Palavras finais Gracielle Marques SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros MARQUES, G. Geografias do drama humano: leituras do espaço em São Bernardo, de Graciliano Ramos, e Pedro Páramo, de Juan Rulfo [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. 141 p. ISBN 978-85-7983-131-7. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. PALAVRAS FINAIS O mexicano Juan Rulfo (1918-1986) e o brasileiro Graciliano Ramos (1892-1953) são representantes de uma escrita que não toma a paisagem como um elemento estático e neutro. Ao contrário, a geografia física se constitui como espaços que refletem e determinam os conflitos da existência humana, uma vez que são interiorizados e se relacionam de maneira dinâmica com a subjetividade das personagens. Um olhar para a geografia imaginada e ficcionalizada nas obras Pedro Páramo (1955), de Juan Rulfo, e São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, nos faz desvendar, à primeira vista, construções espaciais que apontam para a ideia de espaços que tentam obstaculizar o trânsito das personagens. Sob o domínio desses grandes proprietários rurais, Pedro Páramo e Paulo Honório, os limites, “as cercas”, procuram cercear a liberdade. Ambos buscam vigiar seus territórios, seus domínios, como se neles não houvesse uma vida autônoma. Realmente, a noção de propriedade em ambos os romances está atrelada à de territorialização do outro. Consequentemente, a existência humana aparece diretamente afetada por essa força rude e rancorosa que 134 GRACIELLE MARQUES é a energia propulsora das ações destrutivas das relações humanas tratadas no enredo narrativo. A relação indivíduo-espaço se processa por meio de uma dialética, na qual o homem é moldado pelo espaço e este se transforma a partir das diferentes visões e gestos daquele. Esse processo abriga horizontes metafóricos que absorvem o mundo narrativo por meio da compreensão de espaços que denotam: a luta do homem pela sobrevivência, a busca pelo paraíso terrenal, a impossibilidade de ocupar certos espaços, a busca por um centro, um começo etc. Dos cenários, das naturezas, dos ambientes e das paisagens se depreendem várias leituras que invocam múltiplas imagens. O estado de espírito das personagens em contato com esses espaços, assim como o silêncio, os ruídos, as cores e a temperatura, são detalhes que enriquecem a experiência do mundo construído por tais recursos expressivos. A leitura de um ambiente perderia sentido se não distinguíssemos elementos como a intensidade da chuva e do vento, o grito de algum animal, o odor etc. Esses elementos que tecem o espaço têm um lugar importante nas obras dos escritores focalizados, dada a sua eficácia no nível da micro e da macroestrutura narrativa. Todo um mundo interior vai sendo tecido pela simbologia dos objetos que compõem o espaço. As paredes comunicam o eco, o vazio existencial; o vento espalha a esterilidade e a incomunicação; uma porta fechada traduz um limite intransponível; caminhos que levam os humanos a nenhuma parte. A fantasmagórica Comala e o sertão alagoano onde se localizam as terras de São Bernardo são espaços dominantes das ações. Espaços habitáveis cuja transformação humana aliada a um clima político e econômico impreciso os torna labirintos que refletem e determinam os conflitos da existência humana. De forma poética, o espaço real denotado é convertido em condição de inferno, miséria e desolação. Esse é o processo que enfatiza Marina Gálvez (1987, p.72) ao GEOGRAFIAS DO DRAMA HUMANO 135 observar a passagem que o conflito indivíduo-espaço (seja social, histórico, psicológico, existencial etc.) faz ao interior do ser, universalizando-o. As imagens do espaço do conflito narrado atuam funcionalmente sobre as personagens. Assim, os conflitos pela busca das origens e da restauração de um mundo que desamparou seus homens são visíveis em Pedro Páramo e São Bernardo. No primeiro, especialmente na trajetória de Juan Preciado que, retornando para resgatar suas origens, vê-se diante de uma natureza incompatível com a implantação de um mundo antes possível nesse espaço. Agora predomina uma atmosfera impregnada de irreal, que é o ambiente de Comala. Contudo, é a criação de um tempo e de um espaço míticos, ou seja, que anulam a linearidade, que permite a revisitação e a atualização destes em um movimento circular e contíguo captado, entre outros procedimentos, pela estrutura fragmentada, que explicita a impossibilidade dos indivíduos de descobrirem um centro, um começo ou um recomeço. Em São Bernardo, a memória por meio da escrita que tenta recriar o mundo avassalador do fazendeiro Paulo Honório para cessar o tormento interior também se depara com a incapacidade de voltar atrás. Perdido em meio às lembranças, Paulo Honório é a angústia e a solidão que buscam o equilíbrio de uma realidade que lhe escapa. Os espaços e os diversos tempos de ambas as narrativas estão borrados e apenas promovem o surgimento de desejos conflituosos, até mesmo excludentes entre si. Dessa maneira, fica estabelecida uma ligação entre a identidade do ser, a natureza e as sociedades, nas quais as obras estão inseridas. Os valores, ressaltados nessa ligação, adquirem perspectiva universal porque são criados por uma consciência estética literária aguda aliada ao crítico olhar social, histórico e humano de seus autores. O desejo pela busca de um espaço de plena existência está presente em ambas as narrativas. Em Pedro Páramo, 136 GRACIELLE MARQUES as barreiras que impedem o devir das personagens surgem essencialmente do sentimento de culpa que destrói as esperanças. Uma vez mortas, as personagens voltam a habitar os mesmos espaços devastados, confirmando a impossibilidade de se escapar desse universo abrasivo. Os caminhos percorridos por Juan Preciado vão revelando esse movimento de desgraças. Revivem toda a história que culminou em sua existência e ida a Comala dentro de um processo de escrita em que as palavras adquirem o poder mágico de recriar tempos contíguos, realidades subjetivas que se entrecruzam. Vozes ocas que são instaladas em um ambiente formado por cenários e naturezas igualmente ocos e estéreis, que contam sobre o mundo inconsciente dos desejos humanos. Para isso, o espaço ora é determinado ora se indetermina, já que algumas vezes as personagens vivem e o mundo vive, outras vezes apenas se movem e o mundo está confuso e em ruínas, e outras, sem o peso do estar vivo, padecem as penas da alma. Todas essas experiências mudam a percepção e o tratamento dado ao espaço na narrativa. Também em São Bernardo, dados os desdobramentos da personagem central, isto é, entre a experiência de fazendeiro e sujeito da ação com a do escritor que reavalia os acontecimentos passados, articulam-se superposições de imagens e vivências que encontram nos objetos espaciais uma relação que vai além de meramente estruturar e localizar as ações da personagem. O pio da coruja, as cercas de arame farpado, as construções da fazenda, são convertidos em anúncios funestos, fronteiras que denotam a maneira de ver e estar no mundo de Paulo Honório. Simetricamente às dificuldades de ser e estar na narrativa das demais personagens. Os elementos naturais têm um papel importante, como vimos, em ambas as narrativas, pois as questões sugeridas pela água, pela terra, pelo ar e pelo fogo mostram a proximidade do homem com seu ambiente natural. A problemática GEOGRAFIAS DO DRAMA HUMANO 137 surge da impossibilidade de comunhão com uma terra que é o prolongamento das personagens, pois passa a atuar contra estas na medida de suas ações. O deslocamento e a inquietação das personagens pelo espaço estão, então, condicionadas pela degradação e pela injustiça social, frutos do desamor e da incomunicação. Desumanizados por suas atitudes, rompem-se as possibilidades de viver em um mundo de plenitude. Se por dentro o vazio e a culpa se eternizam, o tempo-espaço assumirá as mesmas feições, ou seja, se tornará refratário e especular. É, pois, mediante uma geografia da existência, apreendida em seus contrastes, que Juan Rulfo e Graciliano Ramos conseguem, com plenitude literária, uma funcionalidade excepcional que expande os significados concretos do espaço em seus romances. Assim, é possível afirmar que, por meio da ressignificação do espaço, no caso a geografia latino-americana, eles refletem sobre circunstâncias vitais da América Latina, entre elas o conflito universal do homem com o espaço.