O embasamento histórico-filosófico de Sandro Botticelli na cidade de Florença do século XV Débora Barbam Mendonça1 FAPESP Resumo: Este trabalho tem por objetivo situar a arte produzida na cidade de Florença do século XV em seu contexto histórico-filosófico, de modo que nos seja possível apontar a obra de Sandro Botticelli como exemplo legítimo do período. O Renascimento trata-se de um período que comporta a existência de propostas filosóficas distintas, como a teoria neoplatônica sobre a beleza elaborada por Marsilio Ficino; e a teoria pautada no cientificismo humanista de Leon Batista Alberti que indicava como os artistas deveriam compor suas obras e como deviam localizar a beleza dada pela natureza. A pintura de Botticelli abarca conceitos que demonstram as diversas correntes que conviviam no século XV, e que remetem a uma importância decisiva na configuração da história da filosofia da arte, como, por exemplo, o conceito de belo e a conseqüente consolidação da arte como disciplina intelectual. É importante a localização de tais conceitos, devido o fato de que são responsáveis por estabelecer um diálogo entre a reflexão teórica, e a prática dos ateliês durante o período do século XV no Renascimento. A realização deste trabalho contará com referências de historiadores de arte como Giulio Carlo Argan e Barbara Deimling, bem como com as contribuições de teóricos como Erwin Panofsky e Robert Klein, que dizem respeito ao fazer artístico do teórico contemporâneo de Botticelli, Leon Batista Alberti. Palavras-chave: Botticelli. Renascimento. Arte. Florença. Abstract: This paper aims at situating the art produced in Florence of fifteenth century in its historical and philosophical context, so that we can point to the work of Sandro Botticelli as a legitimate example of this period. The Renaissance is a period that includes the existence of distinct philosophical proposals, as the Neoplatonic theory on beauty elaborated by Marsilio Ficino; and the theory based in the Humanistic Scientifics of Leon Batista Alberti that indicated how the artists should compose their works and should find the beauty given by nature. The painting of Botticelli includes concepts that demonstrate the various currents that lived in fifteenth century, and that lead to a decisive importance in shaping the history of Philosophy of Art, as, for instance, the concept of beauty and the consequent consolidation of art as an intellectual discipline. It is important the location of such concepts, due the fact that they are responsible for establishing a dialogue between the theoretical reasoning, and the practical of workshops during the period of the Renaissance in fifteenth century. The accomplishment of this work will include references to historians of art as Giulio Carlo Argan and Barbara Deimling, and with the contributions of theorists such as Erwin Panofsky and Robert Klein, that relate to the art of contemporary theoric of Botticelli, Leon Batista Alberti. Keywords: Botticelli. Renaissance. Art. Florence. 1 Aluna de Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília. Orientador: Arlenice Almeida da Silva. [email protected] Vol. 2, nº 1, 2009. www.marilia.unesp.br/filogenese 82 A cidade de Florença destacou-se pela efervescência cultural no período chamado Renascimento. Neste artigo pretendemos apontar as principais características desta efervescência, localizando na figura do pintor Sandro Botticelli um exemplo legítimo daquilo que se chamou de “Renascimento”. Uma característica marcante do Renascimento é, sem dúvida, o esforço desempenhado pela arte na tentativa de realizar um retorno aos motivos da arte grega. A expansão rumo a tal característica ocorre inicialmente na Itália do Norte, uma vez que Florença e Roma ainda não haviam despertado tal interesse na atmosfera aristocrática. O estilo clássico ganhou espaço na arte do século XV devido à tendência grega que se instaurava, entretanto, esta característica se desenvolveu paralelamente a profusão da produção de obras de arte que continham representações religiosas. A aristocracia florentina tinha necessidade de expor seus ideais de conteúdo moral à sociedade, desta maneira, passou a ser a grande financiadora da produção de obras que contivessem motivos religiosos, e que ao mesmo tempo atendessem à tendência clássica que se mostrava. Panofsky aponta que o domínio do estilo classicista em figuras e cenários estabelece a “[...] reintegração da forma e do conteúdo clássicos [...]” (PANOFSKY, 1991, p. 239). Um exemplo desta reintegração é Piero Pollaiuolo, o primeiro pintor anatomista que se tem notícia na Itália do século XV. Suas representações de nus apresentavam ênfase excessiva aos contornos caligráficos, as figuras nuas eram contrapostas a um fundo neutro ou paisagens luminosas, o que denota, por outro lado, também contribuições holandesas aos cenários. A arte na Antiguidade Clássica era uma atividade que dialogava diretamente com a vida do homem grego, bem como com suas demais atividades, tal como a Filosofia. O retorno ao legado do universo grego propicia à arte do Quattrocento uma conseqüente abertura ao campo filosófico, especialmente aos textos do filósofo neoplatônico, Plotino, de maneira que fosse possível desenvolver uma interpretação própria da filosofia antiga e da arte. Era muito comum na cidade de Florença, encontrar grupos de debate que pensavam o fazer artístico em relação direta com postulados filosóficos. O famoso círculo “neoplatônico” de Florença era composto por intelectuais leitores de Platão e Plotino: eram humanistas que buscava a natureza esquecida pela Idade Média nas obras literárias gregas; arquitetos e geômetras que buscavam entender Vol. 2, nº 1, 2009. www.marilia.unesp.br/filogenese 83 o mundo por meio de medidas matemáticas; por pintores e teóricos de pintura que buscavam a perfeição da imagem em estudos de anatomia e geometria; enfim, por ricos florentinos simpatizantes do saber múltiplo e dispostos a sustentar uma produção artística que tomasse este viés. A aura platônica divulgada no século XV pelo filósofo Marsílio Ficino2 baseiase em uma interpretação do platonismo, formulada por Plotino, isto é, em um neoplatonismo que defendia a beleza como algo advindo da inteligência divina (amor) e a idéia de belo como aquilo que está impresso no espírito como uma “fórmula”. Em outros termos, o que é sublinhado é a capacidade de realizar o reconhecimento da beleza visível, de maneira invisível, pois é belo aquilo que materialmente estiver em conformidade com a idéia de beleza. Podemos perceber então (Cf. Panofsky, 1994, p. 56), que as contribuições de Ficino para o desenvolvimento do conceito de idéia do belo tiveram suas origens na leitura platônica que se realizava no Renascimento. A corrente filosófica neoplatônica de que estamos tratando provoca um deslocamento e uma ampliação nos debates filosóficos do início do século, pois propõe, em outros termos, a ligação do mundo terrestre com mundo celeste, ajudando a abolir as barreiras que separavam os domínios na Idade Média, abrindo espaço para uma posição contra os diversos sistemas organizantes da escolástica, e também contra o conceito de Filosofia como análise do conhecimento pautada na ciência, na análise matemática e na observação experimental. O universo intelectual do Quattrocento se mostrou dedicado em a de aproximar a filosofia do neoplatonismo com dogma do cristianismo, e assim estabelecer uma relação entre ambos, tal como observamos em Ficino. A vida do universo era entendida como que controlada por um circuito espiritual entre Deus (incorruptível, estável, simples) e o mundo, seguindo uma hierarquia: mente (mens)3, alma (anima)4, natureza (natura), e corpo (corpus); ou seja, a matéria é considerada como uma exaltação ocorrida por meio da forma, pois a mente deve ser pura, inconsciente, contemplativa; a alma deve ser ativa; e enfim, o amor deve ser a experiência metafísica, cujo objetivo está no reino supra-celeste. A identificação platônica destes postulados está no valor do bem 2 Cf. Panofsky, p. 56, 1994. Incorruptível, estável e múltipla. 4 Incorruptível, não estável, simples, trata-se a primeira superior, seguida de seus desmembramentos, segunda inferior, que se trata da imaginação, os 5 sentidos ou percepções, e das faculdades como procriação, nutrição e crescimento. 3 Vol. 2, nº 1, 2009. www.marilia.unesp.br/filogenese 84 relacionado com o do belo, que consiste no esplendor da luz divina. A beleza é uma faculdade cognitiva pela qual se distingue o que é agradável à vista. Para Ficino, a beleza é o esplendor da face de Deus, que restaura o brilho no halo metafísico: é a ligação do que é inferior com Deus, o espírito cósmico. O que ocorre neste momento nada mais é do que uma reconciliação do humanismo com a teologia, na medida em que o caráter metafísico do legado platônico assume uma posição que garante a devida importância tanto das faculdades humanas, quanto do poder de influência divina sob a ação dos homens. Panofsky destaca este momento na seguinte passagem: [...] É como se [...] ouvíssemos, possivelmente pela primeira vez, o eco da experiência – semelhante visão nostálgica que nasce dum distanciamento e sentido de afinidade – que constitui a própria essência do Renascimento. (PANOFSKY, 1991, p. 282). O Renascimento ganha contornos próprios no momento em que ocorre uma novidade em relação à arte na Idade Média5, que pensava a beleza como algo divino impresso na mente humana. Do início até meados do século XV, havia o predomínio da renúncia à interpretação metafísica da beleza, uma vez que a beleza era compreendida como aquilo que se pode observar de natural, ou seja, a idéia de belo é desvinculada das propriedades que compõem também a idéia de bem, rompendo com o maior preceito artístico medieval, sendo o belo considerado aquilo que se pudesse deduzir de fenômenos humanos, que correspondesse à proporção harmônica, à clareza ordenada à qual pretendiam situar a natureza. Entretanto, esta postura não se mantém durante todo o período do século XV, pois o período é marcado por abranger intensos debates teóricos que envolviam o fazer artístico, e um dos elementos importantes destes debates é o que se refere ao caráter humanista que despontou em meados do Quattrocento. A exigência que entrava em vigor era a de que o homem que se pretende sábio ou artista deve buscar os conhecimentos múltiplos, ou seja, deve abarcar um conhecimento que seja capaz de apreender o mundo em seus vários domínios. Neste 5 A Idade Média estabelece uma ruptura com a noção mimética grega, pois devido à difusão do platonismo e a cultura cristã desprezavam o apego à matéria, bem como não consideravam digna a arte que se apoiasse na experiência, ou na natureza meramente material. A arte na Idade Média se apoiava no místico cristão, pautando-se na associação do belo com o bem, propondo que a arte deve ser expressão do divino. Vol. 2, nº 1, 2009. www.marilia.unesp.br/filogenese 85 contexto, o caráter científico desponta como uma exigência humanista, importante para o entendimento da relação do homem no mundo. Outra exigência humanista, como vimos, é a do conhecimento da arte e cultura gregas, pois acreditavam que naquele momento teriam acesso à verdade, natureza e a beleza. As diversas necessidades metódicas desenvolvidas por meio do caráter humanista no período não configuravam especulativamente a relação entre sujeito e objeto As preocupações referiam-se basicamente às regras necessárias para o fazer artístico, com uma fundamentação exata na antiguidade: entre elas, as principais eram as regras da percepção ou perspectiva e as de anatomia, e, no limite, a própria obsessão sistemática por um conjunto de regras – pois se trata de uma característica que remete á antiguidade.Outro exemplo da postura metódica que o humanismo adotou é o fato de no Quattrocento haver uma grande produção de tratados sobre o fazer artístico. O teórico Leon Baptista Alberti é o grande exemplo disso, e escreve em seu tratado Da pintura (1436) que o artista não deve apenas reproduzir, como também acrescentar a beleza, além de estudar e exercitar o que for agradável. Com a emergência de um estilo que expõe a nova maneira do homem ver o mundo, cria-se uma maior segurança humanística e confiança nos métodos da razão, buscando fundamentar o Naturalismo no estudo científico. Razão humana vem em substituição às necessidades mais místicas do catolicismo medieval, onde não havia a exigência da imitação do mundo exterior. Alberti em sua obra Da pintura fornece apontamentos para o pintor, a fim de ensiná-lo a pintar como se deve, e, mostra-se desejoso de que o pintor esteja à par de todas as formas de conhecimento que sejam relevante para sua arte. Com relação à arquitetura de Bruneleschi, Alberti defende o princípio da utilidade, pois os edifícios foram construídos por causa dos homens, feitos para satisfazer a necessidade da vida, ocupações do homem, ou deleite. Sua atitude com relação à pintura é a mesma, porém, a pintura deve conter uma história, que é de tipo mais nobre ao seguir um tema, e de tipo menos nobre se estiver restrita a figuras individuais; é esta história que gera uma imagem das atividades do homem inseridas num espaço, num mundo, assim como na arquitetura se relaciona com um espaço. A grande contribuição de Alberti para a reconstrução da arte da pintura decorre de sua idealização sob bases antigas dos valores absolutos da pintura (CECIL Vol. 2, nº 1, 2009. www.marilia.unesp.br/filogenese 86 GRAYSON)6, possibilitando uma nova perspectiva ou um possível futuro para a pintura. A nova concepção de realismo dos humanistas, parte da teoria da imitação da natureza, sendo que, para Alberti, esta imitação é limitada ao nível daquilo que é visível para a pintura, ou seja, a pintura deve ser a natureza captada pela pirâmide visual7, e a imagem obtida em sua base deve ser aquilo que há necessidade de se imitar. Percebemos que o Renascimento exige que a obra de arte possua a beleza e a verdade, mesmo que uma verdade “adaptada” à natureza, o que Alberti chama de graça. O conceito de graça consiste na harmonia da pintura, o ajuste natural e delicado das partes durante a composição: “[...] Da composição das superfícies nasce aquela graça nos corpos que chamamos beleza.” (ALBERTI, 1989, p.107). Para que seja possível o alcance da graça é preciso que o pintor siga na prática toda a teoria que lhe foi transmitida como os primeiros passos, os rudimentos do bem pintar, um delineamento preciso da orla, uma delimitação exata da superfície no que diz respeito à imitação daquilo que se obteve pela base da pirâmide visual, e uma justa disposição, proporção e conformidade dos elementos que formam as figuras, que por sua vez, irão compõem a história. O grande problema da convergência entre visões teóricas diversas no Quattrocento, assim como na Antiguidade, se configura na medida em que permite a convivência de necessidades distintas: o dever do pintor era o de encontrar na natureza o objeto de sua representação, estando de acordo com o princípio de imitatio; entretanto, cabe também ao artista escolher na diversidade dos objetos da natureza o que há de mais belo, de maneira que se afaste da simples verdade natural e se atinja o belo, concordando com o princípio de eletio. O renascimento exigiu simultaneamente duas grandezas da arte: a fidelidade à natureza (imitatio); e a racionalização da beleza (eletio), sem que fosse notada a contradição entre ambas as exigências. Para que eleger se é necessário reproduzir? Não havia a percepção desta contradição que se apresentaria no futuro, pois a necessidade é que se voltasse à natureza, seja para corrigi-la ou para imitá-la. Este novo dado na construção da teoria da arte deveria ser suficiente para culminar nos problemas da representação, isto é, nas relações entre sujeito e objeto, mas não foi o que ocorreu, uma vez que os objetivos desta arte eram práticos, histórico6 Cf. ALBERTI. Da Pintura.Introdução de Cecil Grayson, 1989, p. 51 A pirâmide visual trata-se da construção da imagem vista no olho do observador, ou seja, é o que conduz o objeto visto ao olho, e teoria que serve de fundamento para a técnica da perspectiva linear. 7 Vol. 2, nº 1, 2009. www.marilia.unesp.br/filogenese 87 apologéticos em relação ao que se refere ao belo da Antiguidade; e não especulativos (PANOFSKY, 1994, p. 49). O objetivo final era tornar a arte contemporânea a herdeira legítima da Antiguidade, além de valer-se da concepção humanística para fornecer regras que auxiliassem a atividade criadora do artista. Esta nova concepção só poderia resolver o problema sujeito/objeto se pressupusesse um sistema de leis universais, do qual se deduzissem as regras para além do sujeito e do objeto. O Renascimento contribui ao lançar o primeiro passo em direção à autonomia do sujeito, realizando um novo regresso aos gregos, e fazendo renascer a necessidade que a arte antiga tinha de buscar o belo na semelhança com a natureza. No entanto, a particularidade da Renascença consiste na visão ampla que consegue realizar sobre o passado grego, e, a partir deste dado, estabelecer a crença racional de que a beleza não se encontra dada de imediato na natureza. Não há mais, portanto, uma superioridade da natureza em relação ao homem pautada numa referência subjetiva a priori, pois ele mesmo é parte integrante desta mesma natureza. A liberdade de imaginação que o artista adquire consiste em uma nova percepção do modo de realizar a arte, uma vez que a questão não é mais a de “como fazer”, e sim, “o que se pode fazer”, de modo que sua liberdade o leve para a direção correta de encontro ao belo, para que então seja capaz de “enfrentar a natureza com armas iguais” (PANOFSKY, 1994, p.49). Tal procedimento pode ser verificado no Quattrocento italiano e suas diversas esferas a partir da figura de um de seus artistas, o pintor Sandro Botticelli, o qual situamos como exemplo digno deste movimento constante em busca do belo que ocorreu no período. Alessandro di Mariano Filippi nasceu por volta de 1445, começou sua carreira artística como ourives sob influência de sua família, mas, ainda na adolescência despertou seu olhar para a pintura. Com menos de vinte anos de idade já havia ingressado nos estudos de pintura no ateliê de Andrea Del Verrochio, muitíssimo louvado por fornecer os primeiros passos da arte da pintura às figuras mais célebres de Florença. Este ateliê foi local onde Botticelli conheceu diversos outros artistas já inseridos no meio artístico intelectual como Piero Polaiuollo. Botticelli fez-se valer de ter sido um dos alunos de Verrochio e por ter despertado a simpatia dos Medici, entretanto já em 1470 monta seu próprio ateliê, e ruma em novas direções para compor sua arte, sempre estabelecendo um diálogo com outros artistas, teóricos, críticos e Vol. 2, nº 1, 2009. www.marilia.unesp.br/filogenese 88 financiadores, e inserindo-se nos grupos filosóficos que surgiam na cidade, o que lhe possibilitou a aquisição de um sistema de linguagem própria, capaz de atender aos “gostos” dos mecenas, e à suas próprias especulações. Botticelli pode ser situado como representante da ambigüidade do período, pois podemos observar sua arte e suas influências divididas em três momentos: I) o primeiro momento nos mostra que a pintura de Botticelli segue os ensinamentos oferecidos pelos mestres dos ateliês, bem como se detém às fortes influências que seus precursores lhe ofereceram; II) durante o período que estabelecemos como sendo o segundo momento de sua obra percebemos uma ênfase ao conteúdo que buscava resgatar a temática grega, a natureza grega. As pinturas associavam a arte plástica à filosofia neoplatônica, ou seja, representava a natureza grega, com personagens mitológicos, mas pretendia transmitir o conteúdo filosófico que os intelectuais discutiam nos encontros de reflexão; III) o terceiro, por sua vez, trata-se do momento em que buscava um retorno à arte simples de caráter tomista8, tomando como referências os afrescos de Giotto, realizando um regresso saudosista ao início do Renascimento. Esta medida talvez se deva ao fato de ter sofrido uma certa censura por parte de um Frei Dominicano que se estabeleceu em Florença no final do século XV, Girolamo Savonarolla. Esta terceira fase nos indica dois tópicos diversos, senão antagônicos na obra de Botticelli, um platônico, ideal, e outro tomista e mais natural e, é por este motivo que pretendemos propor um questionamento: A arte de Botticelli apresenta um eixo constante, ou é inconstante pelo fato de apresentar tendências diversas de acordo com o momento? O desafio do Renascimento é, portanto, tentar retomar da antigüidade a importância da natureza, trazendo de volta o pensamento de que é nela que se encontra aquilo que é conveniente de ser alvo de estudo, de conhecimento, aquilo que transmita um embasamento virtuoso, aquilo que encontramos na natureza (PANOFSKY, 1994), sem que seja excluída a necessidade de localizar o que for mais digno de representação na natureza. As obras de Botticelli, muitas vezes consideradas de temática profana, pagã e até mesmo politeísta, também representam a concepção de amor elaborada pelos círculos de reflexão neo-platônicos, tais como Minerva e o Centauro9, A Primavera10, e 8 Refere-se ao caráter naturalista defendido por São Tomás de Aquino. 1442, Florença, Galleria degli Uffizi. 10 1482, Florença, Galleria degli Uffizi. 9 Vol. 2, nº 1, 2009. www.marilia.unesp.br/filogenese 89 Vênus e Marte11, são, no entanto, obras que relêem os marcos literários da Antigüidade, porém estas figuras estão de acordo com a representação da natureza, a natureza grega reavivada, pois o mitológico fazia parte da natureza e da realidade do homem grego. Podemos observar nas obras de Botticelli todo o seu empenho em representar a natureza da qual o Renascimento se firma: No quadro Minerva e o Centauro, o pintor representa a deusa da Sabedoria Minerva, num ato de repreensão do Centauro, que tem como principal prazer a perseguição de ninfas inocentes. Na cena, a deusa Minerva, situada à direita, desempenha a função de guardiã, pois segura uma alabarda, o objeto utilizado pelos guardas de Florença, e, repreende o Centauro, situado à sua esquerda, puxando-o pelo cabelo e fazendo-o sentir dor. Ao lado do Centauro há uma coluna em ruínas, ressaltando a importância do passado grego, coluna esta que também indica a região da qual Minerva é guardiã. Este obstáculo tem a função de não oferecer saída do local onde estão os personagens. Ao fundo da composição percebemos uma cerca de pau-santo, o que indica que estão em local proibido, e dependência dos deuses. Na obra A Primavera, notamos a composição do jardim sagrado de Vênus, que, da direita para a esquerda assim se estabelece: O vento Zéfiro que penetra violentamente no jardim e sopra sobre a ninfa Clóris, que, consumando o princípio da primavera se transforma na deusa Flora, centralizando o quadro está a deusa Vênus e seu filho Eros, que vedado lança sua flecha em uma das Três Graças que estão ao lado de Vênus, e por fim, Mercúrio, o mensageiro dos deuses que tem também a função de proteger , pois afasta com o caduceu algumas nuvens sombrias que tentavam penetrar o os laranjais da deusa do amor, uma vez que tornou-se também o símbolo da paz por ter separado duas serpentes que brigavam com uma vara, o caduceu. Esta obra pode mostrar todo o conteúdo moral e nostálgico de que se tratam as obras de Botticelli: Zéfiro representa a figura do amor voluptuoso que, toma a força a Ninfa para sua esposa. O vento, por sua vez, arrepende-se de seu ato e neste instante transforma a Ninfa Clóris em Flora, a deusa das flores e rainha da Primavera. Ao lado de Vênus estão as Três Graças, que estão dispostas delicadamente em uma roda que dá a impressão de nem ao menos se tocarem. Eros, o filho de Vênus lança sua flecha à Graça do meio, a única cujo olhar é desviado para Mercúrio, e também a única cujas vestes não apresentam jóias, o que pode representar um repúdio à vaidade. 11 1483, Londres, The National Gallery. Vol. 2, nº 1, 2009. www.marilia.unesp.br/filogenese 90 Ambos os quadros encontram-se no palácio de Lorenzo di Pierfrancesco, um florentino tutelado por Lourenço de Medici. A Primavera encontra-se em um hall anterior ao quarto de Lorenzo, colocado sobre um divã, e, ao seu lado direito, encontrase o Minerva e o Centauro, situado sobre a porta principal. Estando então A Primavera posta à direta de Minerva e o Centauro, podemos dizer que um quadro está em continuidade ao outro, assim sendo, podemos dizer que o olhar da Graça do meio demonstra sua apreensão à volúpia do Centauro, que, por sua vez, também pretende invadir o jardim de Vênus. Neste sentido há um sentimento de confiança da Graça em relação à Mercúrio, e um reforço na proteção dos laranjais em relação à Minerva. Eros pretende lançar sua flecha em direção à Graça do meio, pois é a que mais se apresenta alheia ao amor carnal, devendo assim como pretende a Filosofia do neoplatônico Ficino, priorizar o amor que vem da luz. A obra O Nascimento de Vênus12 foi pintada em tela destinada à decoração da Villa de campo dos Médici em Careggi, uma propriedade rural na qual a família se instalava para descansar da formalidade dos palácios na cidade de Florença. Para este tipo de decoração a obra deve atender às necessidades requeridas para o descanso e refúgio daquele que a encomendou, como é o caso de O Nascimento de Vênus, que traz cores frias que transmitem tranqüilidade, e possui um cenário paisagístico e alegre. O conceito de amor que ultrapasse os desejos carnais também pode ser demonstrado na obra O Nascimento de Vênus, pois narra o Hino à Afrodite de Homero, ou seja, a chegada de Vênus à Ilha de Citera, que nasceu da união dos testículos do deus Urano com a espuma do mar no qual foram jogados. Vênus é trazida à margem por uma concha assim como uma pérola, símbolo da pureza, e é imediatamente vestida com um manto pela Hora da Primavera. Do céu cai uma chuva de rosas em homenagem à deusa, que também simbolizam o amor e a pureza. Pintado por volta de 1483, o quadro Vênus e Marte, também obedece a temática do amor: mostra que Marte, o deus da guerra, encontra-se nos domínios de Vênus, a deusa do amor, que por sua vez, o desvia facilmente de seus afazeres que saciavam seu desejo violento. O quadro pretende transmitir, sobretudo, a vitória do amor puro sobre a guerra, que pode ser entendida como a prevalescência carnal, assim como propunha a filosofia Ficiniana, tanto que, as figuras voluptuosas dos sátiros brincam com as armas 12 1485, Galleria degli Uffizi. Vol. 2, nº 1, 2009. www.marilia.unesp.br/filogenese 91 de Marte e não conseguem despertá-lo do sono, do estado de inconsciência que Vênus, ou o próprio amor destinou para o deus. Botticelli consegue expor em suas obras mitológicas não apenas o conto de histórias antigas, como também as necessidade morais de sua época inseridas em meio à representação de uma natureza alheia à seu tempo, mas muito próxima do tempo cujo legado era cultivado por seus contemporâneos. Podemos considerar com a apresentação destas obras que, Botticelli não só inseriu a temática grega necessária para o Renascimento em sua produção, como também os valores humanísticos, o regresso à natureza esquecida, e por fim os valores neo-platônicos que se referem ao amor e ao belo possível de se realizar no homem em âmbito estritamente ideal, uma vez que se apresenta possível na realidade, desde que ocorra de maneira correta, conveniente. Sua obra demonstra uma orientação filosófica, cuja intenção é a de que, por meio da arte, seja possível colocar em prática uma filosofia, ou seja, Botticelli foi, segundo Argan, o primeiro pintor a “[...] atrelar a pesquisa artística a uma filosofia, [...] que por meio da arte, buscou realizar uma estética; [...]”. (ARGAN, 1999, p. 208-209). A filosofia e o humanismo, portanto, propiciaram o estabelecimento de uma diferença crucial entre o Renascimento e a Idade Média, uma vez que a diferença crucial entre a postura da Idade Média e Moderna para com a Clássica se dá, segundo Panofsky (1991, p. 153), essencialmente devido o fato de: No Renascimento italiano, o passado clássico começou a ser olhado a partir de uma distância fixa, comparável à <<distância entre o olho e o objeto>> [...] essa distância impedia um contato direto [...] mas permitia uma visão total e racionalizada. Em nenhum dos dois renascimentos medievais se encontra essa distância. Ou seja, a perspectiva ou o olhar perspectivo13 é a grande novidade que legitima o Renascimento italiano. A distância entre o presente cristão e o passado pagão é estabelecida literalmente no Renascimento graças à adoção da técnica da perspectiva. Os humanistas tiveram acesso à técnica e ao pensamento de modo perspectivo, e por este motivo foi possível voltar o olhar à cultura clássica de maneira privilegiada, com o sentimento de uma “apaixonada nostalgia” (PANOFSKY, 1981) em relação aos gregos. 13 Entende-se por olhar perspectivo a distância estabelecida entre o observador e o objeto a ser observado, ou seja, a possibilidade de múltiplos pontos de vista. Vol. 2, nº 1, 2009. www.marilia.unesp.br/filogenese 92 O movimento neoplatônico de Marsilio Ficino, por sua vez, priorizava a tendência da arte voltada em primeiro lugar para o campo da beleza. A herança grega neste momento assume uma maior importância no que se refere ao neoplatonismo que não separava os conceitos de belo e bem, pois acreditava que a beleza é parte do amor divino e o que há de espiritual no homem, e a arte deve produzir e despertar as idéias eternas. Assim como aponta Panofsky (2003), os teóricos e intelectuais do Renascimento não perceberam que a convivência de duas exigências contraditórias entre si poderiam resultar em um problema. Ambas as necessidades culminavam numa exigência de que a arte só podia ser julgada em face da realidade mesmo sendo necessário superá-la para o emprego da beleza. Desta maneira, surgem os primeiros vestígios de uma teoria da arte, pois para que se cumprissem tais postulados era necessário que a arte fosse pensada, que o artista investigasse o que se deve saber, e o que se pode fazer para que seja possível “enfrentar a natureza com armas iguais” (PANOFSKY, 2003). A necessidade é a de voltar-se à natureza e reaprender a olhar a realidade tal como na antiguidade. Mesmo estabelecendo certa ruptura com a Idade Média pelo fato voltar-se à realidade, a arte no Renascimento postula como necessidade não apenas imitatio, como também a eletio, ou seja, o Renascimento não se trata de um período que prioriza a matéria em detrimento do pensamento, pois pretende conciliar ambas as necessidades em uma única: a função do artista é representar a realidade, pois a natureza é o que deve ser representado, entretanto, a natureza não deve ser representada mimeticamente, tal como ela é dada, pois o princípio da eletio pretende que o artista escolha o que há de melhor na natureza para ser representado, e mais ainda, corrija o que houver de imperfeição. Estes princípios do pensamento renascentista demonstram que o objeto a ser representado não é mais ícone (tal como na Idade Média), ou seja, a representação do que quer que se represente não é mais independente da mediação do artista. O artista passa a estabelecer uma relação com a natureza, se propondo a fixar-se diante da natureza para que possa representar o seu ponto de vista. Desta maneira, a arte no Quattrocento coloca-se como superior à natureza, pois consegue através da arte, corrigi-la, ou melhorá-la. A teoria da arte surgida durante meados do Renascimento estabelece diferenças inaugurais no âmbito da arte, tais como a distância estabelecida entre a natureza a ser Vol. 2, nº 1, 2009. www.marilia.unesp.br/filogenese 93 reproduzida e o artista, priorizando o ponto de vista e desenvolvendo o uso da perspectiva enquanto técnica, entretanto devemos frisar que o ponto de vista do artista era representado cientificamente, e não subjetivamente. Já a visão metafísica do período, apresenta uma postura contrária à de Alberti e dos outros teóricos do início do século XV, entretanto expressa não superficialmente uma polêmica, e sim um movimento inconstante ou mesmo misto que o correu durante principalmente o Quattrocento italiano, misto este que localizamos como sendo a orientação do pintor florentino Sandro Botticelli. Klein (1998) acredita que o Homem desperta para a presença que sabe ver e sabe fazer, portanto o Renascimento é a Ciência sem conceito que trabalha pela investigação dos signos visuais. É o estatuto da ciência e suas afinidades com a magia, e o artista é treinado para desenvolver o Pasticho14 – o artista estava à vontade em duas culturas diferentes, a antiga e a cristã. Encerramos nossas considerações apontando Botticelli como exemplo desta fusão, pois coloca em contato estas duas poéticas. Sua pintura expressa uma religiosidade indeterminada, leiga (ARGAN, 1989) que não possui pretensões doutrinárias, apenas colabora com o que acreditava expressar a verdadeira beleza. A estética separa a questão do belo da questão da natureza. Não é a natureza que empresta sua beleza à arte, mas é a arte entendida como artifício, que permite descobrir os significados alegóricos ocultos das coisas naturais. O belo para Botticelli está em face da realidade e da experiência. Botticelli agrupa ambas as exigências através do desenvolvimento pictórico do conceito de graça, que nada mais é do que o belo exigido por Alberti, a graça venusta que Ficino exalta. No fim do século XV, o teórico Vasari sugere a equação da polêmica arte naturalista/ ideal: Vasari acredita que a idéia humana é responsável por apontar a beleza, uma vez que, a beleza não se trata de um arquétipo e nem é anterior à natureza, pois deriva do homem que é parte da mesma natureza. Este período do fim do século XV e início do século XVI foi marcado por diversas discussões acerca da beleza em relação ao homem, natureza e arte, entretanto, toda essa discussão serviu para abrir caminho para os grandes artistas posteriores, como Leonardo, Rafael e Michelângelo. Buscamos com este artigo analisar como a ambigüidade existente no Quattrocento serviu de base para o desenvolvimento da postura artística e científica no século XVI. Mais 14 Mistura de linguagens ou tendências na produção de uma obra de arte, cuja finalidade de obter uma maior completude. Vol. 2, nº 1, 2009. www.marilia.unesp.br/filogenese 94 especificamente, como um pintor inconstante como Sandro Botticelli contribuiu para a constituição da obra de um pintor convicto como Leonardo, bem como para a configuração da arte posterior ao período do século XV. Referências ALBERTI, Leon B. Da pintura. Campinas: Ed: Universidade Estadual de Campinas, 1989. ARGAN, Giulio C. Clássico e anti-clássico. São Paulo: Cia das Letras, 1999. . História da arte italiana. vol. 2. de Giotto à Leonardo. Cosac & Naiky. São Paulo. 2003. BAXANDALL, Michael. Olhar renascente. São Paulo: Paz e Terra, 1995. BLUNT, Anthony. Teoria artística na Itália. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. BURKHARDT, Jacob. A cultura do renascimento na Itália. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1991. DA VINCI, Leonardo. Trattado della pittura [1490-1500], Roma: Newton Comptin, 1996. DEIMLING, Bárbara. Botticelli.Köln. Taschen. 1995. FAURE, Élie. A arte renascentista. São Paulo: Martins Fontes, 1990. FICINO, Marsílio. Comentaire sur le banquet de platon. Paris: Belle Lettres. 1956. Traduzido do latim por Raymond Marcel. KLEIN, Robert. A forma e o inteligível. São Paulo: Edusp, 1998. PANOFSKY, Erwin. Renascimento e renascimentos na arte ocidental. Lisboa: Editorial Presença, 1981. . O renascimento. In: PANOFSKY, Erwin. A evolução do conceito de belo. São Paulo: Martins Fontes, 1994. PLOTINO. 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