Transporte Iônico e o Potencial de Membrana Até o momento

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5910187 – Biofísica II – FFCLRP – USP – Prof. Antônio Roque – Aula 4
Transporte Iônico e o Potencial de Membrana
Até o momento, consideramos apenas o transporte de solutos neutros (sem carga
elétrica) através da membrana celular. A partir de agora, vamos passar a estudar o
transporte de solutos carregados (íons) pela membrana celular.
O fluxo iônico através das membranas das células nervosas é fundamental para o
controle das propriedades de excitabilidade e de geração de pulsos elétricos por
essas células. Esses pulsos elétricos são uma das principais formas de
comunicação entre as células nervosas, de maneira que o entendimento das
propriedades de transporte de íons pela membrana celular é essencial para uma
compreensão do funcionamento do sistema nervoso.
Existe uma diferença de potencial elétrico entre os dois lados da membrana de
qualquer célula viva, animal ou vegetal. O valor de repouso desse potencial é
chamado de potencial de repouso (veja a figura abaixo).
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O potencial de repouso pode ser medido colocando-se um eletrodo dentro da
célula, em contato com o seu citoplasma, e outro eletrodo em contato com a
solução extracelular.
Um esquema de um experimento típico para a medida do potencial de repouso de
uma célula está mostrado na figura abaixo.
Com o uso de técnicas como a ilustrada acima, o potencial de repouso foi medido
para diversos tipos de células de plantas e animais. Os resultados indicam que,
quase sempre, o potencial do citoplasma é negativo em relação ao potencial do
meio extracelular.
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Tomando-se como referência para o zero de potencial o seu valor no meio
extracelular, o valor da diferença de potencial Vm entre o interior e o exterior da
maioria das células está entre –100 mV e –10 mV. A figura abaixo dá um
exemplo de uma medida de Vm.
Existem também diferenças nas concentrações iônicas entre os dois lados da
célula e essas diferenças de concentração são mantidas constantes no repouso. Por
exemplo, o citoplasma tem maior concentração de íons de potássio em relação ao
exterior e menor concentração de íons de sódio em relação ao exterior.
No repouso, um neurônio concentra íons de potássio (K+) e expele íons de sódio
(Na+). Um dos mecanismos que mantém este desequilíbrio é a chamada bomba de
sódio-potássio, um complexo de moléculas protéicas grandes que, em troca de
energia metabólica (hidrólise de ATP), transporta sódio para fora da célula e
potássio para dentro dela (a cada três íons Na+ levados para fora, dois íons K+ são
bombeados para dentro). Esta é uma das razões para o alto consumo energético
das células nervosas.
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A tabela abaixo dá os valores das concentrações de alguns íons, dentro e fora da
célula, para algumas células selecionadas.
Concentração (mmol/L)
Íon
Lula
Sapo
Água
Humano
Citoplasma
Sangue
K+
400
20
10
124
2,25
150
5,35
Na+
50
440
460
10,4
109
12 – 20
144
Cl
40 – 150
560
540
1,5
77,5
73,5
111
Ca++
0,0001
10
10
4,9
2,1
–
6,4
Mg++
10
54
53
14,0
1,25
5,6
2,14
−
Salgada
Citoplasma Plasma Citoplasma
Plasma
Concentrações intra- e extracelulares de alguns íons para o axônio gigante de lula, a fibra
muscular do sapo e eritrócitos humanos.
A diferença na composição iônica entre os dois lados da membrana afeta as
propriedades elétricas das células.
As diferenças no potencial e na concentração de íons entre os dois lados da
membrana estão relacionadas, de maneira que mudanças no potencial podem
resultar em mudanças na concentração de íons e vice-versa. A relação entre o
potencial de repouso e a concentração de íons é controlada pela membrana.
Estudaremos a partir de agora esta relação e os mecanismos físico-químicos
responsáveis pela manutenção das diferenças de potencial e de concentração
iônica.
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Eletrodifusão
Nas aulas anteriores consideramos o transporte de partículas na presença de um
gradiente de concentração. Entretanto, se as partículas tiverem carga elétrica e
estiverem sob o efeito de um campo elétrico, haverá transporte de partículas
provocado por dois mecanismos físicos diferentes:
• Difusão, devido à existência de um gradiente de concentração de partículas
entre os dois lados da membrana celular; e
• Arrasto, devido à existência de um gradiente de potencial elétrico entre os
dois lados da membrana celular.
Lembrando das aulas de eletricidade e magnetismo, um gradiente de potencial
elétrico está associado a um campo elétrico pela relação:

E = −∇V
.
(1)
Em uma dimensão (por exemplo, a do eixo-x), que será o caso considerado aqui,
esta relação é:
E =−
∂V
∂x
.
(2)
E uma partícula de carga q movendo-se em um campo elétrico E
(unidimensional) sofre uma força F dada por:
f = qE .
(3)
Esta força elétrica é a força de arrasto (veja a Aula 1, páginas 11 e 12) atuando
sobre as partículas
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Como há dois mecanismos de transporte de partículas carregadas através de uma
membrana celular (difusão e arrasto), podemos escrever as expressões
correspondentes aos fluxos de partículas por esses dois mecanismos.
O fluxo por difusão é descrito pela lei de Fick. Até agora, estávamos
representando o fluxo pela letra J. Porém, a partir desta aula a letra J passará a ser
usada para representar densidade de corrente elétrica (corrente elétrica por
unidade de área). Para não confundir, vamos passar a representar fluxo (partículas
por unidade de área por unidade de tempo) pela letra grega φ (fi).
Sendo assim, a lei de Fick (Aula 1, equação 1) passa a ser escrita como,
∂c
φ D = −D ,
∂x
(4)
onde c é a concentração de partículas (que tem valores diferentes dos dois lados
da membrana) e D é o coeficiente de difusão.
Lembrando da Aula 2, o coeficiente de difusão D pode ser escrito como
l2
D=
,
2τ
(5)
onde l pode ser interpretado como o livre caminho médio entre duas colisões e τ
pode ser interpretado como o tempo médio entre duas colisões.
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Já o fluxo devido ao arrasto provocado pelo campo elétrico pode ser escrito como
(Aula 1, equações 13 e 14):
φ a = cv = µ cf p ,
(6)
onde v é a velocidade com a qual as partículas se movem (suposta como a mesma
para todas as partículas), fp é a força elétrica por partícula (fp = qE, onde q é a
carga de uma partícula) e µ é a mobilidade mecânica de uma partícula (µ = v/fp).
Vamos passar, a partir de agora, a descrever as partículas coletivamente em
termos do número de moles. Portanto, c(x,t) será a concentração molar, ou
molaridade, definida como:
c=
Moles de soluto
,
Litros de solução
e φ será o fluxo molar (= moles de soluto por unidade de área por unidade de
segundo). Como visto na aula 1, as unidades de D (área/tempo) são as mesmas,
independentemente de medirmos a quantidade de partículas por número de moles
ou número de partículas.
Como estamos considerando número de moles ao invés de número de partículas,
vamos definir as seguintes quantidades para um mol de partículas:
• v = velocidade de um mol de partículas;
• f = força elétrica por um mol de partículas;
• u = mobilidade mecânica molar (u = v/f).
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Desta forma, a equação (6) para o fluxo por arrasto, em termos molares, fica
escrita como:
φ a = ucf .
(7)
Vamos considerar que as partículas são íons (portanto, com carga) de valência z e
que a força f é causada por um campo elétrico com intensidade E = − ∂V ∂x , onde
V é o potencial elétrico.
Então, a força elétrica sobre um mol de partículas é
f = qE,
onde q é a carga de um mol de partículas.
A carga de um mol de partículas pode ser escrita em termos da constante de
Faraday F. A constante de Faraday é definida como a carga de um mol de
partículas monovalentes (z = 1).
A carga de uma partícula monovalente é a carga elétrica fundamental e:
e = 1,602 × 10−19 C.
(8)
O número de partículas em um mol é o número de Avogadro:
NA = 6,022 × 1023 mol−1.
(9)
Portanto, o valor de F é:
F ≡ NA×e = 9,648 × 104 C/mol.
(10)
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A carga de um mol de partículas de valência z qualquer é então,
q = zF,
(11)
de maneira que a força elétrica sobre um mol de partículas pode ser escrita como:
∂V
f = qE = zFE = −zF .
∂x
(12)
Combinando as equações (7) e (12),
φ a = −uczF
∂V
∂x
.
(13)
Esta equação é chamada de lei de Planck.
A lei de Planck descreve o fluxo de partículas carregadas sob a ação de um campo
elétrico em um meio viscoso (note que as partículas não estão se movimentando
no vácuo, mas sofrem colisões com as partículas do meio). Ela implica que o
movimento de cargas elétricas positivas (z > 0) ocorre no sentido contrário ao do
gradiente do potencial elétrico V(x). Já as partículas com carga elétrica negativa (z
< 0) se movem no sentido gradiente do potencial elétrico V(x).
Combinando as equações (4) e (13), temos que o fluxo das partículas da espécie
iônica n sob ação dos mecanismos de difusão e de arrasto é dado por:
∂c (x, t)
∂V (x, t)
φn = −Dn n
−un zn Fcn (x, t)
∂x  .

∂x

 
difusão
(14)
arrasto
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Note que as unidades do fluxo escrito acima são número de moles por unidade de
área por unidade de tempo. Se multiplicarmos o fluxo φn pela carga de um mol de
partículas da espécie n, teremos uma grandeza cujas unidades serão carga elétrica
por unidade de área por unidade de tempo. No SI, essa grandeza tem unidades de
C/m2.s (coulombs por metro quadrado por segundo).
A corrente elétrica I em um dado ponto do espaço é definida como a carga
elétrica que passa por esse ponto do espaço dividida pela unidade de tempo. No
SI, a unidade de I é o ampère (A): 1 A ≡ 1 C/s. Portanto, as unidades de fluxo
iônico são as de corrente elétrica por unidade de área. No SI, C/m2.s = A/m2.
Estas são as unidades de densidade de corrente.
Lembrando das aulas de eletricidade e magnetismo, dado um elemento de área dA
de orientação definida pelo versor normal 𝑛 e supondo que por esse elemento de
área passa uma corrente I cuja direção e sentido correspondem ao de um vetor 𝐽
(figura abaixo), a corrente I pode ser escrita como
𝐼 = 𝐽 ∙ 𝑛𝑑𝐴.
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O vetor 𝐽 é chamado de densidade de corrente e suas unidades são as de corrente
por unidade de área (no SI, A/m2). Como estamos considerando apenas casos de
fluxos unidimensionais aqui (as direções de 𝐽 e de 𝑛 são as mesmas), a densidade
de corrente torna-se um escalar J dado por:
I
J= ,
A
(15)
onde A é a área da superfície por onde passa a corrente I.
Voltando à equação (14), multiplicando o fluxo iônico φn pela carga de um mol de
íons da espécie n (znF) teremos a densidade de corrente dos íons da espécie n:
J n (x, t) = zn Fφn (x, t) .
(16)
De forma explícita:
# ∂c (x, t)
∂V (x, t) &
J n (x, t) = −zn F % Dn n
+ un zn Fcn (x, t)
(
$
∂x
∂x ' .
(17)
Esta é a chamada equação de Nernst-Planck. Ela é a base teórica para a
descrição do fluxo iônico através de membranas celulares em decorrência do
efeito combinado dos gradientes de concentração e de potencial elétrico.
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O sinal negativo na equação (17) indica que íons positivos (z > 0) se movem na
direção oposta dos seus gradientes de concentração e de potencial elétrico. Já os
íons negativos (z < 0) se movem na direção oposta do seu gradiente de
concentração, mas na mesma direção do gradiente de potencial elétrico (note que
o segundo termo entre parênteses é multiplicado por zn).
Esta equação pode ser reescrita usando-se a chamada relação de Einstein. Como
visto na Aula 1, pelo modelo de Einstein para o movimento browniano o processo
de difusão de um conjunto de partículas colocadas em um meio fluido é devido
aos espalhamentos dessas partículas quando elas sofrem colisões com as
partículas do meio. A distância média percorrida por uma partícula entre duas
colisões é l e o intervalo de tempo médio entre duas colisões é τ.
Quando há um campo de força externo atuando sobre as partículas, de maneira
que a força sobre uma partícula seja fp, no intervalo entre duas colisões a partícula
sofre uma aceleração dada por
a=
fp
m
,
onde m é a massa da partícula. Portanto, no intervalo entre duas colisões a
partícula sofre um movimento acelerado e a sua velocidade de arrasto cresce
linearmente a partir de v(0) = 0 até v(τ) = aτ = (fp/m).τ = vmax. A velocidade média
da partícula é v = ( vmax − v0 ) 2= f pτ 2m e a sua mobilidade média é
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up =
v
τ
=
f p 2m .
(18)
Por outro lado, pelo teorema da equipartição da energia (procure em um livro de
Termodinâmica), a energia cinética média de uma partícula em movimento
unidimensional está relacionada à temperatura por,
1
1
mv 2 = kT ,
2
2
(19)
onde k é a constante de Boltzmann, T é a temperatura absoluta e v 2 é a média do
quadrado da velocidade da partícula. O valor da constante de Boltzmann é
k = 1,381 × 10−23 J/K.
Vamos supor que
v2
é igual a
v2
(este é um ponto fraco nesta demonstração).
Vamos também supor que v = l τ Com estas hipóteses, a equação (19) torna-se
1 2 1 l2 1
mv = m 2 = kT.
2
2 τ
2
Esta equação pode ser reescrita como (apenas rearranja-se os termos):
! 2m $! l 2 $
# &# & = kT.
" τ %" 2τ %
Substituindo a equação (18) nesta equação e lembrando que D = l 2 / 2τ , obtemos
a relação de Einstein em termos da mobilidade da partícula:
D = u p kT .
(20)
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Lembrando que k = R/NA, onde R é a constante universal dos gases (= 8,314
J/mol.K) e NA é o número de Avogadro, e que a mobilidade molar é u = up/NA,
podemos reescrever a relação de Einstein como,
D = uRT .
(21)
Voltando agora ao tema desta aula, usando a relação de Einstein na sua forma
molar (equação 21) podemos reescrever a equação de Nernst-Planck (equação 17)
como
∂c ( x, t )
∂V ( x, t ) ⎞
⎛
J n ( x, t ) = −un zn F ⎜ RT n
+ zn Fcn ( x, t )
⎟ .
∂
x
∂
x
⎝
⎠
(22)
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