituídas no Estado a fim de que a saúde fosse assumida como responsabilidade governamental. Defendia-se a saúde como direito de todos e dever do Estado e a construção de um Sistema Único democrático, descentralizado, universal. A VIII Conferência Nacional de Saúde foi decisiva no processo de implementação da reforma sanitária, aprovando propostas que foram posteriormente instituídas na Constituição de 1988, na qual a saúde foi reconhecida como direitos de todos e dever do Estado e que as ações de serviços de saúde são de relevância pública. Em seu artigo 198, afirma que “as ações e os serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único”, ou seja: o SUS, que é organizado obedecendo as diretrizes da descentralização, do atendimento integral e da participação da comunidade. Desencadeado o processo de reforma sanitária, tem início a descentralização dos serviços. A implantação do SUS ocorre nos anos de 1990 com a aprovação da Lei Orgânica da Saúde – LOS e a realização das Conferências Municipais, bem como a criação dos Conselhos e o desencadeamento da municipalização. Entretanto a 2 universalização do acesso vai enfrentar vários desafios devido a uma capacidade instalada do sistema público insuficiente para atender a crescente demanda, visto que, ao longo das décadas anteriores o funcionamento deste sistema ocorria predominantemente através da compra direta de serviços ao setor privado. Neste sentido, a ampliação da oferta de serviços públicos de saúde, continuou com a participação crescente do setor privado, através dos contratos e convênios, que dimensionam a relação público-privado no SUS. Essa participação é legalmente reconhecida na Constituição Federal quando afirma em seu artigo 199, que “a assistência à saúde é livre à iniciativa privada”, no entanto, regula também que a inserção deste setor no SUS deve ocorrer de forma complementar e que a prioridade é dirigida às instituições filantrópicas e sem fins lucrativos, e, por fim, veda a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções a instituições privadas com fins lucrativos. Neste mesmo período, transformações de ordem econômica, política, social seguindo as orientações dos ajustes neoliberais, conduziram à redução das funções do Estado, redimensionando, de forma negativa, os gastos públicos. As premissas desta perspectiva contrariaram o projeto de reforma sanitária e os princípios inerentes à implantação do Sistema Único de Saúde, abrindo as portas à privatização desmedida das ações de saúde e a conseqüente ampliação de sua mercantilização. A década de 1990, portanto, se constituiu de um período de reformas no sistema público que conduziu a um retrocesso nas políticas e direitos sociais, tornando cada vez mais visível as grandes contradições entre a lógica universalista instituída com a reforma sanitária e lógica privatista afirmada com as mudanças de caráter neoliberal. Neste sentido, tais reformas além de ampliar os espaços destinados ao setor privado, vai ruindo com o direito do acesso universal à saúde, conduzindo-a sob a lógica da mercantilização. Segundo Paim e Teixeira (2007), a reforma neoliberal segue um modelo gerencialista e desresponsabiliza o Estado com parcela significativa dos direitos sociais conquistados, através da terceirização e da precarização do trabalho em saúde. Para Behring (2003), o ajuste neoliberal além de provocar um aumento do desemprego, ampliando o empobrecimento e consequentemente a demanda por serviços sociais públicos, promove uma verdadeira antinomia entre política econômica e política social, visto que, corta gastos, flexibiliza direitos e propõe a privatização dos serviços. De acordo com esta autora, nos anos de 1990, ocorreu no Brasil uma contrareforma do Estado, cujos impactos foram regressivos e destrutivos, criando obstáculos ao 3 avanço da democracia e reduzindo as garantias constitucionais, especialmente no campo da seguridade social, afirma também que: No campo da saúde, por sua vez, o conceito de universalização excludente confirma-se por meio da dualização: um sistema pobre para os pobres e um padrão de qualidade maior para os que podem pagar pelos serviços mais corriqueiros, já que os atendimentos mais sofisticados e de alta complexidade permanecem no setor público, sendo inclusive utilizados pelo setor privado, especialmente com a criação das organizações sociais. [...] Já os atendimentos de média complexidade e que requisitam tecnologia de ponta, muitas vezes restringem-se ao setor privado, o que torna seu acesso mais difícil por parte da maioria da população. (BEHRING, 2003: p. 268) Segundo Bravo (2006), no Brasil há dois projetos convivendo em constante tensão, que é o projeto da reforma sanitária, cuja preocupação central é assegurar que o Estado seja o responsável pelas políticas sociais, e o projeto da saúde articulada ao mercado, ou privatista, ou a reatualização do modelo médico assistencial privatista, pautado numa política de ajuste de racionalização dos gastos e de garantir um mínimo aos que não podem pagar. Neste processo surgem vários impasses que incidem diretamente na materialização dos princípios do SUS como: a universalidade, a integralidade, a descentralização e a participação social. A política de saúde, atravessada por interesses contrários, tem se subordinado à política econômica na ordem internacional. A universalidade do direito - um dos fundamentos centrais do SUS e contido no projeto de Reforma Sanitária - foi um dos aspectos que tem provocado resistência dos formuladores do projeto saúde voltada para o mercado. Esse projeto tem como premissa concepções individualistas e fragmentadoras da realidade, em contraposição às concepções coletivas e universais do projeto contra-hegemônico. (BRAVO, 2006, p.101) Diante da atual realidade em que se encontram os serviços de saúde pública, podemos dizer que é oportuna a afirmação de Campos de que na sociedade capitalista o direito a saúde é uma utopia, para este autor, por mais abstrata que seja a noção de “direito a saúde”, não há como deixar de reconhecer que a defesa da vida humana, ou até mesmo do bem estar, não tem sido utilizada como principal critério para a definição dos modos de produção e de distribuição de riquezas, (CAMPOS, 1997: p.28). 4 Nesta perspectiva, a preocupação maior não está na preservação da vida, visto que o que está em jogo é a redução dos gastos que o Estado investe na saúde, ou seja, a racionalização desses gastos públicos. Assim, a vida humana é de responsabilidade individual e a saúde domínio do âmbito privado. Esta noção contribui com a perspectiva de privatização do público, de incentivo a lucratividade, de ampliação das grandes organizações e esquemas de controle dos serviços de saúde, no sentido da regulação: Agência Nacional de Saúde– ANS, portarias, nas quais as empresas médicas, de equipamentos médicos e de medicamentos, dentre outras integram-se ao sistema público segundo as leis do mercado e não subordinadas ao direito à vida. Diante deste quadro, predomina a indiferença à dor, ao sofrimento e à exclusão, à situações de abandono, de submissão e de subordinação, nas quais a população é alvo de ações paternalistas, intervencionistas, tecnicistas e/ou oportunistas, de uma política de favor em nível dos municípios, levando à distorções na concretização da política de saúde e a sua negação da relevância pública das ações e serviços de saúde, tal como afirmado no artigo 198 da Constituição Federal. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao poder público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo a sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros, e também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. Paim (2005), afirma que a relação do privado na saúde é algo que necessariamente devemos procurar investigar e entender, pois cerca de 60 % dos gastos em saúde é privado. Este autor apresenta três impasses presentes na relação público/privado na saúde: o primeiro de ordem política, devido a complexidade que a discussão envolve, pois é necessário reconstruir a vontade coletiva, retomando-se as idéias do movimento sanitário, para fazer avançar, pelo menos o que está na lei. O segundo, econômico, pois é imprescindível que haja investimentos na expansão do sistema público, o que não tem ocorrido, pois tem sido destinados recursos para custeio e não para investimentos, o que tem impossibilitado o crescimento da infra-estrutura da rede pública. O terceiro impasse, é simbólico, ou ideológico, poia o SUS que está na representação social da população funda-se na concepção de que o público é ineficaz, insuficiente, ineficiente e o privado é eficaz e competente. Esta é uma concepção que se reflete no próprio atendimento, na porta dupla que é colocada no setor privado: uma por onde dá entrada os usuários do SUS e outra na qual passam os usuários conveniados de planos de saúde ou que realizam o pagamento direto. 5 Segundo Santos et all (2008), embora o SUS seja constitucionalmente definido como universal e integral tem o sustentado o setor privado com a compra de serviços além disso o Estado termina por subsidiar seguradoras e operadoras de planos de saúde, através de distintos instrumentos de renúncia fiscal. Neste sentido o sistema nacional de saúde conta com um financiamento que é minoritariamente público e uma prestação predominantemente privada, cujo predomínio introduz importantes fluxos financeiros da esfera pública para a privada. Em estudo realizado pelo Núcleo de Investigação em Serviços de Saúde – NISIS, vinculado à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, sobre os desafios para a equidade na região metropolitana de São Paulo, várias questões que foram levantadas envolviam a relação público-privado, que serviram como subsídios para repensar o processo de implementação das políticas públicas de saúde, pois no processo de investigação a temática que emerge de forma contínua passa pela complexidade da relação público-privado na configuração do SUS. Compreendendo a saúde como uma necessidade humana essencial e portanto, como um direito fundamental e inalienável, que resulta das condições de vida da população, estando diretamente vinculada ao processo de produção social e material de vida, tendo implicações diretas com o processo de distribuição da riqueza socialmente produzida e a universalidade como a garantia do acesso para todos a serviços público de qualidade, consideramos que um dos maiores problemas no processo de materialização do SUS passa pela sua condução sob a lógica do mercado, o que em nosso entendimento, nega o princípio da universalidade, na medida em que, efetivamente, não constitui como garantia de acesso a todos, ao sistema. Neste sentido, há uma diversidade de situações que resultam do distanciamento entre a forma de gestão da saúde e os princípios estabelecidos para a instituição do SUS e, apesar de todas as mudanças ocorridas neste sistema, nas duas últimas décadas, os serviços continuam extremamente deficitários, insuficientes, ineficientes e desumanos. Por outro lado, o que tem avançado é o processo de privatização da saúde, que atua como mecanismo de exclusão do acesso à essa política social para aqueles que não tem condições de pagar diretamente pelos serviços. O desafio, portanto, é buscar compreender as intrincadas relações que definem as interfaces entre os sistemas público e privado que se caracterizam como impedimentos à concretização do princípio da universalidade no SUS. 6 Conclusão: A universalização do acesso à saúde tem se tornado um dos maiores desafios na efetivação do Sistema Único de Saúde, principalmente pela sua condução mercantil, na relação histórica que tem se estabelecido com o setor privado. Neste sentido, consideramos necesario o investimento em estudos que posma contribuir compreensão mais aprofundada dessa relação que tem se estabelecido entre os sistemas público e privado de saúde no Brasil. Consideramos que esta é uma relação que é extremamente contraditória e adentrar nessa discussão se configura desafio, seja pela própria complexidade dos termo, alvo de várias interpretações, diferentes concepções e definições, causando confusões tanto de ordem teórica quanto prática, seja pelo próprio histórico da relação simbiótica que existe do público-privado na saúde, no contexto brasileiro. 7 Bibliografía BEHRING. Elaine R. Brasil em contra-reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos, São Paulo:Cortez, 2003. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais nº 1/92 a 44/2004. Brasília:Senado Federal, 2004. BRAVO. M. Inês de Sousa. Política de saúde no Brasil. In: MOTA. Ana Elizabete et all (orgs). Serviço Social e Saúde: formação e trabalho profissional. São Paulo: OPAS. OMS. Ministério da Saúde. ABEPSS. Editora Cortez. 2006. CAMPOS, Gastão Wagner de S. O público, o estatal e o particular nas políticas públicas de saúde, IN. HEIMANN. Luiza et al. O público e o privado na saúde. Hucitec: São Paulo 2005. __________________________. Papel do movimento sanitário na construção do novo. Revista Ciência & Saúde Coletiva. Curitiba, 1997. PAIM. Jairnilson Silva. O pensamento do movimento sanitário. In: HEIMANN. Luiza et al. O público e o privado na saúde. Hucitec: São Paulo 2005. SANTOS, Isabela Soares. et alli. O Mix público-privado no sistema de saúde brasileiro. In: Ciência e Saúde Coletiva, 15, Rio de Janeiro, 2008. 8