A representação dos sujeitos de “referência

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A representação dos sujeitos de “referência estendida”
um estudo diacrônico
Maria Eugenia Duarte
SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros
DUARTE, ME. A representação dos sujeitos de “referência estendida”: um estudo diacrônico. In
LOBO, T., CARNEIRO, Z., SOLEDADE, J., ALMEIDA, A., and RIBEIRO, S., orgs. Rosae:
linguística histórica, história das línguas e outras histórias [online]. Salvador: EDUFBA, 2012, pp.
123-136. ISBN 978-85-232-1230-8. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.
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A representação dos sujeitos de
“referência estendida”:
um estudo diacrônico
1
Maria Eugenia DUARTE
Universidade Federal do Rio de Janeiro/CNPq/FAPERJ
Introdução
Os estudos da mudança na representação dos sujeitos pronominais do português
brasileiro (PB), à luz da Teoria de Princípios e Parâmetros, têm privilegiado os sujeitos
referenciais (definidos ou arbitrários) e os sujeitos não referenciais (não argumentais),
aqueles preferencialmente plenos e estes representados por um expletivo nulo ou “preenchidos” através de operações de alçamento ou de inserção de constituintes lexicais, o
que tem sido relacionado à orientação tipológica do PB para o sujeito e para o discurso
(cf. PONTES, 1982; GALVES, 1987; KATO, 1989; DUARTE, 2007; KATO; DUARTE,
2008; NEGRÃO; VIOTTI, 2008).
Há, entretanto, entre os sujeitos referenciais e os não referenciais, aqueles que têm
um antecedente representado por uma proposição (oração) ou uma porção maior do discurso e não podem ser retomados por um pronome pessoal. Em línguas que não aceitam
um sujeito nulo, tais sujeitos só podem ser retomados por um demonstrativo, como mostra (1), ou uma expressão nominal como “tal fato”, “essa situação”, etc.); nas línguas de
sujeito nulo, uma outra alternativa é uma categoria vazia, como ilustra o exemplo em (2):
(1) Holly: Eu serei Verônica!
Dona Irene: Isso é um sacrilégio. Faça o favor de tirar essa roupa. (No coração
do Brasil, Miguel Falabella, 1992)
(isso = o fato de você (um travesti) representar Verônica)
1 * Participaram da realização da pesquisa aqui relatada as alunas de IC Jennifer Oliveira (CNPq-Balcão) e Jullie Maggessi
(CNPq-Pibic).
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(2)Júlia: Você esperou-o vestida de quê?
Cristina: De coelhinho da Playboy.
Júlia: Não sei se Ø foi uma boa idéia. (A mulher integral, Carlos Eduardo
­Novaes, 1975)
(Ø = esperá-lo vestida de coelhinho da Playboy)
Esse sujeitos, que devem seu nome a Halliday e Hasan (1979), que a eles se referiram como “extended reference subjects”, têm merecido pouca atenção no que diz respeito
à investigação da mudança em curso no PB, relacionada à remarcação do valor do Parâmetro do Sujeito Nulo. Devemos a Paredes Silva (1985), que traduziu o termo “sujeitos
de referência estendida”, uma investigação pioneira sobre esse tipo de estrutura no PB,
com base em uma amostra de cartas pessoais escritas nos anos 80, estratificada for faixa
etária, nível de escolaridade e gênero. Seu objetivo principal foi, numa perspectiva funcionalista, mostrar o papel coesivo que essas construções desempenham no discurso, esteja
o demonstrativo expresso ou nulo, funcionando como elementos de costura do texto, seja
como orações de arremate, que dão fecho a um tópico discursivo, seja de gancho, que dão
continuidade ao tópico discursivo. Mais recentemente, Oliveira (2005a) retoma o tema,
sob a orientação de Paredes Silva, analisando, dentro da mesma perspectiva teórica, a
referência estendida, em textos jornalísticos, abrangendo diferentes funções e, posteriormente, apenas a função de sujeito Oliveira (2005b), com base em amostras do acervo do
Projeto PEUL (Programa de Estudos sobre o Uso da Língua), recolhidas para o estudo da
mudança em tempo real de curta duração (LABOV, 1994; PAIVA; DUARTE, 2003). Os
resultados de Oliveira (2005b) permitem depreender um movimento em direção ao uso do
demonstrativo, como veremos mais adiante.
O presente trabalho faz uma análise diacrônica dos sujeitos de “referência estendida” em tempo real de longa duração com base em uma amostra de peças de teatro escritas
no Rio de Janeiro ao longo de cerca de duzentos anos. Esse conjunto de peças, analisado
em Duarte (1993) para a investigação da realização dos sujeitos de referência definida,
tem sido ampliado e utilizado em análises do sujeito de referência arbitrária (SANTANA, análise em curso), dos sujeitos não argumentais em construções com verbos de alçamento que selecionam um DP (SANTOS, 2008) ou uma oração (HENRIQUES, 2008) e
em construções existenciais (MARINS, análise em curso). Espero, com esses resultados,
acrescentar dados ao conjunto de possíveis efeitos “colaterais” da mudança já implementada no PB no que diz respeito à preferência por sujeitos de referência definida plenos.
1 Os sujeitos de “referência estendida” e a hierarquia referencial
de Cyrino, Duarte e Kato (2000)
Com base nos resultados de Cyrino (1993, 1997) para a expansão do objeto nulo e
os de Duarte (1993) para a expansão dos sujeitos pronominais expressos, Cyrino, Duarte
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e Kato (2000) concluem que a referencialidade é altamente significativa interlinguisticamente para a pronominalização e propõem uma hierarquia referencial ilustrada em (3):
(3). Hierarquia Referencial
[L5 [L4 [L3 [L2 [L1não argumento] proposição ][-humano] [ [+humano] ]
3 p.
2 p. 1 p. [-ref] < ----------------------------------------------------------------------------------- > [+ref.]
Elementos com o traço [+humano] ocupariam o ponto mais alto da hierarquia,
enquanto elementos não argumentais (como os sujeitos expletivos) ocupariam o ponto
mais baixo. Assim, os pronomes de primeira e segunda pessoas, inerentemente humanos
se encontram no ponto mais alto, enquanto a terceira pessoa, que pode exibir o traço
[+/-animado], [+/-específico] estaria num ponto mais abaixo; uma proposição estaria
ainda mais abaixo, enquanto um não argumento estaria no extremo oposto da hierarquia
referencial.
No caso específico dos dois processos de mudança em curso observados no PB,
embora estes pareçam ter motivações independentes, ambos parecem guiados pela mesma hierarquia de referencialidade. Enquanto os objetos nulos se implementaram a partir
dos antecedentes com menor referencialidade, exatamente os que têm como antecedente
uma proposição, para só mais tarde atingirem os antecedentes representados por um SN,
particularmente aqueles com o traço [-animado], e resistirem mais com antecedentes com
o traço [+ animado] (cf. CYRINO, 1993, 1997), os sujeitos pronominais plenos começaram a se implementar a partir dos itens mais referenciais – os pronomes de primeira
e segunda pessoas (cf. DUARTE, 1993), atingem mais lentamente a terceira pessoa, a
começar pelos antecedentes com o traço [+ humano], e progridem mais lentamente com
antecedentes de menor referencialidade – os sujeitos com o traço [-animado]. O Gráfico 1
de Duarte (1993), com a representação de sujeitos plenos (versus nulos), com base em peças de teatro escritas no Rio de Janeiro ao longo dos séculos XIX e XX, permite observar
a atuação dessa hierarquia:
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Gráfico 1: Ocorrência de sujeitos de referência definida expressos ao longo de sete períodos (%) (Duarte 1993)
100
80
60
40
20
0
1845
1882
1918
1937
1ª pessoa
1955
2ª pessoa
1975
1992
3ª pessoa
Observe-se que a primeira e a segunda pessoas, com 31% e 7%, respectivamente,
de sujeitos expressos na primeira peça analisada, de 1845, atingem 82% e 78% na última,
de 1992. A terceira pessoa, por outro lado, parte de 17% e atinge 45% no último período.
Os resultados para a fala espontânea de uma amostra NURC-RJ, gravada nos anos 90,
mostram igualmente a primeira e a segunda pessoas liderando o preenchimento, 79%,
89%, enquanto a terceira chega a 63% (cf. DUARTE, 1995).2 Justifica-se, pois, o interesse
em observar o comportamento dos sujeitos de “referência estendida” ou “proposicionais”
sob uma perspectiva diacrônica.
A hipótese que orientou a pesquisa foi a de que o sujeito de referência estendida,
situado num ponto intermediário da hierarquia referencial (entre os sujeitos referenciais
definidos e os expletivos), mostraria uma tendência a acompanhar os sujeitos referenciais
de terceira pessoa. Haveria então uma competição entre um sujeito nulo e o uso do demonstrativo, com uma tendência a aumentar, ainda que mais lentamente, a preferência
pelo demonstrativo.
Nossa análise se insere na investigação sobre a mudança em curso na marcação
do PSN verificada no PB e se sustenta na associação da teoria da mudança proposta por
Weinreich, Labov e Herzog (2006 [1968]) e da teoria de Princípios e Parâmetros proposta
por Chomsky (1981). Enquanto o modelo de mudança apresentado por W, L e H elenca
os problemas que devem ser investigados no estudo da mudança – os condicionamentos,
a implementação, a transição, o encaixamento e a avaliação – o quadro de P&P nos
fornece uma teoria da linguagem, que nos permite levantar hipóteses e acompanhar o
curso da mudança, tendo em mente exatamente a busca de resposta a esses “problemas”.
Esse diálogo é fundamental no sentido de permitir estabelecer os limites que a Gramática
Universal impõe à variação linguística e buscar, a partir de evidências empíricas, generalizações, que, sem o suporte de uma teoria da gramática, poderiam ser perdidas ou passar
2 A análise da representação dos sujeitos definidos não leva em conta as coordenadas, a partir da segunda, com sujeitos
correferentes, pelo fato de um sujeito nulo nessas estruturas não ser uma propriedade exclusiva das línguas positivamente marcadas em relação ao Parâmetro do Sujeito Nulo.
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­despercebidas. Por outro lado, essas respostas permitem rever as propriedades asso-
ciadas ao PSN e os diferentes tipos de sujeito nulo que as línguas licenciam.3
2 A amostra utilizada
O quadro a seguir apresenta as peças distribuídas por sete períodos, numa tentativa de acompanhar os períodos considerados em Duarte (1993) para a análise da
representação dos sujeitos pronominais definidos. Como os sujeitos de referência estendida ou proposicionais são menos frequentes, foi necessário ampliar a amostra,
utilizando outras peças e procurando manter os mesmos critérios de seleção: utilizar
peças produzidas no Rio de Janeiro por autores bastante populares em seu tempo. A
última coluna traz informações sobre o ano de nascimento dos autores.
Quadro 1. Peças utilizadas na análise
ANO
PEÇA
Período I
1838/1847
• O noviço (1845)
• As casadas solteiras (1845)
• Quem casa quer casa (1845)
Período II
1870/1889
• Direito por linhas tortas (1870)
• Como se fazia um deputado (1882)
• Caiu o ministério (1883)
• As doutoras (1889)
Período III
1918-1920
• O simpático Jeremias (1918)
• Onde canta o sabiá (1920)
Período IV
1937/1949
Período V
1955
• O hospede do quarto N°2 (1937)
• Flagrantes do Rio (1945)
• A garçonnière do meu marido (1949)
• Um elefante no caos (1955)
• Bonito como um deus (1955)
• A gaivota (1955)
• A mulher integral (1975)
Período VI
1975/1979
• Os órfãos de Jânio (1979)
Período VII
1989/1992
• A partilha (1989)
• No coração do Brasil (1992)
AUTOR
 Martins Pena
(1815/1848)
 França Júnior
(1838/1890)
 Gastão Tojeiro
(1880-1965)
 Armando Gonzaga
(1884/1953)
 Silveira Sampaio
(1914/1964)
 Millôr Fernandes
(1923)
 Carlos Eduardo Novaes
(1940)
 Millôr Fernandes
(1923)
 Miguel Falabella
(1956)
A periodização proposta na coluna 1 leva em conta o ano em que a peça foi
escrita; daí termos autores, cuja data de nascimento é bem próxima, como Gastão
3 Kato e Duarte (2008) mostram que a orientação para o discurso manifestada pelo PB é a responsável pelo não desenvolvimento de um expletivo lexical na posição de sujeito das sentenças impessoais; línguas com tal orientação não têm
expletivos foneticamente realizados (LI e THOMPSON, 1976); daí as operações de alçamento de constituintes para
essa posição, observadas no PB, uma tentativa de “preencher” a posição do sujeito com itens referenciais.
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Tojeiro e Armando Gonzaga, situados dentro de diferentes períodos. Sabemos que,
dentro da perspectiva gerativista, a gramática de um indivíduo, entendida como Língua-I, se fixa na infância. Entretanto, quando se trabalha com a fala culta e com textos escritos, ainda que se trate de textos cuja preocupação é uma proximidade com a fala, como é
o caso das peças aqui utilizadas, é necessário considerar a influência do processo de letramento na gramática da L1. Kato (2005) defende a hipótese de que, durante esse processo,
o indivíduo tem acesso indireto à Gramática Universal, através de sua L1, que contém
uma periferia marcada, na qual valores paramétricos diferentes daqueles que caracterizam a L1 podem estar presentes. Esses valores, dado o caráter conservador do modelo
de língua apresentado pela escola, podem ser acionados e competir com os da gramática
nuclear durante o processo de escolarização, “expandindo” de certa forma a Língua-I.
Assim, o conhecimento que caracteriza essa segunda gramática, que pode ter traços da
gramática de um falante do português brasileiro, europeu ou ainda de um falante de outros estágios da língua, é um subproduto da Gramática Universal. A fala monitorada de
um indivíduo culto e sua escrita revelam, em maior ou menor grau, o que Kato chama
“regras estilísticas”, “selecionadas de gramáticas passadas ou emprestadas da gramática
portuguesa” (op. cit. p. 143).
Assim, manteremos as peças agrupadas pela data de sua produção, sem deixar de
controlar, em nossa codificação de dados, o ano de nascimento dos autores, para verificar
sua influência no fenômeno em questão. Entre os fatores estruturais considerados estão o
tipo de verbo, a função da oração (raiz ou encaixada) e sua força ilocucionária (declarativa, interrogativa) e a ordem SV/VS, no caso dos sujeitos expressos, alguns dos quais já
testados por Paredes Silva (1985) e Oliveira (2005a,b), em suas análises sincrônicas, como
veremos a seguir.
3 A análise
Foram levantados 717 dados (286 ou 40% com o sujeito foneticamente realizado
pelo demonstrativo isso e 431, ou 60%, com o sujeito nulo), distribuídos no Gráfico 2,
tomando como valor de aplicação a forma expresssa:4
4 Não foram levantadas as retomadas por SN, como “tal fato”, “esse problema”, uma estratégia que parece mais frequente
nos textos jornalísticos (cf. OLIVEIRA, 2005a). Destaco, entretanto, um desses casos, atestado nas peças:
(i) Cristina: Alice devia ter nascido nos Estados Unidos ou na Suécia. Aqui tem muita coisa que precisa ser resolvida
antes do feminismo.
Júlia: Venha. Sente-se aqui. Pare com esse discurso. Isso não interessa agora. (A mulher integral, Carlos Eduardo
Novaes, 1975)
Agradeço a Vera Paredes Silva a leitura deste texto e o fato de ter apontado este exemplo, em que a porção grifada é
retomada pelo SN “esse discurso” e só depois pelo pronome isso.
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Gráfico 2: Sujeitos expressos (vs. nulos) de referência estendida ao longo de sete períodos (%).
Contrariamente à nossa hipótese inicial, não há indícios de aumento na taxa de
sujeitos de referência estendida expressos. Ao contrário, o fenômeno sugere estabilidade
nesse tipo de estrutura.5 A comparação exibida a seguir no Gráfico 3, que compara o
percurso dos sujeitos de terceira pessoa definidos, que aparecem no Gráfico 1, com os de
referência estendida (retirados do Gráfico 2), revela que há, de fato, um crescimento no
primeiro tipo (de 17% a 45%) e uma oscilação ou variação estável (de 50% a 46%), sem
favorecimento de uma ou outra forma de realização, no segundo tipo:
Gráfico 3: Sujeitos expressos de referência estendida e definida de terceira pessoa ao longo de sete períodos (%).
Não surpreende, pois, que o programa de regra variável não tenha selecionado o
período de tempo como relevante para a representação do sujeito. Este fator foi descartado pelo programa, que selecionou apenas dois grupos: o tipo de verbo e o autor.
5 Análises recentes, com base na fala espontânea gravada nos anos 90, revelam índices mais altos de preenchimento do
que os encontrados nas peças de Miguel Falabella. Enquanto nos textos do autor o índice é de 46%, Oliveira (2005b) encontra tendência de aumento no preenchimento num estudo em tempo real de curta duração com base na fala popular
(Amostra PEUL) – 38% para a década de 80 e 50% para o ano 2000; para a fala culta (NURC-RJ), Duarte, Guimarães e
Oliveira (2010) encontram índices mais altos, mas nenhum indício de mudança em curso – 55% e 56% para as décadas
de 70 e 90, respectivamente.
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Tabela 1: Grupos de fatores selecionados (Input: .40 Significance .005)
GRUPO
SELECIONADO
Tipo de verbo
Autor
FATORES
N / T (%)
P.R.
Ser
Outros verbos
166/561 (30%)
120 / 156 (77%)
.39
.84
Martins Pena
França Júnior
Gastão Tojeiro
Armando Gonzaga
Silveira Sampaio
Millôr Fernandes
C. Eduardo Novaes
Miguel Falabella
46/92 (50%)
51/129 (40%)
34/96 (35%)
30/99 (30%)
32/56 (57%)
47/126 (37%)
8/36 (22%)
38/83 (46%)
.66
.55
.53
.45
.65
.43
.18
.46
O verbo ser, prototípico nas sentenças com o sujeito de referência estendida é, nitidamente, o ponto de resistência do sujeito nulo, como já apontavam Paredes Silva (1985)
e Oliveira (2005). Observe-se na tabela que, do total de dados, 561 exibem o verbo ser.
Considerando que o valor de aplicação na análise é o sujeito preenchido, essa resistência
do verbo ser fica evidenciada no peso relativo (P.R) de .39 em relação a outros verbos,
que apresentam um forte favorecimento ao uso do demonstrativo, com .84, ou seja, uma
diferença de .45 entre os dois fatores.
No que diz respeito aos autores, o que se observa é uma forte variação individual,
muito distante de qualquer sinalização de mudança em curso. Martins Pena, da primeira
metade do século XIX, e Silveira Sampaio, da primeira metade do século XX, lideram
a realização fonética do sujeito, com .66 e .65 de peso relativo, valores muito significativos se observados como devem ser observados: em “relação” aos demais. Considerando
que uma diferença superior a .10 é significativa (cf. PAIVA; DUARTE, 2003), vemos o
decréscimo desse favorecimento nas peças de todos os demais autores, entre .55 e .43,
chegando ao extremo oposto, com um autor nascido nos anos 40 do século XX, que
apresenta o peso de .18, um desfavorecimento forte ao preenchimento (a leitura complementar do peso indica, para esse autor, Carlos Eduardo Novaes, .82 de favorecimento ao
sujeito nulo).
O cruzamento dos dois fatores indicados na tabela reforça a relevância do verbo
ser versus outros verbos na escrita de cada autor. O gráfico a seguir exibe os percentuais
de sujeitos preenchidos (versus nulos) segundo o tipo de verbo. Cada autor é representado
pelo número que precede seus nomes no Quadro 1:
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Gráfico 4: Sujeitos expressos
referência
estendida
tipo de verbo
(%). por tipo de verbo (%)
Gráfico 4.deSujeitos
expressos
depor
referência
estendida
120
100
88
67
80
60
92
84
100
45
39
29
40
31
76
69
28
22
20
33
26
17
0
1
2
3
4
5
Verbo SER
6
7
8
Outros Verbos
Observe-se que a curva de sujeitos expressos com o verbo ser oscila entre 39% e
26%, alcançando seu ponto mais alto na peça de Silveira Sampaio (autor 5), nascido em
1914, e o mais baixo na de Carlos Eduardo Novaes (autor 7), nascido em 1940. Com
outros verbos, todos os autores, exceto Novaes, preferem o preenchimento do sujeito,
situando-se todos os demais percentuais acima de 67% . Os verbos mais frequentes nesse
grupo, em todos os períodos, são os inacusativos, ilustrados em (4a-b):
(4) a. Ventura: [...] Na sua qualidade de noivo da filha da dona da casa, a sua situação é toda especial.
Carlos: Vá lá que Ø seja assim. Mas isso agora não vem ao caso. (O hóspede do
quarto no. 2, Armando Gonzaga, 1937)
(Ø / isso = o fato de minha situação ser especial por eu ser noivo da filha da
dona da casa)
Um aspecto interessante a ser apontado é a ocorrência da ordem Verbo-Sujeito (VS)
em 23 dos 286 sujeitos preenchidos. Confirmando a perda seletiva da ordem VS no PB
(cf. KATO; DUARTE; CYRINO; BERLINCK, 2006), os dados revelam que, nas peças
escritas até os anos 50, são encontradas estruturas de movimento de verbo, ilustrando tal
ordem:
(5) a. Zélia: Com um grande sentimento. Mas que hei de fazer? O médico aconselhou-me uma série de banhos de mar; e, morando aqui em Santa Tereza, seria
isso impossível. (O hóspede do quarto nº 2, Armado Gonzaga, 1937)
(isso = tomar banhos de mar morando em Santa Tereza)
Nos textos escritos a partir dos anos 70 do século XX (e aqui se inclui a peça mais
recente de Millôr Fernandes, de 1979), a ordem VS fica restrita a um tipo de interrogativa
qu- com ordem VS cristalizada, como se vê em (6):
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(6) Regina: A Laurinha que a gente maquiava, que a gente dizia que ia ser miss,
gosta de mulher.
Selma: E que importância tem isso? (A Partilha, Miguel Falabella, 1989)
(isso = o fato de Laurinha gostar de mulher)
ou a sentenças com verbos inacusativos, em que o sujeito é um argumento interno,
como mostram os exemplos em (7):
(7) a. Gilda: Agora não sei até quando vai durar isso, mas estou demais contente
com as pessoas, amando todo mundo, passou todo o medo.
(Os órfãos de Jânio, Millôr Fernandes, 1979)
(isso = a sensação de contentamento, amando todo o mundo e sem medo)
b. Dolores: Quando a gente começa a suar desse jeito, é porque não tem que
ser. Amor que tem futuro não faz a gente vazar pelo ladrão.
Margareth: Já aconteceu isso com você? (No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)
(isso = suar muito quando percebe que o amor não tem futuro)
A ordem Sujeito-Verbo em sentenças inacusativas (8a), entre as quais as passivas
analíticas (8b), já é mais frequente nos textos da segunda metade do século XX:
(8) a. Paulo: O que prova justamente que isto já caiu do céu é que veio pelo Correio Nacional sem ser extraviado. Cada vez que isso acontece é um milagre.
(Um elefante no caos, Millôr Fernandes, 1955)
(isso = o fato de alguma encomenda enviada pelo correio nacional não se extraviar)
b. Barman: O século XIX só acabou em 1918, no fim da primeira guerra mundial. Isso já foi muito dito. (Os órfãos de Jânio, Millôr Fernandes, 1979)
(isso = que o século XIX só acabou com o fim da primeira guerra mundial)
Conclusão
Se considerarmos os resultados em seu conjunto, podemos dizer que a representação dos sujeitos de referência estendida não acompanha o movimento em relação ao
preenchimento do sujeito, uma vez que não se observa uma curva de mudança ao longo
do tempo. Essa estabilidade pode ser sustentada pela menor referencialidade dos sujeitos
proposicionais e uma resistência maior à mudança seria explicada pela hierarquia proposta por Cyrino, Duarte e Kato (2000). No entanto, a análise dessas estruturas por tipo de
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verbo mostra que, mais do que o tipo de sujeito, situado num ponto mais baixo da hierarquia referencial, é o verbo ser o responsável pelos altos índices de sujeitos nulos (ou baixos índices de preenchimento, como mostram os gráficos). Duarte (1993) já apontava os
verbos relacionais ser e estar como elementos favorecedores do sujeito nulo de referência
definida, particularmente quando associados a um SN sujeito [-animado]. Assim, podemos dizer que a menor referencialidade do antecedente associada a verbos não nocionais
constitui um contexto de maior resistência do sujeito nulo.
Quanto ao fator não estrutural selecionado como relevante, sobressaem as diferenças individuais, não relacionadas a idade ou a período de tempo: enquanto seis dos
autores são consistentes na preferência por sujeitos nulos com ser e não nulos com outros
verbos, dois autores subvertem esse comportamento. Silveira Sampaio e Carlos Eduardo
Novaes, o primeiro, nascido em 1914, prefere o preenchimento, independentemente do
tipo de verbo, e o segundo, nascido em 1940, década em que Sampaio produziu suas peças, prefere o sujeito nulo no texto produzido nos anos 70.
Uma última reflexão sobre a persistência do sujeito nulo no PB. Muito se tem enfatizado a tendência ao preenchimento dos sujeitos referenciais. Mas muitos autores têm
insistido em mostrar os contextos de preservação do sujeito nulo. Como língua de proeminência de sujeito e de tópico, um traço tipológico do PB já defendido por Pontes (1987),
Galves (1987), Kato (1989) e, mais recentemente, por Negrão e Viotti (2008) e Kato e
Duarte (2008), não surpreende que no PB convivam sujeitos referencias nulos e plenos
e sujeitos não referenciais (os das orações impessoais) nulos ou preenchidos através de
operações de alçamento de constituintes (“Chove muito nessas florestas”; “Essas florestas
chovem muito”).
Referências
CHOMSKY, Noam. (1981) Lectures on government and binding. Dordrecht: Foris.
CYRINO, Sônia Maria Lazzarini (1993). Observações sobre a mudança diacrônica no português
do Brasil: objeto nulo e clíticos. In: ROBERTS, Ian; KATO, Mary A. (Org.). Português brasileiro:
uma viagem diacrônica – Homenagem a Fernando Tarallo. Campinas: Editora da UNICAMP.
p. 163-184.
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