Metabolismo do azoto e ciclo da ureia – Rui Fontes Metabolismo do azoto dos aminoácidos e ciclo da ureia 1- Embora os aminoácidos “nutricionalmente dispensáveis” possam, no que refere ao esqueleto carbonado, formar-se a partir da glicose, é uma boa aproximação à realidade afirmar-se que os aminoácidos existentes no sangue e nas células resultam da hidrólise das proteínas endógenas ou das proteínas da dieta. Se pensarmos apenas na porção azotada, mesmo os aminoácidos sintetizados endogenamente têm origem nos aminoácidos formados naqueles processos de hidrólise. A maior parte dos aminoácidos libertados aquando da hidrólise das proteínas endógenas são reutilizados na síntese dessas mesmas proteínas ou de outras proteínas, mas uma parte sofre catabolismo perdendo o azoto e gerando intermediários não azotados que, em última análise (direta ou indiretamente), vão acabar por oxidar-se a CO2. 2- Os aminoácidos ou os intermediários a que dão origem no decurso do seu catabolismo podem perder os grupos azotados em reações de desamidação ou desaminação em que se liberta o ião amónio. A concentração plasmática do amónio é, no indivíduo saudável, muito baixa (cerca de 20 µM no sangue sistémico e cerca de 260 µM na veia porta)1. Quando a concentração de amónio aumenta no plasma (hiperamonémia) provoca alterações neurológicas que podem culminar em coma e morte. No fígado, o amónio tóxico é convertido em ureia não tóxica. Uma situação clínica aguda que cursa com hiperamonémia é, por exemplo, uma hemorragia para dentro do lúmen do sistema digestivo em doentes com cirrose hepática. Nesta situação as proteínas do sangue acabam por gerar amónio por ação sequenciada das enzimas digestivas e das bactérias intestinais. Existem outras condições clínicas mais raras que também cursam com hiperamonémia: são exemplos as doenças causadas por défices congénitos das enzimas do ciclo da ureia ou da síntase do N-acetil-glutamato (ver, mais à frente, a Equação 25). 3- Numa reação catalisada pela sintétase do carbamil-fosfato I (uma enzima da matriz mitocondrial) forma-se carbamil-fosfato (ver Equação 1). Na reação catalisada por esta sintétase consome-se amónio e CO2 que se ligam para formar o carbamilo [1C,1N] que é fosforilado pelo ATP; o processo também envolve a hidrólise de uma outra molécula de ATP. O carbamil-fosfato vai ser o dador de um dos dois azotos da ureia [1C,2N] que se vai formar. Embora, estritamente, não possa ser considerada uma enzima do ciclo da ureia, a relação da sintétase de carbamil-fosfato I com o ciclo da ureia é tão íntima que, na maioria dos livros de texto, é incluída nas enzimas deste ciclo. Equação 1 4- NH4+ + CO2 + 2 ATP + H2O → carbamil-fosfato + 2 ADP + Pi No ciclo da ureia intervém uma enzima que, tal como a sintétase de carbamil-fosfato I, está na matriz mitocondrial, a transcarbamílase da ornitina (ver Equação 2); as outras três estão no citoplasma e são a sintétase do arginino-succinato, a argininosuccínase e a argínase (ver Equação 3, Equação 4 e Equação 5). Costuma dizer-se que a ornitina [5C,2N] desempenha, no ciclo da ureia, um papel catalítico porque se consome na primeira reação (transcarbamílase da ornitina: ver Equação 2) e, via citrulina [6C,3N], arginino-succinato [10C,4N] e arginina [6C,4N], se regenera na última (argínase: ver Equação 5)2. É na reação catalisada pela argínase que se dá a hidrólise da arginina formando-se ureia e regenerando-se ornitina, um dos substratos da transcarbamílase da ornitina. Ao longo do ciclo da ureia a estrutura da ornitina vai aceitando os componentes da ureia: como evidenciado pela reação de hidrólise catalisada pela argínase, a arginina [6C, 4N] pode ser entendida como sendo formada por dois resíduos: ornitina [5C,2N] e ureia [1C,2N]. Por ação catalítica da transcarbamílase da ornitina, a ornitina aceita o grupo carbamilo do carbamil-fosfato gerando citrulina que reage com o aspartato gerando arginino-succinato (sintétase do arginino-succinato: ver Equação 3): a formação do arginino-succinato é um processo endergónico acoplado com a hidrólise de ATP a AMP + PPi. Por ação duma líase (argininosuccínase) o arginino-succinato desdobra-se em arginina e fumarato (ver Equação 4). Como já referido, a transcarbamílase da ornitina é uma enzima da matriz 1 Para comparação: a concentração plasmática da glutamina é cerca de 6 mM, a dos aminoácidos em que a concentração plasmática é mais baixa (metionina e aspartato) ronda os 20 µM [Bergstrom et al. (1974) J Appl Physiol 36:693-7] e a de ureia 5 mM. 2 Na realidade, o mesmo se pode dizer a respeito de qualquer dos intermediários de um qualquer ciclo metabólico. Página 1 de 7 Metabolismo do azoto e ciclo da ureia – Rui Fontes mitocondrial enquanto que todas as outras três enzimas do ciclo são citoplasmáticas: assim, o produto da transcarbamílase da ornitina, a citrulina, sai da mitocôndria, enquanto o substrato aminoacídico da mesma enzima, a ornitina, entra para a mitocôndria; os dois processos de transporte são catalisados pelo mesmo transportador. Equação 2 Equação 3 Equação 4 Equação 5 5- ornitina + carbamil-fosfato → citrulina + Pi citrulina + aspartato + ATP → arginino-succinato + AMP + PPi arginino-succinato → arginina + fumarato arginina + H2O → ureia + ornitina O somatório das reações catalisadas pelas enzimas do ciclo da ureia e pela sintétase do carbamilfosfato I pode ser expresso pela seguinte equação soma: Equação 6 CO2 + NH4+ + aspartato + 3 ATP → ureia + 2 ADP + AMP + 2 Pi + PPi + fumarato Na estrutura da ureia [OC(NH2)2] o carbono tem origem no CO2, um dos átomos de azoto tem origem direta no amónio e o outro origem direta no aspartato, cujo esqueleto carbonado origina fumarato durante o processo. 6- O amónio que está na origem do carbamil-fosfato hepático tem origem nos aminoácidos que sofrem catabolismo libertando amónio. Uma parte considerável do amónio (talvez 1/3) utilizado para a síntese de carbamil-fosfato é captado pelo fígado chegando aí, através da veia porta, já como amónio. Este amónio foi formado nos enterócitos a partir da glutamina (via ação da glutamínase que catalisa a hidrólise do grupo amida: ver Equação 7) ou no lúmen do intestino por ação das bactérias3. Os restantes 2/3 resultam da ação de enzimas hepáticas que provocam a perda de grupos azotados de aminoácidos na forma de amónio. Exemplos deste tipo de enzimas são a enzima de clivagem da glicina (ver Equação 8), a líase da cistationina (ver Equação 9), a desidrátase da serina (ver Equação 10), a histídase (ver Equação 11), a asparagínase (ver Equação 12), a glutamínase (ver Equação 7) e a desidrogénase do glutamato (ver Equação 13). É de notar que o azoto do amónio libertado pela ação da desidrogénase do glutamato poderá ter tido origem última em muitos outros aminoácidos. Nalguns casos, o processo envolve reações de transaminação onde o grupo α-amina dos aminoácidos é diretamente transferido para o α-cetoglutarato formando o glutamato (casos, por exemplo, da alanina, da cisteína, da serina, da tirosina, do aspartato e dos aminoácidos ramificados) enquanto noutros a reação de transaminação envolve intermediários da via catabólica (casos, por exemplo, da fenilalanina, triptofano e lisina). Nos casos da histidina, da prolina, da glutamina e da arginina (via ornitina) o produto formado no processo catabólico é o glutamato. Equação 7 Equação 8 Equação 9 Equação 10 Equação 11 Equação 12 Equação 13 7- glutamina + H2O → glutamato + NH4+ glicina + H4-folato + NAD+ → N5,N10-metileno-H4-folato + NADH + CO2 + NH4+ cistationina → cisteína + α-cetobutirato + NH4+ serina (ou treonina) → piruvato (ou α-cetobutirato) + NH4+ histidina → urocanato + NH4+ asparagina + H2O → aspartato + NH4+ glutamato + NAD+ → α-cetoglutarato + NADH + NH4+ O “segundo azoto” presente na estrutura da ureia tem origem direta no aspartato: o aspartato ao reagir com a citrulina e ao sair como fumarato deixa ficar azoto no grupo guanidina da arginina que vai sofrer hidrólise e gerar a ureia. No entanto, este “segundo” azoto pode, indiretamente, ter origem em todos os aminoácidos. A alanina (que é vertida no sangue pelos músculos ou pelos enterócitos e é captada pelo fígado) é exemplo de um aminoácido dador de amina para a síntese de aspartato no fígado. Por ação sequenciada da transamínase da alanina (ver Equação 14) e da transamínase do aspartato (ver Equação 15) o grupo amina que estava na alanina pode originar o grupo amina do 3 É de notar que parte da ureia que circula no sangue passa para o lúmen do cólon onde é reconvertida em amónio pelas bactérias: existe assim um ciclo entero-hepático de azoto envolvendo a ureia e o amónio assim como as enzimas hepáticas do ciclo da ureia e a urease (ureia + H2O → CO2 + 2 NH3) das bactérias intestinais. Página 2 de 7 Metabolismo do azoto e ciclo da ureia – Rui Fontes aspartato; a sequência envolve como intermediário aminado o glutamato. Sequências similares envolvendo diversas transamínases e a transamínase do aspartato podem explicar a transferência de grupos amina de diversos aminoácidos para o oxalacetato e a formação de aspartato; a equação soma que descreve estes processos é a Equação 17 (ver abaixo). Quando a perda de azoto origina amónio (casos da desamidação hidrolítica da glutamina ou da asparagina ou as desaminações oxidativas da glicina ou do glutamato ou a desaminação por ação de líases de diversos aminoácidos; ver equações 713) este ião inorgânico pode, por ação da desidrogénase do glutamato (ver Equação 16)4, originar o grupo amina do glutamato. O glutamato formado por aminação do α-cetoglutarato pode, por transaminação, ser dador de amina ao oxalacetato para formar aspartato (ver Equação 15); assim, via α-cetoglutarato/glutamato todos os aminoácidos podem contribuir para o azoto que vai ser cedido diretamente pelo aspartato na síntese da ureia. Equação 14 Equação 15 Equação 16 8- alanina + α-cetoglutarato ↔ piruvato + glutamato glutamato + oxalacetato ↔ α-cetoglutarato + aspartato α-cetoglutarato + NH4+ + NADPH → glutamato + NADP+ A equação soma relativa ao processo de síntese de ureia mostra que, na síntese de uma molécula de ureia, se gastam 4 ligações ricas em energia do ATP: duas moléculas de ATP convertem-se em ADP e uma em AMP (ver Equação 6). No entanto também é possível defender um outro ponto de vista. O oxalacetato é aceitador de grupos amina em reações de transaminação em que se forma o aspartato (Equação 17). Na conversão do fumarato (formado no ciclo da ureia) a oxalacetato participam a fumárase e a desidrogénase do malato e a equação soma correspondente a esta conversão é a Equação 18. A Equação 22 (que é a soma das equações 6 e 17-21) mostra que, tendo em conta os ATPs que se podem formar como consequência da oxidação do fumarato (via fumárase, desidrogénase do malato, cadeia respiratória e síntase do ATP; ver Equação 18 e Equação 19), também se pode pensar que o número de ligações ricas em energia gastas na síntese de uma molécula de ureia é de apenas 1,5 ATPs. Equação 17 Equação 18 Equação 19 Equação 20 Equação 21 Equação 22 oxalacetato + α-aminoácido → aspartato + α-cetoácido fumarato + NAD+ → oxalacetato + NADH NADH + ½ O2 + 2,5 ADP + 2,5 Pi → NAD+ + 2,5 ATP AMP + ATP → 2 ADP PPi + H2O → 2 Pi CO2 + NH4+ + 1,5 ATP + α-aminoácido → ureia + 1,5 ADP + 1,5 Pi + α-cetoácido No ciclo da ureia gastam-se 4 ligações ricas em energia do ATP mas, porque a reconversão do fumarato em aspartato permite a formação de 2,5 ATPs (admitindo relação P:O de 2,5 para o NADH), o gasto líquido é de apenas 1,5 ATPs. De qualquer forma, independentemente dos pontos de vista, pode sempre dizer-se que a síntese de ureia a partir de amónio e aspartato é um processo endergónico. 9- A esmagadora maioria dos aminoácidos é degradada no fígado, mas uma parte importante do catabolismo dos aminoácidos ocorre no músculo e nos enterócitos. É de notar que o catabolismo de uma determinada molécula de um determinado aminoácido até CO2 e ureia pode ser feito por etapas envolvendo vários órgãos. Um bom exemplo é o caso da glutamina que (em parte) é convertida, nos enterócitos, em amónio e alanina (esta conversão pode ocorrer via glutamina → glutamato → αcetoglutarato → succinil-CoA → succinato → fumarato → malato → oxalacetato → fosfoenolpiruvato → piruvato → alanina). A alanina é vertida na veia porta e é captada pelo fígado podendo, aqui, ser convertida em glicose e/ou glicogénio (gliconeogénese e/ou glicogénese indireta); se esta glicose for libertada para o sangue pode ser oxidada a CO2 em quase todas as células do organismo (a exceção são os eritrócitos). O NH4+ formado nos enterócitos a partir da glutamina [5C,2N] e o azoto da alanina [3C,1N] são, no fígado, convertidos em ureia [1C,2N]. 4 Embora não esteja definitivamente comprovado, é muito provável que, quando a desidrogénase do glutamato catalisa a síntese de glutamato a partir de α-cetoglutarato e amónio, o agente redutor seja o NADPH (ver equação 16) e que, quando catalisa a desaminação oxidativa do glutamato, o agente oxidante seja o NAD+ (ver equação 13). Página 3 de 7 Metabolismo do azoto e ciclo da ureia – Rui Fontes 10- O músculo é um importante local de degradação dos aminoácidos ramificados (valina, leucina e isoleucina). No processo de degradação destes aminoácidos o seu grupo amina pode acabar como azoto da alanina ou da glutamina. Embora constituam apenas 10% dos aminoácidos das proteínas musculares, a alanina e a glutamina constituem, em conjunto, mais de metade dos aminoácidos libertados pelos músculos. (1) A alanina é uma forma de transporte de azoto e de carbonos do músculo para o fígado sendo este transporte um dos componentes do chamado ciclo da alanina. A alanina libertada pelo músculo resulta de reações de transaminação em que intervém o piruvato formado na glicólise muscular; esta alanina é captada pelo fígado servindo o azoto para a síntese de ureia e o esqueleto carbonado para a síntese de glicose que, libertada no fígado, pode ser usada como combustível pelo músculo (ciclo da alanina). (2) Embora não seja consensual [1], admite-se que o esqueleto carbonado de algumas das moléculas da glutamina libertada pelo músculo tenha origem na valina e na isoleucina5. No seu catabolismo estes dois aminoácidos geram succinil-CoA; no ciclo de Krebs o succinil-CoA pode formar α-cetoglutarato que, aceitando um grupo amina em reações de transaminação, gera glutamato e (via sintétase da glutamina) glutamina. Na origem dos grupos azotados da glutamina estariam quer os aminoácidos ramificados (que podem ceder o grupo amina para formar o grupo α-amina da glutamina), quer outros aminoácidos que possam sofrer desaminação no músculo e ceder o NH4+ (que é substrato da sintétase da glutamina) para formar o grupo 5-amida da glutamina. A glutamina, libertada pelo músculo, pode ser, direta ou indiretamente (via alanina e amónio formados nos enterócitos a partir da glutamina), captada pelo fígado onde os carbonos podem gerar glicose e os azotos ureia. 11- Para além da ureia, um importante composto azotado da urina é o ião amónio (NH4+). A maior parte do amónio excretado na urina forma-se nas células tubulares renais por ação da glutamínase (ver Equação 7) e da desidrogénase do glutamato (ver Equação 13): o rim capta glutamina do plasma (com origem no músculo e, em situações de acidose, também no fígado) e usa os seus azotos para formar o amónio que excreta na urina. O valor do pKa do ião amónio é de cerca de 9,3 encontrando-se por isso na forma protonada em pHs fisiológicos. O ião amónio formado é segregado para o lúmen do nefrónio representando uma forma de excreção de protões. Em situações de acidose como, por exemplo, quando há síntese aumentada de corpos cetónicos num jejum que dura há vários dias, a maior parte do azoto urinário é eliminado na forma de amónio e não de ureia [2]. A síntese e a secreção de amónio pelo rim têm um papel homeostático na regulação do pH do meio interno. Para se compreender esta última afirmação é útil escrever a equação que descreve o somatório dos processos que levam à oxidação completa da glutamina (C5H11O3N2) com geração de amónio de forma a pôr em evidência que se gastam protões durante o processo (ver Equação 23)6. De notar que a oxidação da glutamina com geração de ureia não tem as mesmas consequências no que se refere ao consumo de protões (ver Equação 24). Equação 23 Equação 24 12- C5H11O3N2 + 4,75 O2 + 2 H+ → 2 NH4+ + 5 CO2 + 2,5 H2O C5H11O3N2 + 4,75 O2 → CON2H4 + 4 CO2 + 3,5 H2O Para além da ureia e do amónio urinários existem outras formas de eliminar o azoto que foi obtido através da ingestão de proteínas. Essas outras formas são a eliminação urinária de creatinina (formada com azoto da arginina e da glicina) e de ácido úrico (formado com azoto das purinas que por sua vez veio da glicina, do aspartato e da glutamina) e a eliminação de proteínas inteiras e outros produtos azotados nas fezes, pele, suor e secreções genitais e nasais. Num adulto com 70 kg de peso e com uma dieta equilibrada do ponto de vista calórico, mesmo na ausência de ingestão de proteínas, um mínimo de cerca de 25 g de aminoácidos são diariamente perdidos (“perdas obrigatórias de aminoácidos”). Porque o catabolismo dos aminoácidos fica acelerado quando se ingerem proteínas, para manter balanço azotado nulo, há que ingerir mais aminoácidos do que aqueles que são obrigatoriamente O músculo também liberta para o sangue α-cetoácidos ramificados que se originam por ação da transamínase dos aminoácidos ramificados e um ácido hidroxilado que é intermediário no catabolismo da valina, o β-hidroxi-isobutirato. Estas moléculas poderão ser captadas pelo fígado e completarem aí o processo catabólico com formação de glicose (casos dos α-cetoácidos derivados da valina e isoleucina e do β-hidroxi-isobutirato) e corpos cetónicos (casos dos αcetoácidos derivados da isoleucina e leucina) ou sofrer oxidação completa (a CO2) no próprio fígado. 6 De notar que a mesma equação também pode ser escrita de forma a pôr em destaque que se forma bicarbonato: C5H11O3N2 + 4,75 O2 → 2 NH4+ + 3 CO2 + 0,5 H2O + 2 HCO3-. 5 Página 4 de 7 Metabolismo do azoto e ciclo da ureia – Rui Fontes perdidos no contexto de uma dieta proteica nula. As estimativas atuais apontam para valores na ordem dos 0,66 g kg-1 dia-1 (46 g/dia num adulto de 70 kg) como correspondendo ao valor de ingestão proteica que supre as necessidades em 50% dos indivíduos adultos [3]. No seu conjunto cerca de 16% da massa das proteínas é azoto e, se admitirmos equilíbrio azotado e uma ingestão de 50 g/dia de proteínas, a massa total de azoto perdida na urina, nas fezes, na pele, no suor e nas secreções nasais e genitais perfaz 8 g/dia (50 g/dia × 0,16 = 8 g/dia). 13- Em geral, recomenda-se uma ingestão diária de, pelo menos, 0,83 g de proteínas por kg de peso (58 g num indivíduo adulto de 70 kg). Pelo menos no sentido que damos à palavra “reserva” quando falamos do glicogénio e da gordura dos adipócitos, os mamíferos não fazem reservas de aminoácidos nem de proteínas. Embora em resposta ao aumento da insulina no período pós-prandial haja um aumento da síntese proteica e diminuição da degradação (acontecendo o contrário quando a insulina desce) esta variação cíclica diária na massa proteica é muito pequena (≈ 0,3%) e, além disso, as proteínas têm papéis biológicos que ficam comprometidos se a massa de proteínas do organismo descer de forma apreciável. Em geral, a morte sobrevém quando, em consequência de jejum ou má nutrição, se perdem cerca de 50% das proteínas endógenas [4]. No caso do glicogénio hepático, 24 horas sem ingestão de glicídeos são suficientes para que este praticamente se esgote. No caso da gordura do tecido adiposo existem patologias congénitas compatíveis com a vida (lipodistrofias) em que este tecido está praticamente ausente. Um adulto saudável que não faz musculação, não está a recuperar de uma situação em que perdeu proteínas endógenas, nem está a engordar, está em equilíbrio azotado (tem um balanço azotado nulo) e em resposta a um aumento da ingestão de proteínas aumenta o catabolismo dos aminoácidos. Para o total do azoto eliminado também contribui o azoto das proteínas das células da pele ou das mucosas que, no seu processo de renovação cíclica, descamam assim como as proteínas da dieta cuja digestão e absorção é incompleta. A digestão incompleta de proteínas é mais marcada no caso das proteínas dos alimentos vegetais. Dependendo da dieta as perdas nas fezes podem constituir cerca de 20% do total do azoto eliminado diariamente sendo que o restante é, quase todo7, eliminado na urina. A percentagem de azoto eliminado como ureia varia com a quantidade de proteínas ingeridas aumentando quando aumenta a quantidade de proteínas na dieta. Nas dietas “típicas” do ocidente cerca de 85% do azoto urinário é azoto ureico sendo o restante componente de diversos compostos azotados da urina (ácido úrico, creatinina, amónia, hipurato, fenilacetil-glutamina, etc.). Assim, se admitirmos que à ingestão de 100 g/dia de proteínas (a ingestão média nos EUA) corresponde uma absorção de 80 g/dia a eliminação de ureia poderia ser de cerca de 23g/dia (80g × 0,16 × 60/28 × 0,85)8. 14- A velocidade com que o azoto dos aminoácidos é convertido em ureia depende da velocidade de desaminação e oxidação dos aminoácidos (catabolismo dos aminoácidos) e da atividade das enzimas do ciclo da ureia. Muitas das enzimas envolvidas no catabolismo dos aminoácidos têm Kms superiores às concentrações em que estes existem nas células, admitindo-se, por este motivo, que são sensíveis a variações na sua concentração [2]. Em todas as células do organismo, mas particularmente no fígado que recebe diretamente os aminoácidos libertados aquando da digestão intestinal, o aumento de aminoácidos livres pode ser uma consequência de aumento da ingestão de proteínas na dieta. A velocidade de síntese de ureia é mínima quando a dieta não contém proteínas mas contém glicídeos e é, em termos calóricos, capaz de colmatar a despesa energética. Comparativamente com esta situação, o catabolismo dos aminoácidos e a síntese de ureia é maior quando a ingestão alimentar é nula (apenas água). Neste último caso, porque a insulina está baixa (a insulina tem uma ação anabólica nas proteínas musculares), a proteólise endógena está aumentada fornecendo aminoácidos como substratos da gliconeogénese. Por outro lado a descida da secreção de insulina e a subida da de glicagina estimulam a captação de aminoácidos pelo fígado, o seu catabolismo e a gliconeogénese. Se o tempo de jejum se prolonga por vários dias, parte da despesa energética do cérebro pode passar a ser colmatada pelos corpos cetónicos. No entanto, mesmo nesta situação, cerca de metade da despesa energética do cérebro deriva da oxidação da glicose e a gliconeogénese é essencial para formar a glicose que é consumida pelo cérebro. Embora esta adaptação ao jejum (síntese de corpos cetónicos) 7 Cerca de 0,3-0,5 g de azoto (correspondente a 2-3 g de proteínas) é eliminado por dia nos tegumentos (descamação da pele e formação de pelos e unhas), no suor, nas secreções nasais e genitais e nas perdas ao lavar os dentes. 8 16% é a percentagem média da massa de azoto nas proteínas; 60/28 é a razão entre a massa molecular da ureia e a massa dos átomos de azoto na ureia. Página 5 de 7 Metabolismo do azoto e ciclo da ureia – Rui Fontes permita que a degradação das proteínas endógenas diminua à medida que o tempo de jejum total se prolonga, a síntese de glicose no jejum total está em grande parte9 dependente da degradação das proteínas endógenas e da conversão dos aminoácidos glicogénicos em glicose. Acompanhando o aumento da síntese de corpos cetónicos, durante o jejum prolongado diminui a formação de T3 (hormona tiroideia) e esta diminuição provoca diminuição da degradação das proteínas endógenas [2]. 15- Um outro fator que pode influenciar a velocidade de oxidação e catabolismo dos aminoácidos é a composição aminoacídica da dieta. Se uma dieta é deficiente num aminoácido essencial a síntese proteica está prejudicada e aumenta a concentração de aminoácidos livres. Existem aminoácidos que, em condições normais, seriam usados na síntese proteica e que, nestas circunstâncias, vão sofrer catabolismo. Uma dieta deficiente num aminoácido essencial provoca aumento do catabolismo dos outros aminoácidos. 16- A conversão dos aminoácidos em glicose ou a sua oxidação direta (maioritariamente via acetil-CoA) é acompanhada da formação de ureia. As condições que levam ao aumento do catabolismo dos aminoácidos também levam ao aumento da síntese de ureia. A ativação das enzimas do ciclo da ureia é, em geral, causada por aumento da sua síntese. No caso da sintétase de carbamil-fosfato I, a atividade depende estritamente da presença de um ativador alostérico: o N-acetil-glutamato. A enzima responsável pela síntese deste composto denomina-se síntase do N-acetil-glutamato (ver Equação 25) e está também ativada (aumento da sua síntese), provocando ativação da sintétase de carbamilfosfato I, quando a dieta é rica em proteínas. Nos mamíferos, a síntase do N-acetil-glutamato é ativada alostericamente pela arginina [5]. Equação 25 acetil-CoA + glutamato → N-acetil-glutamato + CoA 1. Stipanuk MH (2006) Biochemical, Physiological, Molecular Aspects of Human Nutrition. 2nd edn. Sunders, Elsevier., St. Louis. 2. Frayn KN (2010) Metabolic regulation. A human perspective., 3rd edn. John Willey And Sons, Oxford. 3. Rand WM, Pellett PL & Young VR (2003) Meta-analysis of nitrogen balance studies for estimating protein requirements in healthy adults. Am J Clin Nutr 77, 109-127. 4. Dulloo AG, Gubler M, Montani JP, Seydoux J & Solinas G (2004) Substrate cycling between de novo lipogenesis and lipid oxidation: a thermogenic mechanism against skeletal muscle lipotoxicity and glucolipotoxicity. Int J Obes Relat Metab Disord 28 Suppl 4, S29-37. 5. Caldovic L, Ah Mew N, Shi D, Morizono H, Yudkoff M & Tuchman M (2010) N-acetylglutamate synthase: structure, function and defects. Mol Genet Metab 100 Suppl 1, S13-19. 9 A glicose formada no fígado pode ter origem na reciclagem da alanina e do lactato nos ciclos da alanina e do lactato mas o cérebro não “recicla” glicose: o metabolismo cerebral é aeróbio e a glicose é convertida a CO2. Assim, se pensarmos num tempo de jejum em que já se esgotou o glicogénio, a maior parte da glicose formada “de novo” durante o jejum total resulta da conversão hepática dos aminoácidos libertados na hidrólise das proteínas musculares. Uma parte menor (cerca de ¼) resulta da conversão hepática do glicerol libertado aquando da hidrólise dos triacilgliceróis do tecido adiposo. Página 6 de 7 Metabolismo do azoto e ciclo da ureia – Rui Fontes Página 7 de 7