A política do precariado

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A política do precariado:
“uma conquista intelectual
vibrante”
Peter Evans
No novo milênio, a classe trabalhadora brasileira transformouse em um respeitável ator global, estimulando novos esforços
investigativos para compreender sua atual dinâmica histórica e
política. Com este magnificamente ambicioso livro, Ruy Braga
não apenas responde ao desafio, como também inaugura um
capítulo na longa linhagem da sociologia do trabalho no
Brasil.
Debate teórico, análise histórica e observação etnográfica
estão muito bem entrelaçados. No tocante à teoria, Braga
engaja-se na rica tradição de pensar a natureza da classe
trabalhadora no país, partindo de clássicos do século XX, como
os trabalhos de Juarez Rubens Brandão Lopes, Leôncio Martins
Rodrigues e Luis Pereira, e chegando a perspectivas
contemporâneas, como as de André Singer e Jessé Souza. Ao
mesmo tempo, ele desafia alguns recentes teóricos europeus da
precariedade, como Robert Castel e Guy Standing, argumentando
que o atual “precariado” não resulta simplesmente das
aberrações políticas do neoliberalismo, mas é parte
fundamental da própria dinâmica econômica e política da
modernidade capitalista.
Esses debates teóricos encontram-se justapostos a uma análise
histórica da surpreendente evolução do papel político do
“proletariado precarizado” brasileiro: da aparente passividade
daqueles que, em meados do século passado, migraram para os
novos centros industriais, passando pela explosiva insurgência
que confrontou a ditadura militar e ajudou a reconduzir o país
à democracia, até a base política para o sucesso eleitoral do
Partido dos Trabalhadores de Lula, no século XXI.
A etnografia complementa a teoria e a história. Assim, a
exaustiva pesquisa de Braga acerca dos “teleoperadores”
paulistanos, destacado grupo de trabalhadores precarizados que
tem ajudado a país a tornar-se uma “nova potência emergente”,
permitiu-lhe iluminar a curiosa combinação de apoio eleitoral
ao status quo distributivista com contínuas erupções de
oposição às opressivas condições de trabalho e à
marginalização econômica que o sucesso da atual dominância
financeira continua a impor aos trabalhadores.
A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista é
uma conquista intelectual vibrante que deve provocar vívidos
debates a respeito do papel, presente e futuro, da classe
trabalhadora no país. Contudo, o impacto deste livro não deve
se limitar apenas ao Brasil, pois se trata de um modelo para
os estudiosos do mundo todo que buscam compreender a evolução
dos desafios econômicos e as respostas políticas dos
trabalhadores em seus próprios países. Na realidade, esta obra
deveria ser encarada como uma contribuição fundamental para a
construção de um entendimento mais apurado sobre a classe
trabalhadora global.
(Orelha do livro A política do precariado: do populismo à
hegemonia lulista, de Ruy Braga)
A maldição do trabalho barato
Ruy Braga
Apesar do pacote de medidas anticíclicas implementado pelo
governo federal buscando reverter a forte desaceleração da
atividade industrial no país, o Brasil continua flertando com
a estagnação econômica. De acordo com os analistas mais
prudentes, teremos algo entre 1,5% e 2% de crescimento do
Produto Interno Bruto (PIB) este ano. Após o medíocre
resultado de 2,7% de crescimento alcançado ano passado, 2012
seguramente será bem pior e as autoridades governamentais
começam a afirmar que a retomada virá apenas a partir do
próximo ano… Ou seja, a despeito da tese do “desacoplamento”
do Brasil em relação às economias centrais, tese bastante
duvidosa após sucessivas décadas de mundialização capitalista,
o cenário atual demonstra que o fantasma da crise econômica
mundial aportou com força no país. No entanto, não são poucos
aqueles que continuam apostando na capacidade do governo de
evitar que, em ano eleitoral, a atual desaceleração econômica
transforme-se em uma ameaça ao projeto de poder lulista.
Afinal, apesar do fraco desempenho da economia, o mercado de
trabalho tem se mantido aquecido e a desconcentração de renda
na base da pirâmide salarial não parece dar sinais de
reversão… Evidentemente, há algo de verdadeiro nessa
constatação. Malgrado os planos de demissão voluntária (PDVs)
já anunciados por algumas montadoras, de uma maneira geral,
até o momento, as empresas não estão demitindo. Isto alimenta
uma sensação de que o buraco não é tão profundo e a economia
vai se recuperar em breve, desanuviando o céu sobre o Palácio
do Planalto. Aparentemente, esta esperança esquece-se
convenientemente de uma velha lição do marxismo crítico que
floresceu na América Latina entre as décadas de 1950 e 1960:
em países outrora colonizados e depois subdesenvolvidos, as
modernas relações de produção capitalistas são dominadas pelo
atraso, tendendo a reproduzir as bases materiais da produção
massificada do trabalho barato.
Após tanta mistificação em torno da chamada “nova classe
média”, muitos se esqueceram de que se olharmos por trás da
relativa desconcentração de renda entre os que vivem do
trabalho encontraremos a dura realidade de uma sociedade
periférica cuja economia depende estruturalmente do preço
anomalamente baixo da força de trabalho. Em suma, os
trabalhadores brasileiros tornaram-se reféns de um modelo de
desenvolvimento capitalista cuja estrutura alimenta-se de
condições cada dia mais precárias de vida e de trabalho. Se a
gênese desse modelo remonta ao início dos anos 1990, quando as
políticas de ajuste estrutural implementadas pelos governos
Collor e FHC elevaram a taxa de desemprego aberto de 3% para
9,6% da População Economicamente Ativa (PEA), nocauteando a
massa salarial (bastaria lembrar que, de 1995 a 2004, a
participação dos salários na renda nacional caiu 9% enquanto
as rendas de propriedade aumentam 12,3%), sua consolidação foi
obra dos governos de Lula da Silva.
À primeira vista, a ênfase social do modelo de desenvolvimento
pilotado pela burocracia lulista anunciaria uma alternativa.
Afinal, houve uma intensa reformalização do mercado de
trabalho durante a década passada que, somada a um crescimento
econômico da ordem de 4% ao ano, redundou em uma incorporação
média de aproximadamente 2,1 milhões de novos trabalhadores
por ano ao mercado formal. A base da pirâmide salarial
aumentou nitidamente, fortalecendo o mercado de trabalho
brasileiro: entre 2004 e 2010, a participação relativa dos
salários na renda nacional aumentou 10%, enquanto os
rendimentos oriundos da propriedade decresceu cerca de 13%. No
entanto, destes 2,1 milhões de novos postos de trabalho
criados por ano, cerca de 2 milhões remuneram o trabalhador em
até 1,5 salário mínimo. Eis o segredo de polichinelo:
crescimento apoiado em trabalho barato.
Dispensável dizer que estes trabalhadores simplesmente não são
capazes de poupar. Ou seja, todo o dinheiro que entrou na base
da pirâmide salarial na última década foi imediatamente
convertido em consumo popular. E o aumento desse tipo de
consumo combinou-se com o barateamento das mercadorias
proporcionado pelo aprofundamento da mundialização
capitalista. Um novo padrão de consumo emergiu no país: pósfordista, pois baseado na capacidade do regime de acumulação
mundializado em multiplicar a oferta de novos bens; popular,
pois apoiado no crescente endividamento das famílias
trabalhadoras que precisam fazer das tripas coração para pagar
as incontáveis prestações do comércio varejista.
Ocorre que este novo padrão de consumo repousa não sobre os
ganhos de produtividade proporcionados pelo desenvolvimento da
indústria nacional, mas, sobretudo, sobre os ganhos de escala
garantidos por alguns setores estratégicos: mineração,
petróleo, agro-indústria e construção civil. E esses motores
econômicos não são conhecidos por contratar predominantemente
força de trabalho complexa: ao contrário, eles empregam
largamente força de trabalho não-qualificada. Como
consequência, a base da pirâmide alarga, mas remunera muito
mal. A economia cresceu às custas da deterioração da indústria
de transformação, a única capaz de garantir ganhos reais de
produtividade. Ou seja, as relações de produção capitalistas
representadas por uma moderna indústria financeira, pelo
complexo processo de exploração do pré-sal e pelo desenho pósmoderno dos novos estádios da Copa do Mundo, apenas reproduzem
as bases materiais da produção massificada do trabalho barato.
Até quando?
(Publicado originalmente na Revista Sociologia Ciência &
Vida.)
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