Universidade de São Paulo Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto Programa de Pós-Graduação em Imunologia Básica e Aplicada Autores: Elyara Maria Soares e Milena Sobral Espíndola O sistema do complemento O sistema do complemento consiste em proteínas séricas (inativas na circulação) e de superfície celular. Quando ativadas, interagem entre si, formando complexos com atividade proteolítica que amplificam a fagocitose e a resposta inflamatória, visando à eliminação de agentes infecciosos. As proteínas do sistema do complemento correspondem a aproximadamente 5% das globulinas do soro, sendo sintetizadas prioritariamente por células do fígado e macrófagos teciduais. Existem 3 vias de ativação: (1) Clássica, dependente de anticorpo; (2) Lectinas e (3) Alternativa, ambas independentes de anticorpo. De modo geral, os componentes clivados originam dois fragmentos, um maior (b) que permanece no local de ativação e um menor (a) que segue para a fase fluida. 1. Via clássica Os domínios CH2 (IgG1, 2 e 3) ou CH3 (IgM) dessas imunoglobulinas interagem com C1q, um hexâmero no qual estão ligadas as proteases C1r e C1s. Após a ligação do anticorpo a um antígeno multivalente, o complexo antígeno-anticorpo-C1q promove a ativação enzimática dos dímeros C1r e C1s. A protease C1s cliva as moléculas subsequentes da cascata, C4 e C2, em C4a e C4b e C2a e C2b respectivamente. O fragmento C4b liga-se à parede de patógenos ou à membrana celular e, em seguida, o C2b, formando uma nova enzima, a C3 convertase (C4b2b). Esse complexo proteolítico cliva a molécula C3 (C3a e C3b). O C3b formado pode ligar-se ao complexo C4bC2b, formando a C5 convertase (C4bC2bC3b), clivando C5 (C5a e C5b) que atua na fase tardia do sistema (C5b-C9). 2. Via das Lectinas A proteína ligadora de manose (MBL- Mannose binding lectin) inicia a ativação do complemento por meio da ligação à manose presente na parede de algumas bactérias (ex. Escherichia coli, Candida albicans). Essa proteína é estruturalmente semelhante ao C1q da via clássica e tem as proteases MASP1 e MASP2 acopladas à MBL, análogas ao C1r e C1s, 1 respectivamente. Assim, a MASP2 cliva C4 (C4a e C4b) e C2 (C2a e C2b) e o restante da cascata é semelhante ao da via clássica. 3. Via alternativa Fisiologicamente, ocorre clivagem espontânea em baixas taxas de C3 em C3a e C3b. O C3b é instável em fase fluida e pode ser hidrolisado se permanecer solúvel. Por outro lado, o C3b pode ligar-se à parede de patógenos e iniciar a ativação da via, com subsequente incorporação e clivagem do fator B (Ba e Bb) pelo fator D. O complexo formado é a C3 convertase (C3bBb) da via alternativa, o qual é estabilizado pela properdina. Esse complexo cliva C3 (C3a e C3b) promovendo elevada produção de C3b, que pode ligar-se à parede de patógenos ou ainda formar a C5 convertase (C3bBbC3b) da via alternativa, que cliva C5 (C5a e C5b). Mesmo sendo ativadas por diferentes maneiras, as 3 vias levam a ativação do C3 e geração da C5 convertase, moléculas indispensáveis para a formação do complexo de ataque à membrana (MAC – “Membrane Attack Complex”). Complexo de ataque à membrana A formação do MAC é iniciada com o fragmento C5b ligando-se às moléculas subsequentes C6, C7 e C8. Em seguida, há o recrutamento das proteínas C9, que se polimerizam e formam o MAC, promovendo a formação de poros na membrana celular, influxo de água e íons e, finalmente, lise celular. Funções do Sistema do Complemento Para que o sistema do complemento exerça suas funções efetoras no sistema imunológico, é necessário que haja a interação das proteínas do complemento com seus respectivos receptores presentes em diversas células da resposta imune inata e adaptativa. o Opsonização e fagocitose: O C3b, C4b e o iC3b são opsoninas, ou seja, recobrem a superfície de microrganismos para que os mesmos sejam mais facilmente fagocitados. A fagocitose ocorre quando há interação do fragmento opsonizante com seu respectivo receptor nos fagócitos mononucleares e neutrófilos. Desse modo, C3b e C4b ligam-se ao receptor CR1, enquanto iC3b liga-se a CR3 e CR4. o Estimulação inflamatória: Os produtos de clivagem C3a e C5a atuam como anafilatoxinas, promovendo a desgranulação de mastócitos, que liberam aminas vasoativas e leucotrienos no sítio infeccioso. A interação desses produtos com seus respectivos receptores C3aR e C5aR, presentes em células endoteliais e granulócitos, estimula a quimiotaxia de leucócitos. 2 Em conjunto, esses eventos contribuem para o processo inflamatório com aumento da permeabilidade capilar e influxo de células. (Inflamação – Resposta Imune Inata) o Remoção de imunocomplexos: Nas respostas humorais, a interação antígeno-anticorpo pode levar à formação de imunocomplexos, que precisam ser eliminados. A ligação de C3b a esses imunocomplexos facilita a remoção dos mesmos pela ligação de C3b ao CR1 expresso em hemácias. Essas migram para o fígado ou baço carregando os imunocomplexos que são eliminados pelo sistema fagocitário mononuclear. o Citólise: A lise de organismos estranhos ou de células-alvo é mediada pelo MAC. Após a ativação do complemento e realização de suas funções efetoras, com consequente eliminação do patógeno ou célula alvo, é necessário que haja a regulação da ativação desses componentes. Para isso, existe nas superfícies celulares ou no plasma de mamíferos uma série de proteínas reguladoras que desempenham essa função: Doença relacionada Regulador Localização Função Inibidor de C1 (C1 INH) Plasma Inibe a atividade proteolítica de C1r e C1s Angiodema hereditário DAF, MCP e CR1 Membrana Inibem a formação da C3 convertase da via clássica deslocando C2b de C4b; e da via alternativa deslocando Bb de C3b. Hemoglubinúria Paroxistica Noturna Fator I Plasma Induz a clivagem de C3b em iC3b tendo como cofatores MCP/CR1 - Fator H Plasma Inibe a formação da C3 convertase da via alternativa através de sua ligação a C3b, impedindo o acoplamento do fator B. Evasão do sistema imune por Schistosoma, Neisseria gonorrheae e Haemophilus Proteína S Plasma Liga-se ao C7 impedindo que ele se insira na porção hidrofóbica da membrana, impossibilitando a formação do MAC Infecções por Neisserias CD59 Membrana Liga-se ao complexo C5b-C8 impedindo a ligação de C9 e consequente formação do MAC Infecções por Neisserias 3 Sistema do Complemento e Implicações Clínicas Existem microrganismos capazes de desenvolver mecanismos de escape da ativação do sistema do complemento. Estes podem ser por: o Recrutamento de proteínas reguladoras: helmintos do gênero Schistosoma produzem ácido siálico, o que facilita o recrutamento da proteína reguladora H; enquanto bactérias como a Neisseria gonorrheae e o Haemophilus sequestram ácido siálico do hospedeiro, facilitando também o recrutamento da proteína H. o Mimetismo molecular: a Escherichia coli produz uma proteína semelhante à C1 INH, que inibe a ativação do complexo C1. Já o Staphylococcus aureus e o Trypanosoma cruzi produzem proteínas que inibem a formação da C3 convertase. o Produtos de genes bacterianos: o Staphylococcus aureus produz uma proteína antagonista de C5a. Existem ainda indivíduos que possuem deficiência das proteínas do sistema do complemento. Tal fato leva ao desenvolvimento de doenças como: o Angioedema hereditário: causada pela deficiência do inibidor de C1 chamado C1 INH. A deficiência do inibidor irá provocar uma desregulação da ativação de C1, que vai levar a clivagem exacerbada de C4 e C2. Um fragmento proteolítico de C2 denominado C2-cinina, com a ajuda da bradicinina, promovem aumento da permeabilidade vascular, levando à formação de edema em diversos locais do corpo caracterizando a doença; o Doenças de imunocomplexos: ocorre quando há deficiência das moléculas de C1, C4 ou C2, por diversos mecanismos que ainda não foram muito bem elucidados. o Infecções bacterianas piogênicas: causadas por uma deficiência de C3, com consequente deficiência na opsonização e fagocitose de patógenos. o Deficiência da Adesão Leucocitária (LAD – “Leukocyte adhesion deficiency”): causada por mutação na cadeia β dos receptores CR3 e CR4, levando a deficiência de sua ação, com consequente diminuição da fagocitose por leucócitos e adesão celular ao endotélio. o Infecção de repetição: a deficiência na MBL leva a infecções de repetição em 5% dos indivíduos que a possui, enquanto 95% dos indivíduos são assintomáticos. 4 o Hemoglobinúria paroxística noturna: a deficiência do regulador DAF nas hemácias leva a um aumento das C3 e C5 convertases na superfície das mesmas e isso desencadeia a ativação das fases finais do sistema do complemento e formação do MAC, causando hemólise intravascular. o Septicemias por Neisserias: deficiências de C5, C6, C7, C8 e C9 levam a infecções por Neisserias, pois a formação do MAC é um dos principais mecanismos efetores contra essas bactérias. Desafios e Perspectivas o “Crosstalk” entre TLRs e Sistema do Complemento Recentemente foi descoberto um “crosstalk” entre TLR e o sistema do complemento que leva à alteração na resposta de linfócitos T. Neste contexto, as anafilatoxinas C3a e C5a podem promover ou inibir o desenvolvimento de células do padrão TH1 ou TH17 in vivo, permitindo um papel do complemento na homeostase e defesa do hospedeiro. O sistema do complemento e os TLRs, rapidamente desencadeiam resposta à infecção ou agentes microbianos comuns como o LPS ou CpG. Há uma cooperação entre estes dois sistemas justamente através dessa interação. Pelo menos 3 tipos de TLRs estão envolvidos nesse “crosstalk” (TLR2, 4 e 9). Esse mecanismo por um lado pode ser importante no combate à infecção, ou em alguns casos pode facilitar a evasão de patógenos da ativação pelo complemento. Muitos estudos estão em andamento para elucidar formas de tratamento de algumas doenças utilizando-se desse mecanismo. o Papel do CR2 CR2 tem papel importante na resposta imune adaptativa, participando da coestimulação do linfócito B, mas ainda não se sabe ao certo sua função na ativação do sistema do complemento . São necessários mais estudos com o objetivo de descobrir outras funções desse receptor. 5 Figura 1. Vias de Ativação do Sistema do Complemento. As vias de ativação do sistema do complemento compreendem a via Clássica, dependente de anticorpo; Lectinas e Alternativa, ambas independentes de anticorpo. Figura 2. Formação do Complexo de Ataque à Membrana (MAC). 6 Sugestões de Leitura Abbas, A.K; Lichtman, A. H.; Pillai, S; Imunologia Celular e Molecular. 6ª Edição, São Paulo; Imunobiologia: O sistema imune na saúde e na doença; Janeway, Travers, Walport e Shlomchik; 7ª Edição; Daniel Ricklin, George Hajishengallis, Kun Yang&Jhn D Lambris; Complement: a key system for immune surveillance and homeostasis. Nature Immunology, September 2010, Review. 7