HistoriaAuralFloripa

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LeechUsingRecordings
LEECH-WILKINSON, Daniel. Using recordings to study musical performances. In:
LINEHAN, Andy. Aural History: Essays on Recorded Sound. London: British Library;
Book & CD edition, 2001. p. 1-12.
HISTÓRIA AURAL
100 ANOS DE MÚSICA GRAVADA
Diferente da área de estudos da música popular, cuja fonte documental mais importante é a
performance (observada ao vivo ou por meio de fonogramas ou vídeos), a musicologia tem
tradicionalmente se debruçado sobre a partitura.
FONTES
Musicologia – partitura
Estudos da música popular – performance (ao vivo, fonogramas, vídeo
“É curioso que a musicologia, que tem feito tanto para elucidar a música clássica européia
na partitura, tenha feito tão pouco para estudá-la através da performance.” Exceção tem
sido a área das práticas interpretativas [até um tempo atrás conhecida como performance
histórica] que tem lidado com evidência histórica para certos aspectos da performance do
passado, em geral aspectos que podem ser estudados com um certo grau de exatidão.
“... a idéia de que uma peça de música possa ser estudada a partir da performance e não da
partitura, ou que algo interessante sobre música possa ser aprendido pela maneira que é
executada/interpretada, é nova ...” e para alguns uma noção perigosa. A idéia de que
pesquisadores (especialmente analistas) possam compreender uma obra de uma forma que
intérpretes nunca poderão, é ainda muito arraigada”.
Pesquisadores argumentam sobre aspectos da estrutura musical que não são evidentes à
primeira vista; intérpretes usam seu tempo para praticar, e suas descobertas sobre a música
são fruto de um processo no qual instinto interage com habilidade física e temperamento,
características que pesquisadores em geral evitam enfatizar.
Os tipos de coisa que os intérpretes discutem enquanto ensaiam ou trabalham {2} juntos
podem ser cruciais para o resultado sonoro, mas são raramente expressados com o nível de
precisão analítica esperada de uma publicação.
slide
Intérpretes fazem a música acontecer
Para entender os sons que eles fazem
experiência de ouvir outras performances
compreensão compartilhada da expressão da linguagem musical
Intérpretes fazem a música acontecer, e o que fazem auto evidentemente produzem o que
nos escutamos. Como compreendemos os sons que eles fazem é formado pela experiência
de ouvir outras performances e pela compreensão compartilhada da expressão da
linguagem musical. Ouvimos uma ênfase num acorde e sentimos ser aquele acorde um
elemento importante na peça. Os meios de ênfase dependem do que os intérpretes fazem
para produzir tal ênfase – como eles fazem muda ao longo do tempo, por isso as mudanças
enormes de estilo de performance entre gravações antigas e recentes – mas num lugar e
tempo específico, intérpretes e ouvintes compartilham o bastante de uma compreensão do
que tais gestos significam para compartilhar a escuta de uma peça como articulada e
modelada, interpretada, como queira, {3} por uma visão do potencial expressivo da peça.
[HERMENÊUTICA?]
É obvio que interpretes habilidosos têm um conhecimento profundo de uma peça de música
e os meios para articular tal compreensão, para torná-la audível, mas o fazem sonoramente
e não no papel.
slide Gravações = 100 anos...
Gravações são um repositório de evidência enorme, 100 anos até agora, e para todos fins
práticos – porque não dá para detalhar o que está acontecendo enquanto acontece, mas
somente depois de escutas repetidas, de muita reflexão e experimentação – as gravações são
as fontes com as quais este novo campo da musicologia vai trabalhar.
slide Mudanças no estilo de performance
propósitos expressivos
Tópicos de estudo
É evidente como os estilos de performance têm mudado ao longo de 100 anos de gravações.
De certa maneira isto se deve a mudanças na maneira de usar a voz e instrumentos
musicais, mas principalmente num deslocamento gradual naqueles aspectos musicais que
são modificados por propósitos expressivos. Em geral, forma e caráter, numa peça em
performance, é produzida por ênfases sutis dadas a certos momentos e negadas a outros; de
fato, o intérprete toma decisões sobre quais momentos são mais ou menos importantes,
chamando a atenção para aqueles e retirando destes. Como isto é feito muda ao longo do
tempo.
slide
c. 1900
andamento
portamento
Em torno de 1900 eram mudanças em andamento, alargando alguns tempos e encurtando
outros, e (para cantores e instrumentistas de cordas) através de portamento, deslizando de
uma nota para outra em vez de atacá-la na altura exata.
slide
vibrato
andamento estável
Aos poucos a ênfase passou {4} para o vibrato (oscilação de altura em torno da nota cuja
amplitude e velocidade podem ser modificadas como ênfase) e o andamento começou a se
estabilizar.
c. 1950
volume
ataque
articulação
Em torno de 1950, expressividade era feita mais por mudanças de volume e ataque do que
mudanças em andamento ou altura; mais tarde ainda, sob a influência do movimento de
performance histórica, a articulação, especialmente a finalização das notas, se tornou mais
importante, enquanto o andamento se tornou mais regular e alturas cada vez mais precisas e
não flexíveis, enquanto mudanças expressivas de volume acontecem no nível das notas
individuais.
slide
Mudanças no gosto
1930
performance emocionalmente intensas
análise de superfície
+ tarde
performance contida, busca de consistência de som
análise de estrutura profunda
Estas mudanças podem ser relacionadas a mudanças gerais de gosto e se refletem nos
escritos sobre música. Em torno de 1930, por exemplo, foi o auge da performance com o
coração na mão, particularmente evidente no canto, onde performances emocionalmente
intensas, respondendo com força a cada nuance do texto e da música, eram ideais. Na
literatura acadêmica do período, mudanças minuciosas de superfície eram o tópico principal
para comentário e composição. Mais tarde no século, a atenção dos pesquisadores se
deslocou para a estrutura profunda e, acima de tudo, para a identificação de consistência do
princípio ao fim da peça – variação na superfície sendo considerada elemento de decoração.
De forma semelhante, os estilos de performance se moveram de expressividade intensa para
um estilo mais distanciado e neutro, no qual consistência de som e postura é de importância
capital.
Com freqüência se ouve dizer que uma conduta de performance “não é musical”, mas
gravações nos mostram, com uma insistência alarmante, que o que é musical muda. {5}
Talvez somente os aspectos mais físicos, a identificação de aumento de volume e
velocidade com excitação, por exemplo, podem ser considerados universais de expressão
musical, com segurança.
{6}
VANTAGEM DAS GRAVAÇÕES
slide
vantagens das gravações
Dada a capacidade de escutar uma passagem muitas vezes sucessivamente, são possíveis
observações surpreendentemente precisas, simplesmente por ouvir e pensar sobre como um
som é produzido.
{7}
Novas ferramentas para análise da performance
Programas de edição tornam possível a comparação de gravações, bem como o isolamento
de momentos particulares. Música pode ser escutada mais lenta sem mudança de altura.
Programas de espectro (de aplicação na engenharia) mostra o espectro de freqüência em
eixos de altura e tempo, a amplitude sendo mostrada por cores.
xxxxxx
Métrica Derramada: Prosódia Musical na canção brasileira popular. Brasiliana Revista da
Academia Brasileira de Música. Rio de Janeiro: , v.2, p.48 - 56, 1999.
ELIS REGINA E A MÉTRICA DERRAMADA
Variação de tempo na performance da canção popular brasileira
Um dos elementos mais possantes de expressividade na canção popular brasileira é a
flexibilidade e em alguns casos quase independência do canto em relação ao
acompanhamento, fenômeno que chamo de métrica derramada. Na canção popular, a
noção de compasso está sempre presente, mas o mesmo é flexibilizado, tanto nos seus
limites, quanto na sua estrutura interna que é modificada em termos da hierarquia das
pulsações.
Métrica Derramada e performance
Esta métrica derramada aparece muito na performance da música brasileira popular,
não só na canção como no samba, na bossa nova e na chamada MPB, como também em
música essencialmente instrumental. No choro instrumental, por exemplo, existe uma
relativa independência das partes, que se entrelaçam sem se fundirem numa massa sonora
sincronizada em termos de divisão temporal. Na canção, um exemplo muito marcante de
métrica derramada é a performance de Elís Regina para “Amor até o fim” de Gilberto Gil,
onde canto e acompanhamento parecem “descolados” um do outro, numa sincronização
relaxada. Como Mário de Andrade diria, a sensação geral não é de síncope, mas quase que
de independência de vozes.
A canção começa numa métrica “musical”, isto é, com uma acentuação clara do
tempo forte do compasso, mesmo que subvertendo o português, como na primeira frase,
onde a palavra Amor começa num tempo forte (á - mor), em vez de utilizar a acentuação
oxítona usual (a - môr). (Ex. a). Parte deste problema (algumas pessoas chamariam de
“erro de prosódia”) é que tanto o canto solista quanto o acompanhamento começam no
tempo forte do compasso. Esta pode ser inclusive a razão por que tantas canções brasileiras
populares têm uma introdução instrumental: para dar ao cantor ou cantora o tom da música
e permitír-lhe começar em anacruse. No caso de “Amor até o fim”, no entanto, a
proeminência dada a amor, em vez de um erro, parece uma tentativa deliberada de trazer
um certo frescor para uma referência tão gasta e abusada na canção popular.
Ex.a: Frase inicial de “Amor até o fim” de Gilberto Gil com Elis Regina, acompanhada por
César Camargo Mariano (piano), Luizão (baixo), Toninho (bateria). [Lp “Elis”, Phonogran,
1974]
Cerca de cinquenta segundos depois de começada a canção (Ex. b), parece que melodia e
acompanhamento se separam, numa relação aparentemente bastante “sincopada”. Agora é
a letra (“Pra crescer, pra crescer”) que comandam a performance, o acompanhamento
acentuando a melodia. No exemplo abaixo a parte inferior mostra a bateria nos dez
segundos finais e mais importantes da canção, antes da recapitulação de material prévio. É
significativo que tanto a letra quanto a música, no momento de maior “discrepância” entre a
melodia cantante e o acompanhamento, articulam uma anacruse anunciadora do ponto
principal feito pela letra (a rosa do amor tem sempre que crescer/a rosa do amor não vai
despetalar/Prá quem cuida bem da rosa/Prá quem sabe cultivar).
J.A. Prögler ao testar o conceito proposto por Charles Keil, de “discrepância participativa”
(“participatory discrepancies”), documentou como existem espaços mínimos de tempo
entre os ataques de notas de baixistas e bateristas de jazz. Estes espaços métricos são muito
difíceis de demonstrar com a notação ocidental convencional. Etnomusicólogos têm criado
sinais para expressar estes ataques “adiantados” ou “atrazados”. Há um momento
específico na performance de Elís Regina, juntamente com César Camargo Mariano
(piano), Luizão (baixo) e Toninho (bateria) de “Amor até o fim” no entanto, em que este
espaço entre solo e acompanhamento pode ser claramente anotado, pois dura quase meio
tempo. Observe-se também como no exemplo b abaixo, quando Elís canta “A rosa do
amor” ela mantem o padrão de acentuação de proeminência `a direita da linguagem falada,
se considerarmos o princípio de deslocamento adiante ou métrica derramada, i.e., a diluição
do compasso, pois proeminência é dada ao segundo em vez do primeiro tempo. Observe-se
que é uma proeminência e não uma acentuação dinâmica, uma vez que, especialmente no
português brasileiro os acentos das palavras são bastante atenuados pela entoação “macia e
cantada” da pronúncia falada no Brasil.
A nota Sí é também o ponto mais agudo em frequência na peça. A tensão [que Tatit
chamaria de tensividade passional] é intensificada pela “discrepância participativa” entre
solo e acompanhamento. O último articula uma hemiola abaixo da sílaba final de “crescer” e “A ro-sa”, a princípio com ataques simultâneos e depois quase como um eco de rosa.
Finalmente, a bateria toca um “turnaround” antes de gradualmente retornar a uma certa
regularidade métrica do acompanhamento.
Ex. b: canto e bateria em “Amor até o fim” de Gilberto Gil com Elis Regina, acompanhada
por César Camargo Mariano (piano), Luizão (bass), Toninho (drums). [Lp “Elis”,
Phonogran, 1974]
COPLAND, Aaron. Como ouvir (e entender) música. Trad, de Luiz Paulo Horta. Rio de Janeiro:
Ed. Artenova, 1974.
KEIL, Charles. “The Theory of Participatory Discrepancies: a Progress Report” In
Ethnomusicology vol. 39, No. 1 (winter 1995):1-19.
NKETIA, J. H. Kwabena. The music of Africa. New York: Norton, 1974.
PRÖGLER, J.A. “Searching for Swing: Participatory Discrepancies in the Jazz Rhythm
Section” in Ethnomusicology vol. 39, No. 1 (winter 1995): 21-54.
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